Acessibilidade / Reportar erro

Mecanismos de neuroproteção em crises epilépticas: aspectos básicos e implicações clínicas

Neuroprotection mechanisms in epileptic seizures: basic aspects and clinical implications

Resumos

INTRODUÇÃO: Estímulos potencialmente deletérios às células podem, quando aplicados próximos ao limiar de lesão irreversível, ativar mecanismos protetores endógenos, diminuindo potencialmente o impacto de um estímulo subseqüente, mais intenso, sendo este fenômeno conhecido como tolerância ou pré-condicionamento. No sistema nervoso central (SNC), vários estímulos de pré-condicionamento foram identificados. OBJETIVOS: A presente revisão pretende descrever e discutir estudos envolvendo a neuroproteção na condição epiléptica utilizando diferentes insultos pré-condicionantes, assim como suas possíveis implicações clínicas. RESULTADOS E CONCLUSÃO: Vários estudos sugerem que o pré-condicionamento isquêmico, hipóxico, hipertérmico e através de crises convulsivas de intensidade moderada são capazes de ativar mecanismos endógenos, diminuindo potencialmente o impacto de crises epilépticas severas subseqüentes. A neuroproteção pôde ser observada tanto comportamentalmente, quanto através de análises morfológicas. Embora a maioria dos mecanismos ainda sejam desconhecidos, eles podem envolver a ativação de cascatas de sinalização intracelular específicas e a indução de expressão gênica. Portanto, os resultados de tais descobertas podem contribuir para o melhor entendimento das crises epilépticas e introduzir novas perspectivas sobre possíveis tratamentos da epilepsia.

neuroproteção; epilepsia; hipóxia; isquemia; status epilepticus; morte neuronal


INTRODUCTION: Different stimuli can potentially protect cells from damage if applied prior to a strong and harmful insult. This phenomenon is called tolerance- or priming-induced cellular protection. In the central nervous system (SNC), several forms of priming stimuli were identified and showed a significant effect reducing neuronal death in the brain. OBJECTIVE: The present review discusses different studies involving neuroprotection and epilepsy, as well as their clinical implications. RESULTS AND CONCLUSIONS: A number of studies reported that hypoxic, ischemic, hyperthermic and convulsive priming events activate endogenous mechanisms capable of reducing both the behavioral and cellular damaging effects of subsequent seizures. Such mechanisms seem to involve the activation of specific signaling cascades and gene expression changes. These findings, therefore, can contribute to a better understanding of the preconditioning events on epileptic seizures as well as introduce new perspectives to the treatment of epilepsy.

neuroprotection; epilepsy; hypoxia; ischemia; status epilepticus; neuronal death


REVIEW ARTICLE

Mecanismos de neuroproteção em crises epilépticas: aspectos básicos e implicações clínicas

Neuroprotection mechanisms in epileptic seizures: basic aspects and clinical implications

Graziela Lima Bachiega; Raquel Araújo do Val Da Silva; Ana Cláudia Zanetti; Rodrigo Neves Romcy-Pereira; João Pereira Leite

Departamento de Neurologia, Psiquiatria e Psicologia Médica, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, USP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência João Pereira Leite Departamento de Neurologia Psiquiatria e Psicologia Médica Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP Av. Bandeirantes, 3900 CEP 14049-900, Ribeirão Preto, SP, Brasil Fone/Fax: (016) 3602-2556 E-mail: jpleite@fmrp.usp.br

RESUMO

INTRODUÇÃO: Estímulos potencialmente deletérios às células podem, quando aplicados próximos ao limiar de lesão irreversível, ativar mecanismos protetores endógenos, diminuindo potencialmente o impacto de um estímulo subseqüente, mais intenso, sendo este fenômeno conhecido como tolerância ou pré-condicionamento. No sistema nervoso central (SNC), vários estímulos de pré-condicionamento foram identificados.

OBJETIVOS: A presente revisão pretende descrever e discutir estudos envolvendo a neuroproteção na condição epiléptica utilizando diferentes insultos pré-condicionantes, assim como suas possíveis implicações clínicas.

RESULTADOS E CONCLUSÃO: Vários estudos sugerem que o pré-condicionamento isquêmico, hipóxico, hipertérmico e através de crises convulsivas de intensidade moderada são capazes de ativar mecanismos endógenos, diminuindo potencialmente o impacto de crises epilépticas severas subseqüentes. A neuroproteção pôde ser observada tanto comportamentalmente, quanto através de análises morfológicas. Embora a maioria dos mecanismos ainda sejam desconhecidos, eles podem envolver a ativação de cascatas de sinalização intracelular específicas e a indução de expressão gênica. Portanto, os resultados de tais descobertas podem contribuir para o melhor entendimento das crises epilépticas e introduzir novas perspectivas sobre possíveis tratamentos da epilepsia.

