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Vascularização temporária de membros isquêmicos por meio de shunt arteriomedular: trabalho experimental

Resumos

CONTEXTO: Os autores idealizaram um shunt temporário entre a artéria femoral e o canal medular de ossos longos para manter a viabilidade dos membros agudamente isquêmicos, enquanto não é possível estabelecer um tratamento definitivo. OBJETIVO: Avaliar a perviedade de shunts temporários arteriomedulares e a perfusão dos membros, durante duas horas em cães de experimentação, que tiveram a artéria femoral ligada. MÉTODOS: Alocaram-se aleatoriamente dois grupos, com três cães no Grupo Controle e seis no Grupo Intervenção. Os controles tiveram a artéria femoral comum direita ligada. O Grupo Intervenção, além da ligadura da artéria, recebeu um shunt. Após duas horas, realizou-se a medida de pH dos membros isquêmicos; avaliação do fluxo arterial por meio de um sonar Doppler; avaliação da coloração do sangramento na extremidade distal do membro e foram retirados em bloco torácico os pulmões para análise anatomopatológica. RESULTADOS: A média do pH do sangue capilar das extremidades do membros no Grupo Controle foi de 6,97 (±0,39); no Grupo Intervenção o pH foi de 7,25 (±0,46), com p<0,001; a coloração do sangue no Grupo Intervenção manteve-se com aspecto rutilante em todos os animais. Os shunts necessitaram, em média, três irrigações com solução salina heparinada para manterem-se pérvios. A avaliação macroscópica e microscópica do tecido pulmonar não evidenciou embolia gordurosa. CONCLUSÃO: O shunt arterio-osteal ou arteriomedular apresentou viabilidade técnica em laboratório.

enxerto vascular; salvamento de membro; isquemia


BACKGROUND: The authors idealized a temporary shunt between the femoral artery and the medullar canal on long bones to keep the viability of acutely ischemic limbs, while waiting for a definitive treatment. OBJECTIVE: To assess the flow on temporary shunts between the femoral artery and the marrow canal of the tibia during two hours in experimental dogs, which had the femoral artery interrupted. METHODS: Two groups with three dogs on the Control Group and six on the Intervention Group were allocated at random. The controls had the right femoral common artery interrupted. The Intervention Group received a shunt between the iliac external artery and the medullar canal of the right tibia in addition. After two hours, the measure of the pH, blood coloration, blood flow in sonar Doppler on the ischemic limbs were performed. The lungs were withdrawn in thoracic block for anatomic-pathologic analyses. RESULTS: The capillary blood pH average of the limb extremities in the Control Group was 6.97 (±0.39) and in the Intervention Group was 7.25 (±0.46), with p<0.001, and the blood coloration in the Intervention Group kept the bright aspect in all animals. The shunts needed in average three irrigations with saline heparin solution to be kept unobstructed. The macroscopic and microscopic evaluation of the pulmonary tissue did not evidence fat emboli. CONCLUSION: The artery osseous or artery medullar (marrow) shunt showed to be feasible on the technical point of view in the laboratory.

vascular grafting; limb salvage; ischemia


ARTIGO ORIGINAL

Vascularização temporária de membros isquêmicos por meio de shunt arteriomedular: trabalho experimental

Ronaldo André PoerschkeI; Daniela Augustin SilveiraII; Peterson LodiIII; Wagner TittonIII; Guilherme MarxIII; Alexandre Soares LampertIII

ICirurgião vascular e endovascular; Mestre em Ciências Médicas; Professor de Anatomia e do Módulo Cardiocirculatório da Faculdade de Medicina da UPF – Passo Fundo (RS), Brasil

IIProfessora de Patologia da Faculdade de Medicina da UPF – Passo Fundo (RS), Brasil

IIIAcadêmicos da Faculdade de Medicina da UPF – Passo Fundo (RS), Brasil

Correspondência Correspondência Ronaldo André Poerschke Rua Princesa Isabel, 128 CEP 99050-100 – Passo Fundo (RS), Brasil E-mail: poerschke@upf.br

RESUMO

CONTEXTO: Os autores idealizaram um shunt temporário entre a artéria femoral e o canal medular de ossos longos para manter a viabilidade dos membros agudamente isquêmicos, enquanto não é possível estabelecer um tratamento definitivo.

