Acessibilidade / Reportar erro

Parâmetros reticulocitários para monitoramento de anemia em pacientes com doença renal crônica em diálise peritoneal

RESUMO

Introdução: Anemia é uma complicação com impacto na morbidade e na mortalidade de pacientes com doença renal crônica (DRC). Os biomarcadores utilizados no diagnóstico e no monitoramento de anemia na DRC são limitados devido à inter-relação entre eritropoiese, estoque de ferro, inflamação e resistência à terapêutica com agentes estimuladores da eritropoiese (AEE). Objetivo: O objetivo deste estudo foi analisar o papel dos marcadores fração de reticulócitos imaturos (IRF) e concentração de hemoglobina nos reticulócitos (RET-He) do analisador hematológico Sysmex XN 5000 no monitoramento da anemia em pacientes em diálise peritoneal. Métodos: Estudo prospectivo, observacional e multicêntrico que comparou IRF e RET-He com parâmetros laboratoriais recomendados pelos guidelines. Biomarcadores inflamatórios foram analisados pelo sistema Luminex® Multiplexing Instruments. Este estudo incluiu 35 pacientes (59 ± 13 anos; 51% homens). Resultados: Os valores de hemoglobina foram 12,2 ± 2 g/dl; 87% apresentaram resistência a AEE. Pacientes com índice de resistência à eritropoietina (IRE) no quartil superior apresentaram valores significativamente maiores de IRF e menor porcentagem de deficiência de ferro (12%) em comparação com pacientes com ferritina (82%) e índice de saturação de transferrina (IST) (51%). Os níveis de interleucina 6 (IL-6) correlacionaram-se com a porcentagem de reticulócitos de fluorescência média (MFR) (r = 0,45, p < 0,03). Valores de hemoglobina após 60 e 180 dias foram consistentemente mais altos no grupo de pacientes com IRF% menor que 10,5. Conclusão: IRF e RET-He podem agregar valor na investigação da deficiência de ferro, bem como na identificação do índice de existência à eritropoietina (ERI). Devido ao número restrito de pacientes analisados neste trabalho, estudos futuros devem ser estimulados em populações maiores e com acompanhamento prospectivo, para validação dos nossos achados.

Unitermos:
anemia; reticulócitos; diálise peritoneal; insuficiência renal crônica

ABSTRACT

Introduction: Anemia is a complication with impact on morbidity and mortality in chronic kidney disease (CKD) patients. Current markers for the diagnosis and monitoring of anemia in CKD are limited by the interrelation between erythropoiesis, iron stores, inflammation, and the resistance to treatment with erythropoiesis stimulant agents (ESA). Objective: The aim of this study was to analyze the role of immature reticulocyte fraction (IRF) and hemoglobin concentration in reticulocytes (RET-He) by the hematology analyser Sysmex XN-5000 in the monitoring of CKD anemia in peritoneal dialysis patients. Methods: This was a prospective, observational multicenter study which compared IRF and RET-He with parameters recommended by the guidelines. Inflammatory biomarkers were analyzed by the Luminex® Multiplexing Instruments system. Thirty-five patients (59 ± 13 years old; 51% men) were included in the analysis. Results: Hemoglobin was 12.2 ± 2 g/dl; 87% had resistance to ESA. Patients with erythropoietin resistance index (ERI) in the upper quartile presented a significantly higher of IRF and a lower percentage of iron deficiency (12%) compared to ferritin (82%) and transferrin saturation index (STI) (51%). Interleukin-6 (IL-6) levels correlated with the percentage of medium fluorescence reticulocyte (MFR) (r = 0.45, p < 0.03). Hemoglobin values after 60 and 180 days were consistently higher in the group of patients with a IRF% lower than 10.5. Conclusion: IRF and RET-He may add value in the iron deficiency investigation, as well as in the identification of patients with ERI. Due to the restricted number of patients analyzed in this study, future studies should be encouraged in larger populations and with prospective follow-up, to validate our findings.

