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Variação temporal no sítio de vocalização em uma comunidade de anuros de Botucatu, Estado de São Paulo, Brasil

Temporal variation in calling site use in a community of anurans in Botucatu, São Paulo State, Brazil

Resumos

Um estudo da variação temporal no sítio de vocalização de uma comunidade de anuros foi realizado em uma poça permanente, entre outubro de 1996 e fevereiro de 1998, em Rubião Jr. município de Botucatu, São Paulo. Foram registradas 14 espécies de anuros pertencentes às famílias Hylidae, Leptodactylidae, Leiuperidae e Bufonidae. A comunidade apresentou um maior número (n = 6) de espécies de ocorrência acidental (n < 20%) e maior riqueza de espécies e número de machos em atividade de vocalização nos meses quentes e úmidos (outubro a fevereiro). Foi observado um padrão sucessional na distribuição temporal das espécies e correlação significativa entre a riqueza e as variáveis climáticas, mas, apenas quatro espécies tiveram a abundância mensal correlacionada com estas variáveis. A grande maioria das espécies teve pequena amplitude de nicho, sendo consideradas especialistas no uso dos dois recursos considerados (ocorrência temporal e sítio de vocalização), não havendo sobreposição na ocorrência temporal, mas com alta sobreposição na ocupação de sítios de vocalização. A sobreposição no nicho multidimensional foi intermediária entre a duas dimensões consideradas, demonstrando complementaridade de nicho.

ecologia de comunidades; partilha de recursos; nicho multidimensional; anuros; sudeste do Brasil


A study on temporal variation in calling site use in a community of anurans was carried out in a permanent pond, between October of 1996 and February of 1998, in southeastern Brazil. Fourteen species of anurans were registered, belonging to the families: Hylidae, Leptodactylidae, Leiuperidae, and Bufonidae. Most species in the community were accidental (n = 6) and the majority vocalized in the hot and humid months (October to February). A sucessional pattern in time distribution and a significant statistical correlation between the richness and climatic variables was observed. However, significant statistical correlation between monthly abundance and climatic variables was found only for four species. The analysis of niche breadth, given by the Index of Levins, indicated that the majority of the species was specialist in the use of the two considered resources. The Coefficient of Similarity of Morisita-Horn did not point overlap in time occurrence, but a high overlap in calling site use was detected. Multidimensional overlap showed intermediate values between studied dimensions.

community ecology; resource partitioning; multidimensional niche; anurans; southeastern Brazil


ARTIGOS

Variação temporal no sítio de vocalização em uma comunidade de anuros de Botucatu, Estado de São Paulo, Brasil

Temporal variation in calling site use in a community of anurans in Botucatu, São Paulo State, Brazil

Geise Valentina de MeloI,1 1 Autor para correspondência: Geise Valentina de Melo, e-mail: geisevm@uol.com.br ; Denise de Cerqueira Rossa-FeresI; Jorge JimII

IDepartamento de Zoologia e Botânica, IBILCE-UNESP, Rua Cristovão Colombo, Jardim Nazareth, São José do Rio Preto, SP, Brasil, www.ibilce.unesp.br

IIDepartamento de Zoologia, Instituto de Biociências, UNESP, Rubião Jr., Botucatu, SP, Brasil, www.ibb.unesp.br

RESUMO

Um estudo da variação temporal no sítio de vocalização de uma comunidade de anuros foi realizado em uma poça permanente, entre outubro de 1996 e fevereiro de 1998, em Rubião Jr. município de Botucatu, São Paulo. Foram registradas 14 espécies de anuros pertencentes às famílias Hylidae, Leptodactylidae, Leiuperidae e Bufonidae. A comunidade apresentou um maior número (n = 6) de espécies de ocorrência acidental (n < 20%) e maior riqueza de espécies e número de machos em atividade de vocalização nos meses quentes e úmidos (outubro a fevereiro). Foi observado um padrão sucessional na distribuição temporal das espécies e correlação significativa entre a riqueza e as variáveis climáticas, mas, apenas quatro espécies tiveram a abundância mensal correlacionada com estas variáveis. A grande maioria das espécies teve pequena amplitude de nicho, sendo consideradas especialistas no uso dos dois recursos considerados (ocorrência temporal e sítio de vocalização), não havendo sobreposição na ocorrência temporal, mas com alta sobreposição na ocupação de sítios de vocalização. A sobreposição no nicho multidimensional foi intermediária entre a duas dimensões consideradas, demonstrando complementaridade de nicho.

