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A visão "ortodoxa" de teorias: comentários para defesa assim como para crítica

The "orthodox" view of theories: remarks in defense as well as critique

DOCUMENTOS CIENTÍFICOS

A visão "ortodoxa" de teorias: comentários para defesa assim como para crítica

The "orthodox" view of theories: remarks in defense as well as critique

Herbert Feigl

[§1] O propósito dos comentários que se seguem é apresentar, em linhas gerais, algumas das mais importantes características das teorias científicas. Discutirei a visão "padrão" ou "ortodoxa", principalmente para montar um alvo para críticas, algumas das quais eu esboçarei brevemente como forma de antecipar o debate. A descrição padrão da estrutura de teorias científicas foi fornecida de forma bastante explícita por Norman Robert Campbell (1920) e, também, de maneira independente, em um artigo pouco conhecido de Rudolf Carnap (1923). Uma grande parte da volumosa literatura em filosofia da ciência dos empiristas lógicos e dos pensadores próximos a eles contém mesmo com muitas variações, desenvolvimentos, modificações e diversidade terminológica análises essencialmente semelhantes da estrutura lógica e dos fundamentos empíricos das teorias da física, biologia, psicologia e algumas das ciências sociais. Até certo ponto antecipando-se a Campbell e Carnap, Moritz Schlick [1918], em seu memorável Allgemeine Erkenntnislehre, defendeu a doutrina da "definição implícita". Nisto ele foi influenciado pela axiomatização da geometria feita por David Hilbert, assim como pelas concepções de Henri Poincaré e de Albert Einstein a respeito da física teórica e do papel da geometria na física. Esses temas foram então desenvolvidos de maneira mais completa e precisa nos trabalhos de Hans Reichenbach, Carnap, Carl G. Hempel, R.B. Braithwaite, Ernest Nagel e muitos outros lógicos e metodólogos da ciência.

[§2] Para compreender o objetivo dessa importante abordagem à filosofia da ciência, é essencial distingui-la dos estudos históricos, sociológicos ou psicológicos de teorias científicas. Já que muitos lamentáveis mal-entendidos surgiram desse assunto, tentarei defender a legitimidade e a fecundidade desta distinção antes de discutir quais são mesmo na minha própria opinião os pontos mais problemáticos na descrição lógico-analítica "ortodoxa".

[§3] Foi Hans Reichenbach (1938) quem cunhou os termos para a importante distinção entre "análises no contexto da descoberta" e "análises no contexto da justificação". Mesmo que esta terminologia largamente difundida não seja das mais felizes, sua intenção é clara. Uma coisa é retraçar as origens históricas, a gênese e o desenvolvimento psicológicos, as condições sócio-político-econômicas para a aceitação ou rejeição de teorias científicas; outra coisa bastante distinta é fornecer uma reconstrução lógica das estruturas conceituais e dos testes das teorias científicas.

[§4] Confesso que estou assombrado pela quantidade de mal-entendidos parecem quase propositais e pela intensidade da oposição enfrentadas por esta distinção nos últimos anos. A distinção e, relacionada a ela, a idéia de uma reconstrução racional são bastante simples, e são tão antigas quanto Aristóteles e Euclides. Na descrição de Aristóteles da lógica dedutiva, principalmente em sua silogística, temos uma tentativa pioneira de tornar explícitas as regras de validade da inferência necessária. Para este propósito, era indispensável para Aristóteles desprezar fatores psicológicos, como a plausibilidade, e formular explicitamente algumas das formas das proposições envolvidas no raciocínio dedutivo. Isso também exigia a transformação das locuções da linguagem ordinária em expressões formais padrão. Como exemplo extremamente simples, lembremos que uma sentença como "Só adultos são admitidos" precisa ser transformada em "Todos os que são admitidos são adultos". Só depois que as formas padrão substituírem as expressões do discurso comum é que a validade das inferências dedutivas pode ser conferida "automaticamente" por exemplo, hoje em dia, com computadores eletrônicos.

