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Inclusão social e marketing na base da pirâmide: uma agenda de pesquisa

Social inclusion and marketing at the bottom of the pyramid: a research agenda

Inclusión social y marketing en la base de la pirámide: una agenda de investigación

Resumos

Este trabalho se insere no debate sobre como o marketing pode atender às necessidades dos consumidores de baixa renda. Inicialmente, discutem-se as lacunas na literatura internacional e as principais estratégias que podem ser seguidas pelas empresas para reduzir a pobreza, focalizando-se, em seguida, a perspectiva do "marketing na base da pirâmide". É feita uma revisão de estudos realizados no Brasil sobre o consumo dos pobres, ainda em pequeno número, agrupando seus resultados pela temática abordada, incluindo gastos familiares, uso do crédito, escolha de marcas, escolha de lojas e significado dos bens. Em seguida, analisam-se formas pelas quais as empresas podem atuar no segmento de baixa renda, por meio de estratégias de marketing desenhadas especificamente para tal. Finalmente, propõe-se uma agenda de pesquisas à comunidade acadêmica brasileira, que cubra o consumo dos pobres e o marketing voltado para esse segmento.

Baixa renda; consumo dos pobres; base da pirâmide; comportamento do consumidor; consumidores pobres


This work takes part in the debate about how marketing can meet the needs of low income consumers. Initially, the gaps in international literature and the main strategies that can be followed by companies to reduce poverty are discussed, focusing subsequently on the perspective of "marketing at the bottom of the pyramid". A review is carried out of studies in Brazil (albeit few in number) into the consumption habits of the poor, grouping the results in line with the theme, including family spending, the use of credit, brand choice, store choice and the meaning of having possessions. Then, the ways in which companies can act in the low income segment, by means of marketing strategies designed specifically for this end, are analyzed. Finally, a research agenda is proposed for the Brazilian academic community, covering the consumption habits of the poor and marketing directed at this particular segment.

Low income; consumption of the poor; bottom of the pyramid; consumer behavior; poor consumption


ARTIGOS

Inclusão social e marketing na base da pirâmide: uma agenda de pesquisa

Inclusión social y marketing en la base de la pirámide: una agenda de investigación

Social inclusion and marketing at the bottom of the pyramid: a research agenda

Angela da Rocha; Jorge Ferreira da Silva

RESUMO

Este trabalho se insere no debate sobre como o marketing pode atender às necessidades dos consumidores de baixa renda. Inicialmente, discutem-se as lacunas na literatura internacional e as principais estratégias que podem ser seguidas pelas empresas para reduzir a pobreza, focalizando-se, em seguida, a perspectiva do "marketing na base da pirâmide". É feita uma revisão de estudos realizados no Brasil sobre o consumo dos pobres, ainda em pequeno número, agrupando seus resultados pela temática abordada, incluindo gastos familiares, uso do crédito, escolha de marcas, escolha de lojas e significado dos bens. Em seguida, analisam-se formas pelas quais as empresas podem atuar no segmento de baixa renda, por meio de estratégias de marketing desenhadas especificamente para tal. Finalmente, propõe-se uma agenda de pesquisas à comunidade acadêmica brasileira, que cubra o consumo dos pobres e o marketing voltado para esse segmento.

Palavras-chave: Baixa renda, consumo dos pobres, base da pirâmide, comportamento do consumidor, consumidores pobres.

ABSTRACT

This work takes part in the debate about how marketing can meet the needs of low income consumers. Initially, the gaps in international literature and the main strategies that can be followed by companies to reduce poverty are discussed, focusing subsequently on the perspective of "marketing at the bottom of the pyramid". A review is carried out of studies in Brazil (albeit few in number) into the consumption habits of the poor, grouping the results in line with the theme, including family spending, the use of credit, brand choice, store choice and the meaning of having possessions. Then, the ways in which companies can act in the low income segment, by means of marketing strategies designed specifically for this end, are analyzed. Finally, a research agenda is proposed for the Brazilian academic community, covering the consumption habits of the poor and marketing directed at this particular segment.

Keywords: Low income, consumption of the poor, bottom of the pyramid, consumer behavior, poor consumption.

INTRODUÇÃO

Uma questão que assume importância crescente para a sociedade, em particular a brasileira, é a redução da pobreza. Esta questão transcende os limites individuais, empresariais e nacionais, e é hoje uma questão global, como demonstra a inclusão da erradicação da pobreza entre os Objetivos de Desenvolvimento para o Milênio, da Organização das Nações Unidas (UNITED NATIONS, 2005). Além disto, a crença de que existe uma associação entre pobreza, instabilidade política e terrorismo e de que a erradicação da pobreza tornará o mundo mais seguro vem ganhando mais adeptos nos países desenvolvidos.

A idéia de que as empresas podem desempenhar importante papel na redução da pobreza consolidou-se no início dos anos 2000, particularmente com a publicação por Prahalad e Hammond (2002) de um artigo na Harvard Business Review, identificando potencial de lucro na "base da pirâmide", ou seja, entre os mais pobres. Embora esta não seja a única forma pela qual as empresas podem ajudar a combater a pobreza e reduzir a desigualdade social, o enfoque de Prahalad e Hammond teve a vantagem de mostrar que as empresas podem obter maiores lucros servindo a esta parcela negligenciada do mercado. Por isso mesmo, o libelo de Prahalad e Hammond teve grande impacto no meio empresarial.

