Acessibilidade / Reportar erro

Trombose venosa profunda e vírus chicungunha

Resumo

Algumas infecções virais sistêmicas podem estar relacionadas ao desenvolvimento de trombose venosa profunda e/ou embolia pulmonar. Essa associação já está bem descrita em pacientes com infeções pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV), hepatite C ou influenza. Recentemente introduzido no continente americano, o vírus chicungunha, agente etiológico da febre de chicungunha, ainda não tem essa relação bem sedimentada, mas com o aumento progressivo de sua incidência e pelo fato dessa infecção causar, muitas vezes, uma restrição severa da locomoção por poliartralgia e uma possível lesão endotelial direta, casos de tromboembolismo venoso podem começar a ser descritos. Neste relato de caso, descrevemos um paciente que desenvolveu trombose de veia poplítea direita durante internação para tratamento de febre por infecção por vírus chicungunha e poliartralgia severa.

Palavras-chave:
vírus chicungunha; febre de chicungunha; trombose venosa profunda

Abstract

Some systemic viral infections can be linked to development of deep venous thrombosis and/or pulmonary embolism. This association has already been well described in patients infected by human immunodeficiency virus (HIV), hepatitis C, and influenza. The chikungunya virus is the etiologic agent of chikungunya fever and it has recently been introduced to the American continent. As yet, there is no firm foundation for a relationship between chikungunya and thromboembolism, but the progressive increase in its incidence, the fact that this infection very often causes severe locomotion restrictions due to polyathralgia, and the possibility of direct endothelial injury suggest that cases of venous thromboembolism may begin to be described. In this case report, we describe a patient who developed thrombosis of the right popliteal vein after being admitted for treatment of severe polyathralgia and fever caused by chikungunya virus infection.

Keywords:
chikungunya virus; chikungunya fever; deep venous thrombosis

INTRODUÇÃO

A febre de chicungunha (FC) é causada pelo vírus chicungunha (CHIKV), um alphavirus transmitido aos humanos através da picada de mosquito do gênero Aedes, inicialmente descrito nos anos 1950 na África central e posteriormente em outros países africanos e na Ásia11 Staples JE, Breiman RF, Powers AM. Chikungunya fever: an epidemiological review of a re-emerging infectious disease. Clin Infect Dis. 2009;49(6):942-8. PMid:19663604. http://dx.doi.org/10.1086/605496.
http://dx.doi.org/10.1086/605496...
. Em 2007, o CHIKV chegou à Europa, causando um surto de FC na Itália11 Staples JE, Breiman RF, Powers AM. Chikungunya fever: an epidemiological review of a re-emerging infectious disease. Clin Infect Dis. 2009;49(6):942-8. PMid:19663604. http://dx.doi.org/10.1086/605496.
http://dx.doi.org/10.1086/605496...
, e isso provavelmente provocou o movimento do CHIKV em direção a novos territórios, como Austrália e hemisfério oeste11 Staples JE, Breiman RF, Powers AM. Chikungunya fever: an epidemiological review of a re-emerging infectious disease. Clin Infect Dis. 2009;49(6):942-8. PMid:19663604. http://dx.doi.org/10.1086/605496.
http://dx.doi.org/10.1086/605496...
. Em dezembro de 2013, a Organização Pan-americana de Saúde emitiu um alerta de transmissão autóctone de CHIKV nas Américas pela primeira vez22 Khoury VJ, Camilo PR. Chikungunya virus (CHIKV): what can be expected after the acute phase? Reumatol Clin. 2016;12(1):1-3. PMid:26781826. http://dx.doi.org/10.1016/j.reuma.2015.12.002.
http://dx.doi.org/10.1016/j.reuma.2015.1...
.

Clinicamente, a FC se caracteriza por início abrupto de febre alta (> 38,9 °C), calafrios e fotofobia, que normalmente duram sete dias, associada, na maioria dos casos, a poliartralgia severa, usualmente simétrica, que acomete quadril, cotovelos, dedos, joelhos e tornozelos, limitando a locomoção do paciente por meses11 Staples JE, Breiman RF, Powers AM. Chikungunya fever: an epidemiological review of a re-emerging infectious disease. Clin Infect Dis. 2009;49(6):942-8. PMid:19663604. http://dx.doi.org/10.1086/605496.
http://dx.doi.org/10.1086/605496...
,22 Khoury VJ, Camilo PR. Chikungunya virus (CHIKV): what can be expected after the acute phase? Reumatol Clin. 2016;12(1):1-3. PMid:26781826. http://dx.doi.org/10.1016/j.reuma.2015.12.002.
http://dx.doi.org/10.1016/j.reuma.2015.1...
.