Palavras-chave: ecologia de comunidades, partilha de recursos, nicho multidimensional, anuros, sudeste do Brasil.

ABSTRACT

A study on temporal variation in calling site use in a community of anurans was carried out in a permanent pond, between October of 1996 and February of 1998, in southeastern Brazil. Fourteen species of anurans were registered, belonging to the families: Hylidae, Leptodactylidae, Leiuperidae, and Bufonidae. Most species in the community were accidental (n = 6) and the majority vocalized in the hot and humid months (October to February). A sucessional pattern in time distribution and a significant statistical correlation between the richness and climatic variables was observed. However, significant statistical correlation between monthly abundance and climatic variables was found only for four species. The analysis of niche breadth, given by the Index of Levins, indicated that the majority of the species was specialist in the use of the two considered resources. The Coefficient of Similarity of Morisita-Horn did not point overlap in time occurrence, but a high overlap in calling site use was detected. Multidimensional overlap showed intermediate values between studied dimensions.

Keywords: community ecology, resource partitioning, multidimensional niche, anurans, southeastern Brazil.

Introdução

Segundo Putman (1994) a posição de um organismo dentro de uma comunidade pode ser definida em termos do seu padrão de utilização de recursos, e sua interação com outros organismos em relação ao uso desses mesmos recursos. Tal explicação sobre a posição de um organismo numa comunidade e suas relações com outros organismos expressa o conceito de nicho ecológico (Putman 1994).

Comunidades de anuros brasileiros foram estudadas na região Amazônica (e.g. Crump 1971, Gascon 1991, Neckel-Oliveira et al. 2000), na Mata Atlântica (e.g. Heyer et al. 1990, Haddad & Sazima 1992, Bertoluci 1998, Conte & Rossa-Feres 2006), e, em áreas abertas do sudeste do Brasil (e.g. Cardoso et al., 1989, Rossa-Feres & Jim 1994 e 2001, Vasconcelos & Rossa-Feres 2005). De modo geral, na região neotropical, a maioria das espécies de anuros apresenta atividade reprodutiva no período quente e úmido do ano (e.g. Duellman & Trueb 1994, Donelly & Guyer 1994, Rossa-Feres & Jim 1994), sendo essa atividade fortemente influenciada pela ocorrência de chuvas (Aichinger, 1987; Gascon 1991). Dada a grande diversidade de anuros nessa região, em muitas comunidades observa-se grande número de indivíduos de diferentes espécies, com diferentes graus de parentesco, ocupando os mesmos corpos d’água. Assim, torna-se importante compreender os mecanismos que possibilitam às espécies de uma comunidade ocupar o mesmo ambiente, na mesma época do ano.

Morris (1990) ressalta que uma completa compreensão da estrutura de qualquer comunidade é possível somente no contexto da variação espacial e temporal. Muitos estudos recentes demonstram a influência da distribuição espacial e temporal na estrutura de comunidades de anuros brasileiros (e.g. Rossa-Feres & Jim, 1994 e 2001, Eterovick & Sazima 2000). Os estudos de ocupação de microambientes são particularmente importantes em comunidades de anuros de área aberta já que, nestes locais, a heterogeneidade estrutural é freqüentemente muito baixa e a semelhança estrutural entre os corpos d’água é grande.

Este trabalho teve como objetivos determinar os padrões de distribuição temporal e uso do ambiente pelas espécies de uma poça permanente, e determinar a influência destas duas dimensões do nicho na estrutura de uma comunidade de anuros.

Material e Métodos

1. Área e corpo d’água estudado

O município de Botucatu, localizado na região centro-oeste do estado de São Paulo, possui clima subtropical úmido (CWA Koeppen), com estação chuvosa estendendo-se de outubro a março e estação seca, de abril a setembro. Segundo Kronka et al. (1998), a região possui cerca de 4.500 ha de área remanescente de cerrado e "cerradão". O Distrito de Rubião Jr., Botucatu, está localizado na parte superior da ‘‘cuesta’’, a cerca de 900 m de altitude.