No caso brasileiro, a questão da inclusão social é particularmente relevante, dada a elevada parcela da população com renda inferior a US$ 2 por dia (em torno de 18%). No entanto, pouco se sabe sobre o comportamento de consumo dos pobres brasileiros. Tal desconhecimento se deve ao desinteresse das empresas por esse segmento e à conseqüente pouca motivação da academia em estudá-lo, apesar de o mesmo constituir a parcela mais ampla da população brasileira e responder por parcela substancial do consumo de diversos produtos.

O presente trabalho teve por objetivo realizar uma revisão dos estudos realizados no Brasil sobre o comportamento dos consumidores pobres. Para tal, faz-se uma avaliação do conhecimento sobre o consumo dos pobres no plano internacional, salientando-se a grande lacuna teórica e empírica existente, e, em seguida, realiza-se uma revisão dos estudos brasileiros sobre o tema. A partir daí são identificadas propostas existentes na literatura para o "marketing na base da pirâmide", salientando-se casos exemplares de empresas brasileiras que utilizam estratégias bem-sucedidas nesse segmento. Ao final, propõe-se uma agenda de pesquisas para os estudiosos de marketing brasileiros.

OS POBRES NA LITERATURA INTERNACIONAL DE NEGÓCIOS

A literatura de administração de negócios pouco se preocupou com as camadas de renda mais baixa da população, exceto no contexto das questões de ética e responsabilidade social. Nesse caso, o enfoque, freqüentemente, salientou a importância de as empresas contribuírem para o bem-estar de comunidades pobres por elas afetadas e preocuparem-se com o impacto de suas ações em consumidores pobres. Um exemplo são os trabalhos de Hill (2002, 2008), que advogou consistentemente a necessidade de uma postura moral das empresas em relação ao consumo dos pobres.

As pesquisas sobre o comportamento de consumo dos pobres são bastante raras na literatura norte-americana e praticamente inexistentes na européia, que privilegiaram a classe média como objeto de estudo, em grande parte devido a sua importância percentual nas populações dos países desenvolvidos.

Desde o início da década de 1960, o tema do consumo dos pobres aparece pontualmente na literatura norte-americana, sob dois enfoques distintos. De um lado, uma linha inaugurada por Caplovitz (1963) atribuiu aos pobres um comportamento de compra "irracional", vendo-os como incapazes de cuidar adequadamente de seus interesses como consumidores. No entanto, outro grupo de pesquisadores entendeu tal comportamento de compra como resposta a fatores específicos associados à pobreza, defendendo a "racionalidade" das decisões tomadas por consumidores pobres, no contexto de necessidades emocionais ou de limitações materiais (HILL e STEPHENS, 1997; WILLIAMS e WINDEBANK, 2001). Estas duas perspectivas, cada uma a seu modo, viam o consumidor pobre como alguém marginalizado, excluído da sociedade de consumo. Além disso, vários estudos norte-americanos retratam indivíduos que passaram por um processo de empobrecimento (ALWITT e DONLEY, 1996; HILL, 2008), uma situação talvez mais própria de sociedades desenvolvidas do que de sociedades em desenvolvimento.

Em anos recentes, o interesse pelo comportamento dos consumidores pobres na literatura internacional aumentou, em função, fundamentalmente, do aumento substancial de consumo dos pobres de países emergentes. É nesse contexto que surge a mais recente perspectiva teórica com relação ao consumo da "base da pirâmide" (PRAHALAD e HAMMOND, 2002).

Prahalad (2005, p. 17) profetizou que "quatro bilhões de pobres poderão ser a força motriz da próxima etapa global de prosperidade econômica", sugerindo que as empresas deixassem de "pensar nos pobres como vítimas ou como um fardo" e passassem a vê-los "como empreendedores incansáveis e criativos e consumidores conscientes de valor". Com isso, o autor reconhecia o surgimento de nova e importante classe de consumidores, particularmente nos países emergentes, que deveria se tornar, nos anos seguintes, a principal força a impulsionar o crescimento econômico no mundo. Esse fenômeno estava associado a mudanças demográficas marcantes, iniciadas há mais de uma década, que deverão manter-se no futuro, incluindo (BLOOM e CANNING, 2006):

  • Aumento da população mundial para 9 bilhões de habitantes até 2050, concentrando-se o aumento previsto quase integralmente nos países em desenvolvimento.

  • Crescimento da população urbana, que se esperava ter ultrapassado a população rural do mundo ainda em 2007.

Este enorme crescimento demográfico nos países em desenvolvimento, acompanhado pelo fenômeno da urbanização, implica oportunidades para as firmas que desejarem adaptar suas estratégias de marketing para atender aos segmentos emergentes de consumidores (SEELOS e MAIR, 2007; VACHANI e CRAIG, 2008). Espera-se, nos próximos dez anos, que cerca de 800 milhões de consumidores ingressem no mercado dos países conhecidos como BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China). A importância desses consumidores no mercado mundial é ilustrada na Figura 1, por meio da qual Prahalad e Hammond procuraram destacar o potencial representado por esse segmento do mercado global.


Estas diferentes perspectivas teóricas aparecem claramente nas três formas pelas quais as empresas podem ajudar a combater a pobreza, utilizando os instrumentos de marketing (BOYLE e BOGUSLAW, 2007):

  • Enfoque ativista - As empresas podem adotar uma atitude proativa no sentido de usar sua influência em governos e sociedade civil para que sejam tomadas medidas que tenham impacto na redução da pobreza. Para tal, necessitam utilizar os instrumentos de marketing, de modo a motivar e persuadir outros atores sociais.

