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Qualidade: ciência, mito e fé

Calidade: ciencia, mito y fe

Quality: science, myth and belief

Resumos

Além de simples aplicação de ferramentas, a Gestão da Qualidade Total depende de motivação do pessoal envolvido e de atitudes individuais e grupais favoráveis. Isto implica em um salto ao desconhecido. Algumas conecções entre a estrutura mitológica do ser humano e a dinâmica das organizações podem oferecer alguns subsídios e estímulos para avançar neste desafio..

Qualidade; motivação; mito; ciência; fé


More than the correct application of T.Q.C. tools, this management discipline depends on personal motivation, capable of generating individual and group attitudes..This implies jumping into the unknown. Some connections between mythologic structure of the human beings, physics and dynamics of organizations may offer subsidies, stimulating the necessary courage to engage in this adventure.

Quality; Motivation; Myth; Science; Faith


GESTÃO DE OPERAÇÕES E LOGÍSTICA

Qualidade: ciência, mito e fé

Calidade: ciencia, mito y fe

Quality: science, myth and belief

João Amato NetoI; Héctor Rafael LisondoII

IEscola Politécnica/USP

IIUNICAMP e EPUSP

RESUMO

Além de simples aplicação de ferramentas, a Gestão da Qualidade Total depende de motivação do pessoal envolvido e de atitudes individuais e grupais favoráveis. Isto implica em um salto ao desconhecido. Algumas conecções entre a estrutura mitológica do ser humano e a dinâmica das organizações podem oferecer alguns subsídios e estímulos para avançar neste desafio..

PALAVRAS-CHAVE: Qualidade, motivação, mito, ciência, fé

ABSTRACT

More than the correct application of T.Q.C. tools, this management discipline depends on personal motivation, capable of generating individual and group attitudes..This implies jumping into the unknown. Some connections between mythologic structure of the human beings, physics and dynamics of organizations may offer subsidies, stimulating the necessary courage to engage in this adventure.

KEY WORDS: Quality - Motivation - Myth - Science - Faith

O PARADIGMA DOS SISTEMAS FECHADOS

Thomas Kuhn (1978) observou que embora os paradigmas sejam essenciais e indispensáveis ao pensamento científico, em algum estágio deste desenvolvimento eles funcionam como forças limitadoras, interferindo de forma adversa na possibilidade de novas descobertas e explorações do mundo natural, tendendo a ser confundidos com uma descrição acurada da realidade - ou mesmo com a própria realidade - ao invés de ser vistos como um mapa útil. Os paradigmas influenciam a consciência humana tanto normativa quanto cognitivamente, definindo a área de estudo, determinando os métodos de abordagem aceitáveis e estabelecendo critérios -padrão de solução.

Desde o Século XIX, a tradição cultural de Ocidente, de forte inclinação racional e mecanicista fundada na física pelo brilhante pensamento de Descartes (1596-1650) e Newton (1642-1727), injetou nas organizações, uma vigorosa tendência a operarem como sistemas físicos fechados. Há mais de cem anos que os administradores estamos planejando, predizendo e analisando, no império do princípio de causa e efeito, na soberania dos números e confiantes na eficiência do determinismo e na eficácia da predição. As empresas, como máquinas newtonianas, enfatizam estrutura e partes, responsabilidades organizadas em funções e pessoas em papéis. O conhecimento foi dividido em disciplinas e matérias, e a vida das pessoas, fragmentada. A maneira de pensar é conformada em variáveis, as quais são conferidas as propriedades de "dependente e independente". Este "mundo-máquina" organizacional está cheio de subdivisões e fronteiras, dentro das quais, cada peça - como nas máquinas - cumpre a sua função. Embora muito se fale em eliminar fronteiras, na prática isto não acontece, porque estas organizações estão sedentas de bordas que contenham e segurem coisas, o que lhes traz segurança, movidas por uma profunda compulsão para definir (definir carrega o termo latino: finis, que significa limite). Bordas, limites e definições preenchem vazios de identidade. A física clássica, matriz dos sistemas fechados - mundo de coisas com fronteiras nítidas e bem definidas, passíveis de serem estudadas discriminando onde uma termina e a outra começa, mundo de eu-você, dentro-fora, aqui-lá - se sustenta na objetividade científica.