As amostragens foram realizadas em poça artificial permanente com margens em barranco, situada em uma área de pastagem, localizada na área urbana do distrito de Rubião Jr. A poça possui margens em barranco e cerca de 20 m de comprimento, com 9,60 m na sua parte mais estreita e 14,50 m na sua parte mais larga; a profundidade máxima é de cerca de 1,20 m. Apresenta vegetação arbustiva (Onagraceae, Solanaceae, Verbenaceae, Rutaceae e Asteraceae) na região marginal, Poaceae que ocorre nas margens e adentra o corpo d’água, e Thyphaceae que ocorre somente no interior da poça. Por uma das margens há constante e discreta entrada de água proveniente de uma nascente. Na margem oposta, existe um estreito canal por onde a água é escoada, descendo através do barranco que separa a poça de um brejo. Este brejo estende-se até um córrego, cujas margens possuem vegetação arbustiva e arbórea.

2. Amostragens e análise de dados

As visitas à área de estudo tiveram periodicidade quinzenal, totalizando 31 noites de observação, no período de outubro de 1996 a fevereiro de 1998. As observações foram iniciadas logo após o pôr do sol e encerradas por volta de 22:00 horas. As temperaturas do ar e da água foram determinadas sempre ao início e ao final de cada coleta. Os dados de pluviosidade mensal foram obtidos no Departamento de Ciências Ambientais da Fazenda Experimental Lageado da UNESP/Botucatu, distante aproximadamente 8 km do local estudado. Para a visualização dos adultos foi utilizada lanterna de luz branca. Para cada indivíduo encontrado foi registrada a altura na vegetação (espécies de hábito trepador) ou profundidade (espécies de hábito semi-aquático) e a distância da margem, em direção ao centro ou externamente à poça, utilizando-se uma trena.

A altura média de empoleiramento na vegetação foi comparada pelo teste t de Student para pares de espécies, a um nível de significância de 5% (Vieira, 1985). Além disso, o uso de sítio de vocalização foi analisado em relação ao tamanho dos indivíduos. Para isso, foram considerados de pequeno porte anuro com comprimento total até 25 mm, de médio porte aqueles com comprimento total entre 25,1 e 50 mm, e de grande porte os anuros com comprimento total superior a 51 mm. A influência das variáveis ambientais (temperaturas do ar e da água e pluviosidade) sobre a riqueza mensal e a abundância das espécies foi verificada através do coeficiente de correlação de Kendall, a um nível de significância de 5%.

A constância de ocorrência das espécies (C) da comunidade foi determinada segundo o índice de Dajoz (1973), sendo as espécies classificadas como constantes quando C > 50%, acessórias quando 25% < C < 50% e acidentais quando C < 25%. A amplitude de nicho foi calculada pelo Índice de Levins (B), que dá um maior peso aos recursos abundantes (Krebs 1999). Para facilitar a interpretação do resultado foi feita a padronização de Hurlber (Krebs 1999). As espécies com valores de amplitude de nicho entre 0 e 0,50 foram consideradas especialistas; aquelas com valores entre 0,51 e 0,70 foram consideradas intermediárias e as com valores entre 0,71 e 1,0 foram consideradas generalistas.

A sobreposição em cada dimensão do nicho (tempo e sítio de vocalização) e a sobreposição multidimensional foram calculadas pela aplicação do Índice de Similaridade de Morisita-Horn (CH) (Krebs 1999). Para verificar o grau de sobreposição entre as espécies dos agrupamentos evidenciados, o mesmo índice de similaridade foi aplicado para pares de espécies. Foram considerados agrupamentos de espécies com alta sobreposição aqueles com CH> 0,71, com sobreposição parcial aqueles com CH entre 0,51 e 0,70, e com baixa sobreposição os agrupamentos com CH< 0,50. O coeficiente de correlação cofenético (r) foi determinado para verificar a representatividade das matrizes de similaridade nos dendrogramas, sendo considerados com alta representatividade os dendrogramas com valores de r > 0,8.

