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Como praticar a medicina baseada em evidências

EDITORIAL

Como praticar a medicina baseada em evidências

Regina Paolucci El Dib

Assistente de Pesquisa Científica, Centro Cochrane do Brasil. Sentinel reader dos comentários dos artigos do The Evidence-Based Journals Group McMaster Online Rating of Evidence. Doutoranda em Medicina Interna e Terapêutica, Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina (UNIFESP-EPM), São Paulo, SP

Os desenvolvimentos econômico, político, social, cultural e científico são marcados por processos lentos, graduais e de profunda conscientização dos aspectos importantes que devem ser transformados e aprimorados para o bem de uma comunidade. Em relação ao campo científico, no passado, as pesquisas eram embasadas apenas por teorias fisiopatológicas. Porém, mais recentemente, as mesmas vêm sofrendo profundas modificações, agregando-se a um processo baseado em evidências provindas de boas pesquisas científicas.

A medicina baseada em evidências (MBE) é definida como o elo entre a boa pesquisa científica e a prática clínica1-2. Em outras palavras, a MBE utiliza provas científicas existentes e disponíveis no momento, com boa validade interna e externa, para a aplicação de seus resultados na prática clínica. Quando abordamos o tratamento e falamos em evidências, referimo-nos a efetividade, eficiência, eficácia e segurança. A efetividade diz respeito ao tratamento que funciona em condições do mundo real. A eficiência diz respeito ao tratamento barato e acessível para que os pacientes possam dele usufruir. Referimo-nos à eficácia quando o tratamento funciona em condições de mundo ideal. E, por último, a segurança significa que uma intervenção possui características confiáveis que tornam improvável a ocorrência de algum efeito indesejável para o paciente3. Portanto, um estudo com boa validade interna deverá apresentar os componentes descritos acima.

O processo da MBE inicia-se pela formulação de uma questão clínica de interesse. Uma boa pergunta formulada é o primeiro e mais importante passo para o início de uma pesquisa, pois diminui as possibilidades de ocorrerem erros sistemáticos (vieses) durante a elaboração, o planejamento, a análise estatística e a conclusão de um projeto de pesquisa. Uma boa pergunta científica consiste em quatro itens fundamentais, são eles: situação clínica (qual é a doença), intervenção (qual é o tratamento de interesse a ser testado), grupo-controle (placebo, sham, nenhuma intervenção ou outra intervenção) e desfecho clínico. Suponhamos que se queira saber se os inibidores de agregação de plaquetas são mais efetivos e seguros quando comparados aos anticoagulantes orais na diminuição da incidência de mortalidade cardiovascular. Nesse exemplo, os inibidores de agregação de plaquetas seriam a intervenção de interesse, os anticoagulantes orais seriam o grupo-controle, os pacientes hipertensos seriam a situação clínica e a diminuição da incidência de mortalidade cardiovascular seria o desfecho primário de interesse. É claro que existem outros desfechos que podem ser avaliados em um mesmo estudo. Dando continuidade a esse mesmo exemplo, poderíamos considerar como desfechos secundários os eventos cardiovasculares não-fatais (acidente vascular cerebral, infarto do miocárdio e eventos tromboembólicos).

Partindo da pergunta, o próximo passo é saber qual é o desenho de estudo que melhor responde à questão clínica. No exemplo anterior, o desenho de estudo que possui validade interna mais adequada são as revisões sistemáticas com ou sem metanálises (consideradas nível I de evidências), seguidas dos grandes ensaios clínicos, denominados mega trials (com mais de 1.000 pacientes – nível II de evidências), ensaios clínicos com menos de 1.000 pacientes (nível III de evidências), estudos de coorte (não possuem o processo de randomização – nível IV de evidências), estudos caso-controle (nível V de evidências), séries de casos (nível VI de evidências), relatos de caso (nível VII de evidências), opiniões de especialistas, pesquisas com animais e pesquisas in vitro4. As três últimas classificações permanecem no mesmo nível de evidência (nível VIII de evidências), sendo fundamentais para formular hipóteses que serão testadas à luz de boa pesquisa científica.

Cabe ressaltar que a hierarquia dos níveis de evidências apresentada acima é válida para estudos sobre tratamento e prevenção. Portanto, se a questão formulada for relacionada a fatores de risco, prevalência de uma doença ou sensibilidade e especificidade de um teste diagnóstico, a ordem dos níveis de evidências apresentados será modificada em virtude da questão clínica. Em outras palavras, a hierarquia dos níveis de evidências não é estática e, sim, dinâmica conforme a pergunta elaborada.