Key words:
anemia; reticulocytes; peritoneal dialysis; kidney failure chronic

RESUMEN

Introducción: La anemia es una complicación con impacto en la morbimortalidad en pacientes con enfermedad renal crónica (ERC). Los biomarcadores usados para el diagnóstico y seguimiento de la anemia en la ERC están limitados por la interrelación entre eritropoyesis, depósitos de hierro, inflamación y resistencia al tratamiento con agentes estimulantes de la eritropoyesis (AEE). Objetivo: El objetivo de este estudio fue analizar el papel de la fracción de reticulocitos inmaduros (IRF) y el equivalente de hemoglobina en reticulocitos (RET-He) mediante el analizador hematológico Sysmex XN-5000 en el seguimiento de la anemia por ERC en pacientes en diálisis peritoneal. Métodos: Estudio prospectivo, observacional multicéntrico que comparó IRF y RET-He con los parámetros recomendados por las guías. Los biomarcadores inflamatorios fueron analizados por el sistema Luminex® Multiplexing Instruments. Este estudio incluyó a 35 pacientes (59 ± 13 años; 51% hombres). Resultados: La hemoglobina fue de 12,2 ± 2 g/dl; el 87% tenía resistencia a AEE. Los pacientes con índice de resistencia a la eritropoyetina (IRE) en el cuartil superior tenían un IRF significativamente más alto y un porcentaje más bajo de deficiencia de hierro (12%) en comparación con la ferritina (82%) y las ITS (51%). Los niveles de interleucina-6 (IL-6) se correlacionaron con el porcentaje de reticulocitos de fluorescencia media (MFR) (r = 0,45, p < 0,03). Los valores de hemoglobina después de 60 y 180 días, fueron consistentemente más altos en el grupo de pacientes con IRF% inferior a 10,5. Conclusión: IRF y RET-He pueden agregar valor en la investigación de ferropenia, así como en la identificación de pacientes con ERI. Debido al número limitado de pacientes analizados en este estudio, se deben impulsar estudios futuros en poblaciones más grandes y con seguimiento prospectivo, para validar nuestros hallazgos.

Palabras clave:
anemia; reticulocitos; diálisis peritoneal; insuficiencia renal crónica

INTRODUÇÃO

A anemia na doença renal crônica (DRC) é multifatorial, mas principalmente impulsionada pela deficiência na produção da eritropoietina (EPO) e pelo esgotamento das reservas de ferro(11 Smrzova J, Ballas J, Bárány P. Inflammation and resistance to erytrhopoieses-stimulating agents - what do we know and what needs to be clarified? Nephrol Dial Transplant. 2005; 20 Suppl 8: viii2-viii7. PubMed PMID: 16079326.

2 Iseki K, Kohagura K. Anemia as a risk factor for chronic kidney disease. Kidney Int Suppl. 2007; 107: S4-9. PubMed PMID: 17943141.
-33 Silva PH, Alves HB, Comar SR, Henneberg R, Merlin JC, Stinghen ST. Hematologia Laboratorial: teoria e procedimentos. Porto Alegre: Artmed; 2016.). A doença inflamatória também é um fator importante em um subgrupo de pacientes, já que interfere diretamente na mobilização do ferro e determina a resistência à EPO(11 Smrzova J, Ballas J, Bárány P. Inflammation and resistance to erytrhopoieses-stimulating agents - what do we know and what needs to be clarified? Nephrol Dial Transplant. 2005; 20 Suppl 8: viii2-viii7. PubMed PMID: 16079326., 44 Grotto HZW. Metabolismo do ferro: uma revisão sobre os principais mecanismos envolvidos em sua homeostase. Rev Bras Hematol Hemoter. 2008; 30(5): 390-97. doi: 10.1590/S1516-84842008000500012.
https://doi.org/10.1590/S1516-8484200800...
). A inflamação na DRC aumenta a concentração de citocinas inflamatórias, sendo a interleucina-6 (IL-6) a principal citocina responsável pela ativação da expressão da hepcidina(55 Vianna HR, Soares CMBM, Tavares MS, Teixeira MM, Silva ACS. Inflamação na doença renal crônica: papel de citocinas. J Bras Nefrol. 2011; 33(3): 351-64. doi: 10.1590/S0101-28002011000300012.
https://doi.org/10.1590/S0101-2800201100...

6 Pecoits-Filho R, Heimburger O, Barany P, et al. Associations between circulating inflammatory markers and residual renal function in CRF patients. Am J Kidney Dis. 2003; 41: 1212-18. PubMed PMID: 12776273.

7 Del Vecchio L, Pozzoni P, Andrulli S, Locatelli F. Inflammation and resistance to treatment with recombinant human erythropoietin. J Ren Nutr. 2005; 15: 137-41. PubMed PMID: 15648023.
-88 Pecoits-Filho R, Carvalho MJ, Stenvinkel P, Bengt Lindholm B, Heimbürger O. Systemic and intraperitoneal interleukin-6 system during the first year of peritoneal dialysis. Perit Dial Int. 2006; 26: 53-63. PubMed PMID: 16538876.). As reservas de ferro podem ser monitoradas pela ferritina e os níveis séricos de ferro, pelo índice de saturação da transferrina (IST), bem como pela hemoglobina(99 Besarab A. Anemia and iron management. Semin Dial. 2011; 24(5): 498-503. doi: 10.1111/j.1525-139X.2011.00983.x
https://doi.org/10.1111/j.1525-139X.2011...
). Dessa forma, no quadro inflamatório, níveis elevados de hepcidina interferem direta e negativamente na disponibilidade de ferro na eritropoiese, podendo causar anemia, principalmente devido à deficiência funcional de ferro. Na verdade, a contagem relativa e absoluta de reticulócitos é o principal marcador na avaliação da atividade eritropoiética da medula óssea(1010 Braga DSGPA. Contagem global automática: parâmetros analisados, significado clínico e causas de erro [dissertation]. Programa de Pós-Graduação em Análises Clínicas, Universidade do Porto; 2014.). Embora todos esses marcadores sejam usados na prática clínica, eles estão longe de serem os indicadores ideais em tempo real.

