INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, a terapia endovascular alcançou bons resultados em lesões estenosantes e oclusões curtas do segmento aortoilíaco, porém apresenta ainda hoje resultados limitados nas doenças oclusivas extensas ou naqueles casos em que a artéria femoral comum encontra-se acometida1,2. Atualmente, endarterectomia, derivação arterial ilíaco-femoral, ou até mesmo derivação aortofemoral, são os procedimentos mais realizados nesses casos3.
A derivação para artérias vicariantes alternativas de membros inferiores já foi bem descrita na literatura por Barral et al.4, Brochado-Neto et al.5 e De Luccia et al.6,7, em artéria genicular descendente e artérias geniculares surais. Estas últimas são de extrema importância em pacientes com oclusão femoropoplítea extensa e ausência de artérias receptoras tronculares5,6. Em relação aos substitutos, os enxertos autógenos de boa qualidade são os preferidos em relação aos substitutos protéticos (heterólogos), devido às menores taxas de infecção de sítio cirúrgico e maior perviedade. Além disso, as veias autógenas são mais resistentes a regimes de alta resistência vascular periférica, como é o caso de artérias receptoras alternativas e vicariantes. Assim como a veia safena magna, que ainda é a primeira escolha quando disponível, as veias de membros superiores já demonstraram bons resultados como substitutos alternativos7.
A infecção do acesso cirúrgico vascular em prega inguinal ainda é temida pelos cirurgiões vasculares, devido aos seus potenciais desfechos graves, como perda de membro e óbito8,9. Como principais fatores de complicação encontram-se diabetes, obesidade e desnutrição. Logo, a escolha cuidadosa do acesso cirúrgico e os cuidados intra e pós-operatórios são essenciais para alcançar bons resultados.
PARTE I: SITUAÇÃO CLÍNICA
Paciente masculino, 58 anos, branco, tabagista, hipertenso e diabético, deu entrada no pronto atendimento de nosso serviço queixando-se de dor em repouso no membro inferior direito, onde apresentava, ao exame físico, lesões necróticas em primeiro, quarto e quinto pododáctilos, além de placas necróticas nas faces medial e lateral do calcâneo (Figura 1). O abdome era globoso, indolor, sem massas pulsáteis. À palpação dos pulsos, notou-se ausência global de pulsos em membro inferior direito e o pulso femoral presente e cheio em membro inferior esquerdo (3+/3). Foi realizado o índice tornozelo-braço (ITB) no membro acometido, com valor de 0,35 em artéria tibial posterior. Os exames laboratoriais de entrada acusavam apenas uma leucocitose de 13.200/mm3 sem desvio. A função renal estava preservada, com valores séricos de creatinina de 0,8 mg/dL e ureia de 29 mg/dL. Optamos inicialmente pela aortoarteriografia (Figura 2) de membro inferior direito através de punção retrógrada contralateral, que evidenciou um eixo ilíaco esquerdo pérvio e sem estenoses. A aorta infrarrenal apresentava irregularidades murais, porém as origens das artérias ilíacas estavam preservadas. No eixo ilíaco direito, evidenciou-se estenose suboclusiva distal em artéria ilíaca comum. A artéria ilíaca externa encontrava-se pérvia em sua origem, com redução gradual de seu diâmetro e oclusão distal. As artérias femorais comum, superficial e profunda estavam ocluídas. Em tempo tardio de fluoroscopia, observou-se colateralização importante em território femoral, convergente para o primeiro ramo da artéria femoral profunda, ou seja, a artéria circunflexa femoral lateral (Figura 3). Devido à extensão da oclusão, não houve contrastação dos segmentos mais distais.

Figura 1 Lesões necróticas em primeiro, quarto e quinto pododáctilos direitos, e nas faces medial e lateral do calcâneo direito.

Figura 2 Aortoarteriografia por punção retrógrada femoral esquerda. (A) Origem de artérias ilíacas sem estenoses; (B) Eixo ilíaco esquerdo pérvio apenas com irregularidades murais; (C) Suboclusão em terço distal de artéria ilíaca comum direita; (D) Ilíaca externa direita com redução gradual de diâmetro e oclusão em terço distal. Artéria femoral comum ipsilateral ocluída.

