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Editorial

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Editorial

Uma maneira possível de classificar ou entender o ser humano é dizer que ele pensa e age, ou pensa e faz. O ethos aristocrático preza o homem que pensa, que contempla, que é capaz de desfrutar com elegância do ócio e, se possível, até mesmo transformá-lo em oportunidade de criação. Cumulando estas atitudes, adicionem-se a finura, o refinamento e o domínio do gosto. Esta concepção tem origens remotas. Os gregos prezavam acima de tudo o pensar e o contemplar. Um autor grego disse que nos jogos olímpicos havia os que iam para competir, outros para comercializar produtos e aqueles que iam para assistir aos jogos, contemplando as qualidades do certame. Estes últimos são os mais nobres e aqueles que, em uma hierarquia de valores, devem ocupar o cimo.

Quando o cristianismo adquiriu a condição de religião hegemônica, para não dizer exclusiva, no Ocidente, igualmente prosseguia a dicotomia. Havia os que se dedicavam ao seculo, ou seja, aos afazeres mais mundanos, como casar, ter filhos, manter uma família, plantar, colher, produzir objetos artesanalmente com os quais sustentar a vida da espécie. E havia aqueles que se recolhiam em mosteiros, orando e se dedicando ao entendimento da sabedoria derivada das Escrituras e da tradição, almejando, por meio da oração e da penitência, a vida contemplativa. Acredito que na segunda opção há mais santos e santas catalogados do que na primeira. Aparentemente, estas coisas podem ser interessantes, mas pertenceriam a um passado já distante. Será?

Vejamos se assim é. A modernidade trouxe consigo muitas coisas. O aparecimento da burguesia, de uma moral do trabalho, de uma valorização do homem como centro do universo e não mais a divindade e, certamente, o homem ativo. O homem que faz, que age, que é ativo e pró-ativo não é invenção do século XX ou XXI, mas remonta ao início da modernidade. O ideal aristocrático fenece gradativamente e em seu lugar vão se colocando uma moral burguesa e um humanismo burguês. O ser humano é, a partir de então, muito mais definido como o que age, que faz, do que aquele que pensa e contempla.

Enquanto a teoria pela teoria era uma delícia para o cultivo da mente na concepção grega, hoje ela é vista como algo próximo da inutilidade. Teorias só podem ser interessantes se forem úteis, ou seja, se auxiliarem e nortearem a prática, ou seja, a ação. A teoria científica deve levar à aplicação e esta à geração de tecnologia com que possamos intervir e controlar o mundo em que estamos inseridos. Se você é professor de administração saberá que a mais terrível avaliação que pode ser feita de seu curso e de sua aula é que foram teóricos. Isto equivale a uma execração. Se for um curso profissionalizante, pode significar a eliminação do docente da grade curricular.

E como fica esta dicotomia na profissão de administrador? De certa maneira, ela se mantém. Consultores e assessores são fundamentalmente pensadores ou aconselhadores. Não se espera que façam, e os que aceitarem seus conselhos e os colocarem em prática serão tidos como responsáveis pelos resultados. Os assessores estarão dispensados da responsabilidade, mas também das glórias e louros, caso haja sucesso. Estes ficarão com os executores, ou seja, os administradores de linha, os que agem e não apenas pensam.

Mas, mesmo se adentrarmos no âmago da vida administrativa, naquilo que se chama a vida e a mente do executivo, o que vamos lá encontrar? Uma grande dificuldade em fazer acontecer. O bom executivo é aquele que, de fato, executa, ou seja, que gera ação, que transforma idéias em fatos. Os que lidam com planejamento e gestão estratégica não hesitarão em reconhecer que o maior problema não é rever ou formular estratégias, mas executá-las ou implementá-las. Um livro recente, de grande sucesso, é um texto de Ram Charam, Larry Bossidy e Charles Burck, chamado simplesmente Execution – The Discipline of Getting Things Done, literalmente Execução – A disciplina de fazer com que as coisas sejam feitas ou realizadas.

A esta altura é mais fácil entender por que entre administradores a execução é vista como crucial e entre os filósofos o pragmatismo conhece hoje um esplendor que os seus criadores do século XIX não conseguiriam vislumbrar. Mas esta dicotomia do ser humano resiste aos séculos. E, se de um lado temos o louvor da execução, por outro surgem a preocupação com a falta de perspectiva e a necessidade de que, mesmo em meio a um grande sucesso, se dê um tempo, ou se pare para pensar, planejar e talvez redirecionar nosso negócio. Herbert Simon falava em slack resources, que seriam geradores de ineficiência, sem os quais uma organização se estiolaria. Dentre os recursos slack teríamos o tempo e as pessoas que não teriam agendas totalmente ocupadas, nas quais se deixaria espaço para outras coisas, como possivelmente pensar, criticar e inovar.

Enquanto a dicotomia persiste, pois parece inerente à condição humana, caberia não tentar eliminá-la, já que isto tem se mostrado impossível, mas com ela conviver de maneira mais confortável e fecunda. Em lugar de execrar a atividade, que pode conduzir ao agir pelo agir, à compulsão e à perda de sentido e de direcionamento, procurar equilibrá-la com a reflexão. Esta, se distanciada da ação, pode gerar alienação e irrelevância, mas quando vinculada à ação pode restaurar o equilíbrio fundamental entre o pensar e o agir.

Carlos Osmar Bertero

Editor e Diretor

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2007
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