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A metafísica cartesiana das causas do movimento: mecanicismo e ação divina

The Cartesian metaphysics of the causes of motion: mechanism and divine agency

Resumos

O programa mecanicista apresentado por Descartes nos Princípios da filosofia destina-se a prover explicações dos mecanismos causais do mundo material exclusivamente em termos das qualidades geométricas da matéria e do movimento. Assim compreendida, a matéria não pode conter em si mesma as fontes da sua própria atividade, mobilidade ou diversidade, o que significa dizer que forças ou quaisquer outros princípios ativos não ocupam lugar algum na ontologia mecanicista cartesiana. O artigo procura esclarecer de que modo Descartes pretende que a agência divina possa suprir o lugar das forças banidas do seu universo mecânico.

Mecanicismo; Descartes; Movimento; Força; Causa; Ação divina; Física e metafísica


The mechanist program presented by Descartes in the Principles of the Philosophy is intended to provide explanations of the causal mechanisms of the physical world exclusively in terms of the geometrical properties of matter and motion. Thus understood, matter cannot contain in itself the sources of its own activity, mobility, or diversity, which means that forces or any other active principles do not play any role in the Cartesian mechanist ontology. This paper attempts to clarify Descartes' claim that divine agency can replace in his mechanical universe the banished forces.

Mechanical philosophy; Descartes; Motion; Force; Cause; Divine agency; Physics and metaphysics


ARTIGOS

A metafísica cartesiana das causas do movimento: mecanicismo e ação divina

The Cartesian metaphysics of the causes of motion: mechanism and divine agency

Eduardo Salles de Oliveira Barra

Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná barra@ufpr.br

RESUMO

O programa mecanicista apresentado por Descartes nos Princípios da filosofia destina-se a prover explicações dos mecanismos causais do mundo material exclusivamente em termos das qualidades geométricas da matéria e do movimento. Assim compreendida, a matéria não pode conter em si mesma as fontes da sua própria atividade, mobilidade ou diversidade, o que significa dizer que forças ou quaisquer outros princípios ativos não ocupam lugar algum na ontologia mecanicista cartesiana. O artigo procura esclarecer de que modo Descartes pretende que a agência divina possa suprir o lugar das forças banidas do seu universo mecânico.

Palavras-chave: Mecanicismo. Descartes. Movimento. Força. Causa. Ação divina. Física e metafísica.

ABSTRACT

The mechanist program presented by Descartes in the Principles of the Philosophy is intended to provide explanations of the causal mechanisms of the physical world exclusively in terms of the geometrical properties of matter and motion. Thus understood, matter cannot contain in itself the sources of its own activity, mobility, or diversity, which means that forces or any other active principles do not play any role in the Cartesian mechanist ontology. This paper attempts to clarify Descartes' claim that divine agency can replace in his mechanical universe the banished forces.

Keywords: Mechanical philosophy. Descartes. Motion. Force. Cause. Divine agency. Physics and metaphysics.

1. ONTOLOGIA E PADRÕES EXPLICATIVOS MECANICISTAS

A teoria física apresentada por Descartes nos Princípios da filosofia (1644)1 1 Daqui em diante referido apenas como Princípios. As citações dessa obra serão indicadas pela abreviação 'Pr', seguida pelo número da parte em algarismos romanos e pelo número do artigo em algarismos arábicos. Por exemplo, 'Pr, II, 45'. sempre colocou uma dúvida fundamental para seus intérpretes: qual o lugar destinado às forças ou aos princípios de atividade, responsáveis pelas diversas modificações mecânicas da matéria, na estrutura ontológica do universo físico cartesiano? A origem mais imediata dessa dúvida é bastante óbvia desde o início. Descartes pretendeu não ter admitido em sua explicação dos processos naturais nenhuma entidade que fosse ela mesma suscetível de redução à natureza intrínseca da matéria ou a seus modos ou atributos. Nisso consiste o programa que chamarei aqui de mecanicismo, que ainda incorpora a definição da natureza material como sendo exclusivamente a pura extensão geométrica e a concepção de que os seus únicos modos relevantes para toda explicação física são o movimento, a grandeza e a figura. Diante dessa ontologia bastante restritiva, não parece restar lugar algum onde possam ser inseridas as forças ou quaisquer elementos dinâmicos para cuja realidade fosse necessário postular algo mais do que o espaço geometricamente definido.

Todavia, nos Princípios há inúmeros recursos a forças para explicar desde as mais elementares manifestações do movimento. Meu objetivo neste artigo é apresentar uma interpretação desse tipo de recursos explicativos às forças dos corpos, a fim de que possam ser acomodados à ontologia pressuposta pelo mecanicismo cartesiano. Assumirei como ponto de partida a orientação de que a física de Descartes somente torna-se compreensível quando associada à sua metafísica – orientação essa amplamente aceita pelos principais comentadores.2 2 Ver, por exemplo, Hatfield (1979, p. 140) e Garber (1992, p. 293). No caso específico do tratamento que Descartes dá às forças responsáveis pelos movimentos dos corpos, o vínculo estreito entre física e metafísica é ainda mais fundamental. Pois, conforme pretendo ter esclarecido ao longo das próximas seções, o discurso de Descartes sobre tais forças somente se torna minimamente compreensível quando referido a um princípio dinâmico-metafísico, transcendente à imediata materialidade das coisas, que nenhum outro poderia ser senão aquele que emana da ação direta de Deus. A esse respeito, pretendo sustentar que o mecanicismo, ao despir a matéria de todo tipo de princípio ativo, torna indispensável uma espécie regular de intervenção divina sobre o mundo material.

Antes, contudo, de passar à análise da parte propriamente positiva da metafísica cartesiana da matéria e do movimento, é importante fazer uma breve observação sobre os seus virtuais antagonistas, dada a reiterada intenção do nosso autor de corrigir os equívocos cometidos por seus contemporâneos e adversários. Os Princípios podem ser encarados como a mais pretensiosa tentativa empreendida nas primeiras décadas do século XVII de suplantar o aristotelismo escolástico enquanto uma explicação abrangente da totalidade dos mecanismos causais presente na natureza. Descartes acredita que em, pelo menos, três aspectos suas explicações suplantam o padrão explicativo da filosofia natural da tradição aristotélico-escolástica.

Em primeiro lugar, somente as causas eficientes são relevantes para as explicações físicas. Causas finais e toda sorte de considerações teleológicas devem ser banidas da filosofia natural, de tal modo que as explicações possam omitir qualquer referência a conformidade a fins e a propósitos presentes na natureza (cf. Pr, I, 28). Em segundo lugar, as "qualidades reais e as formas substanciais, que a maioria dos filósofos supõem serem inerentes aos corpos", na medida em que não possam ser reduzidas à grandeza, figura ou movimento dos corpos, devem igualmente ser rejeitadas nas explicações causais dos eventos físicos (cf. Pr, IV, 198). À variedade de formas substanciais, que unidas à matéria (nesse caso, a materia prima dos escoláticos) constituem as substâncias completas, atribuía-se a função de determinar o comportamento característico das diversas espécies de substâncias. Descartes substituiu a multiplicidade de substâncias aristotélicas, cada qual dotada de sua forma própria e distintos comportamentos característicos, por uma concepção unitária da matéria que preenche uniformente todos os espaços do universo e comporta-se em todas as partes de acordo com as mesmas leis (cf. Pr, II, 22 e 23; Garber, 2001, p. 196-198). Por fim, a mesma atitude deve ser assumida com relação às chamadas "qualidades ocultas", assim como qualquer forma de "simpatia ou antipatia", para cuja existência e efetividade nenhuma razão "possa ser dada por meio desses mesmos princípios [grandeza, figura, situação e movimento das diversas partes da matéria]" (Pr, IV, 187). Tais "qualidades ocultas" eram uma espécie de recurso extremo destinado à explicação dos comportamentos mais idiossincráticos dos corpos, tais como a gravidade e o magnetismo (cf. Hutchinson, 1982, p. 233).

Em suma, os exíguos padrões explicativos mecanicistas propostos por Descartes e as crenças metafísicas a eles associados exigiam que fossem subtraídos do mundo físico toda espécie de finalidades, formas ou qualidades com as quais seus contemporâneos aristotélicos o haviam povoado. Mas, ao postularem tais entidades, os filósofos escolásticos sempre podiam pretender possuir algum tipo de resposta para a pergunta sobre a origem e a natureza dos princípios que introduzem a diversidade e a mobilidade no mundo material. Ao insurgir-se contra essa ontologia e os seus padrões explicativos, o mecanicismo cartesiano pode contar apenas com aquelas qualidades suscetíveis ao tratamento geométrico, grandeza, figura e movimento. Ora, tais qualidades são, por natureza, causalmente inertes e, sendo assim, as fontes de atividade devem ser procuradas num domínio alheio à natureza intrínseca dos seres materiais. Surge aqui a necessidade de recorrer a um princípio dinâmico-metafísico identificado na ação criadora de Deus. Todavia, não é imediatamente evidente a maneira como Descartes supõe que agência divina possa produzir a diversidade de efeitos constatados no mundo material, ainda que esses efeitos sejam somente aqueles suscetíveis ao tratamento geométrico. Esse é o caso particular do movimento, que está sujeito a uma ampla variação aparente seja num mesmo corpo seja na totalidade do universo. Meu objetivo neste artigo é justamente ampliar a compreensão desse ponto.