[§5] Além disso, Euclides já tinha uma noção bastante clara da diferença entre verdades lógicas ou "formais" e verdades extralógicas. Isto aparece explicitamente em sua distinção entre os axiomas e os postulados da geometria. Do nosso ponto de vista moderno, ainda é imperativo distinguir entre a correção (validade) de uma derivação seja na demonstração de um teorema na matemática pura ou numa demonstração correspondente na matemática aplicada (como a física matemática) e a adequação empírica (confirmação ou corroboração) de uma teoria científica. Em acordo próximo com o paradigma da geometria de Euclides, teorias nas ciências factuais têm sido vistas, já faz muito tempo, como sistemas hipotético-dedutivos. Isto quer dizer que teorias são conjuntos de suposições que contêm termos "primitivos", ou seja, não definidos. A mais importante destas suposições são proposições que em sua forma lógica aparecem como leis, isto é, são universais. E, assim como na geometria, são necessárias definições para derivar teoremas de um caráter mais específico. Tais definições podem ser de uma variedade de tipos: explícito, contextual, coordenativo etc. Elas são indispensáveis para a derivação de leis empíricas a partir das suposições mais gerais e usualmente mais abstratas (os postulados). Os conceitos "primitivos" servem como definientia dos conceitos "derivados". Os primitivos, em si mesmos, permanecem indefinidos (por definição explícita). Pode-se considerar que eles são definidos apenas "implicitamente" pelo conjunto total de axiomas (postulados). Mas é importante perceber que uma definição implícita, entendida desta maneira, tem caráter puramente sintático. Conceitos definidos desta maneira são destituídos de conteúdo empírico. Pode-se até relutar de falar de "conceitos" aqui, já que, estritamente falando, até o significado "lógico" (conforme entendido por Frege e Russell) está ausente. Qualquer sistema de postulados, tomado (num primeiro momento) como empiricamente não-interpretado, estabelece meramente uma rede de símbolos. Os símbolos devem ser manipulados de acordo com regras previamente atribuídas de formação e transformação, e seus "significados" se é que se pode falar em significados aqui são puramente formais. Do ponto de vista da lógica clássica, definições implícitas são circulares. Mas como C.I. Lewis certa vez colocou, de maneira elegante, um círculo é menos vicioso quanto maior ele for. Tomo isso como significando que um conjunto "frutífero" ou "fértil" de postulados é um a partir do qual um grande (possivelmente ilimitado) número de teoremas pode ser derivado (de maneira não trivial). Esta característica desejável é devida claramente à maneira pela qual os termos primitivos são ligados uns aos outros na rede formada pelos postulados, e também à aptidão das definições dos termos derivados (definidos).

[§6] Nas elucidações pitorescas mas esclarecedoras usadas, por exemplo por Schlick, Carnap, Hempel e Margenau, o "cálculo puro" ou seja, o sistema de postulados não-interpretados "flutua" ou "paira" livremente acima do plano dos fatos empíricos. É somente através dos "elos de ligação", isto é, das "definições coordenativas" (termos empregados por Reichenbach, grosso modo sinônimos das "regras de correspondência" de Margenau e Carnap, ou das "correlações epistêmicas" de Northrop, e apenas relacionados mas não estritamente idênticos às "definições operacionais" de Bridgman), que o sistema de postulados adquire significado empírico. Um diagrama simples (de fato bastante simplificado!) ilustrará a situação lógica. Como o diagrama indica, os conceitos teóricos básicos (primitivos) são definidos implicitamente pelos postulados nos quais ocorrem. Estes primitivos (), ou, de maneira mais usual, os conceitos derivados () definidos explicitamente a partir deles, são então ligados ("coordenados") por regras de correspondência a conceitos () que referem-se a itens da observação por exemplo, nas ciências físicas, grandezas em geral mensuráveis mais ou menos diretamente, como massa, temperatura e intensidade luminosa. Estes conceitos empíricos são, por seu turno, "definidos operacionalmente", ou seja, através da especificação das regras de observação, medição, experimentação ou planejamento experimental que determinam e delimitam sua aplicabilidade e aplicação.