Diferentes parâmetros têm sido descritos na literatura, mas ainda são poucos os avaliados na população com DRC, sobretudo em pacientes sob diálise peritoneal (DP). O equivalente das concentrações de hemoglobina nos reticulócitos (RET-He) representa o grau de hemoglobinização que ocorre na medula óssea, que é dependente da disponibilidade de ferro(1111 Chuan CL, Liu RS, Wei YH, Huang TP, Tarng DC. Early prediction of response to intravenous iron supplementation by reticulocyte haemoglobin content and high fluorescence reticulocyte count in hemodialysis patients. Nephrol Dial Transplant. 2003; 18(2): 370-7. PubMed PMID: 12543894., 1212 Mast AE, Blinder MA, Dietzen DJ. Reticulocyte hemoglobin content. Am J Hematol. 2008; 83(4): 307-10. PubMed PMID: 18027835.). Dessa forma, ele é capaz de permitir uma avaliação precoce para o diagnóstico clínico, o monitoramento e a definição do momento de intervenção, principalmente naqueles pacientes com DRC que fazem uso de agentes estimuladores da eritropoiese (AEE) e de suplementação de ferro(1313 Alves MT, Vilaça SS, Carvalho MG, Fernandes AP, Dusse LMS, Gomes KB. Resistance of dialyzed patients to erythropoietin. Rev Bras Hematol Hemoter. 2015; 37(3): 190-97. doi:10.1016/j.bjhh.2015.02.001.
https://doi.org/10.1016/j.bjhh.2015.02.0...
). Além disso, a fração de reticulócitos imaturos (IRF) é um excelente marcador da atividade eritropoiética quase em tempo real, pois representa a proporção de reticulócitos mais jovens no sangue periférico, já que fica elevado muito antes do número total de reticulócitos(33 Silva PH, Alves HB, Comar SR, Henneberg R, Merlin JC, Stinghen ST. Hematologia Laboratorial: teoria e procedimentos. Porto Alegre: Artmed; 2016., 1111 Chuan CL, Liu RS, Wei YH, Huang TP, Tarng DC. Early prediction of response to intravenous iron supplementation by reticulocyte haemoglobin content and high fluorescence reticulocyte count in hemodialysis patients. Nephrol Dial Transplant. 2003; 18(2): 370-7. PubMed PMID: 12543894., 1414 Wollmann M, Gerzson BMC, Schwert V, Figuera RW, Ritzel GO. Reticulocyte maturity indices in iron deficiency anemia. Rev Bras Hematol Hemoter. 2014; 36(1): 25-28. doi: 10.5581/1516-8484.20140009.
https://doi.org/10.5581/1516-8484.201400...
). Esses parâmetros podem ser úteis no monitoramento e no tratamento dos pacientes com anemia renal, especialmente aqueles sob DP.

Em virtude de suas características conceituais e por não sofrerem interferência analítica direta da inflamação, esses marcadores de reticulócitos podem identificar melhor e de forma mais precoce o estado geral do ferro e a atividade eritropoiética da medula óssea em pacientes com DRC sob DP quando comparados com os marcadores convencionais, como ferritina, índice de saturação da transferrina e contagem de reticulócitos.

OBJETIVO

Analisar o papel dos parâmetros hematológicos IRF e RET-He no monitoramento e na identificação da resistência aos AEE na anemia por DRC em pacientes sob DP.

MÉTODOS

Estudo prospectivo e multicêntrico que incluiu pacientes maiores de 18 anos de idade com DRC estágio 5 sob DP ambulatorial contínua (CAPD/APD) há pelo menos 30 dias, com ou sem uso terapêutico de AEE e suplementos de ferro, que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos (CEP)-Universidade Estadual de Londrina (UEL) sob o número: 357/2011). As amostras de sangue venoso para os exames laboratoriais e o hemograma foram coletadas em tubos com ácido etilenodiaminotetracético (EDTA)-K2 e em tubos secos sem anticoagulante, utilizando gel separador e ativador de coágulo para a mensuração de biomarcadores inflamatórios.