Eventualmente, o paciente pode apresentar exantema maculopapular em tronco, face e extremidades, prurido, cefaleia, fadiga, náuseas, vômitos, conjuntivite, linfadenopatia cervical e mialgia11 Staples JE, Breiman RF, Powers AM. Chikungunya fever: an epidemiological review of a re-emerging infectious disease. Clin Infect Dis. 2009;49(6):942-8. PMid:19663604. http://dx.doi.org/10.1086/605496.
http://dx.doi.org/10.1086/605496...
,22 Khoury VJ, Camilo PR. Chikungunya virus (CHIKV): what can be expected after the acute phase? Reumatol Clin. 2016;12(1):1-3. PMid:26781826. http://dx.doi.org/10.1016/j.reuma.2015.12.002.
http://dx.doi.org/10.1016/j.reuma.2015.1...
. Laboratorialmente, a FC se caracteriza agudamente por leucopenia, trombocitopenia, hipocalemia e elevação leve a moderada das transaminases hepáticas11 Staples JE, Breiman RF, Powers AM. Chikungunya fever: an epidemiological review of a re-emerging infectious disease. Clin Infect Dis. 2009;49(6):942-8. PMid:19663604. http://dx.doi.org/10.1086/605496.
http://dx.doi.org/10.1086/605496...
. As complicações agudas mais comuns são secundárias ao acometimento do sistema nervoso central, como a síndrome de Guillain-Barré e ocular, como a uveíte e retinite11 Staples JE, Breiman RF, Powers AM. Chikungunya fever: an epidemiological review of a re-emerging infectious disease. Clin Infect Dis. 2009;49(6):942-8. PMid:19663604. http://dx.doi.org/10.1086/605496.
http://dx.doi.org/10.1086/605496...
. Cronicamente, é comum o desenvolvimento de síndromes articulares, com persistência de poliartrite em 30-40% dos casos22 Khoury VJ, Camilo PR. Chikungunya virus (CHIKV): what can be expected after the acute phase? Reumatol Clin. 2016;12(1):1-3. PMid:26781826. http://dx.doi.org/10.1016/j.reuma.2015.12.002.
http://dx.doi.org/10.1016/j.reuma.2015.1...
. O acometimento vascular na FC é pouco descrito e normalmente restrito ao fenômeno de Raynaud persistente após a sua fase aguda11 Staples JE, Breiman RF, Powers AM. Chikungunya fever: an epidemiological review of a re-emerging infectious disease. Clin Infect Dis. 2009;49(6):942-8. PMid:19663604. http://dx.doi.org/10.1086/605496.
http://dx.doi.org/10.1086/605496...
. Abaixo, descrevemos o caso de um paciente que desenvolveu trombose de veia poplítea direita durante internação para tratamento de FC e poliartralgia severa.

DESCRIÇÃO DO CASO

Paciente do sexo masculino, 55 anos de idade, caucasiano, ex-tabagista, procurou o pronto-atendimento (PA) com história de febre (> 39 °C), astenia, cefaleia e artralgia de joelhos e ombro direito há três dias. Recebeu alta hospitalar com orientação para se manter hidratado e prescrição de paracetamol. Três dias após, procurou novamente o PA com relato de manutenção da febre elevada, astenia e cefaleia, piora da intensidade da artralgia, que passou a acometer, também, os tornozelos, e dor em panturrilha esquerda associada a edema bilateral de tornozelos, mais evidente à esquerda. Os exames laboratoriais de emergência iniciais demonstravam trombocitopenia moderada (108.000 plaquetas), leucopenia (3.800 leucócitos) e hematócrito normal (41%). Devido à intensidade da febre e da poliartralgia e ao edema assimétrico de membros inferiores, o paciente foi internado para controle sintomático e investigação diagnóstica.

Para o diagnóstico inicial da febre alta associada à artralgia, foi solicitada a sorologia para dengue (negativa) e chicungunha (positiva). Para o edema de membros inferiores, foi solicitado um eco-Doppler colorido, que evidenciou trombo de aspecto subagudo em veia poplítea direita.

Com relação ao tratamento da trombose de veia poplítea, optou-se por iniciar um anticoagulante (AC) oral direto que não necessitasse de AC parenteral associado, visto que a enoxaparina, único AC parenteral disponível na instituição, está relacionado à trombocitopenia induzida por heparina. Portanto, foi iniciada apixabana na dose de 10 mg de 12-12h por sete dias e, posteriormente, 5 mg de 12-12h.

O paciente melhorou progressivamente dos sintomas e recebeu alta com analgésico oral (paracetamol) e apixabana, a princípio por três meses.