2. A "VERDADEIRA" NATUREZA RELATIVA DO MOVIMENTO

O programa mecanicista de Descartes, conforme vimos acima, envolve notadamente a deliberação de não admitir nenhum princípio explicativo que fosse ele mesmo irredutível à matéria em movimento. Contudo, em que consiste o próprio movimento? Para responder essa questão crucial às suas pretensões, Descartes adverte inicialmente que o movimento não deveria comportar em si mesmo nenhuma outra natureza além daquela que fosse compatível com a sua descrição como um dos modos da matéria extensa. Na Segunda Parte dos Princípios, que estabelece os "princípios das coisas materiais", ele considera o movimento como responsável (ao lado da divisibilidade da matéria) por "todas as propriedades que percebemos distintamente" na matéria do universo, cuja diversidade de formas depende do movimento local de suas partes (Pr, II, 23). Após advertir que entenderá por movimento apenas aquele que se realiza de um lugar a outro (movimento local) e considerar falsas as demais acepções em que esse termo é tomado – uma referência clara aos vários sentidos que o movimento possuía na tradição aristotélico-escolástica3 3 Para a tradição escolástica, movimento significa mudança num sentido amplo, que compreende a passagem de um atributo, acidente ou forma ( terminus a quo) a outro ( terminus ad quem). Desse modo, além do movimento local ou com respeito ao lugar, haveria um movimento com respeito à quantidade (por exemplo, aumento ou diminuição do tamanho), um movimento com respeito à qualidade (mudanças do quente para o frio, do branco para o preto etc.) e, finalmente, um movimento com respeito à substância (o abandono de uma forma substancial e a aquisição de uma outra, resultando num novo tipo de substância ou ser) (Cf. Garber, 1992, p. 194). – , Descartes distingue entre duas definições aquela que exprime a verdadeira natureza do movimento.

Num sentido comum, o movimento é definido como sendo a "ação pela qual um corpo passa de um lugar a outro" (Pr, II, 24), isso porque não se concebe a natureza do movimento sem a ação que o produz. Por outro lado,

se desejamos conhecer aquilo que é o movimento segundo a verdade, diremos, a fim de atribuir-lhe uma natureza que seja determinada, que ele é o transporte de uma parte da matéria, ou de um corpo, da vizinhança dos corpos que o tocam imediatamente, e que consideramos como estando em repouso, à vizinhança de alguns outros.

Os comentários de Descartes sobre essa definição incidem sobre os dois aspectos que, segundo sua avaliação, a impedem de atribuir uma "natureza determinada" ao movimento. Primeiro, Descartes esclarece que "por um corpo, ou melhor por uma parte da matéria, eu entendo tudo aquilo que é transportado conjuntamente (...)". Segundo, ele insiste que a verdadeira natureza do movimento reside no "transporte" e não na "força ou ação que transporta, a fim de mostrar que o movimento está sempre no móvel (mobili), e não naquilo que move (movente)" (Pr, II, 25).

O segundo aspecto, relativo às diferenças entre mobili e movente, translatio e actio, caracteriza a contraposição mais radical que Descartes pretende estabelecer com a concepção tradicional ou comum de movimento. Contudo, para que possamos proceder a uma análise desse segundo aspecto, é indispensável que analisemos antes o primeiro, que incorpora as críticas de Descartes ao relativismo excessivo da concepção tradicional. Ao final desta seção, veremos que o objetivo de Descartes não parece ser, surpreendentemente, suprimir o relativismo, mas apenas redefini-lo em bases conceituais compatíveis com a sua metafísica da matéria e do movimento.

A estratégia de Descartes para corrigir os equívocos do relativismo tradicional consiste, inicialmente, em distinguir os diversos referentes com respeito aos quais o movimento pode ser atribuído ao corpo, mediante a substituição da noção de lugar pela noção de corpos vizinhos ou contíguos. Os lugares em relação aos quais a definição comum determina o movimento podem ser tomados de várias formas diferentes: pode ser tanto o "lugar interno", que não difere realmente da própria extensão do corpo, quanto o "lugar externo" formado pela "superfície que circunda imediatamente a coisa localizada" ou pela superfície comum ou o limite que não pertence mais a um corpo que a outro. No caso de um barco que é transportado pelas águas de um rio, mas que ao mesmo tempo é impulsionado na direção contrária pela força de um vento igual à da correnteza do rio, o vulgo consideraria que permanece em repouso porque sua situação em relação às margens do rio não se modifica, "embora vejamos que toda a superfície que o circunda muda constantemente" (Pr, II, 15). Assim não se pode deixar de admitir que "uma coisa ao mesmo tempo muda e não muda de lugar" (Pr, II, 13), isto é, que um corpo "ao mesmo tempo move-se e não se move absolutamente" (Pr, II, 24). Para escapar a essa indeterminação e arbitrariedade que permite atribuir uma infinidade de movimentos a um mesmo corpo, é necessário incluir um novo elemento na definição comum: "a contigüidade dos corpos tomada como eixo imóvel de referência" (Guéroult, 1954, p. 12). Esse novo elemento impede que mais de um movimento seja atribuído a um mesmo corpo "porque não existe senão uma quantidade determinada de corpos que o poderiam tocar ao mesmo tempo" (Pr, II, 28).

Além disso, Descartes recorre à sua própria definição da substância extensa para afirmar que não existe uma diferença real entre lugar, espaço e corpo, que consistem apenas em formas diferentes de conceber a matéria extensa (cf. Pr, II, 12 e 13). O que torna possível distinguir as diversas partes da matéria é justamente a noção de corpo tomado como "tudo aquilo que é transportado conjuntamente" (Pr, II, 25). Portanto, sendo o conceito de corpo recíproco ao de seu transporte, os corpos não se definem antes de seus movimentos; tanto que um mesmo corpo pode participar de vários movimentos, na qualidade de parte de outros corpos que se movem diferentemente. Contudo, para "cada corpo em particular não existiria senão apenas um único movimento que lhe é próprio, porque não existe senão uma quantidade determinada de corpos que o tocam e que estariam em repouso em relação a ele (...)" (Pr, II, 31; o itálico é meu).

Mas, substituída a indeterminação proveniente da noção de lugar pela clareza e precisão das noções de corpo, contigüidade dos corpos e movimento próprio, uma fonte de indeterminação ainda permanece na noção de corpo em repouso. Não que o repouso não disponha de uma realidade positiva independente do movimento, ou que o repouso seja definido exclusivamente por sua oposição ao movimento. Ao contrário, o repouso é pela mesma razão que o movimento um dos modos da matéria extensa (cf. Pr, II, 25 e 27). Eis algo que escapa à definição comum, na medida em que considera a ação uma natureza suplementar exclusiva dos corpos em movimento. Contra essa concepção, Descartes argumenta que "não é requerida mais ação para o movimento do que para o repouso" (Pr, II, 26), o que equivale a dizer que "tudo que existe de real nos corpos que se movem, em virtude do que dizemos que eles se movem, encontra-se paralelamente naqueles que os tocam, na medida em que os consideramos como estando em repouso" (Pr, II, 30) – embora essas palavras de Descartes possam ter um sentido ainda mais amplo, conforme veremos a seguir. Portanto, rigorosamente o mesmo estatuto de realidade atribuído ao movimento deve ser estendido ao repouso, visto que não existe entre eles qualquer diferença intrínseca na ordem do ser. A indeterminação, se ela ainda persiste, reside apenas na ordem do conhecimento e decorre do fato de que o movimento é definido a partir "daqueles [corpos] que consideramos (spectantur) como estando em repouso" (Pr, II, 29). Mas tal "suposição" do repouso dos corpos contíguos reintroduz de uma outra maneira a relatividade que Descartes havia rejeitado na definição comum do movimento. Pois, atribuir o movimento a um corpo "porque se supõe que os corpos contíguos estejam em repouso, não é exatamente outra coisa senão supor que ele mesmo esteja em movimento" (Guéroult, 1954, p. 16).