Não há lugar para a fé num mundo como esse. As ciências positivas, como a matemática, as ciências naturais e a física clássica, não comportam a fé, elas se alimentam de deduções e induções. A fé se refere àquilo que não sabemos e nem saberemos, que não está e nem estará ao nosso alcance. Ao contrário, o paradigma clássico, é onipotente.

São arquétipos das organizações que se desempenham segundo este paradigma de sistemas fechados: a tendência a conservação, ferrenha resistência a mudança, busca de planejamento, equilíbrio e previsibilidade, em construções fortes e complexas, com astutos sistemas de interrelação para se sentir protegidas das obscuras forças que as ameaçam desde a sua paranóica percepção do mundo.

OS MITOS NAS ORGANIZAÇÕES

Até meados do nosso século, o desenvolvimento das estratégias de recursos humanos nas empresas esteve fundado no conhecimento até então disponível sobre o homem, reconhecido pela ciência, e que era fruto dos estudos e pesquisas de cientistas com visão positivista, reducionista e objetivista.

Nas últimas décadas, começou-se a suspeitar que tal modelo não condizia mais com o amplo espectro de potencialidades do homem e nem conseguia explicar a contento algumas áreas da experiência humana, tais como:

- os comportamentos não coerentes com as explicações mecanicistas.

- os comportamentos que implicam numa escolha, volição, intenção, atenção, compreensão etc.

- o nível de organização e ação social e os sistemas de significado subjacentes dos grupos sociais e das sociedades.

- a auto-consciência

- a criatividade, a intuição e outras experiências que implicam na existência de um nível inconsciente.

Foi com a descoberta dos processos mentais inconscientes e dos experimentos de hipnose (Freud, 1856-1939), que se verificou a tendência do homem para ver e experimentar a realidade , através de um "programa mental" subconsciente, que podemos denominar como "mitos pessoais e organizacionais" (Feinstein, 1989).

Estes mitos, não são mentiras, nem lendas. Trata-se de crenças profundas e regras implícitas que direcionam a vida das pessoas e dos grupos. São os temas inconscientes que formam as nossas percepções, sentimentos, pensamentos e influenciam as nossas atitudes. Metaforicamente, eles agem como um programa computadorizado, um "software residente", influenciando as nossas percepções de acordo com as suas próprias premissas e valores, enfatizando certas possibilidades e encobrindo outras. Por exemplo, se na infância percebíamos nossos pais descontentes com o trabalho que realizavam, tenderíamos a crer que o trabalho está relacionado com sofrimento e desprazer, e, possivelmente, vamos utilizar esse padrão na vida adulta.

Temos pouca o nenhuma consciência dessa dimensão do nosso ser, sendo levados constantemente a agir (ou reagir) de forma contrária as nossas próprias convicções e necessidades, por estarmos presos a mitos em descompasso com as nossas necessidades, potenciais e circunstâncias atuais.

A mitologia do indivíduo e das organizações é a substância da cultura na que estão inseridos. Através da mitologia interpretamos a experiência dos nossos sentidos, ordenamos novas informações e encontramos inspiração e orientação em situações que estão além da nossa compreensão. Sem a mitologia, as experiências dos indivíduos seriam desmembradas e caóticas e faltaria aos grupos, elementos internos de coesão e organização (Ziemer, 1996).

No momento da história que nos toca viver está ocorrendo uma extraordinária revolução dos mitos inconscientes, através das informações que nos atingem pela mídia eletrônica. Este contato possibilita examinar, avaliar e rever os nossos mitos sem o intermédio dos grandes líderes - que no passado forneciam a nova mitologia a sua comunidade.

As características desta revolução mítica são:

  • A máquina criadora de mitos construída pela moderna tecnologia é poderosa e pioneira.

  • Nossos sentidos são bombardeados por imagens míticas espalhadas simultaneamente pelo mundo todo.

  • Não existe mais uma mitologia transformadora única; vários fragmentos míticos competem entre si, e cabe aos indivíduos criar o seu próprio sistema de crenças. Esta experiência seria inimaginável no passado, quando os mitos eram transmitidos por um único contador de estórias, ao redor de uma fogueira, levando o indivíduo a abraçar a mitologia do clã ou da tribo.

  • O mundo tornou-se tão interconectado que, paradoxalmente, a humanidade está criando, pela primeira vez, uma estrutura mítica global.