  • Enfoque de cidadania corporativa - As empresas podem desenvolver programas em parceria com governos locais e ONGs, com o propósito de aliviar a pobreza, permitindo o acesso dos pobres a educação, saúde, serviços básicos etc. Freqüentemente, esses programas utilizam os instrumentos de marketing para motivar e persuadir os públicos-alvo.

  • Enfoque econômico - As empresas podem focar o segmento de mercado constituído pelos mais pobres, desenvolvendo produtos e serviços que melhor atendam a esse segmento, oferecendo-os por meio de canais de distribuição eficazes, a preços competitivos. Nesse caso, todo um programa de marketing deve ser desenvolvido e aplicado.

Há poucos exemplos de ativismo empresarial no que concerne a esforços para reduzir a pobreza, como, aliás, em relação à maior parte das causas sociais. Na verdade, ativismo não é um comportamento tipicamente esperado ou praticado pelas empresas. Em um estudo sobre o comprometimento empresarial com a redução da pobreza, poucos foram os casos indicados como exemplo desse tipo de comportamento (BOYLE e BOGUSLAW, 2007), entre os quais o grupo Early Education for All, formado por líderes empresariais do estado norte-americano de Massachusetts, que pressiona o governo no sentido de aumentar os fundos destinados à educação pré-escolar; e o grupo National Health Access, que busca garantir o acesso a planos de saúde por trabalhadores que não possam obtê-lo por meio da empresa ou organização em que trabalham. No Brasil, um grande exemplo de ativismo empresarial é dado pela Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (ABRINQ), que criou uma fundação dedicada à defesa dos direitos da criança e do adolescente.

Outra forma de ação social das empresas é a que se convencionou chamar de cidadania corporativa. Nesse caso, as empresas apóiam causas sociais, particularmente através de patrocínios. Estimou-se que cerca de 9% dos patrocínios dados por empresas norte-americanas estão voltados para causas sociais. Um estudo realizado nos EUA mostrou que haveria mais vantagem para as empresas em se afiliarem a uma causa social do que em adotarem programas promocionais convencionais. A afiliação à causa social, no entanto, deveria ser compatível com o produto e a imagem da marca (BLOOM e outros, 2006). Um exemplo de compatibilidade entre a causa social e a missão da empresa foi dado pela Hewlett-Packard, com seu programa de inclusão digital que, segundo fontes da própria empresa, estaria proporcionando acesso à tecnologia a indivíduos em 53 países. Não se trata de um programa filantrópico, já que a HP entra apenas com uma parcela dos recursos necessários, cabendo ao governo e a outras instituições o financiamento do restante do projeto. O papel principal da HP no estabelecimento de uma "comunidade incluída" (i-community) é aplicar seu conhecimento de negócios de tecnologia à gestão do projeto, desde a identificação de necessidades até a implementação (CHADHURI, 2006).

A terceira e última forma de atuação seria a que segue o enfoque econômico, batizada de "marketing na base da pirâmide". Dessa perspectiva, os pobres passam a ser vistos como consumidores legítimos, que integram o mercado e que podem ser atraentes para as empresas.

Quem São os Consumidores Pobres

Os pobres podem ser classificados, segundo seu grau de pobreza, em três grupos (SACHS, 2005):

  • Extrema pobreza - As necessidades básicas de alimentação e moradia não conseguem ser atendidas.

  • Pobreza moderada - As necessidades básicas são atendidas, mas não outras, tais como educação e saúde; qualquer vicissitude, como doença, morte na família, ou desemprego, pode precipitar o indivíduo na extrema pobreza.

  • Pobreza relativa - Quando a renda é inferior à média nacional, o indivíduo tem acesso a serviços de educação e saúde de baixa qualidade, mas sua capacidade de ascender socialmente é limitada.

De modo geral, a primeira categoria seria o objeto principal do ativismo e da cidadania corporativa, já que sua posição de consumo seria ainda muito precária. A segunda e a terceira categoria, porém, seriam atendidas pelo marketing na base da pirâmide. É curioso observar que essa classificação guarda certa similaridade com a autoclassificação que os consumidores pobres fazem de si mesmos, como revelou um estudo etnográfico sobre o consumo dos pobres urbanos do Rio Grande do Sul, realizado por Castilhos (2007). Nesse estudo, foi possível distinguir três grupos de pobres, a partir de como eles mesmos se viam e de como viam outros pobres:

  • "Pobres-pobres" - Estrato inferior dos pobres urbanos, com restrições de alimentação e ausência ou precariedade em suas condições de moradia.

  • "Pobres" - Aqueles com acesso a moradia, capazes de equipá-la com alguns eletrodomésticos e eletrônicos, dispondo de alimentação "de pobre", mas farta.

  • "Elite dos pobres" - Constituída por microempresários locais, com moradias melhores e mais bem localizadas, que se relacionam entre si e se constituem em símbolos de ascensão social para os demais.

ESTUDOS SOBRE O CONSUMO DOS POBRES NO BRASIL

Também no Brasil, é grande a carência de estudos sobre o consumo dos pobres, igualmente esquecidos da academia, apesar de constituírem a maior parcela da população do país. No entanto, esta situação começou a se alterar e alguns estudos têm focado esse segmento da população. Maior conhecimento de suas características é, sem dúvida, indispensável para uma atuação correta das empresas que desejam praticar o "marketing na base da pirâmide". Apresentam-se a seguir resultados de estudos disponíveis que tratam de vários aspectos do consumo dos pobres.