Figura 3 Arteriografia demonstrando reenchimento em tempo tardio de artéria descendente femoral lateral (seta preta), através de rede colateral ilíaco-femoral.
O paciente passou por ecografia vascular, na tentativa de obtermos maiores informações em relação ao escoamento femoral e aos potenciais substitutos autógenos disponíveis. O ultrassom confirmou a oclusão na transição ilíaco-femoral e também nas artérias femorais ipsilaterais, incluindo a artéria femoral profunda, até sua terceira porção. O exame também evidenciou o reenchimento, através de colaterais, da artéria descendente femoral lateral, que se encontrava vicariante, com diâmetro luminal de 2,0 mm e fluxo monofásico “tardus-parvus”. No mapeamento venoso, encontramos veias de diâmetros adequados apenas em membro superior esquerdo. A veia safena magna ipsilateral era inadequada. A avaliação cardiológica determinou risco cirúrgico intermediário (Classificação Lee-Vasc e ACP).
Diante desse quadro, algumas opções terapêuticas foram discutidas:
PARTE II: O QUE FOI FEITO
Optamos pela derivação cruzada da artéria ilíaca externa esquerda para a artéria descendente femoral lateral direita utilizando substituto autógeno de membro superior esquerdo. O procedimento foi realizado por duas equipes cirúrgicas, de forma simultânea e com magnificação através de lupas cirúrgicas. O procedimento foi realizado em centro cirúrgico, sob anestesia geral. Iniciamos pela dissecção da prega inguinal direita, através de incisão longitudinal, e dissecção da artéria femoral profunda até sua terceira porção, confirmando-se sua oclusão completa. Identificamos a oclusão também da artéria circunflexa femoral lateral, frequentemente primeira perfurante da artéria femoral profunda. O ramo descendente femoral lateral, também conhecido por anastomótica magna, encontrava-se pérvio, vicariante, com aspecto fibroelástico e sem calcificações (Figura 4). O acesso retroperitoneal à artéria ilíaca externa esquerda foi realizado através de incisão arciforme de fossa ilíaca, sem intercorrências. A artéria encontrava-se preservada, fibroelástica e com pouca calcificação. O trajeto do enxerto venoso foi subcutâneo suprapúbico. Concomitantemente, a outra equipe vascular explorava o membro superior esquerdo para preparo do substituto venoso. As veias basílica supracubital e intermédia de antebraço apresentavam-se com diâmetro e consistência adequados. Em topografia de prega cubital, notou-se um espessamento venoso de coloração nacarada, sugestivo de tromboflebite prévia. O segmento alterado foi ressecado e confeccionou-se uma anastomose veno-venosa entre as veias descritas com dois fios de polipropileno 7-0. Após heparinização sistêmica com 5.000 UI de heparina não fracionada, confeccionou-se a anastomose proximal em artéria ilíaca externa esquerda, utilizando dois fios de polipropileno 6-0. A veia foi devalvulada, sob fluxo contínuo, com auxílio de valvulótomo de Mills. Após passagem de enxerto venoso através de túnel subcutâneo suprapúbico (Figura 5), a anastomose distal foi confeccionada em segmento proximal de artéria descendente femoral lateral, utilizando fio único de polipropileno 7-0 (Figura 6). Após desclampeamento, o segmento caudal à anastomose distal apresentava pulso amplo, sugerindo sucesso técnico das anastomoses. Foram administrados 25 mg de cloridrato de protamina para reversão parcial do efeito heparinoide. As incisões foram fechadas e o paciente foi encaminhado à Unidade de Terapia Intensiva (UTI), extubado, e permaneceu estável hemodinamicamente. O paciente evoluiu satisfatoriamente e teve alta da UTI para enfermaria no segundo dia pós-operatório, e no 10° dia passou por desbridamento das lesões necróticas, com boa evolução, sendo liberado para acompanhamento ambulatorial no 15° dia de pós-operatório. O ITB de alta foi de 0,6 em artéria tibial posterior. A vigilância da derivação arterial foi realizada antes da alta hospitalar e com 5 meses de acompanhamento, e demonstrou enxerto pérvio, com fluxo bifásico de boa amplitude, sem estenoses (Figura 7). O diâmetro luminal da artéria anastomótica magna, após a anastomose distal, foi de 2,6 mm.