Este movimento de transformação mítica, não é aleatório, e obedece a alguns parâmetros descritos a seguir:

1. A transformação de um conjunto de crenças tradicional significa uma fase natural e periódica do desenvolvimento pessoal e organizacional.

2. Os conflitos internos e externos dos indivíduos e grupos funcionam como indicadores naturais de períodos de transição.

3. Num extremo do conflito mítico básico encontra-se o mito organizado ao redor das experiências passadas. Este deve ser compreendido em termos do seu papel construtivo no passado do indivíduo e da organização.

4. Num outro extremo do conflito mítico básico encontra-se o mito oposto emergente, representando uma força que tende a expandir as possibilidades do indivíduo ou organização, justamente nas áreas limitadas pelo mito antigo.

5. O conflito entre o mito antigo e o mito emergente irá progredir naturalmente em direção a criação de um terceiro mito que integrará as premissas mais verdadeiras dos anteriores.

6. Os conflitos míticos não resolvidos re-emergem, interferindo na resolução das etapas de desenvolvimento subseqüentes.

7. A conciliação de um novo mito com a cultura empresarial existente é tarefa vital para um desenvolvimento contínuo (Feinstein, 1989).

Da mesma forma como o conceito dos paradigmas condiciona todo o desenvolvimento científico e tecnológico, os mitos influenciam decisivamente no processo de desenvolvimento dos indivíduos e das organizações, ora exercendo uma função progressista - o mito emergente - ora atuando de forma conservadora - o mito antigo. Vale lembrar que todo mito novo, organizado ao redor de um novo conjunto de crenças e objetivos não deve ser entendido como um modelo definitivo para a solução de todos os problemas da organização, mas sim, como um mito funcional transitório que precisará ser revisto quando novas condições se apresentem.

OS NOVOS PARADIGMAS DA CIÊNCIA ANUNCIAM UMA TRANSFORMAÇÃO CULTURAL

O início do século XX marcou para a ciência o fim do império dos princípios newtonianos e, na física, o início da era quântica, para a qual o mundo deixa de ser uma "máquina". Para o mundo quântico, existem primordialmente interrelações e interações. As partículas são efêmeras, meros estados intermediários na rede de interações.

Este mundo de interrelações, rico e complexo, descreve também as organizações. O novo modelo sugere que elas, como a física quântica, deixem de centrar-se em fatos e dados e, em vez disso, passem a se preocupar com inter-ações. Agora, a predição e uniformidade cedem o seu lugar para a surpresa. Cada pessoa é diferente em lugares diferentes.

A física quântica se sustenta no Princípio de Complementariedade, que diz que a matéria se manifesta de duas maneiras, ou como partícula, localizada em pontos no espaço, ou como onda, energia dispersa num volume finito. Isto representa a unidade expressada como diversidade. Outra lei mestra da física quântica, o Princípio de Incerteza de Heisenberg, diz que podemos medir a posição, fixando assim a partícula, ou estudar o momentum, fixando a onda, mas jamais poderemos medir ambas simultaneamente. Golpe terrível para a objetividade - e a onipotência - científica. Neste universo relacional, nós não podemos estudar nada separados de nós mesmos, porque a nossa observação é parte do processo que produz a manifestação que estamos observando.

A lição que a física quântica pode ensinar às organizações é, ao invés de descrever tarefas, facilitar processos. Os novos mitos emergentes deverão, mais cedo ou mais tarde, impulsionar as pessoas para construir inter-relacionamentos, nutrir o crescimento e evolução das coisas. Deverão nos disciplinar para não perder de vista o todo, e resistir a nossa tendência cartesiana de apostar nosso maior esforço na análise das partes, observar qualidades como ritmo, fluxo, direção e forma e esperar que algo útil ocorra - embora, a priori, não possamos precisar o que - se conectamos pessoas, unidades e/ou tarefas. Todos precisaremos de melhores habilidades para ouvir, comunicar-nos e facilitar o trabalho em grupos, porque são essas as condições que constróem vigorosas inter-relações.

Porém, as inter-relações não são visíveis, e estamos acostumados a ver para crer e, com a nossa herança do pensamento clássico, vemos, como na caverna de Platão, apenas as sombras. Aproveitar a riqueza da física quântica nas organizações demanda, portanto, um ato de fé, de coragem de libertação do pensamento, no domínio dos novos mitos.