Resultados

1. Ocorrência temporal

Foram registradas 14 espécies pertencentes a seis gêneros de três famílias de anuros: Hylidae (nove espécies), Leptodactylidae (duas espécies), Leiuperidae (duas espécies) e Bufonidae (uma espécie) (Tabela 1). A comunidade estudada pode ser caracterizada por apresentar um maior número de espécies acidentais (n = 8) e poucas espécies constantes (n = 3) e acessórias (n = 3) (Tabela 1). Hypsiboas prasinus, H. faber, Eupemphix nattereri e Leptodactylus labyrinthicus foram raras, com apenas um a três exemplares registrados durante o período de estudo (Tabela 1).

A maior riqueza de espécies foi registrada nos meses de outubro a fevereiro, quando a temperatura do ar foi superior a 19 °C e a pluviosidade superior a 100 mm3 (Figura 1). Consequentemente, verificou-se correlação positiva significativa entre o número de espécies vocalizando e a pluviosidade mensal (r = 0,31, p = 0,04), temperatura do ar (r = 0,54, p = 0,001) e temperatura da água (r = 0,64, p = 0,0004). Outubro foi o mês de maior riqueza nos dois anos estudados, com nove espécies registradas em cada ano. Destas, sete estavam presentes em ambos os anos (Figura 1). Dendropsophus minutus foi a única espécie generalista quanto à ocorrência sazonal, mas sua abundância foi maior nos meses mais quentes, sendo significativamente correlacionada com as temperaturas do ar e da água. A abundância de Dendropsophus nanus e de D. sanborni foi significativamente correlacionada com as três variáveis climáticas consideradas, assim como a abundância de Physalaemus cuvieri com as temperaturas do ar e da água. Já a abundância das demais espécies não foi correlacionada com nenhuma das variáveis ambientais consideradas (Tabela 1 e Figura 1).


As abundâncias de Dendropsophus nanus e de D. sanborni variaram inversamente de modo que, no mês de maior abundância da primeira (dezembro de 1997) não foi coletado nenhum indivíduo da segunda (Figura 1).

A análise de agrupamento evidenciou duas guildas: 1) P. cuvieri, D. nanus e D. elianeae, que ocorreram principalmente nos meses de novembro e dezembro e 2) L. ocellatus, D. sanborni e D. minutus que ocorreram principalmente em fevereiro, outubro e novembro (Figura 2). De modo geral, as três espécies da primeira guilda apresentaram alta sobreposição de nicho, enquanto apenas uma das três possíveis combinações de pares de espécies da segunda guilda apresentou alta sobreposição de nicho. Exceto a alta sobreposição entre P. cuvieri e L. ocellatus, a sobreposição entre as demais espécies foi parcial ou baixa tanto entre pares de espécies congenéricas quanto entre espécies de gêneros e famílias diferentes (Tabela 2). Dentre as 66 combinações de pares de espécies possíveis, 12 (18,2%) apresentaram total segregação sazonal ou valores de sobreposição muito próximos a zero e, 27 (40,9%) espécies apresentaram valores de sobreposição inferiores a 0,50 (Tabela 2).


2. Sítio de vocalização

A maioria dos indivíduos das quatro espécies de hilídeos pequenos ocorreu no interior da poça. Dentre eles, machos de D. minutus ocuparam sítios de vocalização mais baixos, sendo a maioria (70,2%, n = 165) encontrada sobre o solo (Figura 3, Tabela 3). Alguns indivíduos de D. nanus (22%, n = 10) e de D. sanborni (17,6%, n = 3) também ocorreram sobre o solo, mas a grande maioria (D. nanus = 48,9%, n = 22; D. sanborni = 76,5%, n = 13) foi encontrada empoleirada entre 10 e 40 cm de altura. Dendropsophus nanus foi a espécie que ocupou sítios de vocalização mais altos, sendo 28,9% dos indivíduos encontrados entre 41 e 70 cm de altura (Figura 3, Tabela 3). Os poucos indivíduos de D. elianeae (n = 3) observados estavam empoleirados entre 7 e 53 cm de altura (Figura 3).