Unitermos: neuroproteção, epilepsia, hipóxia, isquemia, status epilepticus, morte neuronal.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Different stimuli can potentially protect cells from damage if applied prior to a strong and harmful insult. This phenomenon is called tolerance- or priming-induced cellular protection. In the central nervous system (SNC), several forms of priming stimuli were identified and showed a significant effect reducing neuronal death in the brain.

OBJECTIVE: The present review discusses different studies involving neuroprotection and epilepsy, as well as their clinical implications.

RESULTS AND CONCLUSIONS: A number of studies reported that hypoxic, ischemic, hyperthermic and convulsive priming events activate endogenous mechanisms capable of reducing both the behavioral and cellular damaging effects of subsequent seizures. Such mechanisms seem to involve the activation of specific signaling cascades and gene expression changes. These findings, therefore, can contribute to a better understanding of the preconditioning events on epileptic seizures as well as introduce new perspectives to the treatment of epilepsy.

Key words: neuroprotection, epilepsy, hypoxia, ischemia, status epilepticus, neuronal death.

INTRODUÇÃO

Vários estudos sugerem que uma diversidade de estímulos potencialmente deletérios às células podem, quando aplicados próximos ao limiar de lesão irreversível, ativar mecanismos protetores endógenos, diminuindo potencialmente o impacto de um estímulo subseqüente, mais intenso. Barbe e cols., (1988) observaram que células fotoreceptoras da retina tornam-se resistentes à exposição a luz intensa, após breve exposição à alta temperatura.(2) No coração, um episódio de isquemia transitória induz um aumento da resistência miocárdica frente a um insulto posterior letal.(28) No cérebro, injúrias subletais como hipóxia,(18) isquemia global(15) e crises epilépticas de curta duração(13,17,24,32) protegem células neuronais de danos letais subseqüentes. Este fenômeno é conhecido como tolerância ou pré-condicionamento.(7)

Existem dois tipos distintos de tolerância: a imediata e a tardia.(26) Na tolerância imediata, a proteção é induzida dentro de minutos, enquanto na tolerância tardia a proteção leva horas e até dias,(15) geralmente envolvendo a síntese de novas proteínas.(7) A tolerância encontrada no cérebro geralmente é tardia, já no sistema cardíaco a tolerância mais observada é a imediata, apesar de já existir evidências da presença da fase tardia no pré-condicionamento cardíaco.(26) Alguns estudos relatam tolerância imediata no cérebro, mas esta tolerância não persiste além de uma semana e parece apenas atrasar e não evitar a morte neuronal.(14)

Em muitas doenças do Sistema Nervoso Central (SNC), neurônios utilizam vias bioquímicas de morte celular muitas vezes semelhantes. Portanto, um certo tipo de stress celular poderia induzir tolerância contra um outro tipo de insulto (tolerância cruzada). O conhecimento detalhado da fisiopatologia, das vias e dos mecanismos que induzem tolerância pode contribuir muito para a terapia medicamentosa em casos de acidente vascular cerebral (AVC) ou ataque isquêmico transitório, bem como no tratamento da epilepsia (tolerância cruzada). Isto poderia minimizar a perda neuronal nestas patologias e garantir maior preservação funcional.

No SNC diversos estímulos de pré-condicionamento foram identificados (ver Tabela 1). Foi demonstrado que uma isquemia global de curta duração e subletal protege o cérebro contra morte neuronal provocada por uma isquemia letal subseqüente.(15) Também observou-se proteção neuronal quando um episódio de hipóxia subletal foi aplicado antes do status epilepticus (SE) induzido por ácido caínico (AC). Neste estudo, tanto as crises convulsivas quanto as alterações neurodegenerativas foram reduzidas pela hipóxia(18). Portanto, a presente revisão descreve e discute diversos estudos envolvendo neuroproteção em modelos experimentais de epilepsia, através de diferentes insultos pré-condicionantes.

