Acessibilidade / Reportar erro

Ocorrência simultânea de síndrome de Evans e anemia falciforme em uma criança de 2 anos

Simultaneous occurrence of Evans syndrome and sickle cell anemia in a 2 year-old child

Resumos

A associação entre anemia falciforme (AF) e síndrome de Evans (SE) parece ser rara. Esse estudo objetivou relatar o caso de uma criança com AF e SE. A paciente R. M. S. S., 2 anos de idade, foi admitida em um centro hematológico apresentando hemorragia de mucosa, leucometria 20,3 × 10(9)/l, hemoglobina 4,6 g/dl e plaquetas 28 × 10(9)/l. Posteriormente, realizou-se mielograma, que evidenciou hipercelularidade eritroide, sugerindo hemólise. Teste positivo da antiglobulina direcionou o diagnóstico para SE. Iniciou-se pulsoterapia com corticoide até regularização da plaquetometria. Hemácias em foice foram visualizadas no esfregaço sanguíneo; eletroforese de hemoglobina revelou fenótipo SS. A associação parece ter sido fortuita e gerou quadro grave, que deve ser reconhecido prontamente.

Anemia de células falciformes; Síndrome de Evans; Criança


The association of sickle cell anemia (SCA) and Evans syndrome (ES) seems to be uncommon. This study aimed to report a case of a child with SCA and SE. 2 year-old R. M. S. S. was admitted into a hematologic center with mucosal bleedings. Exam results revealed leucocyte 20.3 × 10(9)/l, hemoglobin 4.6 g/dl, and platelets 28 × 10(9)/l. Subsequently, myelogram was performed and showed erythroid-hypercellularity, which suggested hemolysis. Positive antiglobulin test corroborated the diagnosis of ES. Corticosteroid pulse therapies were conducted until normalization of platelet count. Sickle cells were detected in blood smears and hemoglobin electrophoresis revealed SS phenotype. Despite the fact the association appears to occur randomly, it causes severe clinical symptoms, which must be promptly recognized.

Sickle cell anemia; Evans syndrome; Child


RELATO DE CASO CASE REPORT

Ocorrência simultânea de síndrome de Evans e anemia falciforme em uma criança de 2 anos

Simultaneous occurrence of Evans syndrome and sickle cell anemia in a 2 year-old child

Adriana Alexandre BritoI; Luiz Arthur Calheiros LeiteII; Rúbia Maysa MartinIII; Fernando Wagner da Silva RamosIV; Simone Medeiros Beder ReisV

IPós-graduação em Hematologia e Hemoterapia pela Faculdade de Ciências Biológicas e da Saúde do Centro de Estudos Superiores de Maceió (FCBS/CESMAC)

IIMestre em Hematologia pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/UNIFESP); doutor em Bioquímica e Fisiologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); coordenador do curso de pós-graduação em Hematologia e Hemoterapia da FCBS/CESMAC

IIIBiomédica; biolologista; especialista pelo Department of Medical Laboratory Technology, Wake Tech Community College North Carolina, USA

IVMestre em Ciências pela Universidade Federal de Lavras (UFAL); professor de Hematologia da UFAL

VHematologista do Departamento de Onco-hematologia do Hemocentro de Alagoas (HEMOAL)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Luiz Arthur Calheiros Leite Av. Menino Marcelo s/n Conjunto Jardim Europa, lt 13 – Antares Tel.: (82) 3341-0996 CEP: 57083-410 – Maceió-AL e-mail: lahemato@hotmail.com

RESUMO

A associação entre anemia falciforme (AF) e síndrome de Evans (SE) parece ser rara. Esse estudo objetivou relatar o caso de uma criança com AF e SE. A paciente R. M. S. S., 2 anos de idade, foi admitida em um centro hematológico apresentando hemorragia de mucosa, leucometria 20,3 × 109/l, hemoglobina 4,6 g/dl e plaquetas 28 × 109/l. Posteriormente, realizou-se mielograma, que evidenciou hipercelularidade eritroide, sugerindo hemólise. Teste positivo da antiglobulina direcionou o diagnóstico para SE. Iniciou-se pulsoterapia com corticoide até regularização da plaquetometria. Hemácias em foice foram visualizadas no esfregaço sanguíneo; eletroforese de hemoglobina revelou fenótipo SS. A associação parece ter sido fortuita e gerou quadro grave, que deve ser reconhecido prontamente.