O hemograma completo (CBC) foi processado no mesmo dia da coleta em até 4 horas, em um analisador hematológico (Sysmex, modelo XE-5000) para a obtenção dos parâmetros de hemoglobina, RET-He, contagem relativa de reticulócitos (RET%), fração de reticulócitos imaturos (IRF%) e suas frações [fração de reticulócitos de baixa fluorescência (LFR%), reticulócitos de fluorescência média (MFR%) e fração de reticulócitos de alta fluorescência (HFR%)]. Os biomarcadores inflamatórios foram medidos usando o instrumento Luminex® Multiplexing (Luminex® xMAP® Technology), por meio de uma única amostra para os seguintes marcadores: interleucina s1β (IL-1β), interleucina 6 (IL-6), fator de necrose tumoral-α (TNF-α) e proteína 1 quimioatraente de monócitos (MCP-1).

Os dados demográficos e clínicos dos participantes foram obtidos nos prontuários, utilizando-se dados dos seis meses anteriores e posteriores à data da coleta da amostra. A associação entre duas variáveis quantitativas foi analisada pelo coeficiente de correlação de Pearson ou Spearman. Foram usados o teste t de Student ou o teste não paramétrico de Mann-Whitney para realizar o teste t de amostras independentes, para comparar dois grupos definidos pelo índice de resistência à eritropoietina (IRE), cuja fórmula usada foi a dose média semanal dos últimos seis meses de EPO (microgramas), dividida pelo peso (kg) e a concentração de hemoglobina (Hb) (dose de EPO/peso/Hb).

A normalidade das variáveis foi avaliada pelo teste de Shapiro Wilks, e os valores de p de 0,05 indicaram significância estatística. Os dados foram analisados usando o programa IBM SPSS Statistics v.20.

RESULTADOS

Características da população e dados clínicos e laboratoriais

Trinta e cinco pacientes sob DP há pelo menos 30 dias aceitaram participar da pesquisa e foram incluídos no estudo. Os dados demográficos, clínicos e laboratoriais estão descritos na Tabela 1.

TABELA 1
Características gerais da população estudada

Análise da deficiência de ferro usando ferritina, IST% e RET-He

Foram utilizados os parâmetros ferritina, IST% e RET-He para avaliar a disponibilidade dos estoques de ferro, de acordo com os critérios de corte inferior a 500 µg/l para ferritina, inferior ou igual a 30% para IST e inferior a 29 pg para RET-He propostos pelas diretrizes KDIGO (2012)(1515 KDIGO Clinical Practice Guidelines and Clinical Practice Recommendations for Anemia in Chronic Kidney Disease. Kidney Int Suppl. 2012; 2(4): 279-335.). Os resultados estão demonstrados na Tabela 2.

TABELA 2
Deficiência da disponibilidade e do ferro de depósito, utilizando-se os parâmetros ferritina, IST% e RET-He

Análise da resistência à eritropoietina

Calculamos o índice de resistência à eritropoietina (IRE) em 23 indivíduos; 86,9% (20/23) apresentaram resistência à EPO (valores maiores que 0,02 µg de acordo com as diretrizes KDIGO 2012(1515 KDIGO Clinical Practice Guidelines and Clinical Practice Recommendations for Anemia in Chronic Kidney Disease. Kidney Int Suppl. 2012; 2(4): 279-335.). No entanto, quando os valores de IRE foram classificados por quartis (o ponto de corte do 3º quartil sendo 0,102 µg), 30,5% (7/23) ficaram acima desse ponto de corte. Para aqueles que estavam no quarto quartil, houve uma diferença significativa para o RET-He (p < 0,05), em comparação com os outros quartis.

Análise comparativa da atividade eritropoiética por RET%, RET#, IRF%, RET-He e IRE

A atividade eritropoiética da medula óssea foi avaliada pelos parâmetros de reticulócitos (RET%, RET#, IRF%, LFR%, MFR%, HFR% e RET-He), cujos resultados estão demonstrados na Tabela 3. Para cada uma das variáveis de reticulócitos, testamos as hipóteses nula e alternativa de que as médias seriam iguais ou diferentes nos grupos, respectivamente, definidos pelo quarto quartil (≤ 0,102 ou > 0,102). Houve uma diferença significativa para IRF%, MFR% e LFR% (p < 0,05) (Tabela 4, Figuras 1 e 2).