Dentre os hilídeos maiores, machos de Scinax fuscovarius foram observados somente sobre o solo, no máximo a 1 m de distância do corpo d’água. A maioria dos indivíduos de H. caingua (61,9%, n = 13) e de H. albopunctatus (61,1%, n = 11) também ocorreu externamente ao corpo d’água, sendo que alguns machos vocalizaram sobre o solo, porém a maioria (66,7% e 55%, respectivamente) vocalizou empoleirada entre 20 e 50 cm de altura (Figura 4). Foram observados dois indivíduos de H. faber no interior da poça, flutuando em locais com profundidade de 7 e 40 cm.


Todos os indivíduos de C. ictericus ocorreram sobre solo seco ou encharcado, sendo que a metade deles vocalizou no interior da poça e a outra metade, no máximo a 1,5 m do corpo d’água (Figura 5). A maioria dos indivíduos de Physalaemus cuvieri (88,6%, n = 62) foi encontrada no interior da poça, em "pocinhas" com profundidade máxima de 10 cm. Tanto L. ocellatus (Figura 5), quanto L. labyrinthicus foram encontrados no interior da poça, em locais com profundidade superior a 5 cm.


Os hilídeos de hábito trepador apresentaram grande variação intrapopulacional na altura média de empoleiramento (Tabela 3). Apesar disso, houve diferença entre D. minutus e D. nanus (t = 5,99, p < 0,05); D. minutus e D. sanborni (t = 2,99, p < 0,05) e D. minutus e H. albopunctatus (t = 3,36, p < 0,05). Houve uma tendência das espécies de hilídeos de hábito trepador ocuparem sítios de vocalização mais baixos nos meses mais frios e com índices pluviométricos menores (Figura 3); com exceção de D. elianeae, os hilídeos de pequeno porte ocorreram externamente à margem da poça somente nos meses com altos índices pluviométricos (Figura 3).

A única espécie intermediária na ocupação do estrato vertical e generalista na ocupação do estrato horizontal foi D. nanus. As demais espécies foram especialistas para estas duas dimensões do sítio de vocalização (Tabela 3). A análise de agrupamento evidenciou três guildas de anuros, cujas espécies apresentaram alta sobreposição na ocupação de sítios de vocalização (Tabela 4 e Figura 6):

1) Dendropsophus nanus, D. sanborni, H. albopunctatus e H. caingua, cujos machos vocalizaram empoleirados na vegetação;

2) Scinax fuscovarius, C. ictericus e D. minutus, cujos machos vocalizaram sobre o solo; e

3) P. cuvieri e L. ocellatus, cujos machos vocalizaram flutuando na superfície ou apoiados no fundo do corpo d’água.


Dentre as 45 combinações possíveis de pares de espécies, 10 (22,2%) apresentaram alta sobreposição (CH > 0,71, Tabela 4).

3. Nicho multidimensional

A análise de agrupamento para as dimensões tempo e sítio de vocalização evidenciou quatro guildas de espécies com sobreposição em ambas as dimensões do nicho (Figura 7):

1) P. cuvieri e L. ocellatus;

2) D. nanus e D. elianeae;

3) D. minutus, S. fuscovarius e C. ictericus; e

4) D. sanborni e H. albopunctatus.


Das 45 combinações possíveis de pares de espécies, apenas três (6,7%) apresentaram alta sobreposição (CH > 0,71), sendo que em 27 (60%) dos pares de espécies os valores de sobreposição foram baixos (CH < 0,50, Tabela 5).