DISCUSSÃO

As infecções virais podem estar associadas a um processo inflamatório sistêmico agudo e crônico, que acometem especialmente o sistema osteoarticular, levando, muitas vezes, a um quadro de artrite inflamatória que, eventualmente, pode se cronificar33 Becker J, Winthrop KL. Update on Rheumatic manifestations of infectious disease. Curr Opin Rheumatol. 2010;22(1):72-7. PMid:19910794. http://dx.doi.org/10.1097/BOR.0b013e328333b9f5.
http://dx.doi.org/10.1097/BOR.0b013e3283...
. Na FC, aproximadamente 48% dos pacientes mantêm um quadro de artrite por pelo menos seis meses22 Khoury VJ, Camilo PR. Chikungunya virus (CHIKV): what can be expected after the acute phase? Reumatol Clin. 2016;12(1):1-3. PMid:26781826. http://dx.doi.org/10.1016/j.reuma.2015.12.002.
http://dx.doi.org/10.1016/j.reuma.2015.1...

3 Becker J, Winthrop KL. Update on Rheumatic manifestations of infectious disease. Curr Opin Rheumatol. 2010;22(1):72-7. PMid:19910794. http://dx.doi.org/10.1097/BOR.0b013e328333b9f5.
http://dx.doi.org/10.1097/BOR.0b013e3283...
-44 Rodriguez-Morales AJ, Gil-Restrepo AF, Ramírez-Jaramillo V, et al. Post-Chikungunya chronic inflammatory rheumatism: results from a retrospective follow-up study of 283 adult and child cases in La Virginia, Risaralda, Colombia. Version 1. F1000 Res. 2016;5:360. PMid:27081477. http://dx.doi.org/10.12688/f1000research.8235.1.
http://dx.doi.org/10.12688/f1000research...
. Esse fato é, provavelmente, corroborado pela elevação persistente de marcadores inflamatórios, como a interleucina-622 Khoury VJ, Camilo PR. Chikungunya virus (CHIKV): what can be expected after the acute phase? Reumatol Clin. 2016;12(1):1-3. PMid:26781826. http://dx.doi.org/10.1016/j.reuma.2015.12.002.
http://dx.doi.org/10.1016/j.reuma.2015.1...
.

A associação entre infecções por vírus da imunodeficiência humana (HIV), hepatite C e influenza, e o tromboembolismo venoso (TEV) já é bem estabelecida55 García Herrera AL. Caracterización clínica de la trombosis venosa profunda em enfermos con VIH/sida. Rev Medica Electron. 2010;32(3):1-8.

6 Chun-Cheng W, Chiz-Tzung C, Cheng-Li L, et al. Hepatitis C Virus infection associated with an increased risk of deep vein thrombosis: a population-based cohort study. Medicine (Baltimore). 2015;94(38): e1585.
-77 Avnon LS, Munteanu D, Smoliakov A, Jotkowitz A, Barski L. Thromboembolic events in patients with severe pandemic influenza A/H1N1. Eur J Intern Med. 2015;26(8):596-8. PMid:26365372. http://dx.doi.org/10.1016/j.ejim.2015.08.017.
http://dx.doi.org/10.1016/j.ejim.2015.08...
. Diversos mecanismos podem explicar isso, como o aumento sérico dos fatores pró-coagulantes, por lesão e ativação endotelial, que provoca um aumento do fator tissular na membrana celular e ativação da via extrínseca da coagulação; ativação de micropartículas que atuam como catalizadores da coagulação; diminuição sérica dos anticoagulantes naturais (antitrombina e proteínas C e S da coagulação); aumento dos níveis séricos de anticorpos antifosfolipídios e do fator de von Willebrand; e aumento da adesão plaquetária, entre outros mecanismos55 García Herrera AL. Caracterización clínica de la trombosis venosa profunda em enfermos con VIH/sida. Rev Medica Electron. 2010;32(3):1-8..

Embora não haja referência na literatura sobre a associação entre o CHIKV e a trombose venosa profunda (TVP) e/ou a embolia pulmonar (EP), devemos ficar atentos à possibilidade do TEV se manifestar nos casos mais severos da infecção pelo CHICV, pois o processo inflamatório agudo e crônico, que pode levar à lesão endotelial, associado à imobilização dos pacientes pela poliartralgia intensa e pela astenia, e à desidratação secundária à febre alta, poderiam servir de fatores desencadeantes para o desenvolvimento de TVP e/ou EP em paciente portador, ou não, de trombofilia. No caso relatado acima, o paciente havia sido investigado ambulatorialmente, sem sucesso, para trombofilia devido ao histórico de TVP em seu filho durante a adolescência, alguns anos antes, em que se confirmou a presença de fator V de Leiden, em sua forma heterozigótica, mas este fora herdado de sua mãe. Betancur et al. relatam um caso de paciente portadora de lúpus eritematoso sistêmico e anticorpos antifosfolipídios (anticoagulante lúpico e anticardiolipina) que foi a óbito após infecção por CHIKV, que deflagrou a forma catastrófica da síndrome do anticorpo antifosfolipídio88 Betancur JF, Navarro EP, Bonilla JHB, et al. Catastrophic Antiphospholipid Syndrome triggered by fulminant chikungunya infection in a patient with systemic Lupus erythematosus. Arthritis Rheumatol. 2016;68(4):1044. PMid:26748818. http://dx.doi.org/10.1002/art.39580.
http://dx.doi.org/10.1002/art.39580...
.