Neste ponto, a indeterminação e a arbitrariedade na atribuição do movimento parecem insuperáveis e até mesmo intencionais na doutrina de Descartes. Talvez isso seja uma decorrência daquilo que se afirma contra a noção comum do movimento: "se pensarmos que não se pode encontrar no universo corpo algum que seja verdadeiramente imóvel, como é mostrado abaixo ser possível, então concluiremos que o lugar de coisa alguma é permanente, exceto se ele for determinado pelo nosso pensamento" (Pr, II, 13). Assim, o que a doutrina de Descartes tenciona não parece ser um meio de atribuir univocamente o movimento aos corpos, mesmo porque, tomadas num sentido mais amplo e correto, as suas palavras referidas acima afirmam a reciprocidade da atribuição do movimento e do repouso entre os corpos contíguos: "tudo que existe de real nos corpos que se movem (...) encontra-se paralelamente naqueles que (...) consideramos como estando em repouso" (Pr, II, 30). A esse respeito, Descartes pretende assegurar-se tão-somente que um único movimento possa ser atribuído a cada corpo, o qual deve ser considerado seu movimento próprio, definido "segundo a verdade". Uma atribuição unívoca de movimento ou repouso que excluísse qualquer modalidade de relativismo não parece, portanto, figurar entre as intenções da doutrina do movimento de Descartes.

3. CAUSA PRIMÁRIA E CAUSAS SECUNDÁRIAS DO MOVIMENTO

A Segunda Parte dos Princípios de Descartes divide-se em duas seções bastante distintas. A primeira seção (Arts. 4-35) trata das questões sobre a natureza de um princípio imanente: a matéria e seus modos (movimento e repouso). A segunda seção (Arts. 36-63) trata das questões sobre as causas que fundamentam as diversas existências, particularmente dos modos da matéria (do movimento, do repouso, da fluidez e da coesão). Segundo Guéroult, que sugere essa divisão geral da Segunda Parte dos Princípios (cf. 1954, p. 22-3), o princípio que assegura a existência dos objetos da física cartesiana é "Deus criador, que faz as coisas existirem e as conserva na existência, isto é, na duração" (Guéroult, 1954, p. 1). Sendo assim, os agentes causais do movimento e do repouso, isto é, as forças responsáveis pela existência e duração deles, têm como único fundamento a potência criadora de Deus e a imutabilidade de sua vontade.

Conseqüentemente, as diversas noções de força não poderiam ser concebidas de forma inteiramente clara e distinta apenas pelas noções de extensão e movimento que permitem exprimir adequadamente suas manifestações; elas requerem, além disso, os conceitos certamente metafísicos, mas claros e distintos, da vontade divina imutável e da criação contínua (Guéroult, 1954, p. 2).

Dessa forma, ao transpor o plano puramente descritivo da natureza dos modos da matéria com a finalidade de estabelecer os fundamentos da sua existência e duração, a física cartesiana incorpora um novo princípio metafísico, admitido como o único princípio dinâmico responsável pelos diversos estados em que a matéria extensa se encontra atualmente disposta. Esse princípio dinâmico-metafísico permitirá explicar não apenas a duração ou a persistência do movimento, mas também as mudanças do movimento devido às freqüentes colisões entre os corpos.

Como as referências anteriores a 'força', 'causa' e seus cognatos deixam transparecer, será somente nesse contexto que o segundo (e mais problemático) aspecto da definição comum de movimento – a ênfase na ação, em lugar do transporte – poderá ser finalmente considerado. Mas a tarefa primordial de Descartes não se limita a criticar seus predecessores. O principal será assegurar que um discurso sobre princípios ativos, forças e causas possa ser articulado no interior de uma ontologia construída sob os rígidos preceitos mecanicistas, ainda que isso apenas possa significar a preocupação de tornar rigoroso o uso que a definição comum de movimento faz desses termos, revelando a realidade que possivelmente se esconde trás das noções confusas e obscuras a eles associadas (cf. Hatfield, 1979, p. 119, 138).

Nos Artigos 36 e 37 da Segunda Parte dos Princípios, Descartes introduz a discussão sobre as causas do movimento, afirmando que estas podem ser tomadas de dois modos distintos: (i) a causa primária e universal, "que produz geralmente todos os movimentos que existem no mundo"; (ii) as causas secundárias e particulares, que fazem com que "cada parte da matéria adquira [o movimento] que antes não possuía". A causa primeira não seria outra senão "Deus, que pela sua Onipotência criou a matéria com o movimento e o repouso, e que conserva agora no universo, por seu concurso ordinário, tanto movimento e repouso quanto colocou nele ao criá-lo" (Pr, II, 36). O mesmo "concurso ordinário" de Deus no mundo, que o recria a cada instante e que, por isso mesmo, o conserva na existência, é o que assegura a regularidade do comportamento dos corpos em suas diversas interações e operações naturais e, desse modo, serve como garantia da confiabilidade do nosso conhecimento das causas secundárias:

Também, em virtude de que Deus não está absolutamente sujeito a mudanças e que ele age sempre da mesma forma, podemos chegar ao conhecimento de certas regras, que eu chamo de leis da natureza, e que são as causas segundas dos diversos movimentos que observamos em todos os corpos; o que as torna muito dignas de consideração aqui (Pr, II, 37).

As "leis da natureza" têm, portanto, como fundamento exclusivo a imutabilidade da vontade de Deus, "que, após haver movido de várias formas diferentes as partes da matéria, quando ele as criou, (...) mantém todas elas da mesma maneira e com as mesmas leis que ele as fez observar na criação (...)" (Pr, II, 36).

As leis da natureza que regulam a maneira como os corpos adquirem ou perdem seus movimentos ou, mais especificamente, adquirem ou perdem a quantidade ou a determinação de seus movimentos, são as seguintes:

[PRIMEIRA LEI:] que cada coisa em particular continua no mesmo estado tanto quanto lhe seja possível, e que jamais ela o modifica a não ser pela colisão com outras coisas.4 4 Na edição em latim, esse último período diz "a não ser por causas externas" ( nisi à causis externis) (1982, p. 62). Assim, observamos cotidianamente que, quando alguma parte dessa matéria é quadrada, ela permanece sempre quadrada, se não sobrevem algo de outra parte que mude sua figura; e que, se está em repouso, ela não começa a se mover por si mesma. (...) De modo que, se um corpo tenha começado a mover-se, devemos concluir que continuará a mover-se em seguida, e que ele jamais interrompe seu movimento por si mesmo (Pr, II, 37).

[SEGUNDA LEI:] que cada parte da matéria, em sua particularidade, não tende jamais a continuar a se mover segundo linhas curvas, mas segundo linhas retas, ainda que várias de suas partes sejam constantemente obrigadas a se desviar, porque elas encontram outras em seus caminhos e porque, tão logo um corpo se move, forma-se um círculo ou um anel de toda a matéria que é movida conjuntamente (Pr, II, 39).

[TERCEIRA LEI:] que, se um corpo que se move encontra-se com um outro e possui menos força para continuar a se mover em linha reta do que esse último para resistir-lhe, então ele perde sua determinação sem nada perder de seu movimento; e que, se ele possui mais força do que o outro, ele move consigo esse outro corpo e perde tanto de seu movimento quanto ele atribui ao outro (Pr, II, 40).

Na primeira lei, Descartes parece querer afirmar que a persistência ou a continuidade dos modos da matéria (movimento, repouso e figura) decorre de sua própria natureza, visto que são indistintamente considerados estados. Mas essa interpretação não se sustenta diante do que o próprio Descartes afirma na discussão da segunda lei, quando não deixa qualquer margem para suspeitar que esteja atribuindo um poder de conservação intrínseco à matéria, pois tanto a primeira quanto a segunda lei seguem-se da imutabilidade da vontade de Deus e de sua criação contínua, pela qual o movimento é conservado "não como ele pôde ter sido algum tempo antes, mas como ele é precisamente no instante em que ele o conserva" (Pr, II, 39).