PRÉ-CONDICIONAMENTO ISQUÊMICO

A tolerância isquêmica (TI), ou pré-condicionamento isquêmico refere-se a um insulto isquêmico sublimiar, ou seja, abaixo do limiar de dano celular, capaz de ativar mecanismos neuroprotetores endógenos que diminuem significativamente o impacto de um insulto subseqüente mais severo.(7)

Kitagawa e cols. (1990) pesquisaram a tolerância isquêmica através da oclusão bilateral da artéria carótida comum (OBACC) em gerbilos. O experimento consistiu de uma isquemia curta (pré-condicionamento isquêmico) sucedida por uma isquemia longa (5 min). Os grupos foram divididos segundo o número de pré-condicionamentos, intervalo entre eles e a duração da isquemia curta (1 ou 2 min). O grupo que obteve maior neuroproteção, com pouca ou nenhuma morte celular, foi aquele submetido a 2 pré-condicionamentos isquêmicos de 2 min cada um, com intervalo de 1 dia entre eles, 2 dias antes da isquemia longa. Um episódio de pré-condicionamento, 1 dia antes da isquemia longa, não promoveu efeito neuroprotetor significativo.(15)

Em protocolos que pesquisam a tolerância cruzada, encontramos estudos com pré-condicionamento isquêmico e crises epilépticas induzidas de diversas formas, como segundo insulto. OBACC por 24 min em ratos, aumenta significativamente o conteúdo de GABA no hipocampo, córtex frontal e na substância negra 14 dias após a oclusão. Quando os mesmos animais são posteriormente submetidos a abrasamento hipocampal,(3) crises induzidas por pilocarpina(12) e crises induzidas por bicuculina,(25) observa-se um aumento na latência para as crises convulsivas. Esse aumento da latência para as crises nos animais pré-condicionados pode ser devido a um aumento da atividade inibitória promovida pelo GABA ou ainda por mudanças plásticas neuronais em estruturas e/ou vias responsáveis pela propagação das crises.(3)

A exposição a doses subtóxicas de determinadas substâncias pode induzir tolerância contra um insulto posterior mais severo, esse fenômeno tem sido denominado pré-condicionamento químico. Animais foram submetidos à OBACC por 30 min e posteriormente a um tratamento agudo (1 vez antes da oclusão e 1 vez após a reperfusão) ou crônico (diário, por 13 dias iniciado 24 h após a oclusão, com a última injeção 24 h antes da indução das crises) com antagonistas de receptores N-metil-D-aspartato (NMDA) como CGP-40116(21) e MK-801(22) antes da indução de crises por pilocarpina e bicuculina, respectivamente. Os animais pré-condicionados, tratados cronicamente, apresentaram um maior nível de GABA, maior latência e menor severidade das crises comparado com os controles.

O pré-condicionamento isquêmico tem sido uma importante estratégia para se estudar a neuroproteção, mas pouco se sabe ainda dos seus efeitos estruturais e funcionais após um período maior de sobrevivência. Tanay e cols. (2006) investigaram alterações sutis no hipocampo de gerbilos submetidos a 2,5 min de OBACC, 6 semanas após o pré-condicionamento isquêmico. Foram avaliados os marcadores dendríticos MAP2 ("microtubule associated protein 2"), MAP1B ("microtubule associated protein 1B") e sinaptopodina. A imunoreatividade a MAP2 não foi alterada em nenhum subcampo hipocampal. MAP1B e sinaptopodina estavam diminuídos em torno de 80% a 90%, porém a diferença foi significativa somente para sinaptopodina nas regiões do stratum oriens e camada piramidal de CA1.(27) Há relatos de declínio da preservação celular na região CA1 30 dias(5) e 60 dias após o pré-condicionamento isquêmico,(8) mesmo sendo um curto período de pré-condicionamento. Este resultado nos leva a questionar se a isquemia curta como forma de pré-condicionamento realmente causa alguma lesão cerebral a longo prazo.

PRÉ-CONDICIONAMENTO HIPÓXICO

A hipóxia é uma causa comum de lesão e morte celular, mas estas dependem da intensidade do insulto.(6) A hipóxia é definida como uma diminuição na concentração de oxigênio do ambiente tecidual abaixo do normal e pode ser utilizada como pré-condicionamento para proteção de morte neuronal induzida por SE.(4,11,18,20,23)