TABELA 3
Valores encontrados para contagens de reticulócitos. RET%, RET#, IRF%, RET-He
TABELA 4
Valores encontrados para contagens de reticulócitos. RET%, RET#, IRF% e RET-He

FIGURA 1
RET# por IRE, quarto quartil versus outros quartis (0,102) RET%: contagem relativa de reticulócitos; IRE: índice de resistência à eritropoietina.

FIGURA 2
IRF% por IRE, quarto quartil versus outros quartis (0,102) IRF%: fração de reticulócitos imaturos; IRE: índice de resistência à eritropoietina.

Análise da inflamação por biomarcadores, parâmetros de reticulócitos e IRE

Os valores dos biomarcadores inflamatórios IL-1β, IL-6, MCP-1 e TNF-α, encontrados em cada amostra, sem exceção, ficaram acima do valor máximo de referência relatado para cada biomarcador. A IL-6 mostrou correlação inversa com os parâmetros de reticulócitos (Tabela 5).

TABELA 5
Análise de correlação entre IL-6 e atividade eritropoiética

Análise da correlação entre a hemoglobina e IRF%

Os valores de hemoglobina no momento da análise, após 60 e 180 dias, foram consistentemente superiores no grupo de pacientes com IRF% menor que 10,5 (Tabela 6).

TABELA 6
Análise de correlação entre valores de Hb e IRF%, considerando valores ≤ 10,5 e > 10,5

DISCUSSÃO

A anemia é uma complicação precoce e frequente em pacientes com DRC, principalmente sob diálise, estando associada à alta morbimortalidade. No entanto, a resistência ao tratamento com AEE, associada à doença inflamatória crônica, é uma causa importante de anemia persistente nesses pacientes. Considerando as limitadas ferramentas clínicas e laboratoriais atualmente utilizadas para o diagnóstico, monitoramento e tratamento da anemia na DRC, analisamos neste estudo o potencial dos parâmetros hematológicos dos reticulócitos, IRF e RET-He, que poderiam contribuir para melhorar esse processo(88 Pecoits-Filho R, Carvalho MJ, Stenvinkel P, Bengt Lindholm B, Heimbürger O. Systemic and intraperitoneal interleukin-6 system during the first year of peritoneal dialysis. Perit Dial Int. 2006; 26: 53-63. PubMed PMID: 16538876., 1313 Alves MT, Vilaça SS, Carvalho MG, Fernandes AP, Dusse LMS, Gomes KB. Resistance of dialyzed patients to erythropoietin. Rev Bras Hematol Hemoter. 2015; 37(3): 190-97. doi:10.1016/j.bjhh.2015.02.001.
https://doi.org/10.1016/j.bjhh.2015.02.0...
, 1515 KDIGO Clinical Practice Guidelines and Clinical Practice Recommendations for Anemia in Chronic Kidney Disease. Kidney Int Suppl. 2012; 2(4): 279-335.).

No presente estudo, 32,4% (11/34) dos indivíduos apresentaram Hb < 11 g/dl, corroborando os achados de Gonçalves & Pecoits-Filho (2013)(1616 Gonçalves S, Dal Lago EA, Moraes TP, et al. Lack of adequate predialyis care and previous hemodialysis, but not hemoglobin variability, are independent predictors of anemia-associated mortality in incident Brazilian peritoneal dialysis patients: Results from the BRAZPD Study. Blood Purif. 2012; 34(3-4): 298-305. PubMed PMID: 23235144.) (38% em população semelhante) e Alves et al. (2015)(1313 Alves MT, Vilaça SS, Carvalho MG, Fernandes AP, Dusse LMS, Gomes KB. Resistance of dialyzed patients to erythropoietin. Rev Bras Hematol Hemoter. 2015; 37(3): 190-97. doi:10.1016/j.bjhh.2015.02.001.
https://doi.org/10.1016/j.bjhh.2015.02.0...
), que encontraram 34% em pacientes com DRC sob hemodiálise (HD). No entanto, o valor foi inferior ao relatado por Kanbay et al. (2010)(1717 Kanbay M, Perazella MA, Kasapoglu B, Korogl M, Covic A. Erythropoiesis stimulatory agent-resisttant anemia in dialysis patients: review of causes and management. Blood Purif. 2010; 29(1): 1-12. PubMed PMID: 19816014.), que informaram que aproximadamente 90% dos pacientes com taxa de filtração glomerular inferior a 25-30 ml/min apresentavam anemia. Diante desses achados, a população estudada parecia representar uma população normal, clinicamente estável sob DP, portanto, adequada para um estudo da anemia com novas perspectivas diagnósticas.

