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Tratamento endovascular de pseudoaneurisma de artéria hepática secundário à erosão e bloqueio hepático de úlcera péptica perfurada

INTRODUÇÃO

As principais complicações de úlceras pépticas são o sangramento e a perfuração1. Os fatores de risco para estas complicações são: história prévia de doença péptica ou de sangramento gastrointestinal; idade avançada; uso de anti-inflamatórios não hormonais (AINH); uso de anticoagulantes ou de agentes antiplaquetários; presença de comorbidades graves; altas doses de aspirina; e infecção por Helicobacter pylori 2 . No caso de perfuração, o melhor tratamento seria seu fechamento, seguido de terapia antissecretória e erradicação da infecção por Helicobacter pylori, quando presente1.

A úlcera péptica perfurada pode ser tamponada por estruturas vizinhas. A eventual erosão de vísceras expõe os tecidos e estruturas vizinhas à ação de enzimas gastrointestinais, que podem, ocasionalmente, atingir a parede de artérias e veias. A literatura pertinente registra casos de envolvimento da artéria cística3, 4 e da artéria hepática5.

Apresentamos um caso de pseudoaneurisma de artéria hepática como complicação de perfuração de úlcera péptica. Não encontramos caso similar na literatura pesquisada.

PARTE I - CASO CLÍNICO

Paciente do sexo feminino, 41 anos, pós-operatório tardio (3 meses antes do atual evento) de tratamento cirúrgico de úlcera péptica perfurada, através de rafia gástrica. Na descrição deste ato operatório, foi destacado que a ulceração gástrica havia sido tamponada pela vesícula biliar, que precisou ser removida durante a cirurgia. Depois de 30 dias de pós-operatório, esta paciente foi submetida a nova intervenção cirúrgica, por nova ulceração gástrica perfurada, necessitando, desta vez, de gastrectomia parcial. Na descrição deste novo ato operatório, foi destacado que a ulceração gástrica havia sido tamponada pela loja hepática da vesícula biliar e que, durante o desbloqueio para remoção parcial do estômago, foi observada uma dilatação pulsátil nesta localização. A conduta, na ocasião, foi encerrar o procedimento e proceder à investigação eletiva desta lesão. Durante o pós-operatório imediato, a paciente apresentou quadros de melena. Foi solicitada angiotomografia, que mostrou dilatação aneurismática sugestiva de pseudoaneurisma na artéria hepática própria, sem menção de rotura, porém com material, em seu interior, compatível com trombo recente (Figura 1).

Figura 1
Angiotomografia - dilatação aneurismática sugestiva de pseudoaneurisma em artéria hepática própria.

Uma opção de tratamento nestes casos é o tratamento cirúrgico aberto para ligadura proximal e distal ao pseudoaneurisma. Por outro lado, a embolização do pseudoaneurisma se constitui em opção menos invasiva, especialmente naqueles casos em que comorbidades ou complicações da cirurgia original se fazem presentes.

Optamos pelo tratamento endovascular, porque, além das condições acima descritas, dificuldades técnicas poderiam ser encontradas na abordagem convencional da artéria hepática própria, em um abdômen hostil.

Por meio de acesso femoral direito, foi realizada aortografia, que evidenciou o tronco celíaco (TC) sem irregularidades de parede ou calcificações parietais. Foi então feito cateterismo seletivo do TC e superseletivo da artéria hepática. A angiografia mostrou pseudoaneurisma de artéria hepática própria (Figura 2a). A seguir, foi mantido fio guia hidrofílico stiff 0,035"-260 cm in loco para troca de introdutor valvulado de 11 cm por outro de 45 cm, com curvatura "RDC", com o intuito de melhorar o suporte para navegação dos dispositivos endovasculares. Na sequência, foi trocado o fio guia hidrofílico stiff 0,035"-260 cm, por kit de microcateter 2,8 mm e fio-guia 0,014"-180 cm, extra suporte. A seguir, foram liberadas "molas" de platina (AZUR TM Peripheral HydroCoil Embolization System - Terumo Interventional Systems R , Somerset, NJ - USA) de 6 mm (disponíveis naquele momento) dentro do saco aneurismático, promovendo trombose parcial do pseudoaneurisma (Figura 2b). No entanto, estas eram sabidamente pequenas para a grande proporção do saco aneurismático. Procedeu-se, então, à oclusão do colo do saco aneurismático com "molas" de platina de 4 mm (AZUR TM Peripheral HydroCoil Embolization System - Terumo Interventional Systems R , Somerset, NJ - USA), com sucesso (Figura 2c). Na angiografia de controle, observou-se oclusão completa do pseudoaneurisma, com fluxo sanguíneo preservado para a artéria hepática (Figura 2d).

Figura 2
a) Angiografia intraoperatória - pseudoaneurisma de artéria hepática própria. b) Implante de "molas" de platina promovendo trombose parcial do pseudoaneurisma. c) Fechamento do colo saco aneurismático com "molas" de platina, promovendo trombose completa do pseudoaneurisma. d) Angiografia de controle - oclusão completa do pseudoaneurisma, com fluxo sanguíneo preservado para artéria hepática.