Sobre a razão por que Deus conserva o movimento em linha reta e não em qualquer outra trajetória, Descartes apenas declara que "ele conserva o movimento por meio de uma operação muito simples"; o que pode sugerir que a trajetória retilínea seja, para o autor, a mais simples das trajetória possíveis.5 5 Como propõe, por exemplo, Koyré (1968, p. 100). Mas as suas alegações a seguir não confirmam essa interpretação nem muito menos ampliam a clareza da declaração anterior: "pois é evidente que, embora nenhum movimento se realize no instante, tudo aquilo que se move, para conservar seu movimento em cada um dos instantes que podem ser designados no tempo em que se move, foi determinado a se mover em alguma direção segundo uma linha reta, mas nunca segundo alguma linha curva" (Pr, II, 39).6 6 Com base nessa passagem dos Princípios, Hatfield sugere que "deveríamos exprimir o argumento de Descartes, grosseiramente, dizendo que a única trajetória assinalável ao movimento de um objeto num tempo infinitamente pequeno e, portanto, ao longo de uma trajetória infinitamente pequena é uma linha reta" (1979, p. 123, nota). Mas a interpretação de Hatfield parece depender de que se possa atribuir irrestritamente a Descartes a tese da descontinuidade e da independência das partes do tempo. Para uma apresentação do aspecto problemático desse pressuposto, ver a próxima nota. Mas a dificuldade com respeito à justificação da conservação da retilinidade do movimento não é a única nem a que mais tem suscitado controvérsias entre os comentadores. A questão mais problemática é o modo como deve ser compreendido o próprio "concurso ordinário" de Deus, tomado como exclusivo agente causal responsável pela manutenção do movimento. A criação contínua é um tema recorrente na metafísica cartesiana. De modo peremptório, Descartes declara, nas Meditações, que "uma substância, para ser conservada em todos os momentos da sua duração, precisa do mesmo poder e da mesma ação que seria necessário para produzi-la e criá-la de novo, caso não existisse ainda" (1988, Terceira Meditação, § 34). Sendo assim, Descartes acrescenta que conservação e criação distinguem-se apenas em razão, mas não em efeito.7 7 A forma como é aqui apresentada por Descartes a identidade real entre criação e conservação sugere que ela surja como uma conseqüência da descontinuidade e independência das partes do tempo, aludida no parágrafo anterior ao citado acima. Mas o que precisamente Descartes compreende por "partes do tempo", somente instantes desprovidos de duração ou também momentos com uma duração qualquer, considerados provisoriamente como indivisíveis? A resposta a essa questão, assim como ocorre com a questão que discutirei a seguir, tem sido objeto de acentuada controvérsia entre os comentadores. (Para um balanço das duas principais posições antagônicas, ver Garber, 1992, p. 266-73, 2001, p. 191-4.) Para os meus objetivos neste artigo, não será necessário aprofundar esse ponto. Apesar de em muitas passagens acompanhar as posições interpretativas daqueles que sustentam, nas palavras de Garber, o "atomismo temporal" de Descartes (sobretudo, Guéroult e Hatfield), não procurarei estabelecê-lo como premissa para a interpretação de que Deus causa o movimento recriando os corpos em diferentes posições em diferentes momentos. Como sugere Garber, procurarei examinar a maneira como, para Descartes, Deus causa o movimento "enfrentando a questão diretamente" (2001, p. 194).

Se a identidade causal entre criação e conservação deve ser estendida aos movimentos, e se é Deus "que produz geralmente todos os movimentos existentes no mundo" (Pr, II, 36), então Deus é também quem conserva o movimento mediante "o mesmo poder e a mesma ação" requeridos para produzi-lo na origem do mundo físico. A primeira dificuldade desse tipo de interpretação surge com respeito ao fato de que o movimento não é em si mesmo uma substância, para cuja existência e duração Descartes afirma explicitamente que são exigidos o mesmo poder e a mesma ação, mas tão-somente um modo da substância extensa, tal como a sua própria figura. Garber encara esse fato como decisivo para estabelecer uma distinção entre as funções de Deus como causa do movimento ("causa modal") e como causa da criação e da conservação da existência de uma substância, tal como a própria substância extensa ("causa substancial") (cf. 1992, p. 277; 2001, p. 199). Disso decorre uma separação de natureza entre as ações divinas responsáveis pela conservação dos corpos na existência e pela conservação de seus movimentos. Nesse segundo caso, Garber considera que a ação divina deve ser "compreendida como uma impulsão real (real shove), algo que [por sua vez] somente pode ser compreendido em analogia com o modo pelo qual causamos movimentos nos corpos" (1992, p. 278). A base para a interpretação de Garber são certas passagens da correspondência de Descartes a Henry More, em abril de 1649, nas quais a ação de Deus ao mover os corpos é concebida "exatamente do mesmo modo como fazemos, empregando a mesma noção primitiva que empregamos para compreender o modo como movemos nossos próprios corpos" (2001, p. 200).8 8 A passagem relevante dessa correspondência a More (AT V 347; apud Garber, 1992, p. 277, 2001, p. 200) é a seguinte: "Embora eu não acredite que qualquer modo de ação pertença univocamente a Deus e a suas criaturas, confesso ser incapaz de encontrar qualquer idéia em minha mente que represente o modo pelo qual Deus ou um anjo move a matéria que seja diferente da idéia que me apresenta o modo pelo qual estou consciente de que posso mover meu próprio corpo mediante o meu pensamento".

A "interpretação da impulsão divina" é proposta por Garber como alternativa àquela que ele chama "interpretação cinemática", atribuída a Guéroult e Hatfield e cuja idéia central – apresentada no início dessa seção – é a identidade da agência divina na conservação das substâncias criadas e na conservação do movimento, que assim moveria os corpos não por qualquer tipo de impulsão, mas por simples recriação. Não procurarei aqui examinar detalhadamente a complexa argumentação de Garber. Observo apenas que, num sentido que ele próprio talvez concordasse, a "interpretação cinemática" faz mais justiça às posições que Descartes defende nos Princípios, enquanto a "interpretação da impulsão divina" depende fundamentamente dos seus últimos pensamentos, destinados a responder os questionamentos feitos por More, num contexto distinto da justificação das leis da natureza.9 9 O ponto em discussão entre More e Descartes era precisamente a natureza da ação divina tomada como fonte exclusiva de atividade no universo material. Em princípio, More tenderia a concordar com Descartes sobre dois dos pontos centrais da sua metafísica da natureza material, quais sejam, a matéria em si mesma é inativa e a ação divina constitui o único agente causal que gera e conserva toda atividade existente no universo. Talvez a principal fonte de divergência entre os dois filósofos seja a descrição de um meio possível pelo qual Deus pudesse distribuir a atividade que falta à matéria. Para More, a radical distinção promovida por Descartes entre espírito e matéria, sobretudo sua recusa em atribuir extensão às substâncias espirituais, acabaria por excluir totalmente a eficácia divina sobre o mundo, se não assegurasse também uma ligação imanente entre Deus e o mundo físico. Postulando uma forma de imanência divina no mundo material, um "espírito da natureza" ( anima mundi), More acredita ter encontrado uma solução mais convincente para o problema em discussão (cf. Boylan, 1980, p. 405). Ademais, com respeito a esse último ponto, recordemos que ainda estamos nos movendo no contexto da justificação das duas primeiras leis da natureza, que descrevem as condições da conservação do movimento. Diferenças mais radicais com a "interpretação da impulsão divina" surgirão quando tratarmos da justificação da terceira lei, que descreve as condições das mudanças de movimento. Remeto, portanto, a apresentação de um balanço mais amplo dos méritos relativos de ambas interpretações para o final da próxima seção, quando poderei fazê-lo a partir da questão que propriamente me interessa, qual seja, o estatuto das forças ou princípios ativos no interior de uma ontologia radicalmente mecanicista.

4. O LUGAR DAS FORÇAS

As duas primeiras leis da natureza, que juntas constituem o que poderia ser considerado o "princípio de inércia" de Descartes, não fazem qualquer referência explícita às forças que agem para conservar ou para mudar o movimento de um corpo, embora refiram-se às causas externas que produzem mudanças no estado de movimento ou de repouso dos corpos. Propositadamente, Descartes empregou o termo 'força' nesse sentido apenas no enunciado da terceira lei, pois essa lei deveria compreender todas "as causas particulares das mudanças que ocorrem nos corpos" (Pr, II, 40). Mas, antes de esclarecer o sentido exato em que o termo 'força' deve ser entendido nesse enunciado e, por extensão, em toda sua mecânica, Descartes "prova" separadamente as duas afirmações feitas na terceira lei.

Ao contrário do que se poderia esperar, Descartes não fornece exatamente uma demonstração da verdade da terceira lei. Ele se limita a mostrar que as condições para que ocorram as mudanças enunciadas na terceira lei são perfeitamente consistentes com a natureza do movimento e as duas leis anteriores. Para "provar" a primeira parte da terceira lei, Descartes assume inicialmente que existe uma diferença real entre o movimento tomado em si mesmo e a determinação desse movimento, de modo que "essa determinação pode mudar, sem que haja nenhuma mudança no movimento". Descartes entende que um corpo possa ser desviado de sua trajetória, sem que isso implique qualquer mudança na sua "quantidade de movimento".10 10 A noção de quantidade de movimento na física de Descartes não pode ser inteiramente transcrita como o produto da massa do corpo pela velocidade de seu movimento ( mv). Em primeiro lugar, Descartes não reconhece um conceito de massa como aquele que Newton emprega a partir dos Princípios Matemáticos da Filosofia Natural (1687), o qual envolve a noção de densidade que, por sua vez, pressupõe a existência de vazios nos interstícios da matéria. Na física cartesiana, espaços vazios de matéria são inadmissíveis. Sendo assim, a maneira mais adequada de descrever a medida que juntamente com a velocidade compõe a quantidade de movimento de um corpo para Descartes seria o tamanho ou o volume geometricamente definido, isto é, a quantidade de espaço que a matéria do corpo preenche totalmente (cf. Pr, II, 19). Em segundo lugar, a velocidade para Descartes é uma quantidade apenas escalar e não vetorial. Ele, no entanto, mostra estar ciente do aspecto direcional do movimento de um modo muito peculiar, mas de qualquer forma não o considera um componente da velocidade (cf. Blackwell, 1966, p. 225, nota). O aspecto direcional do movimento deve ser incorporado àquilo que Descartes chama de determinação do movimento, cujo sentido exato ele nunca se preocupa em esclarecer, mas que talvez possa ser compreendido como o "modo direcional da força motora" e, dessa forma, ser associado àquilo que atualmente chamamos de quantidade vetorial (Gabbey, 1998, p. 664). É por isso que um corpo, ao colidir com um outro "tão duro e tão sólido a ponto de que não o possa impulsionar de forma alguma, perde inteiramente a determinação (...), mas não é necessário que perca absolutamente nada de seu movimento" (Pr, II, 41). Se então considerarmos o que foi afirmado nas duas primeiras leis, a primeira parte da terceira lei pode ser assim compreendida: uma vez que existe uma causa, a saber, a resistência do corpo que se move com maior força, haverá uma mudança na determinação do movimento; ao passo que a inexistência de uma tal causa que provoque alguma perda de sua quantidade de movimento implica que ela permanecerá inalterada.