As organizações que funcionam no paradigma dos sistemas fechados cobiçam o equilíbrio e a estabilidade. Para a termodinâmica, o equilíbrio nos sistemas fechados é o estado final de uma evolução, o ponto no qual o sistema exauriu a sua capacidade para mudar. A energia utilizada na mudança se transformou em entropia, que é não-utilizável, e vai consumindo as possibilidades do sistema fechado para mudar, conduzindo-o gradualmente para o seu repouso final. Para estes sistemas, as mudanças não são bem vindas, elas consomem energia disponível em troca de entropia, ou seja, um passo na direção da sua extinção. Preferem então ficar quietos. As entidades vivas, ao contrário, funcionam como sistemas abertos, e são parceiras do seu ambiente. Prigogine (1996) demostrou que estes sistemas tem a possibilidade de importar continuamente energia livre do ambiente e exportar entropia. Estes sistemas não ficam quietos ao tempo que a sua energia vai-se dissipando, não procuram o equilíbrio, mas, ao contrário, para ser viáveis, devem manter um estado de desequilíbrio, mantendo um ativo intercâmbio - especialmente de informação - com o seu meio, utilizando o que lá esteja, para sua própria renovação. Todos os organismos da natureza se comportam desta maneira. Neles as perturbações podem criar desequilíbrios, mas estes podem conduzir ao crescimento, se o sistema tiver a capacidade de agir para se adaptar. A mudança não é então uma perspectiva ameaçadora para estes sistemas, que Prigogine chamou de estruturas dissipativas, porque dissipam a sua energia para se re-criarem a si próprios em novas formas de organização. Para R. Ziemer (op.cit.): " todo sistema vivo é pressionado por duas forças antagônicas: a primeira é a de manter a identidade ou padrão de organização interno e a segunda é a de adaptar-se as mudanças ambientais". Alguns estudiosos das organizações começam a vê-las também como sistemas auto-organizativos ou "organizações adaptativas" onde a tarefa determina a forma da organização. Esta perspectiva sugere às empresas preocupar-se mais com o seu repertório de habilidades do que com o seu portfolio de negócios. Nas organizações humanas, o senso claro de identidade, valores, tradições, competências e cultura é a real fonte de independência do ambiente, e a terra mais fecunda para o germe do novo mito. Mais uma vez, coisas intangíveis, não-cartesianas, que demandam um ato de fé.

Outra das teorias que na atualidade a ciência também explora, a teoria do caos, nos direciona para não mais continuarmos a confiar em que as pequenas diferenças nos sistemas se compensam através das médias e de que podemos servir-nos de aproximações para entender e gerenciar o mundo físico. Ao contrário, num sistema dinâmico e mutante, as pequenas (e até desprezíveis) variações podem provocar resultados explosivos. A iteração cria poderosos e imprevisíveis efeitos nos sistemas não-lineares.

O MITO EMERGENTE NAS EMPRESAS LATINO-AMERICANAS

Há várias décadas, que as empresas do Primeiro Mundo aumentaram acentuadamente, a eficácia e eficiência dos seus sistemas, recursos e métodos de gerenciamento de produção e serviços, o que lhes proporcionou um alto nível de aceitação, devido a sua qualidade e preço, e de penetração em mercados emergentes. É evidente que as empresas latino-americanas deverão fazer um considerável esforço de adaptação. Isto requer o estabelecimento de propósitos e a escolha de modelos gerenciais de referência que facilitem e preservem vantagens competitivas, como liderança no custo total, diferenciação, enfoque no custo e enfoque na diferenciação. Neste contexto, a flexibilidade, propriedade coerente com os sistemas abertos, é indispensável. Terceirização, benchmarking e trabalho de grupos semi-autônomos são também parte do repertório de alternativas. Tal constelação de possibilidades ficaria difusa sem uma matriz que as integre, sistematize e ofereça um referencial para o pensamento. No nosso parecer, esta função pode ser preenchida pelo sistema gerencial conhecido como TQC (Total Quality Control), não apenas pela sua enorme abrangência nos aspectos técnico-administrativos, mas também nos psicossociais da gestão. Através da ótica do TQC, as questões de propósitos e valores da organização e dos indivíduos assumem maior riqueza.