Discussão

O padrão de distribuição sazonal observado para a comunidade de anuros estudada corresponde ao descrito por outros autores para a região neotropical (e.g. Pombal Jr. 1997), ainda que o ambiente em estudo esteja localizado em área muito alterada pelo homem. A riqueza de espécies foi menor nos meses mais frios; nesses meses, ainda que a pluviosidade aumentasse para valores superiores àqueles de alguns meses da estação quente e úmida (100 mm3), a riqueza de espécies não aumentou. Isto pode explicar o fato que, embora significativo, o valor de correlação entre a riqueza e a pluviosidade não tenha sido alto. Além disso, dentre as oito espécies para as quais foi possível realizar a análise de correlação, quatro apresentaram abundância correlacionada com as temperaturas do ar e da água; porém dentre elas, somente duas (Dendropsophus nanus e D. sanborni) tiveram a abundância correlacionada também com a pluviosidade. Em estudo desenvolvido em uma região de clima mais quente e seco (Vasconcelos & Rossa-Feres 2005) e em outro desenvolvido em região de clima semelhante ao de Botucatu (Toledo et al., 2003), independentemente do tipo e tamanho dos corpos d’água observados, o número de espécies em atividade de vocalização foi influenciado pela pluviosidade e pelas temperaturas médias mensais. Resultado semelhante foi encontrado por Prado et al. (2005) na região do Pantanal, Centro-Oeste do Brasil. De acordo com Nimer (1979), a região sudeste do Brasil é uma região de transição entre os climas quentes das latitudes baixas e os climas mesotérmicos das latitudes médias, apresentando notável diversidade climática. Deste modo e, conforme discutido por Jim (2002), a região de Botucatu pode ser caracterizada como uma "ilha" de temperaturas mais baixas e umidade elevada. Assim, havendo maior umidade ao longo de todo o ano, é provável que a ocorrência de chuvas não exerça grande influência na variação de abundância das espécies nesta região, possibilitando, ainda, a presença de espécies adaptadas a temperaturas mais baixas, como é o caso de H. caingua.

O clima mais úmido da região de Botucatu, quando comparado a outras regiões do Estado de São Paulo, exceto áreas de mata atlântica (eg. Heyer et al. 1990), possibilita a ocorrência de anuros na estação fria e seca ampliando as possibilidades de partilha sazonal entre as espécies. Entretanto, os menores valores de sobreposição sazonal foram observados entre espécies pouco abundantes, como Dendropsophus elianeae, Hypsiboas faber e H. albopunctatus, ou com ocorrência explosiva (sensu Wells, 1977), como é o caso de Scinax fuscovarius. A presença de espécies acidentais ou raras em cada guilda, o padrão sucessional na distribuição das espécies e o fato de que, exceto Dendropsophus minutus, todas as demais espécies foram especialistas quanto à ocorrência sazonal, foram os fatores que contribuíram para a partilha sazonal dos anuros nesta comunidade.

A tendência observada entre os hilídeos que vocalizaram empoleirados, principalmente os de pequeno porte, de ocuparem sítios de vocalização diferentes em função da temperatura e da pluviosidade, indica que o uso de sítio de vocalização varia em uma mesma estação. A distribuição vertical variou mais em função da temperatura provavelmente porque, próxima ao solo ou ao corpo d’água a temperatura é um pouco mais alta. Do mesmo modo, a distribuição horizontal das espécies menores de hilídeos variou mais em função da pluviosidade: anfíbios pequenos possuem, proporcionalmente, mais área de superfície que anfíbios maiores e, portanto, têm uma maior taxa de perda de água por evaporação (Duellman & Trueb 1994), o que explica o fato dessas espécies terem ocorrido externamente ao corpo d’água somente nos meses com altos índices pluviométricos.

De modo geral, os hilídeos de pequeno porte ocorreram no interior da poça, os hilídeos maiores de hábito trepador ocorreram externamente à poça e as espécies terrestres ou de hábito semi-aquático ocorreram na margem. Isto pode decorrer de restrições de tamanho, fisiológica ou filogenética. Por outro lado, a presença de grande número de espécies especialistas no uso de sítio de vocalização não evitou a ocorrência de sobreposição entre elas.

Segundo Faivovich et al. (2005) as espécies aqui denominadas hilídeos de pequeno porte (todas do gênero Dendropsophus) são filogeneticamente mais próximas entre si; Hypsiboas caingua e H. albopunctatus são filogeneticamente mais próximas entre si do que com qualquer das outras espécies aqui estudadas. Isto aponta para a forte influência de restrições filogenéticas nos caracteres ecológicos dos anuros.

Apesar de Dendropsophus sanborni ter seu período de ocorrência incluído no de D. nanus, não houve sobreposição entre elas, principalmente devido ao fato de que a abundância de D. sanborni foi bem menor e pareceu variar mais em função da abundância da primeira que da temperatura ou pluviosidade. Entretanto, tais espécies apresentaram grande similaridade no sítio de vocalização. Em um estudo em três diferentes açudes na região noroeste do Estado de São Paulo, Menin et al. (2005) também registraram grande similaridade no sítio de vocalização de D. nanus e D. sanborni, o que pode ser reflexo da história evolutiva dessas duas espécies taxonomicamente próximas, já que, padrão semelhante de interação na ocorrência temporal e no uso de micro-ambientes foi registrado em diferentes regiões e em corpos d’água de tamanhos diferentes. Thompson (1994) afirma que as interações entre espécies são formadas, em parte, pela bagagem filogenética da fisiologia e comportamento que os organismos herdam de seus ancestrais.