Unitermos: Anemia de células falciformes, Síndrome de Evans, Criança

ABSTRACT

The association of sickle cell anemia (SCA) and Evans syndrome (ES) seems to be uncommon. This study aimed to report a case of a child with SCA and SE. 2 year-old R. M. S. S. was admitted into a hematologic center with mucosal bleedings. Exam results revealed leucocyte 20.3 × 109/l, hemoglobin 4.6 g/dl, and platelets 28 × 109/l. Subsequently, myelogram was performed and showed erythroid-hypercellularity, which suggested hemolysis. Positive antiglobulin test corroborated the diagnosis of ES. Corticosteroid pulse therapies were conducted until normalization of platelet count. Sickle cells were detected in blood smears and hemoglobin electrophoresis revealed SS phenotype. Despite the fact the association appears to occur randomly, it causes severe clinical symptoms, which must be promptly recognized.

Key words: Sickle cell anemia, Evans syndrome, Child

Introdução

A anemia falciforme (AF) é uma importante causa de morbimortalidade na infância. Essa hemoglobinopatia é resultante da mutação do gene betaglobina da hemoglobina, com efeitos pleiotrópicos em pacientes com doença falciforme, incluindo vaso-oclusão, anemia hemolítica, infecções, isquemia e lesões de órgãos. Os episódios de dor aguda derivados das crises vaso-oclusivas estão entre as causas mais frequentes de hospitalizações desses pacientes(2, 9).

Assim como a AF, a síndrome de Evans (SE) é uma anemia hemolítica definida pela combinação, simultânea ou sequencial, de anemia hemolítica autoimune (AHAI) e púrpura trombocitopênica imunológica (PTI), cursando, algumas vezes, com neutropenia imune na ausência de etiologia subjacente conhecida(4).

Conforme Teachey et al.(8), SE é uma doença crônica e recidivante associada à morbidade significativa, apesar da terapêutica. Sua fisiopatologia tem origem desconhecida, contudo, sabe-se que ocorre após desregulação do sistema imunológico. Quadros infecciosos, doenças reumatológicas e neoplasias podem apresentar, com frequência, citopenias, no entanto os pacientes com essas condições não apresentam necessariamente SE. Indivíduos com essa síndrome frequentemente apresentam outros sintomas, além de suas manifestações autoimunes, incluindo linfoadenopatia e hepatoesplenomegalia. Assim, por definição, essa doença se torna um diagnóstico de exclusão(1).

O objetivo do presente estudo foi relatar um caso com rara associação entre AF e SE em uma criança de 2 anos de idade.

Relato de caso

R. M. S. S., 2 anos, sexo feminino, proveniente de Santana do Mundaú, Alagoas, compareceu ao médico da região apresentando quadro de anemia grave, palidez cutâneo-mucosa, leucocitose e esplenomegalia. O profissional solicitou avaliação hematológica com urgência e encaminhou a paciente ao centro de referência em hematologia/banco de sangue para consulta. No exame físico, foram constatadas linfoadenopatia e discreta hepatoesplenomegalia. Em virtude disso, foram solicitados exames hematológicos: hemograma que mostrou leucometria inicial 20,3 × 109/l, blastos 1%, neutrófilos 44%, linfócitos 48%, monócitos 2%, eosinófilos 5%, eritrócitos 1,67 × 1012/l, hemoglobina 4,6 g/dl, hematócrito 11%, volume corpuscular médio (VCM) 91 fl, hemoglobina corpuscular média (HCM) 27,5 pg, concentração de hemoglobina corpuscular média (CHCM) 30,3 g/dl, red cell distribution width (RDW) 21,1% e plaquetas 28 × 109/l. Além disso, foram visualizados 27 eritroblastos em 100 leucócitos, anisopoiquilocitose, policromatofilia, células em alvo e esquizócitos. Devido à descompensação clínica e à baixa concentração de hemoglobina, utilizou-se concentrado de hemácias.