A proposta, centrada na eterna busca da satisfação do cliente, está em sintonia com os sistemas abertos, pois focaliza tanto o ambiente interno quanto o externo, estimulando a interação e o fluxo da informação intra e extra empresa, especialmente ao possibilitar as pessoas, através da participação, tomarem contato com a permanente mudança da organização e as múltiplas forças que atuam para produzi-la. A primordial preocupação com os custos (sem deteriorar, obviamente, a qualidade intrínseca do produto ou serviço) dão ao método uma profunda consistência com a nossa realidade. A proposta do Dr. W. E. Deming (1990), que estruturou o TQC, está alicerçada no seu conceito de Saber Profundo, no qual integra, e põe a trabalhar juntas, ciências que até então, devido a influência do pensamento clássico cartesiano, corriam por trilhos separados - como a teoria de sistemas, variabilidade, teoria do conhecimento e psicologia, contestando assim o vigoroso paradigma da tradição científica clássica. Podemos vê-lo, então, como o mito emergente.

A PERSPECTIVA INDIVIDUAL

Na nossa opinião, a implantação do TQC também deve começar com um "ato de fé". A natureza da fé requerida não é precisamente a fé religiosa, mas a "fé científica". Neste sentido, "fé" é a união de uma hipótese transitória com a firme esperança de que exista um conhecimento ou verdade científica a qual poderemos nos aproximar a partir de múltiplos vértices. A aproximação não dará como resultado uma "única verdade" mas uma "verdade complexa", que tampouco será definitiva, mas que poderá colocar em marcha o pensamento criativo capaz de acompanhar as suas transformações.

Existe, no entanto, um outro tipo particular de fé contrária à científica: é a "fé fanática" onde reina a idéia dogmática, origem de muito sofrimento da espécie humana. A idéia fanática é a Idéia Máxima, que carece de articulação com outras idéias, é obstinada e concentrada, de extrema coerência, homogênea, igual a si própria, não aceita a pluralidade, a conveniência, ou o intercâmbio. Não muda, não se transforma, jamais entra em crise consigo mesma. Tem o efeito psicológico de aplacar a ansiedade e fazer desaparecer a incerteza. Na parte fanática da mente, no lugar de fé, há dogmas, e os dogmas são grandes construtores de represas mentais. A Idéia Máxima é como um vetor cujas componentes são a tríade mais mortífera para o pensamento criativo: o hipercausalismo, a hipercoerência e o nível concreto. As organizações que funcionam como sistemas fechados estão minadas de covis e meandros nos quais freqüentemente se abriga o fanatismo.

Mais do que os objetos em si, interessa o uso que deles é realizado. A característica fanática é um uso que se vincula a qualquer emoção, sentimento ou teoria. Quando se instala no pensamento científico, o dogmatiza. Qualquer objeto pode ser usado como Idéia Máxima, inclusive a Qualidade, quando desenvolvida nas premissas dos sistemas fechados.

A antítese do fanatismo é o crescimento psíquico, um contínuo devir transformacional... a mais rica das promessas do TQC. Crescimento psíquico significa aprender a pensar.

O TQC é a conseqüência da elaboração harmônica de uma postura gerencial cujo objetivo principal consiste na satisfação das pessoas como única alternativa para garantir a preservação dos negócios. Parece claro que a satisfação está no centro da proposta. No entanto, devemos abrir um novo espaço para um outro sentimento, que não faz parte da perspectiva tradicional do enfoque da qualidade: a frustração. Ela é o verdadeiro motor da vida psíquica e gerador do pensamento criativo. A consciência da imperfeição, a experiência da "incompletude", acordam e motivam o ser humano à procura sempre inatingível da perfeição. Não é na satisfação estática que reside a qualidade, mas na consciência da insatisfação, em que se produz a vontade de crescer. Na trilha a caminho da qualidade temos muito mais contato com a frustração do que com a satisfação, e podemos dizer que a segunda é conseqüência da nossa capacidade para lidar com a primeira. De uma perspectiva psicológica também podemos afirmar que a satisfação é impossível se não estiver precedida por uma frustração consciente, que podemos chamar de necessidade, demanda e desejo. Identificamos assim uma das grandes dificuldades para a implantação, porque em geral estamos pouco preparados para conviver com a frustração.