Já a "prova" da segunda parte da terceira lei deve mostrar por que o movimento perdido pelos corpos nas colisões é integralmente transmitido àqueles que se lhes interpõem. Com efeito, a inexistência de espaços vazios de matéria e a tendência retilínea do movimento das partes da matéria implicam que Deus criou não apenas a matéria em movimento, mas também dotou as suas partes "de uma tal natureza que umas começaram desde então a impelir as outras e a comunicar-lhes parte de seus movimentos" (Pr, II, 42). A existência inevitável das colisões entre as partes da matéria exige que o movimento possa ser perfeitamente comunicado entre elas, a fim de que permaneça constante a quantidade de movimento e de repouso que Deus impôs ao mundo na criação. Portanto, essa "natureza" adicional das partes da matéria é tão-somente mais uma manifestação do concurso ordinário de Deus no mundo e de sua vontade imutável.

Pelo que podemos notar, as causas secundárias, que produzem as mudanças de movimento nas partes da matéria, têm apenas um único fundamento comum que é a própria "causa primeira". As leis da natureza expressam a maneira pela qual Deus conserva constante a quantidade de movimento e de repouso existente no universo, tendo em vista que as colisões inevitáveis entre os corpos fazem com que essas quantidades existentes em cada um deles sejam constantemente modificadas. Assim, tendo esclarecido qual a causa do movimento e das mudanças de movimento, Descartes pode agora finalmente esclarecer "em que consiste a força de cada corpo para agir ou para resistir":

é preciso observar que a força com que um corpo age sobre um outro ou resiste à sua ação consiste apenas nisto: cada coisa persiste tanto quanto possa no mesmo estado em que se encontra, em conformidade com a primeira lei que expus acima. De modo que um corpo que se encontra unido a um outro corpo possui alguma força para impedir que seja separado desse outro; e que, quando ele está separado, possui alguma força para impedir que seja ligado a outro; e também que, quando ele está em repouso, possui uma força para permanecer nesse repouso e para resistir a tudo aquilo que pudesse fazê-lo mudar. Da mesma forma, quando ele se move, possui uma força para continuar a se mover com a mesma velocidade e para o mesmo lado. Mas deve-se avaliar a quantidade dessa força pela grandeza do corpo no qual ela se encontra e pela superfície através da qual esse corpo se encontra unido a um outro, bem como pela velocidade do movimento e as formas contrárias em que os vários corpos diferentes se chocam (Pr, II, 43).

Descartes ainda acrescenta que as forças são sobretudo forças de resistência: resistência à separação (coesão), resistência à união (fluidez), resistência ao movimento (repouso) e resistência ao repouso (movimento). Aqui encontra-se a verdadeira diferença entre o movimento e o repouso que escapa à definição comum. O movimento não se define por oposição ao repouso, nem o repouso por oposição ao movimento. O que verdadeiramente os define como realidades distintas é a maneira como Deus os conserva: "quando o corpo está em repouso, Deus recria-o no instante seguinte na mesma situação em relação aos corpos contíguos [força de repouso]; ao passo que quando o corpo está em movimento, ele o recria em uma situação diferente [força de movimento]" (Guéroult, 1954, p. 30). Tais forças manifestam-se na coesão (força de repouso) e na fluidez (força de movimento).

Assim, restitui-se ao repouso o estatuto de realidade que a definição geométrica do movimento parecia ter lhe suprimido, principalmente diante da intenção de Descartes de demonstrar que "não se pode encontrar em todo o universo nenhum corpo que seja verdadeiramente imóvel" (Pr, II, 13). A mobilidade universal à qual Descartes se refere deve ser aquela que todos os corpos possuem por estarem inseridos em algum sistema em movimento, razão pela qual podem ser considerados como constituindo um único e mesmo corpo em movimento. Contudo, por essa mesma razão, a saber, o transporte conjunto das partes, segue-se que as partes desse corpo existem sem que umas se movam em relação às outras. Portanto, essa imobilidade recíproca entre as partes contíguas de um mesmo corpo, que implica a coesão dessas partes, fundamenta a existência positiva do repouso (cf. Pr, II, 55).

As últimas considerações de Descartes no Art. 43 citado acima reintroduzem a possibilidade do tratamento geométrico do movimento, ao tornar as "manifestações" da "força de cada corpo para agir ou para resistir" passíveis de serem conhecidas. Através do tamanho, da superfície e da velocidade dos corpos e das diversas maneiras que se chocam, podemos determinar "como cada corpo em particular aumenta ou diminui seus movimentos ou muda sua determinação devido às colisões com os outros corpos". Para tanto "é preciso somente calcular quanto existe de força em cada corpo para mover-se ou para resistir ao movimento, pois é evidente que aquele que tenha mais deve produzir seu efeito e impedir o efeito do outro" (Pr, II, 45). Nos artigos seguintes (Arts. 46 a 52), Descartes enuncia suas "regras dos choques" que devem regular as diversas formas pelas quais os corpos mudam suas determinações e quantidades de movimento nas colisões. Essas mudanças são determinadas pelas forças de cada corpo para agir ou para resistir, que são proporcionais às respectivas quantidades de movimento existente em cada um deles. Assim, quando dois corpos colidem, se forem perfeitamente duros e sólidos, agirão entre si segundo suas respectivas forças, de modo que quanto maior e mais veloz for o corpo tanto mais deverá preservar da direção e da quantidade de seu movimento.

Mas, embora haja uma variedade de formas pelas quais a quantidade das diferentes forças possa ser mensurada mediante os modos da extensão (tamanho, superfície, velocidade etc.), é importante notar que essas forças, elas mesmas, não devem ser concebidas como imanentes e redutíveis aos modos da extensão. O emprego do termo 'força' apenas tem sentido quando associado à primeira lei da natureza e, conseqüentemente, ao princípio metafísico da imutabilidade da vontade divina e da criação contínua. Sendo assim, torna-se compreensível que Descartes tenha censurado a inclusão da "ação" na definição comum do movimento, contra o que ele próprio argumentou dizendo "que não é requerido mais ação para o movimento que para o repouso" (Pr, II, 26). Ora, a natureza do movimento define-se apenas pelo "transporte" que pode ser tratado geometricamente. A definição comum não pode apreender a verdadeira natureza do movimento porque se apóia na noção de ação ou força ("aquilo que move"), cuja inteligibilidade requer um princípio que escapa à imanência material. Daí a recusa de Descartes em tratar das causas, ações ou forças enquanto procurava estabelecer a natureza do movimento como modo da matéria extensa. Feito isso, ele deve finalmente considerar as condições da geração e da conservação do movimento, cujas causas serão descritas como "leis da natureza", que produzem "mudanças no movimento porque elas são a razão para a alteração feita por Deus em qualquer parte da matéria". Do ponto de vista da criação contínua, "essas leis fornecem a razão para Deus criar a partícula em instantes sucessivos em uma trajetória ao invés de em outra" (Hatfield, 1979, p. 123, 128).

Essas últimas considerações, conforme notamos ao final da seção anterior, pressupõem a indistinção entre a ação divina na manutenção do mundo físico (criação contínua) e a mesma ação na conservação do movimento – agora estendida aos casos em que a conservação se verifica apenas na quantidade total de movimento, enquanto ocorrem alterações constantes nas partes da matéria tomadas individualmente. Tudo isso, obviamente, está sujeito às mesmas objeções levantadas por Garber contra a chamada "interpretação cinemática". No caso específico da terceira lei, Garber considera ainda mais inadequada "a identificação entre Deus como mantenedor dos corpos e Deus como causa do movimento", pois, enquanto os modos que Deus conserva na matéria mediante o primeiro tipo de ação (duração e existência) não variam absolutamente, os modos conservados mediante o segundo tipo de ação (movimento e repouso) estão sujeitos a toda espécie de variação num mesmo corpo (cf. 1992, p. 296). Ora, embora me pareçam corretas, essas últimas considerações talvez reforcem a identidade entre existência/duração e movimento/repouso, tomados indistintamente como modos das substâncias criadas (cf. Pr, I, 56); uma identidade que, se devidamente considerada, colocaria sérios empecilhos à distinção anteriormente proposta por Garber entre "causa modal" e "causa substancial".