Sabendo que o AC induz crises e extensa alteração degenerativa em estruturas neuronais, especialmente na formação hipocampal onde se observa uma depleção de zinco nas fibras musgosas, Pohle e Rauca em 1994, estudaram se o efeito prolongado da hipóxia protege contra as alterações comportamentais e morfológicas observadas após uma única dose de AC. Neste estudo, os ratos foram submetidos a hipóxia normobárica 9% de O2 por 8 h e uma injeção sistêmica de AC uma semana depois, sendo sacrificados 12 h após o SE. No grupo pré-condicionado, o comportamento exibido foi somente hiperatividade e sacudidelas de cachorro molhado (do inglês wet-dog shakes) enquanto que no grupo controle, os animais atingiram até a corrida selvagem (do inglês wild running) seguidas de crises tônico-clônicas. Na investigação histológica o grupo pré-condicionado apresentou diminuição na depleção de zinco nas fibras musgosas normais e houve menor degeneração neuronal no hipocampo, na região do hilo, CA3 e CA1. Este estudo mostrou que o pré-condicionamento hipóxico foi capaz de reduzir a neurotoxicidade ao AC e a intensidade das crises.(18)

Outro estudo utilizando novamente o pré-condicionamento hipóxico e seus efeitos nas crises induzidas por AC e na formação de edema foi realizado em ratos expostos a um ambiente hipóxico, 9% de O2 e 91% de N2 por 8 h. Neste caso, o AC foi administrado com intervalos de 1, 3, 7 e 14 dias após a hipóxia. Os resultados mostraram que a formação de edema induzido por AC e associado a morte neuronal no córtex piriforme, córtex frontal, CA1 e CA3 do hipocampo diminuiu quando AC foi administrado 1, 3 e 7 dias após a hipóxia. Nenhuma alteração foi observada no grupo de 14 dias, sugerindo que a hipóxia causa respostas adaptativas gerais que protegem contra a fisiopatologia associada à crise, sendo dependente do tempo.(11)

Com o objetivo de verificar se os opióides endógenos estão envolvidos com o fenômeno de pré-condicionamento e determinar se receptores opióides mu ou kappa podem mimetizar o efeito neuroprotetor do pré-condicionamento, Rubaj e cols. (2000) comparou o pré-condicionamento hipóxico ou opióide prévio a crises induzidas por pentilenotetrazol (PTZ), em camundongos. A hipóxia realizada foi de 5,5% de O2 e 94,5% de N2 por 5,5 min e o pré-condicionamento opióide foi induzido por agonistas kappa ou mu-opióides seletivos, após injeção intracere-broventricular. No caso dos grupos pré-condicionados por hipóxia, crises clônicas foram induzidas por injeção de PTZ 30 min, 1 h e 24 h, assim como 4 e 7 dias após o episódio hipóxico. Nos grupos de pré-condicionamento opióide, a injeção de PTZ foi administrada 30 min e 24 h após o pré-condicionamento e os animais foram sacrificados 3 dias depois. Os resultados demonstraram que hipóxia normo-bárica reduz a susceptibilidade para convulsões induzidas por PTZ nos grupos de 30 min, 24 h, 4 e 7 dias, confirmando estudos prévios, demonstrando que existe uma fase precoce e uma tardia do pré-condicionamento. A administração de agonistas de receptores opióides mu e kappa mimetizou o efeito do pré-condicionamento hipóxico, indicando que as vias opióides endógenas do SNC induzem neuroproteção por mecanismos similares ao do pré-condicionamento hipóxico.(23)

Rauca e cols., 2000 verificaram a importância da presença de radicais livres para a indução do pré-condicionamento hipóxico e a proteção contra as crises induzidas por PTZ. Após um episódio de hipóxia de 9% de O2 e 91% de N2 por 1 h, crises convulsivas foram induzidas por injeção única de PTZ com intervalos de 1, 4, 7, 14 e 21 dias após a hipóxia. Um grupo de animais foi pré-tratado com o capturador de radicais livres, PBN (N-t-butyl-alpha phenylnitrone) e outro com NaCl, 20 min antes da hipóxia. Os resultados demonstraram redução de crises convulsivas grau 5 (escala de Racine),(19) nos animais injetados com PTZ 1 e 7 dias após a hipóxia pré-tratados com PBN, sugerindo que o aumento de O2 reativo no cérebro pode está envolvido na indução do pré-condicionamento contra crises por PTZ.(20)

O efeito neuroprotetor do pré-condicionamento hipóxico na neurotoxicidade induzida pelo AC foi investigado no hipocampo de ratos. Para o pré-condicionamento foi utilizada uma câmara de altitude a 380 mmHg por 15 h/dia por 28 dias e o grupo controle permaneceu em condição normóxica. Foi realizada a infusão de AC de forma aguda e crônica. Nos animais pré-condicionados houve uma diminuição da formação dos radicais de hidroxila, peroxidação lipídica e perda neuronal. Nos animais que sofreram a infusão de AC, após 2 h, 24 h, 48 h e 72 h, observou-se evidente morte neuronal. No grupo pré-condicionado, entretanto, houve redução de morte neuronal, assim como de apoptose. Esses dados indicam que o pré-condicionamento hipóxico pode ser neuroprotetor contra injúrias oxidativas induzidas por AC.(4)