A paciente permaneceu internada em UTI por 24 horas e mais dois dias em enfermaria para observação. Teve alta em seguida, sem sinal de sangramento.

A angiotomografia de controle com 3 meses mostrou exclusão completa do pseudoaneurisma com fluxo sanguíneo preservado para a artéria hepática (Figura 3).

Figura 3
Angiotomografia de controle com 3 meses - exclusão completa do pseudoaneurisma, com fluxo sanguíneo preservado para artéria hepática.

DISCUSSÃO

Pseudoaneurismas intra-hepáticos podem ocorrer como consequência de trauma abdominal contuso ou penetrante. A incidência relatada vem aumentando ao longo das últimas duas décadas, por conta dos pseudoaneurismas iatrogênicos, como resultado de aumento crescente de procedimentos invasivos do trato hepatobiliar (intervencionistas, biópsias hepáticas, drenagens biliares percutâneas, colecistectomias e outras operações biliares), chegando a 50% dos casos dos pseudoaneurismas neste local6-8. A inflamação periarterial, que pode ocorrer após processos inflamatórios de estruturas intra-abdominais peri-hepáticas, como colescistites ou pancreatites, é uma causa incomum de aneurisma da artéria hepática9. Não encontramos, na pesquisa da literatura, nenhum caso similar a este, em que o pseudoaneurisma se desenvolveu por conta de úlcera péptica perfurada com bloqueio no parênquima hepático, o qual acabou por erodir a parede da artéria hepática, provocando um pseudoaneurisma.

Aneurismas e falsos aneurismas de artérias hepáticas podem ser tratados por cirurgia aberta (reconstrutora ou ligadura) ou por meio de cirurgia endovascular. A cirurgia aberta carrega, em geral, maior invasividade, certa dificuldade de acesso e, consequentemente, maior morbimortalidade, podendo a mortalidade operatória chegar a 21% dos casos10,11. No presente caso, inclusive, o acesso teria que ser intra-hepático, de particular difícil abordagem, além de se tratar de abdome hostil devido a duas cirurgias anteriores. Do ponto de vista endovascular, as alternativas de tratamento seriam: a embolização terapêutica12 ; embolização trans-hepática13; implante de stents; injeção percutânea de trombina guiada por ultrassom14; e stents revestidos15,16.

O uso de stents livres ou revestidos seria mais indicado nas artérias principais, quando a oclusão vascular pudesse ter o risco de grande perda tecidual a jusante do local acometido. Entretanto, há necessidade imperiosa de haver anatomia favorável, incluindo calibre, presença de tortuosidade e parede arterial não friável.

No presente caso, a opção foi de embolização com molas, pois se tratava de um pseudoaneurisma bem delimitado localizado na artéria hepática própria, com colo único, não havendo repercussão distal com sua oclusão. Deve-se chamar a atenção para o uso de material adequado, pois molas muito pequenas usadas neste caso, em situação de emergência, acabaram por ficar soltas no interior do pseudoaneurisma, que, apesar de ter provado trombose parcial, não foi suficiente para a sua oclusão completa. A colocação de molas, mesmo pequenas, dentro do pseudoaneurisma, com o intuito de ocasionar maior extensão de trombose possível, associada à oclusão de seu colo, foi a solução encontrada para a exclusão deste pseudoaneurisma, em regime de emergência, com o material disponível no momento. A embolização trans-hepática ficaria reservada para situações em que o acesso convencional (via femoral, braquial ou axilar) fosse complicado ou quando o vaso a ser tratado não fosse acessível através das artérias tronculares13.

Assim, a vantagem principal do uso de embolização terapêutica seria a produção de isquemia ou trombose focal, no órgão a ser tratado, como o objetivo de tratamento da doença, com preservação do órgão17. As limitações e potenciais fontes de complicações das embolizações estão relacionadas com a isquemia de tecidos adjacentes à lesão ou embolização inadvertida para outros órgãos18.

Concluindo, este caso demonstra uma rara situação de urgência, tratada através da embolização do pseudoaneurisma da artéria hepática própria. Esta técnica foi apropriada para este caso, tendo em vista que, mesmo com material de dimensões menores que o ideal, foi possível excluir o pseudoaneurisma com sucesso e livrar o paciente de quadro crítico, sendo minimante invasivo.

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  • Fonte de financiamento: Nenhuma.
  • Concepção e desenho do estudo: RAY, WBY
    Análise e interpretação dos dados: RAY, WBY
    Coleta de dados: RAY, WBY, PRBV, MLS, RGJ, RLZ, RM
    Redação do artigo: RAY, WBY
    Revisão crítica do texto: RAY, WBY
    Aprovação final do artigo*: RAY, WBY, PRBV, MLS, RGJ, RLZ, RM
    Análise estatística: Não houve análise estatística neste estudo.
    Responsabilidade geral pelo estudo: RAY
  • *Todos os autores leram e aprovaram a versão final submetida do J Vasc Bras.
  • O estudo foi realizado no Centro Cardiovascular Avançado do Hospital Vivalle - São José Dos Campos - SP.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2013

Histórico

  • Recebido
    26 Set 2012
  • Aceito
    19 Dez 2012
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