Macnally (1985) encontrou sobreposição de microhábitat em duas espécies de Crinia na Austrália, mas que apresentaram segregação sazonal. Begon et al. (1990) afirmam que ocorre complementaridade de nicho quando a diferenciação de nicho, dentro de uma guilda, envolve várias dimensões do nicho e as espécies que ocupam uma posição semelhante ao longo de uma dimensão tendem a diferir ao longo de outra.

As espécies de anuros estudadas em um açude temporário na região noroeste do Estado de São Paulo por Rossa-Feres & Jim (2001) também apresentaram sobreposição espacial, mas com partilha no espaço acústico. Diferentemente do presente estudo, os autores encontraram um maior número de espécies generalistas para sítio de vocalização. Tal diferença pode ser devido ao fato do corpo d’água presentemente amostrado ser permanente. Segundo Putman (1994) em ambientes onde as condições e a disponibilidade de recursos são imprevisíveis e variáveis, nenhum organismo pode tornar-se demasiadamente especialista.

No presente estudo, todos os pares de espécies que apresentaram sobreposição no sítio de vocalização, apresentaram partilha sazonal; a única exceção foi o par P. cuvieri - L. ocellatus, que apresentaram tanto sobreposição sazonal quanto espacial. No entanto, neste caso, L. ocellatus foi pouco abundante e pouco freqüente.

De modo geral, a sobreposição multidimensional foi intermediária entre a sobreposição sazonal que foi, em geral, menor e a sobreposição no sítio de vocalização que foi, em geral, maior, demonstrando complementaridade de nicho. Apenas a guilda formada por D. nanus e D. elianeae apresentou alta sobreposição temporal; as demais espécies apresentaram alta sobreposição no uso de sítio de vocalização. Assim, na comunidade estudada em Rubião Jr. a partilha no nicho multidimensional foi claramente possível pela grande partilha na distribuição temporal das espécies. Embora muitos autores tenham apontado a partilha de hábitat como um dos principais fatores que permitem a coexistência das espécies em uma comunidade (e.g. Schoener 1974; Rosenzweig 1981; Wiest 1982), provavelmente esta dimensão do nicho desempenha papel fundamental somente em locais onde a possibilidade de partilha sazonal seja pequena, como em corpos de água temporários ou em regiões com estação seca pronunciada e estação chuvosa com índices pluviométricos mais baixos (e.g. Vasconcelos & Rossa-Feres, 2005; Rossa-Feres & Jim, 2001). Em corpos d’água permanentes, onde há uma sucessão na ocorrência das espécies ao longo do ano, a partilha microespacial pode exercer papel secundário em evitar a sobreposição no uso de sítios reprodutivos e, inclusive, sítios de forrageamento.

Agradecimentos

Ao Sr. Nelson Carneiro pelo valioso auxílio nas atividades de campo. Ao Dr. Benedito Rinaldo Cardana pelo auxílio na diferenciação dos exemplares de Dendropsophus nanus e D. sanborni, na tomada das medidas e proporções da área de estudo e nas atividades de campo. Aos dois assessores anônimos da revista Biota Neotropica pelas correções e valiosas sugestões. Esse trabalho foi parcialmente financiado pela FAPESP (Programa Biota/FAPESP, Proc. no. 01/13341-3). Ao CNPq pela bolsa concedida ao primeiro autor.

Recebido em 20/10/06

Versão reformulada recebida em 29/03/07

Publicado em 01/05/07

ISSN 1676-0603.

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    Autor para correspondência: Geise Valentina de Melo, e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Nov 2007
    • Data do Fascículo
      2007

    Histórico

    • Revisado
      29 Mar 2007
    • Recebido
      20 Out 2006
    • Aceito
      01 Maio 2007
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