OBJETIVO: Avaliar a perviedade de shunts temporários arteriomedulares e a perfusão dos membros, durante duas horas em cães de experimentação, que tiveram a artéria femoral ligada.

MÉTODOS: Alocaram-se aleatoriamente dois grupos, com três cães no Grupo Controle e seis no Grupo Intervenção. Os controles tiveram a artéria femoral comum direita ligada. O Grupo Intervenção, além da ligadura da artéria, recebeu um shunt. Após duas horas, realizou-se a medida de pH dos membros isquêmicos; avaliação do fluxo arterial por meio de um sonar Doppler; avaliação da coloração do sangramento na extremidade distal do membro e foram retirados em bloco torácico os pulmões para análise anatomopatológica.

RESULTADOS: A média do pH do sangue capilar das extremidades do membros no Grupo Controle foi de 6,97 (±0,39); no Grupo Intervenção o pH foi de 7,25 (±0,46), com p<0,001; a coloração do sangue no Grupo Intervenção manteve-se com aspecto rutilante em todos os animais. Os shunts necessitaram, em média, três irrigações com solução salina heparinada para manterem-se pérvios. A avaliação macroscópica e microscópica do tecido pulmonar não evidenciou embolia gordurosa.

CONCLUSÃO: O shunt arterio-osteal ou arteriomedular apresentou viabilidade técnica em laboratório.

Palavras-chave: enxerto vascular; salvamento de membro; isquemia.

Introdução

Pensando-se nas situações em que não são possíveis intervenções vasculares precoces; quer seja pela distância geográfica dos centros especializados, ou devido às más condições clínicas dos indivíduos, idealizou-se um shunt temporário para manter a perfusão dos membros isquêmicos.

Inspirados nas técnicas de reposição volêmica via acesso intraósseo1,2, empregadas em emergências3, os autores do presente trabalho formularam a hipótese de que um shunt entre a artéria ilíaca e o canal medular de ossos longos poderia manter a viabilidade dos membros nas situações de oclusões arteriais agudas até que o tratamento definitivo fosse instituído. Para testar a hipótese, realizou-se um estudo experimental em cães.

Métodos

O experimento seguiu os preceitos do Colégio Brasileiro de Experimentação Animal e Sociedade Brasileira de Ciência de Animais de Laboratório (COBEA/SBCAL) e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, vinculado à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (protocolo da Comissão de Ética no Estudo de Animais (CEUA) da Universidade de Passo Fundo 00001/2010). Os animais foram anestesiados e receberam medicação analgésica. A pré-anestesia era composta de: morfina na dose de 1,0 mg/kg intramuscular (IM), 20 minutos antes do procedimento; reserva-se o uso de fentanil como fármaco de resgate analgésico caso necessário. A manutenção anestésica possuía: tiopental a 5 mg/kg, mantendo o relaxamento animal, reaplicando doses sempre que necessário; fentanil, 1 a 5 µg/kg a cada 40 minutos. A via aérea foi mantida por meio de tubo orotraqueal e a ventilação mantida em sistema com t de Aire e O2 a 3 L/min. Foram utilizados nove cães adultos, de raça indeterminada, divididos em dois grupos de modo aleatório: um grupo denominado de controle, composto por três cães, e o outro denominado intervenção, composto por seis cães.

Em ambos os grupos realizaram-se medidas basais da gasometria arterial (analisadas pelo Radiometer ABL 555, USA) e da pressão arterial invasiva, bem como no fim do experimento.

No Grupo Controle ligou-se a artéria femoral comum direita por meio de pequena incisão oblíqua junto ao ligamento inguinal. Aplicou-se heparina numa dose de 100 U/kg de peso corpóreo, pela via endovenosa. Após duas horas, realizou-se a coleta de sangue capilar e a observação do sangramento na extremidade do membro isquêmico, procedeu-se o sacrifício do animal com thiopental sódico (50 mg/kg) e, após cinco minutos, os cães receberam cloreto de potássio (4 mg/kg) via endovenosa e procedeu-se a retirada dos pulmões.