Gastos Familiares

Dadas as restrições de orçamento, os pobres apresentam algumas peculiaridades no que se refere à forma como alocam seu orçamento. Estudo realizado por Silva e Parente (2007), utilizando dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), identificou cinco grupos entre a população de baixa renda de São Paulo, tendo como base gastos familiares:

  • Grupo 1: "Sofredores do Aluguel" - 6% da amostra - Era o grupo com menor índice de casa própria, tipicamente vivendo em habitação alugada. Em decorrência disso, apresentava forte concentração do orçamento em despesas de habitação (44%), a que se seguiam as despesas com alimentação (14%). De modo geral, seus membros estavam insatisfeitos com a alimentação, porém satisfeitos com as condições de habitação e tinham alto índice de inadimplência.

  • Grupo 2: "Jeitinho Brasileiro" - 31% da amostra - Este grupo utilizava formas alternativas criativas para cobrir o orçamento doméstico. As principais despesas eram com alimentação (10% do orçamento), habitação (7%) e assistência à saúde (7%). Apresentavam baixo índice de inadimplência, mas também o menor índice de posse de bens duráveis, inclusive automóveis. Seus membros consideravam difícil chegar ao fim do mês dentro do orçamento e reportavam restrições na alimentação.

  • Grupo 3: "Valorização do Ter" - 42% da amostra - Caracterizava-se por famílias maiores, maior número de mulheres, pardos e negros como chefes de família, porém maior escolaridade dos chefes de família. Possuíam maior diversidade de bens duráveis e o maior índice de posse de automóveis. Os principais itens do orçamento eram alimentação (15%), transporte (12%) e habitação (11%).

  • Cluster 4: "Batalhadores pela Sobrevivência" - 19% da amostra - Esse grupo apresentava chefes de família mais idosos, com maior índice de analfabetismo. Mostrava baixo nível de inadimplência. A maior parte do orçamento familiar era dedicada a alimentação (39%) e habitação (10%). As famílias mostravam-se insatisfeitas com a quantidade e a qualidade da alimentação.

  • Cluster 5: "Investidores" - 2% da amostra - Parcela substancial do orçamento era dedicada ao aumento dos ativos (39%), particularmente construção ou reforma de imóvel e aplicações financeiras, na alimentação (7%) e no transporte (6%). Era o grupo com maior predominância de brancos e de protestantes. Seus membros não apresentavam um inventário diversificado de bens duráveis. As famílias reportavam não estar satisfeitas com a alimentação.

A realização de compras pelo consumidor urbano de baixa renda pode ser mensal e diária. Segundo um estudo, a compra "pesada" era a mensal, após o recebimento dos rendimentos do mês, enquanto a compra diária, complementar, encontrava-se sujeita à existência de receitas adicionais no decorrer do mês (ASSAD e ARRUDA, 2006).

Uso de Crédito

Outro aspecto relevante refere-se a como os consumidores pobres utilizam o crédito. A essencialidade do crédito na vida dos pobres é uma das principais constatações das pesquisas, devido a ser esta a única forma pela qual eles obtêm acesso a grande variedade de bens de consumo. Diversos estudos foram feitos sobre como os pobres utilizam o crédito, identificando alguns aspectos:

  • Crédito como poupança invertida e antecipação do consumo - Os estudos mostram consistentemente que os consumidores pobres consideram sua renda insuficiente para poupar. Apesar disso, mostram-se capazes de separar, todos os meses, quantias certas para pagar as prestações, ou para pagar o cartão de crédito, o que se constitui em uma espécie de "poupança invertida" (BRUSKY e FORTUNA, 2002, p. 29).

  • Crédito como forma de controle do orçamento - A aquisição da dívida para compra de bens de consumo pode ser também uma forma de as pessoas se forçarem a controlar seu orçamento (CASTILHOS, 2007).

  • Crédito como expressão do materialismo - O uso de crédito pode ser também uma demonstração de materialismo, levando a maior endividamento por cartões de crédito. Verificou-se que as mulheres e os mais jovens, entre os pobres, tendem a apresentar níveis mais elevados de endividamento por cartão de crédito (PONCHIO e ARANHA, 2007).

  • Crédito como forma de distinção - O crédito pode ser ainda demarcador da posição social do indivíduo, separando os pobres dos "pobres-pobres". Ter uma conta bancária significa dispor de certo excedente de recursos, o que cria distinção em relação aos demais. Por sua vez, o cartão de crédito pode ser visto como a tangibilização da "posse" de crédito (MATTOSO e ROCHA, 2005).

  • Crédito como dádiva - Há, entre os pobres brasileiros, o costume de ceder o próprio crédito para um parente ou amigo. Trata-se de "emprestar o nome", ou seja, obter um empréstimo para uso de outrem, ou usar o cartão de crédito para compras alheias. Esse costume, bastante comum entre os pobres, constitui, ao mesmo tempo, uma forma de hierarquização e uma obrigação a que a pessoa não pode se furtar, quando solicitada por parente ou amigo que, por sua vez, já não tem crédito (MATTOSO e ROCHA, 2005).

Os pobres têm acesso a vários tipos de crédito, formal e informal, segundo levantamento realizado por Brusky e Fortuna (Quadro 1). No entanto, o crédito informal é, de longe, o mais usual, particularmente entre aqueles de renda mais baixa.