Existe uma iter-relação entre a frustração e o pensamento. W. R. Bion (1988) propôs uma interessante e conceituada teoria sobre a evolução psíquica do processo do pensamento e das suas patologias, desde o nascimento do bebê, prolongando-se durante toda a vida do indivíduo. Para ele:

  • O pensamento representa a união de uma "pre-concepção" com uma "frustração".

  • Uma pre-concepção seria uma expectativa a priori que, quando posta em contato com uma realização que dela se aproxima, se transforma em concepção.

  • Se a pre-concepção não encontra, porém, existência na realidade, transforma-se em frustração.

  • Caso a capacidade para tolerar a frustração seja suficiente, a "não-existência" torna-se um pensamento e desenvolve-se um aparelho para "pensá-lo".

  • Este aparelho para pensar é desenvolvido para dar conta dos pensamentos, e não ao contrário.

  • Pensar é um desenvolvimento imposto à psique pela pressão da frustração.

  • Se a capacidade para tolerar a frustração é inadequada, pode-se produzir uma fuga ou modo de evitar a frustração.

  • Isto não resultará num pensamento, mas numa necessidade de evacuação de objetos psíquicos danosos ou perigosos.

  • Fica assim inibido o crescimento.

É interessante notar as coincidências na teoria de Bion (op.cit) sobre o pensamento, com os pressupostos básicos das teorias físicas e naturais mencionadas, especialmente com os sistemas dissipativos propostos por Prigogine (op.cit.).

Esta visão pode ajudar a transformar a nossa atitude frente aos problemas, que, ao invés de pedras no nosso caminho, poderão se transformar em oportunidades para pensar e, portanto, para crescer. Isto, mais uma vez, demanda um ato de fé.

CONCLUSÕES

A globalização da economia é apenas uma das realidades do nosso tempo que ocasionam uma séria perturbação nas organizações latino-americanas. Se quiserem sobreviver e progredir no médio e longo prazo, estas deverão se conformar como sistemas abertos. A imprevisibilidade, intercâmbio, desequilíbrio, auto-adaptação, informação, propósito, serão os atores do novo drama. Poucas esperanças parecem restar para as organizações que insistam em continuar operando como sistemas fechados.

Estamos, pois, frente a uma radical mudança de cena. Alguns a vêem como uma mudança catastrófica. No antigo teatro grego, o coro entrava e descrevia previamente a cena onde depois os atores protagonizavam os seus papéis. Tal canto do coro chamava-se estrofa. Quando uma nova cena devia ser apresentada ao público, o coro outra vez entrava e entoava uma nova estrofa. Foi a mudança de cena do teatro grego que deu origem à palavra catástrofe. A nossa civilização - alicerçada em sistemas fechados, para os quais as mudanças nunca são bem vindas - associou esta palavra com desastres ou grandes desgraças. Mas, na realidade, a mudança de cena, não necessariamente tem de conduzir ao desastre; pode também gerar crescimento para as organizações como sistemas e para os indivíduos como pessoas. Isto depende da capacidade de ambas as entidades de mudar a sua estrutura mítica, e por tanto, a sua maneira de pensar, e - como os sistemas dissipativos -adaptar-se às novas exigências do meio, o que visto deste ângulo, embora não seja fácil, também não é impossível e nem fatal. O permanente florescimento da vida natural, da qual também somos parte, é uma prova incontestável.

No plano pessoal deveremos empreender a nossa Odisséia à procura de nosso destino, e estar, como Ulisses no poema mítico de Homero, permanentemente com o coração e a mente ágeis e jovens para responder às frustrações, trazendo à realidade o inesgotável fruto de nossa criatividade. Talvez seja esta uma das mais profundas e eternas provas a que nos submete a condição humana.

Artigo recebido em 10/12/1997. Aprovado em 28/09/1999.

João Amato Neto

Professor do Departamento de Produção da Escola Politécnica/USP, Consultor de Empresas (Qualidade & Produtividade).

Héctor Rafael Lisondo

Mestre em qualidade pela UNICAMP e Doutorando em Engenharia de Produção pela EPUSP.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Set 2010
  • Data do Fascículo
    Jun 2002

Histórico

  • Aceito
    28 Set 1999
  • Recebido
    10 Dez 1997
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