No Grupo Intervenção, os seis animais igualmente tiveram a artéria femoral direita ligada por meio de uma incisão oblíqua na região inguinal direita; receberam a heparinização na dose de 100 U/kg e foi estabelecido o shunt entre a artéria ilíaca direita e o canal medular da tíbia direita.

Para a realização do shunt provisório, inicialmente foi feita uma pequena incisão da pele na face anterior da tíbia e exposição do terço superior da tíbia. Em seguida realizou-se a perfuração do osso com uma broca de 4,5 mm até o canal medular. A esse orifício, conectou-se sob pressão uma cânula plástica (Figura 1). Acima do ponto de ligadura da artéria femoral comum, implantou-se um introdutor vascular valvulado com diâmetro de 5 F (Figura 1). O sistema de irrigação do shunt foi conectado à cânula plástica introduzida no canal medular, estabelecendo assim o circuito (Figura 1).


A perviedade do sistema foi aferida a cada 15 minutos, com o uso de sonar Doppler com sonda de 10 Mhz (Microen, Brasil), aplicado sobre o sistema de irrigação do introdutor valvulado. O mesmo Doppler foi empregado para avaliar o fluxo nas artérias nos membros isquêmicos. Quando observada oclusão do sistema, procedia-se irrigação com solução fisiológica heparinada (1.000 mL/ 1 mL) até a resolução da oclusão do sistema.

Após duas horas de experimento, realizou-se a coleta de sangue capilar para a medida do pH e a observação da coloração do sangramento na extremidade do membro isquêmico. Não foi realizada análise gasométrica completa, pois não foi possível obter um volume de sangue adequado a partir da extremidade (patas) dos animais.

Procedeu-se o sacrifício dos animais (descrito no Grupo Controle) e a remoção dos pulmões para análise anatomopatológica. Os órgãos retirados foram imersos em solução de formol a 10% (formalina) e, após fixação nesta solução, foram seccionados e analisados macroscopicamente. Foram colhidas dez amostras aleatórias do parênquima pulmonar. As avaliações foram realizadas por profissional médico patologista, cegado para os grupos. O material amostrado foi submetido ao processamento histológico de rotina (coloração hematoxilina-eosina – HE) e analisado à microscopia óptica em 100 e 400 aumentos. A avaliação foi realizada por profissional médico patologista devidamente cegado para os grupos.

Para a avaliação dos dados, empregou-se o pacote estatístico SPSS 15.0, com obtenção das médias, desvios e erros padrões.

Resultados

As características gerais da amostra não diferiram entre os grupos (Tabela 1). O peso médio do Grupo Controle foi de 9,8 kg (±1,8) e, no Grupo Shunt, foi de 10,5 kg (±3,5). A pressão arterial média invasiva no Grupo Controle foi, em média, 88,6 mmHg (±12,6) e, nos casos, foi de 91,8 mmHg (±22). O pH arterial coletado da artéria femoral antes da sua ligadura (pré-intervenção) no Grupo Controle foi de 7,34 (±0,005) e no Grupo Shunt foi 7,33 (±0,005). A saturação de O2 inicial no Grupo Controle foi 90,6% (±1,4) e no Grupo Intervenção foi de 90,3% (±1,3).

Os animais permaneceram estáveis hemodinamicamente durante o procedimento.

Os shunts apresentaram em média três oclusões em duas horas, sendo sempre possível restabelecer fluxo pela irrigação do sistema com solução heparinada, aspirando-se e irrigando-se o circuito com cerca de 10 a 15 mL da solução.

Nas artérias distais dos membros que receberam shunt foi possível a detecção do fluxo de características monofásicas ao sonar Doppler.

A coloração do sangramento na extremidade dos membros isquêmicos no término de duas do experimento nos três animais do Grupo Controle, com a artéria femoral ligada, era de aspecto violáceo e escuro. No Grupo Shunt a coloração do sangue manteve-se vermelho rutilante.