Após 22 dias da primeira consulta, a paciente retornou ao centro de referência em hematologia/banco de sangue exibindo piora do estado geral, com tosse produtiva, linfoadenopatia nas regiões cervical e inguinal, febre e sangramento nas mucosas. Assim, foi realizado um segundo hemograma com o seguinte resultado: leucócitos 32,5 × 109/l, blastos 1%, promielócitos 1%, mielócitos 1%, metamielócitos 3%, bastão 4%, neutrófilos 45%, linfócitos 29%, monócitos 6%, eosinófilos 10%, eritrócitos 1,07 × 1012/l, hemoglobina 3,3 g/dl, hematócrito 11%, VCM 103 fl, HCM 31,3 pg, CHCM 30,3 g/dl, RDW 24,6% e plaquetas 19 × 109/l. Na análise morfológica, foram visualizados 52 eritroblastos em 100 leucócitos. Em razão da alta leucometria e das citopenias, foi solicitado um aspirado de medula óssea para melhor avaliação do quadro clínico.

O resultado do mielograma descartou a possibilidade de citopenias por neoplasias hematológicas e eritroleucemia, pois o exame apresentava hipercelularidade no setor eritroide, com normocelularidade megacariocítica, sugerindo processo hemolítico. Após isso, realizaram-se os testes direto da antiglobulina humana (+++/+4) e indireto (+/4+), que direcionou para o diagnóstico de SE. A partir da elucidação do caso, iniciou-se pulsoterapia com metilprednisolona durante cinco dias e prednisona oral até regularizar os níveis de plaquetas. Somente nos hemogramas posteriores foram visualizadas hemácias em forma de foice, devido ao alto nível de hemoglobina fetal da paciente (Tabela). Após 120 dias da última transfusão sanguínea, realizou-se eletroforese de hemoglobina, que confirmou a hemoglobinopatia SS. Devido à paciente exibir AF e depender de transfusões, processou-se a fenotipagem eritrocitária para evitar o risco de aloimunização, inclusive de reação transfusional hemolítica tardia/hiper-hemólise (RTHT/H), em que o resultado do fenótipo da criança foi Dē e NĀFY(a+b) JK(a+b+).

Atualmente, a criança encontra-se em remissão completa da SE, recebendo acompanhamento pela necessidade de atenção para AF.

Discussão

Estudos relatam que a SE é uma doença hematológica rara e grave na infância. O presente caso descreve uma associação entre SE e AF em uma criança. Devido à ausência de sintomas específicos para SE, são necessários pelo menos dois critérios para confirmar o diagnóstico: anemia hemolítica autoimune (AHAI) e púrpura trombocitopênica idiopática (PTI) , já que a sua etiologia é desconhecida(1, 3).

Investigações hematológicas da SE são necessárias na presença de trombocitopenia, anemia e, ocasionalmente, neutropenia imune(7). No entanto, a paciente apresentou anemia e plaquetopenia sem neutropenia, pois essa citopenia pode ou não estar presente. Linfoadenopatia e hepatoesplenomegalia também foram encontradas, em concordância com o estudo de Bader-Meunier et al.(1), que relatam o aparecimento dessas manifestações, além dos sintomas autoimunes em indivíduos portadores de SE.

No caso em questão, a criança deveria ter sido internada após a primeira avaliação médica no hemocentro. Isso permitiria melhor suporte terapêutico e, consequentemente, elucidação precoce das citopenias, pois a transfusão de concentrado de plaquetas seria uma conduta de curto efeito, contudo, essencial para o diagnóstico de SE, visto que esses pacientes apresentam anticorpos antiplaquetas e, após algum tempo, retornariam a exibir plaquetas baixas. Segundo Norton e Roberts(4), no quadro agudo da SE, transfusões de sangue e/ou plaquetas também podem ser necessárias para aliviar os sintomas, entretanto seu uso deve ser minimizado.

No caso relatado, a RTHT/H foi descartada, uma vez que o teste de antiglobulina humana da paciente se apresentava positivo e o estado geral da criança piorou com o surgimento de sangramento na mucosa após 22 dias da transfusão sanguínea. Talano et al.(6) afirmam que o aparecimento da RTHT/H ocorre geralmente uma semana após a transfusão, confundindo com a crise vaso-oclusiva, e o teste de antiglobulina humana na maioria dos casos é negativo. As bolsas contendo concentrado de hemácias provenientes de doadores, assim como o sangue da paciente, são submetidas à fenotipagem eritrocitária, a fim de evitar o risco de aloimunização. Segundo estudos de Verduzco e Nathan(10), 16 crianças, nas quais se realizaram politransfusões, tiveram tratamento suspenso pela aloimunização desenvolvida, visto que impossibilitaria a continuação da terapêutica.