Mas é num aspecto particularmente central às suas pretensões, qual seja, a ontologia das forças para Descartes, que a "interpretação da impulsão divina" mostra maior fragilidade. Em poucas palavras, para Garber, a "força cartesiana não está em absolutamente nenhum lugar" (1992, p. 297), visto que

tanto com respeito às forças destacadas na terceira lei quanto com respeito à assim chamada lei de inércia [primeira e segunda leis], não há necessidade de atribuir nenhum novo tipo de propriedade aos corpos; tudo o que realmente existe tanto num caso quanto no outro são os corpos, com diferentes graus de movimento e repouso, e Deus, que mantém esse movimento e repouso, além de reconciliar modos incompatíveis em diferentes corpos. Sendo assim, desse ponto de vista, a força não está em lugar algum; estritamente falando, não está em Deus, que é a causa real de todos os movimentos no mundo inanimado, nem nos corpos, que são os recipientes do movimento causado por Deus.

Todavia, não me parece que a afirmação de que "a força (...) não está em Deus" possa ser acomodada à interpretação da impulsão divina. Quando se atribui força (sobretudo, força de resistência) aos corpos, é absolutamente compreensivo que isso seja somente uma "forma de falar" (way of talking), que tudo se passa "como se os corpos tivessem uma força para continuar seu movimento ou exercer uma força para preservar seu repouso", pois isso "não significa atribuir qualquer coisa real aos corpos que estivesse abaixo ou acima do fato que Deus conserva seu movimento e, por conseguinte, eles obedecem a uma lei de conservação do movimento" (Garber, 1992, p. 298).

Mas que o mesmo possa ser dito com relação a Deus, isto é, que "força para persistir e força de resistência" sejam somente "formas de falar sobre como Deus age" (Garber, 1992, p. 298), não me parece de modo algum aceitável, se estivermos de fato convencidos de que devemos compreender o meio pelo qual o movimento é conservado em cada um dos corpos e, em geral, em todo o universo material mediante o modelo da impulsão divina, a ponto de que isso ocorra de modo absolutamente à parte da ação divina causalmente responsável pela criação contínua. Se a ação conservadora de Deus deve ser esvaziada de qualquer compromisso com princípios ativos reais supervenientes à matéria, a suposição de uma impulsão divina criaria mais obstáculos do que facilidade para a consecução desse desiderato. Ao contrário, identificar a criação contínua com a ação de conservação do movimento não parece colocar os mesmos obstáculos, com a vantagem de promover uma redução da noção problemática de força e princípios ativos à noção de criação – acrescida da indistinção real entre criação e manutenção na existência – , cuja clareza e distinção os contemporâneos de Descartes estariam incondicionalmente dispostos a admitir.

Em suma, creio que a interpretação sustentada, entre outros, por Guéroult e Hatfield, chamada "cinemática" e amplamente rejeitada por Garber, seja mais adequada para satisfazer aquilo que parece ser uma preocupação central desse último comentador, qual seja, "compreender como o discurso explícito de Descartes sobre forças nos Princípios pode ser reconciliado com a sua ontologia mecanicista radical" (1992, p. 298). Se quisermos nos mover nesse terreno movediço da metafísica cartesiana, é indispensável considerar o pensamento acerca dessa mesma questão vigente à época de Descartes, pensamento do qual ele pretendeu afastar-se diametralmente. A esse propósito, a interpretação de Garber tem méritos inequívocos, identificando com uma precisão incomum a presumida revisão operada por Descartes na imagem tradicional dos mecanismos causais responsáveis pelos movimentos naturais:

Descartes substitui a multiplicidade de substâncias aristotélicas, cada qual dotada da sua própria forma e de comportamentos característicos distintos, por uma espécie de corpo que preenche todo o universo e comporta-se de acordo com as mesmas leis por toda parte (cf. Pr, II, 23). Mas, na ausência das formas substanciais escolásticas, Descartes deve encontrar algum modo de explicar o comportamento característico da substância material, as leis do movimento. E é aqui que Deus entra, na qualidade de 'causa primária e universal [do movimento], que produz geralmente todos os movimentos que existem no mundo' (Pr, II, 36). Deus é a causa do movimento, aquilo que assume o lugar das formas escolásticas banidas por Descartes do mundo inanimado dos seres não-humanos (Garber, 2001, p. 198; ver também 1992, p. 305).

Não por acaso, portanto, é importante para Garber esvaziar de todo compromisso ontológico o discurso de Descartes sobre as forças dos corpos para se moverem ou para resistirem ao movimento e ao repouso. Mas, para rejeitar as formas substanciais escolásticas e o que nelas há de metafisicamente problemático – a saber, o fato de fazer sobrevir à matéria algo que pertence exclusivamente a um ser pensante ou infinito, isto é, o pensamento e a vontade – , não basta apenas substituir a agência causal das formas substanciais pela agência causal divina. Descartes parece propor algo ainda mais radical: a própria noção de causa precisa ser revista. Nenhuma ação causal que não possa ser traduzida nos termos da ação criadora de Deus deveria ser admitida no interior da metafísica cartesiana do movimento. É justamente essa forma radical de encarar a precariedade de todo e qualquer discurso sobre forças que torna indispensável a intervenção divina no mundo físico, não para suprir as "impulsões" que a matéria abandonada à sua própria natureza seria incapaz de produzir, mas para torná-las meras "formas de falar" porquanto a permanência e a mudança dos seus modos consistem numa função exclusiva da recriação contínua e da vontade imutável de Deus. Afinal, era precisamente isto que Descartes julgara ser equivocado na definição comum de movimento: invocar a ação quando nada dessa espécie pode ser claro e distinto nem mesmo quando atribuída a Deus, cujo modo próprio de agir – justamente aquele que não poderia pertencer univocamente também às suas criaturas – consiste em criar (e fazê-lo continuamente) a matéria e seus modos.11 11 Uma outra preocupação de Garber (ver, por exemplo, 2001, caps. 9 e 10) é diferenciar a doutrina cartesiana da causação divina da doutrina ocasionalista, articulada por Malebranche, Cordemoy, Geulincx e de la Forge. Para esses primeiros seguidores de Descartes, dever-se-ia admitir Deus como sendo a única causa verdadeira, pois seria incompreensível que seres finitos pudessem produzir qualquer efeito independentemente da mediação eficiente de um ser onipotente e infinitamente perfeito. Para uma interpretação menos favorável à diferenciação enfatizada por Garber, ver Haltield (1979, p. 136-7) e Nadler (1998, p. 540-1).

EPÍLOGO: o conatus E A IDENTIDADE ENTRE CRIAÇÃO E CONSERVAÇÃO

Se a interpretação sugerida acima estiver correta, então não restaria à metafísica cartesiana do mundo material nenhum sentido pelo qual propriedades dinâmicas pudessem ser predicadas da matéria, nenhum sentido pelo qual a manutenção dos seus modos ou as mudanças a que invariavelmente estão sujeitos pudessem ser uma função de propriedades inerentes ou mesmo supervenientes à própria natureza material. Toda e qualquer referência a 'forças' deveria ser compreendida como mera "forma de falar", visto que nada dessa espécie poderia se tornar inteligível mediante apenas as exclusivas propriedades geométricas da matéria. Enfim, Descartes teria sido razoavelmente coerente com o seu programa mecanicista, remetendo toda manifestação de atividade na natureza a um único princípio dinâmico-metafísico, que outra coisa não seria que a própria potência criadora de Deus e a imutabilidade da sua vontade.

Todavia, a conclusão de que as forças não estão em lugar algum – o que significa dizer que elas não possuem nenhum estatuto ontológico na metafísica cartesiana da matéria – tampouco parece ser consensual entre os comentadores, mesmo entre aqueles que adotam a chamada "interpretação cinemática". Esse é o caso particular de Guéroult, cuja preocupação é situar as forças entre as categorias metafísicas cartesianas, que, no essencial, repete o esquema aristotélico tradicional composto de substância e seus modos ou atributos. Como obviamente as forças não tomam parte na substância das coisas – pois isso seria reincidir nos equívocos da doutrina escolástica das formas substanciais – , Guéroult compreende que elas deveriam ao menos ser consideradas modos da substância material, ainda que assim o sejam "apenas em aparência e por extensão", na medida em que Descartes admite que "são aquilo por que existem" os modos próprios da matéria (movimento e repouso) (1954, p. 5). A conseqüência é que haveria enfim um sentido na metafísica cartesiana pelo qual forças pudessem ser tomadas como "potências que fazem existir a coisa com tal modo [movimento e repouso]", potências essas que deveriam ser consideradas como "imanentes à 'natureza' ou à matéria" (Guéroult, 1954, p. 4). Pensando desse modo, seria então possível sustentar que, "na realidade, força, duração e existência são uma única e mesma coisa (o conatus) sob três aspectos diferentes e as três noções se identificam na ação instantânea pela qual a substância existe, dura, isto é, possui a força que a insere na existência e na duração" (Guéroult, 1954, p. 3).