As revisões sistemáticas possuem vantagens quando comparadas às revisões tradicionais. As revisões sistemáticas que utilizam métodos rigorosos diminuem a ocorrência de vieses. Revisões sistemáticas com metanálises geralmente otimizam os resultados achados, pois a análise quantitativa dos estudos incluídos na revisão fornece informações adicionais5. Já as revisões narrativas geralmente respondem a questões amplas e mal formuladas. Além disso, a fonte e a seleção dos estudos freqüentemente não são especificadas e, dessa forma, potencializam a ocorrência de vieses. As revisões sistemáticas são consideradas, atualmente, o nível I de evidências para qualquer questão clínica por sumariarem sistematicamente informações sobre determinado tópico através de estudos primários (ensaios clínicos, estudos de coorte, casos-controle ou estudos transversais), utilizando-se de uma metodologia reprodutível, além de integrar informações de forma crítica para auxiliar as decisões e explicar as diferenças e contradições encontradas em estudos individuais.

As metanálises são um cálculo estatístico (somatório estatístico) aplicado aos estudos primários incluídos em uma revisão sistemática. As metanálises aumentam o poder estatístico para detectar possíveis diferenças entre os grupos estudados e a precisão da estimativa dos dados, diminuindo o intervalo de confiança. Além disso, as metanálises são fáceis de serem interpretadas, dependendo apenas de um pouco de prática e treino.

Para a realização de uma revisão sistemática, há a necessidade de um segundo revisor (um pesquisador assistente para selecionar estudos, avaliar a qualidade dos estudos selecionados e extrair dados); de equipamentos, como computadores e aplicativos; e de habilidades particulares como, por exemplo, a elaboração de estratégias de busca em bases de dados, a seleção de estudos baseados em critérios de inclusão e exclusão, a avaliação crítica dos estudos para inclusão na revisão sistemática, a interpretação dos resultados e a atualização da revisão sistemática.

Os ensaios clínicos randomizados são estudos primários que respondem a questões de tratamento e prevenção. Os ensaios clínicos randomizados são considerados nível II de evidências, pois possuem um grupo-controle, são prospectivos (paralelos ou cross-over), possuem os processos de randomização (sorteio dos participantes para serem alocados em um dos grupos do estudo, possibilitando a todos os indivíduos a mesma chance de entrarem tanto no grupo tratado como no grupo-controle) e de mascaramento dos desfechos a serem avaliados pelo investigador (estudo cego)6. Nesse desenho de estudo, existem no mínimo dois grupos: um recebe a intervenção a ser testada (por exemplo, imatinib para tumores do trato gastrointestinal) e o outro grupo recebe outra intervenção, nenhuma intervenção ou placebo. Os dois grupos são seguidos de forma que os participantes não sejam perdidos até que os desfechos de interesse ocorram.

Entretanto, existem questões na área da saúde em que o processo de randomização seria antiético, como, por exemplo, investigar a possível ocorrência de câncer de pulmão randomizando indivíduos para fumar e não fumar. Desta maneira, o melhor desenho de estudo para responder a essa questão seria o estudo de coorte clássico. Nesse tipo de estudo, os participantes expostos e não expostos ao fator de risco – cigarro – são seguidos prospectivamente durante um período de tempo até os eventos de interesse aparecerem. Nesse estudo, é testada uma hipótese de associação.

Quando lidamos com questões de fatores de risco, o estudo de coorte é considerado nível II de evidências, apenas sucedendo a revisão sistemática de coortes (nível I de evidências).

Vale lembrar que alguns ensaios clínicos, geralmente de caráter cirúrgico, são difíceis de serem classificados como duplo-cegos (quando o paciente e investigador desconhecem a alocação do participante). Porém, existe um procedimento para lidar com esse tipo de situação denominado sham, fake ou dummy (simulação). Esse procedimento tem por objetivo atuar de maneira similar ao placebo (remédio sem atividade farmacológica específica); entretanto, é aplicado para mascarar técnicas cirúrgicas. Alguns autores consideram esse procedimento antiético, pois os pacientes são submetidos à anestesia, sendo expostos a riscos. Outros autores defendem que um procedimento pode ser eticamente justificado se há uma questão clínica relevante a ser respondida, se a utilização do grupo-controle com sham for metodologicamente necessária para testar a hipótese do estudo e se o risco do procedimento com sham for mínimo7. É o que chamamos de princípio da equipoise – distribuição de riscos para diminuir a incerteza na medicina. Dentro de um contexto para responder a uma questão clínica relevante, o uso de procedimentos sham pode ser o único caminho para determinar se o mecanismo de hipótese da cirurgia é responsável pela melhora na condição dos pacientes7.