Escolha de Marcas

A marca dos produtos tem grande importância para os consumidores pobres, servindo como sinalizador de qualidade e de hierarquia social.

  • Produtos de marca

    versus produtos sem marca - Ter ou não marca mostrou-se um dos demarcadores entre o consumo dos ricos e dos pobres. Produtos de marca são valorizados não apenas em categorias de moda, mas também em produtos alimentícios e escolares. Quando adquiridos, servem de elemento de distinção intraclasse. A aquisição de produtos de marcas de prestígio para os filhos é entendida como indicador de afeto (BARROS e ROCHA, 2007).

  • Marcas "de rico"

    versus marcas "de pobre" - Os consumidores pobres reconhecem a existência de marcas "de rico" e marcas "de pobre", que se distinguem não só pela qualidade intrínseca dos produtos, mas também pelo respeito com que o consumidor da marca é tratado (CHAUVEL, 2000).

  • Estratégias de consumo de marcas - O uso de marcas mais caras e de maior prestígio é freqüente entre os consumidores pobres. No entanto, devido a limitações orçamentárias, os consumidores pobres utilizam uma série de estratégias no consumo das marcas (CHAUVEL, 2000). Entre empregadas domésticas, foi reportado o uso de várias dessas estratégias. Uma delas era alternar o uso de marcas de prestígio com marcas populares. Por exemplo, no caso de sabão em pó, uma marca mais barata era usada na primeira lavagem, utilizando-se a marca de prestígio para a lavagem final. No uso de produtos de limpeza, as marcas de prestígio podiam ser usadas em áreas mais nobres da casa. Por sua vez, o uso de marcas populares era evitado pelos mais jovens em público, por ser um indicador da condição de pobre (BARROS e ROCHA, 2007).

Escolha de Lojas

Para o consumidor pobre, a loja é um espaço importante, em que as emoções podem variar de prazer e alegria a humilhação e vergonha. O estudo sobre o consumo de empregadas domésticas mostrou que algumas lojas de varejo assumiam significado particular para esse grupo social. As lojas preferidas pelas empregadas domésticas se distinguiam pelas "facilidades" e pelo atendimento. Por "facilidades" entendia-se a rápida concessão de crédito, sem burocracia e, sobretudo, sem exigir comprovação de renda, o que, no caso de boa parte das empregadas domésticas, era difícil, por não ser possível comprová-la. Lojas de bom atendimento eram aquelas em que o pobre não era discriminado, mas recebia atendimento respeitoso. Para esse segmento, a loja de varejo de maior destaque foi a Casas Bahia (BARROS e ROCHA, 2007).

Em uma pesquisa qualitativa sobre como os consumidores pobres viam os supermercados (ASSAD e ARRUDA, 2006), verificou-se que a ida ao supermercado era uma atividade lúdica e prazerosa, além de servir como forma de atualização quanto a disponibilidades, ofertas e preços. Os consumidores construíam imagens dos estabelecimentos visitados e estabeleciam suas preferências. Dentre três estabelecimentos mais visitados, o preferido era o que desfrutava de melhor imagem, sendo visto como simultaneamente respeitoso e simpático. O segundo estabelecimento em preferência tinha maior número de elementos negativos em sua imagem, particularmente uma postura mais arrogante com o cliente. Finalmente, o terceiro estabelecimento era visto como desrespeitoso com o cliente, pela sujeira, desorganização e falta de produtos. A interpretação, por parte dos consumidores pobres, era de que, como se tratava de uma loja em uma área pobre, a empresa não se preocupava em oferecer bons produtos, instalações e atendimento. Esses resultados são bastante semelhantes a estudo anterior, que examinou os sentimentos dos consumidores pobres com relação a três lojas varejistas de alimentos (PARENTE, BARKI e KATO, 2005).

Significado dos Bens

Um estudo de inspiração etnográfica do consumo dos pobres urbanos em um bairro popular de uma cidade do Rio Grande do Sul, realizado por Castilhos (2007), mostrou que os bens a que os informantes atribuíam maior importância eram a casa, os eletrônicos, os eletrodomésticos e os móveis.

  • Moradia - A casa era o elemento central entre as posses de famílias pobres urbanas, e era a principal garantia de não se resvalar para a condição de miserável, ou "pobre-pobre". Quando inacabada, ou sem os objetos necessários, era considerada uma situação ainda provisória. Sua função era central para a família, possivelmente como símbolo de estabilidade e continuidade.

  • Aparelhos eletrônicos - Os aparelhos eletrônicos simbolizavam prosperidade e modernidade, integrando seus proprietários à sociedade de consumo. Conferiam

    status a seus possuidores, e eram mantidos freqüentemente em localizações estratégicas, de modo a poderem ser vistos pelos vizinhos. Entre os produtos eletrônicos, o aparelho de

    videogame e o computador pessoal eram os principais objetos de desejo, sendo-lhes reservado "lugar físico e simbólico privilegiado nos lares e nas vidas das famílias".

  • Eletrodomésticos - Os aparelhos eletrodomésticos ficavam associados ao espaço simbólico feminino. Havia os eletrodomésticos básicos, como geladeira e fogão, cuja ausência era percebida como "inconcebível". Já a presença da máquina de lavar roupa em uma casa era um símbolo de distinção.