Ainda que as seções anteriores deste artigo sejam destinadas, em grande medida, a expressar minha ampla concordância com a identidade apontada por Guéroult entre os aspectos causais da força, existência e duração na metafísica cartesiana do mundo material, não creio na sustentabilidade da sua sugestão de que a noção de conatus possa prestar-se à função de instância unificadora das três noções anteriores – sugestão essa, é importante que se diga, apresentada sem maiores pretensões ou firme convicção. As referências de Descartes ao conatus nos Princípios são muito raramente levadas em consideração nos comentários acerca da sua doutrina causal do movimento, apesar de ocuparem um lugar destacado nas diferentes apreciações que, por exemplo, Hobbes, Huygens, Leibniz e Newton fizeram acerca dessa doutrina.12 12 Para a posição de Newton, ver, por exemplo, Newton (1979) e Barra (1994, p. 35-42). A interpretação de Guéroult tem o inegável mérito de promover a inserção do conatus cartesiano às suas análises interpretativas, ainda que de modo apenas alusivo e sem qualquer detalhamento. Pretendo, nesta última seção, aprofundar a sugestão de Guéroult, procurando identificar até que ponto ela poderia corroborar seus interesses mais gerais de acomodar as forças na ontologia cartesiana do mundo material.

Na Terceira Parte dos Princípios, Descartes introduz a noção de que os corpos tendem a se afastar dos centros em torno dos quais são movidos circularmente, considerando-a um corolário da segunda lei da natureza, que estabelece a determinação retilínea de todos os movimentos realizados sem nenhum impedimento externo. No Art. 55, Descartes afirma: "Pois, esta é uma lei da natureza, que todos os corpos que se movem numa órbita, na medida em que dependem de si mesmos (quantum in se est), afastam-se do centro de seus movimentos". Descartes definiu tal disposição dos corpos que giram como sendo um conatus recedendi a centro, que surge nos corpos em virtude do movimento ao qual foram submetidos e produz seu efeito somente se o corpo não for impedido de mover-se em linha reta por alguma outra causa.13 13 Pode ser entendido por conatus o mesmo que se entende tanto por 'tendência' quanto por 'esforço', visto que Descartes parece tomar esses últimos termos como sendo sinônimos nas suas formas verbais: "podemos dizer (...) que o corpo tende ( tendere) ou se esforça ( conari) para ir (...)" (1982, p. 108). Na versão francesa dos Princípios, conatus é traduzido mais freqüentemente por 'effort' (cf. 1989, p. 131-3). Esse conatus é identificado na análise das causas do movimento que a pedra A [figura 1] descreve em torno do centro E ao ser conduzida pela funda EA. Segundo Descartes, se consideramos todas as causas desse movimento, diremos que a pedra A tende a ir do ponto A para o ponto B sobre a circunferência ABF. Mas, se

consideramos (respiciamus) somente a força do próprio movimento da pedra, então diremos que a pedra, quando se encontra no ponto A, tende (tendere) para C, conforme a lei do movimento apresentada acima (...). Pois se a pedra se desprendesse da funda no momento em que, vindo de L, atinge o ponto A, então prosseguiria de A para C e não para B; por mais que a funda impeça esse efeito, ela não impede o conatus.


E, finalmente, se consideramos apenas uma parte dessa "força do movimento" (vis motus) da pedra, a saber, aquela cujo efeito é impedido pela funda, então "diremos que essa pedra, quando se encontra no ponto A, tende (tendere) tão-somente para D ou se esforça (conari) para afastar-se do centro E segundo a linha reta EAD" (Pr, III, 55).

Por meio dessa análise, Descartes pretende identificar o conatus recedendi a centro como uma parte dos efeitos da "força do movimento" da pedra, cuja totalidade seria aquela enunciada na segunda lei da natureza, isto é, o movimento retilíneo através da linha ACG. Mas, embora Descartes analise separadamente essas duas tendências "centrífugas", uma na direção da tangente e outra na direção do raio da circunferência, ele não considera que elas existam separadamente, visto que a segunda é apenas uma "parte" da primeira e, conseqüentemente, esta é a condição de possibilidade da existência daquela.14 14 A parte restante da tendência tangencial que não é impedida pela funda, embora Descartes não forneça este esclarecimento, podemos entendê-la como sendo aquela parte que de fato participa na manutenção do movimento circular e que, por isso mesmo, não será impedida pela funda (cf. Westfall, 1971, p. 94, nota). Isso implica que Descartes pudesse conceber o movimento circular como composto também por uma tendência tangencial; algo que ele não afirma explicitamente, mas que é bastante consistente com suas idéias sobre a composição dos movimentos (ver Pr, II, 32).

À primeira vista, tudo indica que a doutrina do conatus recendendi a centro contrasta radicalmente com os pressupostos do programa mecanicista cartesiano. Além de reprovar toda tentativa de identificar na natureza material qualquer princípio de atividade imanente aos corpos e (secundariamente) irredutível aos modos da extensão geometricamente definida, Descartes reprovara sobretudo as tentativas de associá-los a qualidades exclusivas da alma humana, como o pensamento e o livre arbítrio (cf. Pr, IV, 187). A simples atribuição à substância material de uma qualidade que se denomina "esforço" ou "tendência" parece incorporar ao seu conceito propriedades eminentemente anímicas. Ademais, sob a ação do conatus, os corpos parecem incorporar aos seus movimentos uma certa orientação a fins, como se fossem o resultado de desígnios conscientes e intencionais. Correlativamente, Descartes havia proscrito qualquer tentativa de examinar as causas finais, restringindo inteiramente a investigação sobre as coisas naturais ao modo como "chegaram a ser produzidas" (Pr, I, 28) – uma recusa explícita das explicações teleológicas ou das "causas finais" da tradição aristotélica e uma defesa intransigente da exclusividade da explicação mecanicista ou das "causas eficientes" para os eventos naturais.

Tudo leva a crer, portanto, que a sugestão de Guéroult tem um significativo fundo de verdade. Ao postular a existência de um tal conatus, Descartes estaria finalmente concedendo que algum tipo de potência motora pudesse ser admitido como "inerente à 'natureza' ou à matéria" e, assim, incorporado entre as qualidade (ou modos) que a matéria realmente "possui". Todavia, talvez ciente dos possíveis mal-entendidos que a sua postulação de um conatus centrífugo pudesse acarretar, ele próprio empenhou-se em desfazê-los. Descartes adverte que quando afirma que as partes da matéria

realizam algum esforço ou, melhor, que elas possuem uma inclinação a se afastarem dos centros em torno dos quais elas giram, não pretendo que lhes seja atribuído nenhum pensamento do qual procede essa inclinação, mas apenas que elas são de tal forma situadas e dispostas a se moverem que se afastariam desse modo, se não fossem retidas por nenhuma outra causa (Pr, III, 56).

Portanto, além do fato de que o conatus seja apenas o resultado de um processo de idealização (respicere) que o subtrai dentre os demais efeitos reais do movimento circular, Descartes exclui qualquer tentativa de identificá-lo a qualidades exclusivas da mente humana, como é o caso do pensamento e do livre arbítrio. Positivamente, essa "inclinação para afastar-se do centro" é uma mera determinação extrínseca da matéria (assim como o próprio movimento)15 15 Isso significa dizer que tanto o conatus quanto o movimento são propriedades relacionais ou disposicionais da matéria. Mas, diferentemente do movimento, o conatus jamais poderia ser expresso matematicamente pela fórmula mv, pois virtualmente não haveria nenhum movimento que pudesse ser realizado sob a sua exclusiva influência, isto é, a pedra A jamais se moveria, ceteris paribus, na direção de D. Eis uma razão adicional para Descartes discordar da alternativa proposta por Hobbes para a sua caracterização do conatus na Dióptrica (1637). A alternativa de Hobbes consiste em admiti-lo como "uma determinação de um movimento atual", pressupondo que "os corpos possuem em si certos movimentos imperceptíveis" e, assim, o conatus não seria outra coisa "senão a direção do movimento imperceptível de suas partes internas" (Limongi, 2000, p. 419). e, desse modo, ela não lhe pertence essencialmente, mas apenas transitoriamente, em virtude da sua eventual situação ou disposição.

Tais características são suficientes para excluir a possibilidade de que o conatus viesse a suprir o lugar antes ocupado pelas formas substanciais escolásticas na ontologia do mundo material. O mesmo caráter transitório, relacional ou disposicional do conatus não pode ser estendido à existência e à duração, cuja atribuição a uma determinada substância não pressupõe formalmente qualquer disposição particular dos demais seres e tampouco se distinguem dos demais modos da substância por uma mera distinção de razão (idealização). Assim, não parece haver nenhum sentido em que o conatus possa servir como uma noção unificadora das demais noções de força, existência ou duração. Para assegurar que entre essas últimas deve ser mantida uma determinada identidade, a metafísica cartesiana da matéria e do movimento dispõe apenas da potência criadora de Deus e nada mais.