A deficiência de ferro é prevalente em 50% dos pacientes com DRC. A ferritina e o IST% são os principais marcadores disponíveis dos estoques de ferro e ferro sistêmico, entretanto, seus valores podem estar sobrestimados em quadros de doença inflamatória crônica, como anemia por DRC e sob DP. Por esse motivo, o objetivo deste estudo foi utilizar os parâmetros reticulocitários IRF e RET-He como marcadores das reservas de ferro e da atividade eritropoiética, já que não são influenciados pela inflamação, por conseguinte, podem refletir melhor o real estado desses dois fatores. O RET-He demonstrou ser um marcador com boa sensibilidade e precocidade para avaliação da deficiência de ferro, adequação dos estoques e disponibilidade de ferro(1818 Brugnara C, Schiller B, Moran J. Reticulocyte Hemoglobin Equivalent (Ret-He) and assessment of iron-deficient states. Clin Lab Haem. 2006; 28(5): 303-8. PubMed PMID: 16999719.). Embora existam vários estudos que sugerem valores de referência ou de corte para RET-He, poucos se referem especificamente aos pacientes com DRC e sob DP. O valor de corte (29 pg) proposto no presente estudo foi sugerido pelas diretrizes KDOQI e desenvolvido pela National Kidney Foundation (NFK), em concordância com as Diretrizes Britânicas para o Diagnóstico Laboratorial da Deficiência Funcional de Ferro e com o trabalho de Piva et al. (2014)(1919 Piva E, Brugnara C, Spolaore F, Plebani M. Clinical utility of reticulocyte parameter. Clin Lab Med. 2014; 35(1): 133-63. PubMed PMID: 25676377.), que demonstraram maior valor preditivo positivo, quando comparados com valores de ferritina abaixo de 50 µg/l e IST% < 13%. Observamos que apenas 11,8% (4/34) ficaram abaixo dos valores recomendados, o que contrasta com a alta prevalência da deficiência de ferro avaliada pelo IST% ou ferritina.

Estudos futuros devem estabelecer uma referência ou valor de corte, a fim de monitorar a disponibilidade de ferro com base no RET-He. Dessa forma, será possível adicionar informações na prática clínica sem nenhum custo adicional, uma vez que o RET-He está incluído no relatório que é gerado pelos modernos analisadores(1111 Chuan CL, Liu RS, Wei YH, Huang TP, Tarng DC. Early prediction of response to intravenous iron supplementation by reticulocyte haemoglobin content and high fluorescence reticulocyte count in hemodialysis patients. Nephrol Dial Transplant. 2003; 18(2): 370-7. PubMed PMID: 12543894., 1313 Alves MT, Vilaça SS, Carvalho MG, Fernandes AP, Dusse LMS, Gomes KB. Resistance of dialyzed patients to erythropoietin. Rev Bras Hematol Hemoter. 2015; 37(3): 190-97. doi:10.1016/j.bjhh.2015.02.001.
https://doi.org/10.1016/j.bjhh.2015.02.0...
).

Ao avaliarmos a resistência dos AEE no complexo contexto da inflamação e mobilização do ferro, observamos que 86,9% (20/23) dos indivíduos apresentaram IRE maior que 0,02 µg, porém não houve diferença significativa quando comparados os valores de IRE com os de RET%, RET#, IRF% (LFR%, MFR%, HFR%) e RET-He. No entanto, quando o IRE foi avaliado em quartis, esta abordagem parece ter sido mais adequada. Neste caso, houve uma diferença significativa (p < 0,05) ao comparar os valores de IRE do quarto quartil e os valores da IRF%, MFR% e LFR%, porém não para RET% e RET#. Esse achado é surpreendente, uma vez que RET# é o exame recomendado para monitorar o tratamento dos pacientes com DRC sob diálise, que fazem uso dos AEE. Conforme sugerido pela International Society of Laboratory Hematology, IRF% e RET# podem ser úteis quando usados juntos, porque a IRF% significa resposta ou aceleração e o RET#, eficácia da atividade eritropoiética. Butarello et al. (2016)(2020 Butarello M. Laboratory diagnosis of anemia: are the old and new red cell parameters useful in classification and treatment, how? Int J Lab Hematol. 2016; 38 (Suppl 1): 123-32. PubMed PMID: 27195903.) cogitaram a hipótese de que esta relação é variável, independente e concordante. A IRF% elevada, em comparação com o RET# normal ou reduzido, é considerado o achado padrão para identificar a ineficácia da eritropoiese. No presente estudo, padronizamos os valores de referência para os parâmetros RET%, RET#, IRF%, LFR%, MFR% e HFR%, no analisador Sysmex, modelo XE 5000: 0,43%-1,36%; 23.000-70.100/µl; 1,6%-10,5%; 89,9%-98,4%; 1,6%-9,5%; 0,0%-1,7%, respectivamente(2121 Pekelharing JM, Hauss O, Jonge R, et al. Haematology reference intervals for stablished and novel parameters in healthy adultts. Sysmex J Int. 2010; 20(1): 1-11.).