PRÉ-CONDICIONAMENTO ATRAVÉS DE CRISES DE CURTA DURAÇÃO

O primeiro estudo de pré-condicionamento utilizando crises de curta duração seguidas de crises epilépticas prolongadas foi realizado por Kelly e McIntyre em 1994. O objetivo inicial do estudo não estava relacionado com neuroproteção, porém no decorrer da pesquisa foi observado que ratos que sofreram abrasamento no hipocampo dorsal respondiam de maneira diferente dos ratos controle após a administração sistêmica de AC. Neste estudo, os ratos sofreram abrasamento elétrico no hipocampo dorsal 2 vezes por dia até atingirem 6 estágios 5 da escala de Racine e só então eram considerados "ratos abrasados", e 1 ou de 21 a 28 dias após o abrasamento foram submetidos à crise induzida por AC. A análise comportamental destes animais mostrou que o grupo pré-condicionado era menos sensível ao AC, principalmente aqueles ratos que receberam AC 1 dia após o último abrasamento. Outra observação importante foi que no grupo que sofreu abrasamento, as crises foram do tipo límbicas generalizadas, diferentemente dos ratos controles que tiveram como primeiro evento comportamental sacudidelas de cachorro molhado porém, o grupo controle demorou mais tempo para exibir status límbico severo que o grupo pré-condicionado. Em relação à perda neuronal, o abrasamento hipocampal prévio promoveu uma considerável neuroproteção quando comparado aos animais controles.(13)

Sasahira e cols. (1995) estudaram a neuroproteção induzindo 2 crises epilépticas através do neuroconvulsivante bicuculina, com um intervalo de 1, 3, 5 ou 7 dias entre os dois insultos. Em relação às crises, os animais que sofreram um segundo insulto no intervalo de 1 e 3 dias apresentaram menor duração das crises eletroencefalográficas do tipo IV (contínuas espículas de alta voltagem), do que aqueles que receberam a segunda injeção de bicuculina após 5 e 7 dias. A expressão da proteína de estresse HSP72 (Heat Shock Protein 72) também foi analisada neste estudo. Foi observada ausência desta proteína no grupo de 3 e 5 dias, enquanto no grupo de 7 dias, a quantidade de HSP72 foi semelhante a dos animais controles. Também foi observada maior proteção neuronal nos animais com intervalo entre as injeções de 1, 3 e 5 dias do que naqueles com intervalo de 7 dias. Estes dados sugerem que crises de curta duração têm um efeito neuro- protetor limitado no tempo.(24)

Outro estudo investigou o efeito de uma crise curta, induzida por AC, na proteção de áreas vulneráveis do hipocampo contra um insulto longo induzido pela mesma neurotoxina. Neste estudo, o intervalo entre as crises curta e longa foi de 24 h, e os animais foram sacrificados 3 dias após o último insulto. Os resultados mostraram que um episódio curto de crise epiléptica foi capaz de proteger neurônios hipocampais.(17)

André e cols. utilizaram dois tipos de pré-condicionamento, abrasamento na amigdala e eletrochoque antes de induzir o SE com lítio-pilocarpina (Li-Pilo). O abrasamento foi realizado 2 vezes por dia com intervalo de 6 h entre os dois estímulos e o animal recebeu o número de estímulos necessários para atingir 3 crises tipo 5. O eletrochoque foi realizado 1 vez por dia durante 11 dias. Nos dois tipos de pré-condicionamento o SE induzido por Li-pilocarpina aconteceu 44 h após o último insulto. Neste estudo foi observado que o grupo que sofreu abrasamento era menos sensível a pilocarpina que o controle, já que precisou de dose extra desta droga para atingir SE. Já a latência e a freqüência das crises recorrentes espontâneas (CRE) no grupo pré-condicionado por abrasamento não diferiu do grupo controle. No grupo que sofreu eletrochoque, a latência para alcançar os estágios 2 e 5 de crise foi maior nos animais pré-condicionados que nos controles, além disso, este grupo apresentou menos CRE que o controle. Os animais que sofreram abrasamento apresentaram significante neuroproteção em todas as regiões do hipocampo, exceto no hilo, diferentemente do grupo que recebeu eletrochoque. Este estudo mostra que eletrochoque não protege os neurônios de dano induzido por Li-Pilo, mas previne ou retarda a ocorrência de CRE; contrariamente, o abrasamento na amigdala desencadeia neuroproteção das estruturas límbicas, mas não no hilo.(1)