De modo similar ao estudo de coorte, o estudo caso-controle é observacional, porém retrospectivo, partindo do desfecho para a exposição, e, geralmente, é útil para questões que abordam doenças ou situações raras. Um exemplo de estudo caso-controle seria investigar o possível efeito de uma dieta rica em sal sobre doença cardiovascular. O estudo inicia-se com um grupo de pacientes com doença cardiovascular (casos) e um grupo de indivíduos sem doença cardiovascular (controle). É realizado um questionário para investigar os hábitos alimentares dos pacientes e, então, estabelecer uma possível relação de associação entre os pacientes que ingeriram dieta rica em sal e que desenvolveram ou não doença cardiovascular.

Esse desenho de estudo é mais barato e mais rápido de ser realizado. Entretanto, para questões sobre tratamento e prevenção, acaba por ser considerado nível V de evidência, por ser retrospectivo e, obviamente, por estar propício à ocorrência de viés de memória, além de não incluir o processo de randomização e, assim, estar sujeito à ocorrência de viés de seleção.

Existem várias classificações dos níveis e graus de recomendação das evidências. A maioria dos revisores e colaboradores do Centro Cochrane do Brasil utiliza os níveis e graus de evidências aqui apresentados para nortearem suas pesquisas ou tomadas de decisão em relação aos cuidados de saúde do paciente, por serem simples e praticáveis.

A Colaboração Cochrane é um excelente avanço para a tomada de decisões no campo dos cuidados à saúde, sendo comparada com o Projeto Genoma em importância para a medicina clínica mundial8. Os objetivos da Colaboração Cochrane são fornecer informação precisa sobre os efeitos do cuidado à saúde prontamente disponível por todo o mundo, produzir e disseminar revisões sistemáticas de intervenções aos cuidados à saúde, e promover a busca por evidências na forma de ensaios clínicos e outros estudos de intervenção.

Na homepage do Centro Cochrane do Brasil (www.bireme.br/cochrane), há inúmeras revisões sistemáticas e ensaios clínicos disponíveis na biblioteca virtual.

Como praticamos a MBE? Para praticarmos a MBE, devemos seguir os seguintes passos:

1.Transformação da necessidade de informação (sobre prevenção diagnóstico, prognóstico, tratamento, etc.) em uma pergunta que pode ser respondida.

2.Identificação da melhor evidência com a qual responder a essa pergunta (verificação do melhor desenho de estudo para a questão clínica).

3.Acesso às principais bases de dados da área da saúde, como a Cochrane Library, MEDLINE, EMBASE, SciELO e LILACS, em busca de estudos bem delineados.

4.Realização de análise crítica da evidência em relação à validade (proximidade da verdade), ao impacto (tamanho do efeito) e à aplicabilidade (utilidade na prática clínica).

É fundamental levar em consideração em quais nível e grau de evidências estamos embasando nossa prática clínica no momento.

Além disso, é importante ressaltar que a MBE não nega o valor da experiência pessoal, mas propõe que esta seja alicerçada em evidências. Outrossim, boas pesquisas científicas objetivam reduzir a incerteza na área da saúde para ajudar na tomada de melhores decisões clínicas.

Aumentar a consciência dos clínicos sobre a necessidade de utilizar boas evidências na prática clínica é primordial para a continuidade do desenvolvimento científico e, principalmente, para aumentar a qualidade do atendimento aos pacientes, considerando as circunstâncias e desejos dos mesmos, a experiência profissional do clínico e a melhor evidência disponível no momento.

Referências

1. Atallah AN. A incerteza, a ciência e a evidência. Diagn Tratamento. 2004;9:27-8.

2. El Dib RP, Atallah AN. Fonoaudiologia baseada em evidências e o Centro Cochrane do Brasil. Diagn Tratamento. 2006;11:103-6.

3. El Dib RP, Atallah AN. Evidence-based speech, language and hearing therapy and the Cochrane Library's systematic reviews. Sao Paulo Med J. 2006;124:51-4.

4. Cook DJ, Guyatt GH, Laupacis A, Sackett DL, Goldberg RJ. Clinical recommendations using levels of evidence for antithrombotic agents. Chest. 1995;108(4 Suppl):227S-30S.

5. Manser R, Walters EH. What is evidence-based medicine and the role of the systematic review: the revolution coming your way. Monaldi Arch Chest Dis. 2001;56:33-8.

6. Jadad AR. Randomised controlled trials: a user's guide. London: BMJ Books; 1998. p. 1-3.

7. Horng S, Miller FG. Ethical framework for the use of sham procedures in clinical trials. Crit Care Med. 2003;31(3 Suppl):S126-30.

8. Naylor CD. Grey zones of clinical practice: some limits to evidence-based medicine. Lancet. 1995;345:840-2.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2007
  • Data do Fascículo
    Mar 2007
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