  • Móveis - Os móveis faziam parte da vestimenta da casa, sendo fundamentais para definir aspectos territoriais e fixar o nível de conforto. Os móveis comprados novos eram percebidos como símbolos de ascensão social, ou de "melhorar de vida", enquanto os comprados usados ou ganhos como doação eram "provisórios", causando "desconforto diário a seus proprietários por atestarem de maneira implacável a sua incapacidade de prosperar".

  • Vestuário - O vestuário era utilizado de duas formas, particularmente pelos mais jovens: como uma espécie de "camuflagem" da condição de pobre, quando inserido em locais freqüentados por pessoas de outras camadas sociais; e como símbolo de distinção, dentro do próprio bairro. Em oposição a essas representações, o vestuário podia servir ainda para reafirmar a própria identidade de pobre, como quando eram usadas roupas alusivas ao movimento

    hip-hop. Já para os mais velhos, o vestuário não assumia tais significados, e pais e mães abriam mão desse tipo de consumo em favor dos filhos, afastando-os simbolicamente da condição de pobreza.

  • Alimentos - Os alimentos também assumiam importante papel simbólico. Em primeiro lugar, reafirmavam e consolidavam os papéis dos membros da família: do pai como provedor, da mãe em preparar a comida saborosa, dos filhos (e também do pai) em apreciar e demonstrar seu agrado. Em segundo lugar, eram demarcadores de distinção com relação a outros grupos sociais. A fartura da mesa na casa do pobre permitia realizar a distinção com relação aos muito pobres (ou "pobres-pobres"), que não podiam dispor de uma mesa farta, e com relação aos "ricos", que estariam sempre preocupados com dietas. Dessa forma, o orgulho associado à fartura da "comida de pobre" servia também como elemento de reafirmação de identidade.

ADOÇÃO DO MARKETING NA BASE DA PIRÂMIDE

Para explorar o mercado constituído pela "base da pirâmide" - ou seja, 80% da população mundial -, as empresas não podem simplesmente aplicar seus processos e produtos usuais. Muito pelo contrário, é necessário criar produtos e processos voltados especialmente para atender às necessidades desse grupo de consumidores, por meio de soluções inovadoras e criativas, a preços acessíveis, usando novos canais. Um caso exemplar é o do lançamento do Tata Nano - o carro mais barato do mundo - desenvolvido exatamente para atender às necessidades do segmento mais baixo do mercado, pelo preço de US$ 2.500.

Há muitas formas pelas quais as empresas podem repensar suas estratégias para inserir-se com sucesso na base da pirâmide. Em linhas gerais, as mudanças podem ser feitas em vários componentes do marketing de produtos e serviços, mas é fundamental que tais mudanças sejam consistentes com modificações nos processos produtivos e gerenciais da empresa. O Quadro 2 mostra exemplos de estratégias de marketing para os consumidores pobres que podem ser utilizadas pelas empresas com relação aos vários elementos do composto de marketing.


Anderson e Markides (2007) sugeriram que a conquista dos segmentos de consumidores pobres está associada a quatro fatores: aceitabilidade do produto, preço acessível, sistemas inovadores de distribuição e formas criativas de comunicação.

Seguem-se alguns exemplos de empresas brasileiras bem-sucedidas que atuam na base da pirâmide:

  • A Casas Bahia, maior rede de vendas de produtos eletrônicos e eletrodomésticos do Brasil, é um exemplo festejado de sucesso, e um dos casos apresentados por Prahalad. A empresa oferece produtos a preços baixos com financiamentos compatíveis com as possibilidades do consumidor de baixa renda. Com um dos maiores orçamentos de propaganda do país, a empresa tem por estratégia promover produtos de marcas conhecidas a preços baixos. Em 2002, a empresa perdoou os consumidores que haviam ficado inadimplentes antes de 1997, permitindo-lhes novamente comprar. Isto estava de acordo com a legislação brasileira, que corta o crédito do consumidor inadimplente por um período de cinco anos. Dessa forma, a empresa obteve uma vantagem fiscal em função do prejuízo e deu novamente crédito a esses consumidores, que voltaram a comprar. Além disso, a automação dos processos de concessão de crédito tornou extremamente rápido o atendimento, gerando satisfação junto aos clientes e reduzindo o risco das transações, por meio de um banco de dados centralizado (PRAHALAD 2005).

  • A rede de

    fast-food Habib's oferece comida árabe à população de baixo poder aquisitivo. A empresa opera com margens reduzidas no

    menu principal e margens mais elevadas em produtos como sobremesas e bebidas. A produção é verticalizada ou através de parcerias com fornecedores, e distribuída por meio de centros de distribuição próprios. As despesas são cuidadosamente controladas e o sistema de gestão é enxuto (CARVALHO, 2005).

  • Grandes empresas de alimentos no Brasil, para reagir ao avanço de pequenos e médios fabricantes que ofereciam marcas alternativas à população de baixa renda, conquistando parcelas crescentes de mercado, passaram a oferecer alternativas a esse consumidor. Por exemplo, a Danone, marca de iogurtes, lançou uma embalagem de duas unidades do seu produto Danoninho, com preço sugerido ao varejo no rótulo. Dessa forma, permitiu ao consumidor de baixa renda o acesso, ainda que esporádico, a um produto que só era vendido antes em embalagens de oito unidades. A Unilever, de forma similar, lançou uma versão mini, com

    roll-on, de seu desodorante Rexona. A Elma Chips lançou uma marca de salgadinhos fritos, a Bocaditos, sacrificando margens, para atender à população de baixa renda (KAMIO, 2005).