Além disso, neste estudo, houve diferença significativa entre IRF% (valores ≤ 10,5% e > 10,5%) e valores de Hb basal, 60 dias e 180 dias (p < 0,05). Podemos observar que o valor médio da Hb foi menor para os indivíduos em que a IRF% foi maior que 10,5%. Esse fato pode sugerir duas situações clínicas possíveis e distintas para cada grupo especificamente: no grupo em que a IRF% é menor que 10,5% e os valores para hemoglobina são maiores, isso pode indicar eritropoiese estável e eficaz, corroborado pelo valor de IRE, menor que 0,102; no grupo em que a IRF% é maior que 10,5% e os valores de hemoglobina são menores, é possível indicar atividade eritropoiética acelerada, porém ineficaz, ou estresse eritropoiético, já que nesse grupo os valores de IRE são maiores que 0,102, ou seja, estão no quarto quartil de resistência para EPO.

Por fim, nosso estudo descreve a IL-6 como o marcador inflamatório que demonstra correlação com as variáveis MFR% (p = 0,03) e tendência de associação com IRF% e LFR%, ambos com valores de p = 0,062, sendo este último uma correlação inversa. Ganz et al. (2003)(2222 Ganz T. Hepcidin, a key regulator of iron metabolism and mediator of anemia of inflammation. Blood. 2003; 102(3): 783-88. PubMed PMID: 12663437.) colocaram a IL-6 como a principal via de ativação da hepcidina, interferindo diretamente no equilíbrio da mobilidade e disponibilidade de ferro para a eritropoiese. A IL-1β e o TNF-α suprimem a expressão do gene da EPO - Canziani et al. (2006)(2323 Canziani MEF, Bastos MG, Bregman R, et al. Deficiência de ferro e anemia na doença renal crônica. J Bras Nefrol. 2006; 28(2): 86-90. doi: 10.1590/S1516-848420100005000047.
https://doi.org/10.1590/S1516-8484201000...
).

CONCLUSÃO

Concluímos que os novos parâmetros hematológicos reticulocitários IRF e RET-He agregam valor na identificação da mobilização e na deficiência de ferro, bem como na identificação dos pacientes com resistência à eritropoietina induzida por inflamação. Devido ao pequeno número de pacientes avaliados neste trabalho, estudos futuros devem validar nossos achados em populações maiores e com acompanhamento prospectivo.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos ao Laboratório de Hematologia do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná pelas importantes contribuições para o desenvolvimento deste projeto.