No tratamento da SE é preconizado o uso de corticosteroides. Segundo Tamimoto et al.(7) e Shanafelt et al.(5), pode-se associar o corticosteroide ao rituximabe para gerar remissão completa ou parcial das citopenias. No caso descrito, os resultados foram satisfatórios, como regularização dos níveis de plaquetas com a administração de prednisona via oral e metilprednisolona.

Michel et al.(3) relatam que a SE pode ser de origem primária ou secundária, ocorrendo a primeira quando não associada a outra patologia, e a segunda, quando a síndrome encontra-se relacionada com alguma doença de base. No referido caso, a SE pode ser considerada primária e sua ocorrência simultânea pode ter sido de forma fortuita com a AF.

Conclusão

Por se tratar de uma patologia incomum, torna-se difícil o diagnóstico da SE, exigindo alto grau de percepção para o reconhecimento clínico e laboratorial, o que se soma ao fato de ser uma doença que cursa com hemólise, assim como a AF.

Primeira submissão em 05/07/11

Última submissão em 28/09/11

Aceito para publicação em 28/09/11

Publicado em 20/04/12

  • 1. BADER-MEUNIER, B. et al. Rituximab therapy for childhood Evans syndrome. Haematologica, v. 92, n. 12, p. 1691-4, 2007.
  • 2. BELCHER, J. D. et al Activated monocytes in sickle cell disease: potential role in the activation of vascular endothelium and vasoocclusion. Blood, v. 96, n. 7, p. 2451-9, 2000.
  • 3. MICHEL, M. et al The spectrum of Evans syndrome in adults: new insight into the disease based on the analysis of 68 cases. Blood, v. 114, n. 15, p. 3167-72, 2009.
  • 4. NORTON, A.; ROBERTS, I. Management of Evans syndrome. British Journal of Haematology, v. 132, n. 2, p. 125-37, 2005.
  • 5. SHANAFEL, T. T. D. et al Rituximab for immune cytopenia in adults: idiopathic thrombocytopenic purpura, autoimmune hemolytic anemia, and Evans syndrome. Mayo Clinic Proceedings, v. 78, n. 11, p. 1340-6, 2003.
  • 6. TALANO, J. M. et al Delayed hemolytic transfusion reaction/hiperhemolysis syndrome in children with sickle cell disease. Pediatrics, v. 111, n. 6, p. 661-5, 2003.
  • 7. TAMIMOTO, Y. et al. A dose-escalation study of rituximab for treatment of systemic lupus erythematosus and Evans' syndrome: immunological analysis of B cells and cytokines. Rheumatology, v. 47, n. 6, p. 821-7, 2008.
  • 8. TEACHEY, D. T. et al. Unmasking Evans syndrome: T-cell phenotype and apoptic response reveal autoimmune lymphoproliferative syndrome (ALPS). Blood, v. 105, n. 6, p. 2443-8, 2005.
  • 9. TELFER, P. et al Clinical outcomes in children with sickle cell disease living in England: a neonatal cohort in East London. Haematologica, v. 92, n. 7, p. 905-12, 2007.
  • 10. VERDUZCO, L. A.; NATHAN, D. G. Sickle cell disease and stroke. Blood, v. 114, n. 25, p. 5117-25, 2009.
  • Endereço para correspondência
    Luiz Arthur Calheiros Leite
    Av. Menino Marcelo s/n
    Conjunto Jardim Europa, lt 13 – Antares
    Tel.: (82) 3341-0996
    CEP: 57083-410 – Maceió-AL
    e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Maio 2012
    • Data do Fascículo
      Abr 2012

    Histórico

    • Recebido
      28 Set 2011
    • Aceito
      20 Abr 2012
    Sociedade Brasileira de Patologia Clínica, Rua Dois de Dezembro,78/909 - Catete, CEP: 22220-040v - Rio de Janeiro - RJ, Tel.: +55 21 - 3077-1400 / 3077-1408, Fax.: +55 21 - 2205-3386 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: jbpml@sbpc.org.br