Com o objetivo de verificar o papel da neuroproteção na susceptibilidade epiléptica, El Bahh e cols. (2001), induziram crises epilépticas através injeções de AC no hipocampo esquerdo de ratos, seguidos por uma segunda injeção de AC 1, 7 ou 15 dias depois, desta vez no ventrículo direito dos mesmos ratos. Foi observado que no grupo pré-condicionado a degeneração das células piramidais de CA3a-b foi substancialmente inibida quando comparado com o grupo controle. Este fenômeno neuroprotetor foi observado em 100% dos casos em que o segundo insulto aconteceu no primeiro e sétimo dia, e em um terço dos casos em que a re-exposição ao AC ocorreu no 15° dia. Outro resultado observado foi que o grupo pré-condicionado teve crises menos severas que o controle, mostrando que este tipo de pré-condicionamento além de reduzir a perda neuronal também atua no comportamento das crises.(10)

Zhang e cols. (2002) usaram 2 modelos para estudo de neuroproteção com crises curtas (20 min) seguidas de uma crise epiléptica de longa duração. No primeiro modelo, as duas crises curtas e a crise longa foram induzidas por AC, e no segundo modelo as crises curtas foram induzidas por AC e a crise longa por pilocarpina. Todos os grupos pré-condicionados de ambos modelos apresentaram menor perda neuronal quando comparado com os grupos controles. Apesar da neuroproteção, estes animais apresentaram CER com freqüência semelhante aos animais controles nas primeiras 8 semanas após o tratamento, porém as crises do grupo controle tornaram-se mais longas e freqüentes a partir da nona semana.(32)

PRÉ-CONDICIONAMENTO HIPERTÉRMICO

Os efeitos do pré-condicionamento hipertérmico vêm sendo estudados principalmente na isquemia cerebral, e os resultados sugerem seu efeito neuroprotetor nas células hipocampais,(16) e na redução no volume do infarto cerebral quando comparado com animais controle.(29) Na isquemia da medula espinhal, o pré-condicionamento hipertémico protegeu as células neuronais e reduziu a incidência de paraplegia imediata quando comparada com ratos controle.(31)

Na epilepsia, os efeitos do pré-condicionamento hipertérmico nas células neuronais e nas crises comportamentais e eletroencefalográficas foi estudado recentemente tanto in vitro quanto in vivo. Este estudo consistiu em três etapas. Na primeira etapa, uma cultura de células hipocampais foi submetida a hipertermia, e após um intervalo de 1, 2, 3, 5 ou 10 dias foi adicionado AC a cultura neuronal. Na segunda etapa, ratos foram submetidos a hipertemia por 30 min e, após 3, 7 ou 10 dias os animais receberam AC intracerebroventricular. Na última etapa, os ratos foram pré-condicionados como na segunda etapa e 3 dias após o pré-condicionamento foram injetados com bicuculina intraperitonealmente. Neste caso houve registro eletroencefalográfico para verificar o efeito da hiper-termia na susceptibilidade a crises epilépticas induzidas pela bicuculina. Foi observado que o pré-condicionamento por hipertermia protege as células hipocampais vulneráveis tendo efeito protetor máximo quando o intervalo entre a hipertermia e a administração de AC é de 3 dias tanto nos experimentos in vitro quanto in vivo. Além disso, foi constatado que a hipertermia preveniu crises induzidas tanto por AC quanto por bicuculina.(9) Yang e cols., 1996 também observaram atenuação das crises induzidas por bicuculina, tanto clínicas quanto eletroencefalográficas, em animais tratados previamente com hipertermia de 41 a 42°C por 15 min, e correlacionaram esta redução da excitabilidade neuronal com a presença de HSP 72.(30)

CONCLUSÃO

Os estudos aqui apresentados sugerem que o pré- condicionamento isquêmico, hipóxico, hipertérmico e através de crises de intensidade moderada não lesiva às células neuronais induzem às respostas adaptativas gerais, protegendo contra a fisiopatologia das crises e o desenvolvimento de crises severas, diminuindo os sinais comportamentais, através do aumento da latência e redução da severidade das crises. No entanto alguns estudos não encontraram uma relação direta entre proteção neuronal e intensidade das crises. Além disso, os mecanismos protetores de maneira temporal não são induzidos somente durante o pré-condicionamento ou em uma fase imediata, mas ainda estão presentes em uma fase mais tardia. Desta forma é possível afirmar que pré-condicionamento é uma importante estratégia para estudar a neuroproteção e suas implicações clínicas.