REFERENCES

  • 1
    Smrzova J, Ballas J, Bárány P. Inflammation and resistance to erytrhopoieses-stimulating agents - what do we know and what needs to be clarified? Nephrol Dial Transplant. 2005; 20 Suppl 8: viii2-viii7. PubMed PMID: 16079326.
  • 2
    Iseki K, Kohagura K. Anemia as a risk factor for chronic kidney disease. Kidney Int Suppl. 2007; 107: S4-9. PubMed PMID: 17943141.
  • 3
    Silva PH, Alves HB, Comar SR, Henneberg R, Merlin JC, Stinghen ST. Hematologia Laboratorial: teoria e procedimentos. Porto Alegre: Artmed; 2016.
  • 4
    Grotto HZW. Metabolismo do ferro: uma revisão sobre os principais mecanismos envolvidos em sua homeostase. Rev Bras Hematol Hemoter. 2008; 30(5): 390-97. doi: 10.1590/S1516-84842008000500012.
    » https://doi.org/10.1590/S1516-84842008000500012
  • 5
    Vianna HR, Soares CMBM, Tavares MS, Teixeira MM, Silva ACS. Inflamação na doença renal crônica: papel de citocinas. J Bras Nefrol. 2011; 33(3): 351-64. doi: 10.1590/S0101-28002011000300012.
    » https://doi.org/10.1590/S0101-28002011000300012
  • 6
    Pecoits-Filho R, Heimburger O, Barany P, et al. Associations between circulating inflammatory markers and residual renal function in CRF patients. Am J Kidney Dis. 2003; 41: 1212-18. PubMed PMID: 12776273.
  • 7
    Del Vecchio L, Pozzoni P, Andrulli S, Locatelli F. Inflammation and resistance to treatment with recombinant human erythropoietin. J Ren Nutr. 2005; 15: 137-41. PubMed PMID: 15648023.
  • 8
    Pecoits-Filho R, Carvalho MJ, Stenvinkel P, Bengt Lindholm B, Heimbürger O. Systemic and intraperitoneal interleukin-6 system during the first year of peritoneal dialysis. Perit Dial Int. 2006; 26: 53-63. PubMed PMID: 16538876.
  • 9
    Besarab A. Anemia and iron management. Semin Dial. 2011; 24(5): 498-503. doi: 10.1111/j.1525-139X.2011.00983.x
    » https://doi.org/10.1111/j.1525-139X.2011.00983.x
  • 10
    Braga DSGPA. Contagem global automática: parâmetros analisados, significado clínico e causas de erro [dissertation]. Programa de Pós-Graduação em Análises Clínicas, Universidade do Porto; 2014.
  • 11
    Chuan CL, Liu RS, Wei YH, Huang TP, Tarng DC. Early prediction of response to intravenous iron supplementation by reticulocyte haemoglobin content and high fluorescence reticulocyte count in hemodialysis patients. Nephrol Dial Transplant. 2003; 18(2): 370-7. PubMed PMID: 12543894.
  • 12
    Mast AE, Blinder MA, Dietzen DJ. Reticulocyte hemoglobin content. Am J Hematol. 2008; 83(4): 307-10. PubMed PMID: 18027835.
  • 13
    Alves MT, Vilaça SS, Carvalho MG, Fernandes AP, Dusse LMS, Gomes KB. Resistance of dialyzed patients to erythropoietin. Rev Bras Hematol Hemoter. 2015; 37(3): 190-97. doi:10.1016/j.bjhh.2015.02.001.
    » https://doi.org/10.1016/j.bjhh.2015.02.001
  • 14
    Wollmann M, Gerzson BMC, Schwert V, Figuera RW, Ritzel GO. Reticulocyte maturity indices in iron deficiency anemia. Rev Bras Hematol Hemoter. 2014; 36(1): 25-28. doi: 10.5581/1516-8484.20140009.
    » https://doi.org/10.5581/1516-8484.20140009
  • 15
    KDIGO Clinical Practice Guidelines and Clinical Practice Recommendations for Anemia in Chronic Kidney Disease. Kidney Int Suppl. 2012; 2(4): 279-335.
  • 16
    Gonçalves S, Dal Lago EA, Moraes TP, et al. Lack of adequate predialyis care and previous hemodialysis, but not hemoglobin variability, are independent predictors of anemia-associated mortality in incident Brazilian peritoneal dialysis patients: Results from the BRAZPD Study. Blood Purif. 2012; 34(3-4): 298-305. PubMed PMID: 23235144.
  • 17
    Kanbay M, Perazella MA, Kasapoglu B, Korogl M, Covic A. Erythropoiesis stimulatory agent-resisttant anemia in dialysis patients: review of causes and management. Blood Purif. 2010; 29(1): 1-12. PubMed PMID: 19816014.
  • 18
    Brugnara C, Schiller B, Moran J. Reticulocyte Hemoglobin Equivalent (Ret-He) and assessment of iron-deficient states. Clin Lab Haem. 2006; 28(5): 303-8. PubMed PMID: 16999719.
  • 19
    Piva E, Brugnara C, Spolaore F, Plebani M. Clinical utility of reticulocyte parameter. Clin Lab Med. 2014; 35(1): 133-63. PubMed PMID: 25676377.
  • 20
    Butarello M. Laboratory diagnosis of anemia: are the old and new red cell parameters useful in classification and treatment, how? Int J Lab Hematol. 2016; 38 (Suppl 1): 123-32. PubMed PMID: 27195903.
  • 21
    Pekelharing JM, Hauss O, Jonge R, et al. Haematology reference intervals for stablished and novel parameters in healthy adultts. Sysmex J Int. 2010; 20(1): 1-11.
  • 22
    Ganz T. Hepcidin, a key regulator of iron metabolism and mediator of anemia of inflammation. Blood. 2003; 102(3): 783-88. PubMed PMID: 12663437.
  • 23
    Canziani MEF, Bastos MG, Bregman R, et al. Deficiência de ferro e anemia na doença renal crônica. J Bras Nefrol. 2006; 28(2): 86-90. doi: 10.1590/S1516-848420100005000047.
    » https://doi.org/10.1590/S1516-848420100005000047

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    06 Maio 2020
  • Revisado
    12 Maio 2020
  • Aceito
    24 Ago 2020
  • Publicado
    20 Jul 2021
Sociedade Brasileira de Patologia Clínica, Rua Dois de Dezembro,78/909 - Catete, CEP: 22220-040v - Rio de Janeiro - RJ, Tel.: +55 21 - 3077-1400 / 3077-1408, Fax.: +55 21 - 2205-3386 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: jbpml@sbpc.org.br