  • O correspondente bancário é um novo canal de distribuição utilizado por bancos no Brasil para dar acesso aos serviços financeiros a populações de baixa renda, particularmente aquelas situadas em localidades de difícil acesso e em pequenas comunidades. Este canal permite aumentar a inclusão bancária no país. A atividade foi regulamentada em 2000 pelo Banco Central, permitindo a outras organizações, tais como casas lotéricas, supermercados, farmácias, bancas de jornal, padarias e outros tipos de comércio, tornarem-se correspondentes bancários. Devido ao baixo custo desses novos pontos de venda, as tarifas para o uso de serviços financeiros podem ser também bem mais baixas. O Bradesco, um dos primeiros bancos a ampliar sua rede, utilizou o chamado Banco Postal, através de parceria com os Correios. O custo de cada ponto de venda por meio das agências dos Correios equivalia a apenas 8% do custo de implantação de uma agência. Já o ABN Amro fez uma parceria com a rede de drogarias Pague Menos, no Nordeste (GRADILONE, 2002).

  • Para atender ao desejo de cartões de crédito, inacessíveis à população de baixa renda, particularmente a que não tinha emprego formal, surgiu grande número de novas empresas de âmbito regional. Em 2006, 65 dessas empresas movimentavam 15% do mercado brasileiro por meio de 13 milhões de usuários de cartões de crédito. Esses cartões são desburocratizados, têm aceitação no comércio regional e não cobram anuidade (MANO, 2006).

  • A empresa de telefonia fixa de Minas Gerais CTBC ampliou suas vendas para os segmentos de consumidores pobres, desvinculando a conta do orçamento do consumidor, por meio de um sistema de venda de serviços pré-pagos. Em 2005, 16% de seus usuários utilizavam esses serviços (VITURINO, 2005).

Estes exemplos mostram diversas formas criativas pelas quais empresas atuantes no Brasil vêm atendendo ao mercado de baixa renda, com inegável sucesso e alto desempenho empresarial.

UMA AGENDA DE PESQUISAS PARA O BRASIL

A análise anterior sugere a existência de grandes lacunas teóricas e empíricas, tanto no entendimento do consumo dos pobres no Brasil, quanto com relação às formas pelas quais as empresas podem atuar com relação ao marketing na base da pirâmide. Assim sendo, acreditamos que existem inúmeras oportunidades de pesquisa sobre o tema, que exploramos a seguir.

Oportunidades no Estudo do Consumo dos Pobres

O consumo dos pobres tem suas peculiaridades, algumas das quais foram reveladas por alguns estudos mencionados em nossa revisão de literatura. No entanto, o grande desafio dos estudos do comportamento do consumidor pobre é metodológico.

  1. Estudos sobre os significados do consumo entre os pobres - É certamente um desafio penetrar no universo simbólico do consumo dos pobres e interpretar os significados atribuídos a objetos e locais de consumo. Talvez o fato de os membros da academia raramente provirem das classes de baixa renda torne mais difícil desvendar esses significados, o que sugere a utilidade de algum treinamento básico em etnografia. Não por acaso, alguns dos autores de pesquisas de viés etnográfico sobre o consumo dos pobres são antropólogos. É que estes já estão devidamente aparelhados do ponto de vista metodológico para realizar estudos dessa natureza.

  2. Desenvolvimento de escalas para medir aspectos do comportamento dos pobres - Pesquisas comportamentais do tipo

    survey também irão requerer desenvolvimento metodológico cuidadoso, devido ao baixo grau de alfabetização da população brasileira. A compreensão dos questionários deve ser cuidadosamente pré-testada. O uso de escalas pictóricas deve ser considerado, particularmente junto aos segmentos com menor escolaridade. É conveniente que o uso de escalas seja precedido por pesquisas exploratórias, para identificar o conjunto de termos acessado por essa população ao penetrar no universo do consumo. Esse inventário é imprescindível a qualquer pesquisa voltada para os segmentos de menor escolaridade.

  3. Estudos de incidentes críticos de consumo - A técnica de incidentes críticos pode ser extremamente útil para entender de que forma os consumidores pobres reagem a situações positivas ou negativas no cenário de serviços. Chauvel (2000) aplicou uma variante desse tipo de técnica em suas entrevistas em profundidade, para entender a insatisfação dos consumidores pobres com a compra de bens de consumo.

  4. Estudos longitudinais de consumo de famílias pobres - Esses estudos requerem o uso de bases de dados já existentes. Um exemplo de estudo que utiliza esse tipo de metodologia é o de Silva e Parente (2007), que utilizaram dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE. No entanto, outras fontes podem ser utilizadas. Por exemplo, acordos com empresas de pesquisa de mercado que operem painéis de consumo podem permitir a utilização de dados passados, sem valor comercial, mas de alto valor científico.

  5. Observação do comportamento dos consumidores pobres no ponto de venda - Estudos com base em técnicas de observação são sempre reportados nos manuais de pesquisa de marketing, mas pouco utilizados tanto pelas empresas como pelo meio acadêmico. Dada a maior dificuldade em utilizar o método do questionário, técnicas de observação podem ser bastante reveladoras de aspectos específicos do comportamento desse segmento. Nesse caso, pode-se utilizar a filmagem ou mesmo o registro por observador.