Outro fato ao qual devemos estar atentos é que, após a introdução do CHIKV no continente americano em 2013, houve um aumento progressivo do diagnóstico de FC, com 59.932 casos confirmados nos 44 países e territórios das Américas22 Khoury VJ, Camilo PR. Chikungunya virus (CHIKV): what can be expected after the acute phase? Reumatol Clin. 2016;12(1):1-3. PMid:26781826. http://dx.doi.org/10.1016/j.reuma.2015.12.002.
http://dx.doi.org/10.1016/j.reuma.2015.1...
. Esse fato pode explicitar de forma mais clara se existe relação entre CHIKV e TVP e/ou EP.

  • Fonte de financiamento: Nenhuma.
  • O estudo foi realizado na Unidade Docente-Assistencial de Angiologia, Hospital Universitário Pedro Ernesto, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Staples JE, Breiman RF, Powers AM. Chikungunya fever: an epidemiological review of a re-emerging infectious disease. Clin Infect Dis. 2009;49(6):942-8. PMid:19663604. http://dx.doi.org/10.1086/605496
    » http://dx.doi.org/10.1086/605496
  • 2
    Khoury VJ, Camilo PR. Chikungunya virus (CHIKV): what can be expected after the acute phase? Reumatol Clin. 2016;12(1):1-3. PMid:26781826. http://dx.doi.org/10.1016/j.reuma.2015.12.002
    » http://dx.doi.org/10.1016/j.reuma.2015.12.002
  • 3
    Becker J, Winthrop KL. Update on Rheumatic manifestations of infectious disease. Curr Opin Rheumatol. 2010;22(1):72-7. PMid:19910794. http://dx.doi.org/10.1097/BOR.0b013e328333b9f5
    » http://dx.doi.org/10.1097/BOR.0b013e328333b9f5
  • 4
    Rodriguez-Morales AJ, Gil-Restrepo AF, Ramírez-Jaramillo V, et al. Post-Chikungunya chronic inflammatory rheumatism: results from a retrospective follow-up study of 283 adult and child cases in La Virginia, Risaralda, Colombia. Version 1. F1000 Res. 2016;5:360. PMid:27081477. http://dx.doi.org/10.12688/f1000research.8235.1
    » http://dx.doi.org/10.12688/f1000research.8235.1
  • 5
    García Herrera AL. Caracterización clínica de la trombosis venosa profunda em enfermos con VIH/sida. Rev Medica Electron. 2010;32(3):1-8.
  • 6
    Chun-Cheng W, Chiz-Tzung C, Cheng-Li L, et al. Hepatitis C Virus infection associated with an increased risk of deep vein thrombosis: a population-based cohort study. Medicine (Baltimore). 2015;94(38): e1585.
  • 7
    Avnon LS, Munteanu D, Smoliakov A, Jotkowitz A, Barski L. Thromboembolic events in patients with severe pandemic influenza A/H1N1. Eur J Intern Med. 2015;26(8):596-8. PMid:26365372. http://dx.doi.org/10.1016/j.ejim.2015.08.017
    » http://dx.doi.org/10.1016/j.ejim.2015.08.017
  • 8
    Betancur JF, Navarro EP, Bonilla JHB, et al. Catastrophic Antiphospholipid Syndrome triggered by fulminant chikungunya infection in a patient with systemic Lupus erythematosus. Arthritis Rheumatol. 2016;68(4):1044. PMid:26748818. http://dx.doi.org/10.1002/art.39580
    » http://dx.doi.org/10.1002/art.39580

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Abr 2017
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    02 Dez 2016
  • Aceito
    10 Fev 2017
Sociedade Brasileira de Angiologia e de Cirurgia Vascular (SBACV) Rua Estela, 515, bloco E, conj. 21, Vila Mariana, CEP04011-002 - São Paulo, SP, Tel.: (11) 5084.3482 / 5084.2853 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: secretaria@sbacv.org.br