[§7] Bridgman distinguiu entre operações "físicas" e "mentais". O que ele tinha em mente é expresso talvez de maneira mais clara, mas também mais desajeitada, através da distinção entre procedimentos observacionais (incluindo mensuracionais e experimentais) e lógico-matemáticos (por exemplo, computacionais). Concebidos de maneira suficientemente ampla, estes dois tipos de "operações" cobrem toda variedade de especificações de significado de qualquer tipo de conceito científico. Mas os exemplos de Bridgman indicam que ele focalizou sua atenção principalmente nos conceitos que estão razoavelmente próximos do "plano de observação". Um caso muito elementar é o conceito de velocidade (média) de um corpo em movimento, através de uma certa distância espacial e para um correspondente intervalo de tempo: determine, com uma régua ou fita métrica etc., a distância e, com o auxílio de um relógio ou outro dispositivo cronométrico, a duração em questão estes são exemplos das operações "físicas" de Bridgman. Divida então o resultado numérico do primeiro pelo resultado numérico do segundo (operação "mental" de divisão aritmética), e você terá chegado em seu resultado: a velocidade (média).

[§8] Claramente, conceitos altamente teóricos como, por exemplo, o "spin" na mecânica quântica, envolvem muito mais operações complexas ­ de ambos os tipos. Assim, acho recomendável que se fale de definições operacionais apenas para conceitos "empíricos". O significado de conceitos teóricos só pode ser especificado por sua posição no sistema teórico inteiro, envolvendo os postulados, definições, regras de correspondência e, finalmente, as definições operacionais. Estas últimas estão indicadas pelas pequenas "raízes" que "ancoram" os conceitos empíricos no "solo" da experiência, isto é, nas observações mensuro-experimentais.

[§9] Tendo em vista a análise lógica "ortodoxa" de teorias científicas, geralmente sustenta-se que os conceitos ("primitivos") nos postulados, assim como os próprios postulados, não podem receber mais do que uma interpretação parcial. Isto pressupõe uma distinção nítida entre linguagem de observação (linguagem observacional; L.O.) e a linguagem de teorias (linguagem teórica; L.T.). Afirma-se que a L.O. é compreendida de maneira completa. De fato, na visão de Carnap, por exemplo, a L.O. não é carregada de teoria [theory-laden] ou "contaminada" com suposições ou pressuposições teóricas. Numa fase mais inicial do positivismo, por exemplo em Carnap (1928), algo como uma linguagem de dados sensoriais (na verdade uma linguagem da experiência imediata total momentânea) foi proposta como campo de prova para todas as proposições interpretativas, inferenciais ou teóricas. Tratava-se claramente da doutrina humiana de "impressões" atualizada com a ajuda da lógica moderna. Carnap, muito provavelmente influenciado pelas críticas de Otto Neurath e Karl Popper, propôs posteriormente que uma L.O. intersubjetiva "fisicalista" seria preferível a uma L.O. essencialmente subjetivista (metodologicamente solipsista). Assim, leituras de ponteiro e outros "dados" semelhantemente objetivos ou intersubjetivamente concordantes serviriam como uma base observacional. Em contraste nítido com tais termos referentes a qualidades e relações intersubjetivamente observáveis estão os conceitos teóricos. Termos como "campo eletromagnético", "nêutron", "neutrino" e "spin" são compreendidos apenas parcialmente, isto é, com o auxílio de postulados, definições explícitas, regras de correspondência e definições operacionais. Sobre a descrição pitoresca do nosso diagrama, falou-se que há uma "infiltração ascendente" [upward seepage] de significado dos termos observacionais para os termos teóricos.