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  • 1
    Daqui em diante referido apenas como
    Princípios. As citações dessa obra serão indicadas pela abreviação 'Pr', seguida pelo número da parte em algarismos romanos e pelo número do artigo em algarismos arábicos. Por exemplo, 'Pr, II, 45'.
  • 2
    Ver, por exemplo, Hatfield (1979, p. 140) e Garber (1992, p. 293).
  • 3
    Para a tradição escolástica, movimento significa mudança num sentido amplo, que compreende a passagem de um atributo, acidente ou forma (
    terminus a quo) a outro (
    terminus ad quem). Desse modo, além do movimento local ou com respeito ao lugar, haveria um movimento com respeito à quantidade (por exemplo, aumento ou diminuição do tamanho), um movimento com respeito à qualidade (mudanças do quente para o frio, do branco para o preto etc.) e, finalmente, um movimento com respeito à substância (o abandono de uma forma substancial e a aquisição de uma outra, resultando num novo tipo de substância ou ser) (Cf. Garber, 1992, p. 194).
  • 4
    Na edição em latim, esse último período diz "a não ser por causas externas" (
    nisi à causis externis) (1982, p. 62).
  • 5
    Como propõe, por exemplo, Koyré (1968, p. 100).
  • 6
    Com base nessa passagem dos
    Princípios, Hatfield sugere que "deveríamos exprimir o argumento de Descartes, grosseiramente, dizendo que a única trajetória assinalável ao movimento de um objeto num tempo infinitamente pequeno e, portanto, ao longo de uma trajetória infinitamente pequena é uma linha reta" (1979, p. 123, nota). Mas a interpretação de Hatfield parece depender de que se possa atribuir irrestritamente a Descartes a tese da descontinuidade e da independência das partes do tempo. Para uma apresentação do aspecto problemático desse pressuposto, ver a próxima nota.
  • 7
    A forma como é aqui apresentada por Descartes a identidade real entre criação e conservação sugere que ela surja como uma conseqüência da descontinuidade e independência das partes do tempo, aludida no parágrafo anterior ao citado acima. Mas o que precisamente Descartes compreende por "partes do tempo", somente instantes desprovidos de duração ou também momentos com uma duração qualquer, considerados provisoriamente como indivisíveis? A resposta a essa questão, assim como ocorre com a questão que discutirei a seguir, tem sido objeto de acentuada controvérsia entre os comentadores. (Para um balanço das duas principais posições antagônicas, ver Garber, 1992, p. 266-73, 2001, p. 191-4.) Para os meus objetivos neste artigo, não será necessário aprofundar esse ponto. Apesar de em muitas passagens acompanhar as posições interpretativas daqueles que sustentam, nas palavras de Garber, o "atomismo temporal" de Descartes (sobretudo, Guéroult e Hatfield), não procurarei estabelecê-lo como premissa para a interpretação de que Deus causa o movimento recriando os corpos em diferentes posições em diferentes momentos. Como sugere Garber, procurarei examinar a maneira como, para Descartes, Deus causa o movimento "enfrentando a questão diretamente" (2001, p. 194).
  • 8
    A passagem relevante dessa correspondência a More (AT V 347;
    apud Garber, 1992, p. 277, 2001, p. 200) é a seguinte: "Embora eu não acredite que qualquer modo de ação pertença univocamente a Deus e a suas criaturas, confesso ser incapaz de encontrar qualquer idéia em minha mente que represente o modo pelo qual Deus ou um anjo move a matéria que seja diferente da idéia que me apresenta o modo pelo qual estou consciente de que posso mover meu próprio corpo mediante o meu pensamento".
  • 9
    O ponto em discussão entre More e Descartes era precisamente a natureza da ação divina tomada como fonte exclusiva de atividade no universo material. Em princípio, More tenderia a concordar com Descartes sobre dois dos pontos centrais da sua metafísica da natureza material, quais sejam, a matéria em si mesma é inativa e a ação divina constitui o único agente causal que gera e conserva toda atividade existente no universo. Talvez a principal fonte de divergência entre os dois filósofos seja a descrição de um meio possível pelo qual Deus pudesse distribuir a atividade que falta à matéria. Para More, a radical distinção promovida por Descartes entre espírito e matéria, sobretudo sua recusa em atribuir extensão às substâncias espirituais, acabaria por excluir totalmente a eficácia divina sobre o mundo, se não assegurasse também uma ligação imanente entre Deus e o mundo físico. Postulando uma forma de imanência divina no mundo material, um "espírito da natureza" (
    anima mundi), More acredita ter encontrado uma solução mais convincente para o problema em discussão (cf. Boylan, 1980, p. 405).
  • 10
    A noção de quantidade de movimento na física de Descartes não pode ser inteiramente transcrita como o produto da massa do corpo pela velocidade de seu movimento (
    mv). Em primeiro lugar, Descartes não reconhece um conceito de massa como aquele que Newton emprega a partir dos
    Princípios Matemáticos da Filosofia Natural (1687), o qual envolve a noção de densidade que, por sua vez, pressupõe a existência de vazios nos interstícios da matéria. Na física cartesiana, espaços vazios de matéria são inadmissíveis. Sendo assim, a maneira mais adequada de descrever a medida que juntamente com a velocidade compõe a quantidade de movimento de um corpo para Descartes seria o tamanho ou o volume geometricamente definido, isto é, a quantidade de espaço que a matéria do corpo preenche totalmente (cf. Pr, II, 19). Em segundo lugar, a velocidade para Descartes é uma quantidade apenas escalar e não vetorial. Ele, no entanto, mostra estar ciente do aspecto direcional do movimento de um modo muito peculiar, mas de qualquer forma não o considera um componente da velocidade (cf. Blackwell, 1966, p. 225, nota). O aspecto direcional do movimento deve ser incorporado àquilo que Descartes chama de
    determinação do movimento, cujo sentido exato ele nunca se preocupa em esclarecer, mas que talvez possa ser compreendido como o "modo direcional da força motora" e, dessa forma, ser associado àquilo que atualmente chamamos de quantidade vetorial (Gabbey, 1998, p. 664).
  • 11
    Uma outra preocupação de Garber (ver, por exemplo, 2001, caps. 9 e 10) é diferenciar a doutrina cartesiana da causação divina da doutrina ocasionalista, articulada por Malebranche, Cordemoy, Geulincx e de la Forge. Para esses primeiros seguidores de Descartes, dever-se-ia admitir Deus como sendo a única causa verdadeira, pois seria incompreensível que seres finitos pudessem produzir qualquer efeito independentemente da mediação eficiente de um ser onipotente e infinitamente perfeito. Para uma interpretação menos favorável à diferenciação enfatizada por Garber, ver Haltield (1979, p. 136-7) e Nadler (1998, p. 540-1).
  • 12
    Para a posição de Newton, ver, por exemplo, Newton (1979) e Barra (1994, p. 35-42).
  • 13
    Pode ser entendido por
    conatus o mesmo que se entende tanto por 'tendência' quanto por 'esforço', visto que Descartes parece tomar esses últimos termos como sendo sinônimos nas suas formas verbais: "podemos dizer (...) que o corpo tende (
    tendere) ou se esforça (
    conari) para ir (...)" (1982, p. 108). Na versão francesa dos
    Princípios,
    conatus é traduzido mais freqüentemente por
    'effort' (cf. 1989, p. 131-3).
  • 14
    A parte restante da tendência tangencial que não é impedida pela funda, embora Descartes não forneça este esclarecimento, podemos entendê-la como sendo aquela parte que de fato participa na manutenção do movimento circular e que, por isso mesmo, não será impedida pela funda (cf. Westfall, 1971, p. 94, nota). Isso implica que Descartes pudesse conceber o movimento circular como composto também por uma tendência tangencial; algo que ele não afirma explicitamente, mas que é bastante consistente com suas idéias sobre a composição dos movimentos (ver Pr, II, 32).
  • 15
    Isso significa dizer que tanto o
    conatus quanto o movimento são propriedades
    relacionais ou
    disposicionais da matéria. Mas, diferentemente do movimento, o
    conatus jamais poderia ser expresso matematicamente pela fórmula
    mv, pois virtualmente não haveria nenhum movimento que pudesse ser realizado sob a sua exclusiva influência, isto é, a pedra A jamais se moveria,
    ceteris paribus, na direção de D. Eis uma razão adicional para Descartes discordar da alternativa proposta por Hobbes para a sua caracterização do
    conatus na
    Dióptrica (1637). A alternativa de Hobbes consiste em admiti-lo como "uma determinação de um movimento atual", pressupondo que "os corpos possuem em si certos movimentos imperceptíveis" e, assim, o
    conatus não seria outra coisa "senão a direção do movimento imperceptível de suas partes internas" (Limongi, 2000, p. 419).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      Set 2003
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