Figura 4 Acesso cirúrgico em prega inguinal direita evidenciando artéria circunflexa femoral lateral (seta preta) e seu ramo descendente, também conhecido como anastomótica magna (seta branca).

Figura 5 Acesso cirúrgico retroperitoneal à ilíaca externa esquerda (seta preta) evidenciando enxerto venoso em trajeto subcutâneo suprapúbico (seta branca).

Figura 6 Acesso cirúrgico em prega inguinal direita evidenciando artéria femoral profunda ocluída em suas primeira e segunda porções (setas brancas) e anastomose distal em artéria descendente lateral femoral (seta preta) com substituto venoso de membro superior esquerdo.

Figura 7 Vigilância ecográfica pós-operatória com 5 meses de evolução demonstrando escoamento adequado em artéria descendente lateral femoral, com onda de caráter bifásico, tempo de aceleração normal e boa amplitude.
O paciente encontra-se no momento deste relato com 8 meses de evolução, assintomático, independente, com cicatrização quase completa (Figura 8) das feridas em pé direito.
DISCUSSÃO
A angioplastia transluminal percutânea (ATP) pode nem sempre estar disponível em alguns hospitais no país e, em doentes mais jovens, como no caso do paciente aqui relatado, a técnica aberta tem melhor resultado a longo prazo. Além disso, a recanalização da artéria ilíaca externa, algumas vezes associada a doença da artéria femoral comum, pode ser extremamente complexa1,2. Quando a ATP das lesões ilíacas não é aceitável, a cirurgia convencional é o procedimento mais adequado a ser realizado10,11.
No caso aqui apresentado, a opção pelo tratamento cirúrgico teve como principal motivo a extensão da doença oclusiva, que acometia toda a transição ilíaco-femoral. A escolha do acesso cirúrgico para a anastomose proximal, utilizando a artéria ilíaca externa esquerda como artéria doadora, foi devido aos maiores índices de infecção de prega inguinal que temos em nosso serviço, talvez relacionados ao número de comorbidades e ao baixo nível socioeconômico de nossos pacientes8. A infecção de prega inguinal após procedimentos vasculares pode alcançar taxas entre 3 e 44%, segundo a literatura, com potenciais desfechos graves, como aumento de mortalidade e perda de membro9,12. Em relação ao substituto escolhido, nossa preferência foi pelo material venoso autógeno de membro superior, devido à maior compatibilidade de diâmetros anastomóticos e à baixa taxa de infecção13. No caso aqui apresentado, a escolha da composição venosa de veia de membro superior deu-se devido à inadequação da veia safena magna, ao espessamento venoso em topografia cubital, e à larga experiência de nosso serviço no uso do substituto venoso de membros superiores. A devalvulação do substituto venoso é a preferência do nosso serviço, pois preserva o padrão anatômico das artérias nativas em relação aos seus diâmetros proximal e distal, permitindo anastomoses mais compatíveis, além de manter a fasicidade arterial no enxerto.
A artéria descendente lateral femoral, conhecida pelo seu papel importante na colaterarização supra e infragenicular em oclusões femoropoplíteas, através da comunicação natural com as artérias geniculares, foi a única opção viável encontrada como artéria receptora para a derivação arterial. Seu uso ainda não foi descrito na literatura, mas procedimentos similares com artérias vicariantes alternativas, como a artéria genicular descendente e as artérias geniculares surais, constituem uma boa opção de derivação nos casos em que os substitutos são restritos ou mesmo naqueles em que não encontramos artérias tronculares receptoras adequadas7,14.
Como crítica à nossa conduta frente a esse procedimento, poderíamos citar a possibilidade de tratamento híbrido com ATP da lesão de ilíaca comum direita associada à derivação arterial para artéria anastomótica magna, evitando assim o enxerto cruzado. Porém, não dispúnhamos de material endovascular adequado no momento da internação.
Derivações e substitutos alternativos, utilizados normalmente em casos de exceção, podem e devem fazer parte do arsenal terapêutico vascular, podendo contribuir nos casos em que a cirurgia endovascular ainda não nos permite alcançar bons resultados4,5,7,15,16.