Atualmente existem vários estudos com pré-condicionamento seguido de crises epilépticas induzidas de diversas formas, mas pouco se sabe dos seus efeitos estruturais e funcionais após um período maior de sobrevivência. Os mecanismos capazes de promover a neuroproteção podem fornecer novos insights para o desenvolvimento de terapias para desordens associadas a morte neuronal. Desta forma vários mecanismos vêm sendo investigados em modelos de pré-condicionamento com o objetivo de definir o papel destes na neuroproteção, no entanto ainda são necessários mais estudos que definam o papel dos mecanismos neuroprotetores em cada patologia para que estes possam ser utilizados no tratamento clínico de pacientes com desordens no SNC.

Received 15 Dec 2006; accepted 26 Jan 2007.

  • 1. Andre V, Ferrandon A, Marescaux C, Nehlig A. The lesional and epileptogenic consequences of lithium-pilocarpine-induced status epilepticus are affected by previous exposure to isolated seizures: effects of amygdala kindling and maximal electroshocks, Neuroscience. 2000;99:469-81.
  • 2. Barbe MF, Tytell M, Gower DJ, Welch WJ. Hyperthermia protects against light damage in the rat retina. Science. 1988;241:1817-20.
  • 3. Bortolotto ZA, Heim C, Sieklucka M, Block F, Sontag KH, Cavalheiro EA. Effects of bilateral clamping of carotid arteries on hippocampal kindling in rats, Physiol Behav. 1991;49:667-1.
  • 4. Chang AY, Wang CH, Chiu TH, Chi JW, Chen CF, Ho LT, Lin AM. Hypoxic preconditioning attenuated in kainic acid-induced neurotoxicity in rat hippocampus. Exp Neurol. 2005; 195: 40-8.
  • 5. Corbett D, Crooks P. Ischemic preconditioning: a long term survival study using behavioural and histological endpoints. Brain Res. 1997; 760:129-36.
  • 6. Cotran RS, Kumar V, Collins T. Robbins: patologia estrutural e funcional. 6Ş ed. Vol. 1. Rio de Janeiro; 2000. 1251 p.
  • 7. Dirnagl U, Simon RP, Hallenbeck JM. Ischemic tolerance and endogenous neuroprotection. Trends Neurosci. 2003; 26:248-54.
  • 8. Dowden J, Corbett D. Ischemic preconditioning in 18- to 20-month-old gerbils: long-term survival with functional outcome measures. Stroke. 1999; 30:1240-6.
  • 9. Duveau V, Arthaud S, Serre H, Rougier A, Le Gal La Salle G. Transient hyperthermia protects against subsequent seizures and epilepsy-induced cell damage in the rat. Neurobiol Dis. 2005; 19:142-9.
  • 10. El Bahh B, Auvergne R, Lere C, Brana C, Le Gal La Salle G, Rougier A. Decreased epileptic susceptibility correlates with neuropeptide Y overexpression in a model of tolerance to excitotoxicity, Brain Res. 2001; 894:209-17.
  • 11. Emerson MR, Nelson SR, Samson FE, Pazdernik TL. A global hypoxia preconditioning model: neuroprotection against seizure-induced specific gravity changes (edema) and brain damage in rats. Brain Res Brain Res Protoc. 1999; 4:360-6.
  • 12. Heim C, Bortolotto ZA, Cavalheiro EA, Sontag KH. Transient occlusion of rat carotid arteries decreases susceptibility to pilocarpine seizures. Brain Res. 1991; 544:253-9.
  • 13. Kelly ME, McIntyre DC. Hippocampal kindling protects several structures from the neuronal damage resulting from kainic acid-induced status epilepticus. Brain Res. 1994; 634:245-56.
  • 14. Kirino T. Ischemic tolerance. J Cereb Blood Flow Metab. 2002; 22:1283-96.
  • 15. Kitagawa K, Matsumoto M, Tagaya M, Hata R, Ueda H, Niinobe M, Handa N, Fukunaga R, Kimura K, Mikoshiba K, et al. "Ischemic tolerance" phenomenon found in the brain. Brain Res. 1990; 528:21-4.
  • 16. Kitagawa K, Matsumoto M, Tagaya M, Kuwabara K, Hata R, Handa N, Fukunaga R, Kimura KM, Kamada T. Hyperthermia-induced neuronal protection against ischemic injury in gerbils. J Cereb Blood Flow Metab. 1991; 11:449-52.