[§10] Essa é, brevemente, a descrição "ortodoxa" de teorias nas ciências factuais. Ela forneceu as linhas mestres de numerosas axiomatizações das teorias empíricas. Vários ramos da física teórica (Reichenbach 1924), de biologia (Woodger 1939), especialmente da genética, da psicologia, especialmente da teoria do aprendizado (Hull et al. 1940), e mais recentemente a produção volumosa de P. Suppes e seus colaboradores da Stanford University numa ampla gama de assuntos todos fornecem exemplos das várias maneiras pelas quais essas reconstruções podem ser empreendidas. É um ponto de controvérsia a questão de quão frutíferas ou auxiliadoras são as axiomatizações para o trabalho criativo constante dos cientistas teóricos. Se desconsiderarmos as axiomatizações relativamente informais e "pela metade", que podem ser encontradas no trabalho dos grandes inovadores científicos, como Newton, Maxwell e Einstein, pode-se dizer que os lógicos da ciência trabalham principalmente olhando para trás, em retrospecto. Ou seja, eles analisam uma dada teoria com relação a sua estrutura lógica e sua base empírica, mas não adicionam nada ao conteúdo da teoria em questão. Parece-me até que este empreendimento modesto pode ser útil das seguintes formas. (1) Ele nos permite compreender uma dada teoria de maneira mais clara; isto é importante pelo menos nos procedimentos de ensino e aprendizado. (2) Ele fornece um instrumento mais preciso para avaliar a correção das derivações lógico-matemáticas, por um lado, e o grau de apoio evidencial (ou então de desconfirmação), por outro. (3) Já que nenhuma teoria frutífera e importante é "monolítica", mas consiste de um número de postulados logicamente independentes, uma reconstrução exata pode bem mostrar quais postulados repousam em quais evidências empíricas.

[§11] Deve-se dizer imediatamente que cada uma destas três asserções está hoje em dia em disputa. Com respeito ao ponto (1), algumas críticas se dirigem à visão da "interpretação parcial". Mantém-se que, em primeiro lugar, a diferença entre conceitos observacionais e teóricos não é tão nítida ou fundamental; em segundo lugar, com relação a isso, insiste-se que não há sentenças de observação que estejam livres de pressupostos teóricos. Feyerabend vai mais além: ele pensa que não existe base observacional neutra alguma, e que nenhuma é necessária para o teste de teorias. Ele sustenta que teorias são testadas entre si. Se isto fosse o caso o que eu não concedo , então até o empirismo mais liberal teria que ser abandonado em favor de uma forma de racionalismo que, para mim, é altamente questionável. Mas a reconstrução que Feyerabend faz da história das teorias científicas parece-me bastante extravagante!

[§12] Além disso, afirma-se que podemos entender teorias científicas de maneira bastante completa, e que assim a doutrina da "infiltração ascendente" está toda errada. Uma razão pela qual esta crítica pode parecer justificada é que a compreensão de conceitos e postulados teóricos repousa no uso de analogias e modelos analógicos. Eu admitiria imediatamente a enorme importância da concepção e inferência analógicas em assuntos heurísticos e didáticos. Mas é uma questão discutível se a concepção analógica de fato faz parte do conteúdo cognitivo de teorias.

[§13] Com respeito ao ponto (2), ou seja, à separação entre a avaliação da validade das derivações e a apreciação da adequação empírica de teorias, não vejo uma base muito boa para crítica. A rigor, é concebível que o uso de lógicas alternativas, como a polivalente, possa levantar algumas questões aqui. Mas desde o momento em que as análises da explicação científica foram dadas com base em postulados estatísticos, especialmente por C.G. Hempel (1962, 1965), sabemos como analisar [explicate] derivações não-dedutivas, que são de fato a regra, e não a exceção, na ciência recente. O que têm mais peso são as questões relativas à análise precisa da noção de suporte evidencial ou à "substanciação" de teorias por observações (implementada, quando factível, por medição, experimentação e planejamento estatístico). Mencionarei aqui apenas os pontos de vista radicalmente diferentes de Carnap e Popper. Carnap propôs um conceito "lógico" de probabilidade, ou de grau de confirmação de uma hipótese com base num dado corpo de evidência. Popper acredita que o crescimento do conhecimento científico ocorra por meio de testes severos das hipóteses propostas, e que aquelas hipóteses que sobrevivem a tais testes são "corroboradas". O "grau de corroboração" de Popper, ao contrário do "grau de confirmação" de Carnap, não é uma probabilidade; ela não se enquadra nos princípios do cálculo de probabilidades. A disputa entre estas duas escolas de pensamento ainda perdura, mas está razoavelmente claro que elas estão realmente reconstruindo conceitos diferentes, cada qual sendo promissora para um esclarecimento genuíno. Há também discordâncias básicas entre as várias escolas de pensamento sobre o método estatístico. Podemos mencionar as controvérsias entre "bayesianos" ou "subjetivistas" e os "objetivistas", por exemplo aqueles que adotam a abordagem de Neyman-Pearson. Mesmo um esboço dos diversos pontos importantes aqui nos desviaria demais.