O pH médio do sangue capilar na extremidade do membro isquêmico no Grupo Controle foi de 6,97 (±0,39); no Grupo Intervenção o pH foi de 7,25 (±0,46), com p<0,001 (Tabela 2 e Gráfico 1).


Na avaliação anatomopatológica do parênquima pulmonar, pode-se observar pequenas áreas de atelectasia e regiões com discreto edema intra-alveolar. Não foram identificadas áreas de infarto do parênquima pulmonar e nem êmbolos gordurosos intravasculares, os quais poderiam se apresentar na forma de cristais de colesterol ou vacúolos intravasculares (Figuras 2 e 3).



Discussão

O shunt temporário demonstrou-se tecnicamente viável. As oclusões dos sistemas ocorreram em média três vezes em duas horas e foram de fácil resolução por meio da irrigação do sistema. O método permitiu manter uma perfusão ao menos parcial do membro, demonstrada pelo pH tecidual, pelo fluxo ao Doppler nas artérias distais e pela coloração vermelho rutilante do sangue nas extremidades. No exame do tecido pulmonar, foram identificadas áreas de edema intra-alveolar e áreas de atelectasia ao exame microscópico, esses achados provavelmente decorreram do estresse respiratório, pois ocorreram em ambos os grupos e os animais ficaram anestesiados entre quatro e seis horas.

O shunt leva sangue arterial ao espaço intersticial da medula, que penetra no espaço vascular pelas fenestras dos sinusoides da medula4. A vascularização da camada cortical na diáfise dos ossos longos ocorre também de modo centrípeto, da medula para a cortical, as artérias nutrícias penetram até a medula, originam as artérias longitudinais e a partir dessas originam-se vasos para a camada cortical do osso4-7. Os tecidos vizinhos recebem a perfusão por meio das anastomoses com o periósteo.

A via de acesso intraóssea é utilizada para o tratamento de urgência e emergência de crianças e adultos3, sendo descritas mais de 100 drogas e soluções empregadas por essa via8. As complicações são pouco frequentes. Particularmente preocupante é a embolia gordurosa pelo risco de síndrome de embolia gordurosa, que cursa com lesão pulmonar e cerebral9,10. A embolia gordurosa não foi detectada no exame macroscópico e microscópico das peças, é descrita como complicação rara na reposição de cristaloides via intraóssea3. A síndrome de embolia gordurosa é mais frequentemente associada às fraturas de ossos longos e às manipulações do tecido ósseo, decorrentes da ruptura de veias da medula9-11.

O estudo inicial focou principalmente a viabilidade técnica do shunt entre uma artéria de grande calibre e o canal medular de um osso longo, que tecnicamente demonstrou-se viável.

Submetido em: 03.08.11

Aceito em: 07.11.11.

Fonte de financiamento: nenhuma.

Conflito de interesse: nada a declarar.

Contribuições dos autores

Concepção e desenho do estudo: RAP

Análise e interpretação dos dados: RAP, DAS, WT

Coleta de dados: RAP, DAS, WT, PL, GM, ASL

Redação do artigo: RAP,DAS,WT

Revisão crítica do texto: DA

Aprovação final do artigo*: RAP, DAS, WT, PL, GM, ASL

Análise estatística: RAP, WT

Responsabilidade geral pelo estudo: RAP

* Todos os autores leram e aprovaram a versão final submetida do J Vasc Bras.

Trabalho realizado no Laboratório de Cirurgia Experimental do Instituto de Ciências Biológicas e Faculdade de Medicina da Universidade de Passo Fundo (UPF) – Passo Fundo (RS), Brasil.

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  • Correspondência
    Ronaldo André Poerschke
    Rua Princesa Isabel, 128
    CEP 99050-100 – Passo Fundo (RS), Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Out 2012
    • Data do Fascículo
      Mar 2012

    Histórico

    • Recebido
      03 Ago 2011
    • Aceito
      07 Nov 2011
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