Oportunidades no Estudo de Práticas de Marketing na Base da Pirâmide

Outra linha de estudos refere-se ao que já vem sendo feito pelas empresas que atuam no Brasil, sejam elas empresas domésticas, sejam multinacionais, para atender aos segmentos de consumidores de baixa renda. Evidentemente, as sugestões a seguir esbarram necessariamente nas práticas de sigilo de muitas empresas, que não desejam divulgar suas experiências quando bem-sucedidas, para proteger seu conhecimento desse mercado e as vantagens competitivas daí oriundas. Mesmo assim, como a maior parte desses conhecimentos é de natureza tácita, ou seja, não pode ser facilmente codificada, transmitida e replicada, é razoável crer que se poderá contar com a colaboração de algumas empresas.

  1. Estudos de casos de sucesso, em profundidade, de empresas que atendem a consumidores de baixa renda - Esses estudos implicam o desejo da empresa de compartilhar sua experiência de forma geral e abrangente. Devem incluir: o histórico da empresa; as motivações para atuar no mercado de baixa renda; as estratégias utilizadas; os processos adotados para conquistar os clientes de baixa renda; a forma como se resolve a questão de orçamento familiar limitado, crédito e inadimplência; a forma como a empresa lida com a satisfação e a insatisfação do cliente, incluídos aí os serviços de atendimento, as práticas de pós-venda, devolução etc.; o marketing

    mix adotado; e, ainda, as questões de estrutura e procedimentos administrativos relevantes. Gostaríamos de encorajar particularmente os estudantes de mestrado a desenvolverem suas dissertações sobre o tema, por meio de estudos de casos.

  2. Levantamento de experiências malsucedidas de empresas no mercado brasileiro - Embora os casos de sucesso sejam mais facilmente levantados, a identificação de experiências malsucedidas é, por vezes, até mais útil para o entendimento de um fenômeno de marketing. Por exemplo, estudos sobre novos produtos lançados no mercado brasileiro, que procura atingir o mercado de baixa renda, mas não tiveram sucesso, poderiam lançar luz sobre estratégias a serem evitadas, ou erros em que as empresas podem incorrer comprometendo o lançamento.

  3. Levantamento de benchmarks para guiar a ação empresarial - Outro tipo de estudo, em que é maior a dificuldade de obter dados, mas que seria de grande utilidade para a prática empresarial, envolve o levantamento de

    benchmarks competitivos que possam ser utilizados pelas empresas para contrastar seus resultados com relação a outras empresas. Muitos desses

    benchmarks podem ter uma característica setorial, enquanto outros podem ser genéricos. Como exemplos, citamos: índice de retenção de clientes, custo de atrair o cliente, índice de inadimplência de clientes, custos promocionais por cliente etc.

  4. Estudos sobre desempenho de marketing e financeiro de empresas na base da pirâmide comparativamente com aquelas que atuam no topo - Esses estudos poderão ajudar a entender que aspectos do desempenho empresarial são impactados positiva e negativamente pela escolha de em que faixa da pirâmide populacional a empresa estará competindo. Os indicadores de desempenho podem ser, como na maior parte dos estudos dessa natureza, medidos tanto por variáveis objetivas, quanto por variáveis perceptuais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Existe uma grande lacuna, do ponto de vista acadêmico, no que se refere ao conhecimento sobre o mercado de consumo dos pobres, tanto no Brasil, como em outros países. Os estudos realizados nos países desenvolvidos, nas últimas décadas, focalizaram o pobre como sujeito de políticas públicas voltadas para compensar determinadas privações materiais, e encararam a ação empresarial como questão de responsabilidade social, ativismo ou assistencialismo.

O surgimento de uma nova perspectiva, que vê os pobres como fonte de lucros para as empresas, ao mesmo tempo em que estas contribuem para o desenvolvimento econômico do país e a ascensão social desse segmento da população, abre novas oportunidades para os estudiosos de marketing e de administração de negócios em geral. O novo poder adquirido por esse segmento da população mundial, particularmente nos países do BRIC, decorre exatamente de sua capacidade de compra, que hoje movimenta a economia global. No Brasil, esse segmento do mercado, que constitui a maior parte da população brasileira, permaneceu ignorado até meados da década de 1990, quando o Plano Real possibilitou um aumento do consumo na base da pirâmide, chamando a atenção das empresas atuantes no país para o potencial de negócios aí existente.

Apesar do interesse recente pelo tema, é ainda muito pequeno o conhecimento disponível sobre o comportamento dos consumidores pobres e sobre a eficácia e adequação dos instrumentos de marketing na base da pirâmide. Qualquer que seja a metodologia utilizada e o tipo de estudo realizado, é urgente que os estudiosos de marketing no Brasil se conscientizem, cada vez mais, da necessidade de estender sua atenção para essa maioria silenciosa da população brasileira. Incorporar as camadas de baixa renda ao consumo é, também, uma forma de aquisição de cidadania, e uma grande oportunidade para as empresas expandirem o mercado para seus produtos.

Recebido em 14.02.2008.

Aprovado em 22.08.2008.

Disponibilizado em 28.08.2008

Avaliado pelo sistema double blind review

Editor Científico: Carlos Alberto Vargas Rossi

Angela da Rocha

Professora do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração

Universidade Federal do Rio de Janeiro

angela@coppead.ufrj.br

Jorge Ferreira da Silva

Professor da Escola de Negócios

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

shopshop@iag.puc-rio.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Set 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2008

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2008
  • Aceito
    22 Ago 2008
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