  • 17. Najm IM, Hadam J, Ckakraverty D, Mikuni N, Penrod C, Sopa C, Markarian G, Luders HO, Babb T, Baudry M. A short episode of seizure activity protects from status epilepticus-induced neuronal damage in rat brain. Brain Res. 1998; 810:72-5.
  • 18. Pohle W, Rauca C. Hypoxia protects against the neurotoxicity of kainic acid, Brain Res. 1994; 644:297-304.
  • 19. Racine RJ. Modification of seizure activity by electrical stimulation. II. Motor seizure. Electroencephalogr Clin Neurophysiol. 1972; 32:281-94.
  • 20. Rauca C, Zerbe R, Jantze H, Krug M. The importance of free hydroxyl radicals to hypoxia preconditioning. Brain Res. 2000; 868:147-9.
  • 21. Rejdak K, Rejdak R, Czuczwar SJ, Kleinrok Z, Sieklucka-Dziuba M. The influence of CGP-40116 on bicuculline evoked seizures in mice exposed to transient episode of brain oligemia. J Neural Transm. 2000; 107:1263-72.
  • 22. Rejdak K, Rejdak R, Kleinrok Z, Sieklucka-Dziuba M. The influence of MK-801 on bicuculline evoked seizures in adult mice exposed to transient episode of brain ischemia. J Neural Transm. 2000; 107:947-57.
  • 23. Rubaj A, Gustaw K, Zgodzinski W, Kleinrok Z, Sieklucka-Dziuba M. The role of opioid receptors in hypoxic preconditioning against seizures in brain, Pharmacol Biochem Behav. 2000; 67: 65-70.
  • 24. Sasahira M, Lowry T, Simon RP, Greenberg DA. Epileptic tolerance: prior seizures protect against seizure-induced neuronal injury. Neurosci Lett. 1995; 185:95-8.
  • 25. Sieklucka M, Bortolotto Z, Heim C, Block F, Sontag KH. Decreased susceptibility to seizures induced by bicuculline after transient bilateral clamping of the carotid arteries in rats. J Neural Transm Gen Sect. 1991; 83:127-37.
  • 26. Sun JZ, Tang XL, Knowlton AA, Park SW, Qiu Y, Bolli R. Late preconditioning against myocardial stunning. An endogenous protective mechanism that confers resistance to postischemic dysfunction 24 h after brief ischemia in conscious pigs. J Clin Invest. 1995; 95:388-403.
  • 27. Tanay E, Mundel P, Sommer C. Short-term ischemia usually used for ischemic preconditioning causes loss of dendritic integrity after long-term survival in the gerbil hippocampus. Brain Res. 2006; 1112:222-6.
  • 28. Tomai F, Crea F, Chiariello L, Gioffre PA. Ischemic preconditioning in humans: models, mediators, and clinical relevance. Circulation. 1999; 100:559-63.
  • 29. Xu H, Aibiki M, Nagoya J. Neuroprotective effects of hyperthermic preconditioning on infarcted volume after middle cerebral artery occlusion in rats: role of adenosine receptors. Crit Care Med. 2002; 30:1126-30.
  • 30. Yang RC, Yang SL, Chen SW, Lai SL, Chen SS, Chiang CS. Previous heat shock treatment attenuates bicuculline-induced convulsions in rats. Exp Brain Res. 1996; 108:18-22.
  • 31. Zhang P, Abraham VS, Kraft KR, Rabchevsky AG, Scheff SW, Swain JA. Hyperthermic preconditioning protects against spinal cord ischemic injury. Ann Thorac Surg. 2000; 70:1490-5.
  • 32. Zhang X, Cui SS, Wallace AE, Hannesson DK, Schmued LC, Saucier DM, Honer WG, Corcoran ME. Relations between brain pathology and temporal lobe epilepsy, J Neurosci. 2002; 22: 6052-61.
  • Endereço para correspondência

    João Pereira Leite
    Departamento de Neurologia
    Psiquiatria e Psicologia Médica
    Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP
    Av. Bandeirantes, 3900
    CEP 14049-900, Ribeirão Preto, SP, Brasil
    Fone/Fax: (016) 3602-2556
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jul 2007
    • Data do Fascículo
      Mar 2007

    Histórico

    • Aceito
      26 Jan 2007
    • Recebido
      15 Dez 2006
    Liga Brasileira de Epilepsia (LBE) Av. Montenegro, 186 sala 505 - Petrópolis, 90460-160 Porto Alegre - RS, Tel. Fax.: +55 51 3331 0161 - Porto Alegre - RS - Brazil
    E-mail: jecnpoa@terra.com.br