[§14] Finalmente, com respeito ao ponto (3), encontramos as questões levantadas originalmente por Pierre Duhem e, mais recentemente, por W.V.O. Quine. Sua asserção é que teorias só podem ser testadas de maneira global, pois (usualmente) é apenas a conjunção de todos os postulados de uma teoria, a partir da qual uma conclusão é derivada, que é então ou verificada ou refutada pela observação. Esta afirmação não deve ser confundida com o tipo de asserção (bastante incrível) feito às vezes por Sigmund Freud ou seus discípulos, segundo o qual a teoria psicanalítica seria "monolítica", ou seja, deveria ser aceita ou rejeitada em sua totalidade. Duhem e Quine não negam que as teorias das ciências empíricas consistam de postulados logicamente independentes, ou que pelo menos elas possam ser reconstruídas desta maneira. O que eles negam é que os postulados possam ser testados de maneira independente. À primeira vista, isso parece plausível, pois ao se testar um postulado outros são pressupostos. O próprio uso de instrumentos de observação e experimentação envolve suposições sobre o funcionamento de seus instrumentos. Na reconstrução formal do teste de teorias há portanto sempre suposições, ou hipóteses auxiliares, ou partes do conhecimento geral de fundo, que são aceitas implicitamente, em um dado contexto. Um olhar mais detalhado para a história e procedimentos de pesquisa científicos reais, no entanto, indica que as hipóteses auxiliares etc., usualmente são "asseguradas" por confirmação (ou corroboração) prévia. E apesar, é claro, de até as hipóteses mais bem estabelecidas estarem em princípio abertas para revisão, seria tolo questioná-las quando algumas outras hipóteses mais "arriscadas" estiverem sob exame crítico. Assim, por exemplo, o astrônomo depende da óptica de seus telescópios, espectroscópios, câmeras, e assim por diante, para testar uma certa hipótese astrofísica ("fora de órbita" ["far-out"]). De maneira semelhante, o funcionamento dos instrumentos da física experimental atômica e subatômica (câmaras de nuvem ou de bolhas, contadores Geiger, aceleradores etc.) é aceito implicitamente no escrutínio de uma certa hipótese na mecânica quântica ou na teoria nuclear. Tudo isso é simplesmente o senso prático que nos leva a não duvidar de tudo com a mesma intensidade o tempo todo. Indo mais direto ao ponto: parece que a "revelação do culpado", isto é, o apontamento das suposições falsas, é um dos objetivos e também virtudes principais das técnicas experimentais ou estatísticas. Assim, a hipótese do éter estacionário foi refutada por Michelson-Morley e por experimentos análogos. Ela foi refutada definitivamente desde que os físicos teóricos não recorressem a hipóteses ad hoc especiais. A hipótese "balística" de Ritz, concernente à propagação da luz e da radiação eletromagnética em geral, foi refutada por observações de de Sitter de estrelas duplas. Ambos os elementos de evidência são necessários para uma justificação dos postulados de Einstein na teoria da relatividade restrita. O gênio de Einstein manifestou-se de maneira característica quando ele adivinhou corretamente, em 1905, o que de Sitter só demonstraria seis anos depois. E há algumas razões para acreditar que ele não usou explicitamente o resultado do experimento de Michelson-Morley. Mesmo assim, uma confirmação objetiva da teoria de Einstein não depende desses tipos de evidência.

[§15] Juntamente com a visão "ortodoxa" da estrutura de teorias científicas, há uma descrição dos níveis de explicação científica que, apesar de geralmente vir implicitamente, eu formulei de maneira explícita em um de meus primeiros artigos (Feigl 1949). Esta descrição foi chamada por Feyerabend, talvez com uma certa dose de sarcasmo, de visão do "bolo de camadas" de teorias. Ainda acho que esta descrição é esclarecedora, apesar de ela necessitar de algumas emendas. Como uma primeira aproximação grosseira, o relato em questão sustenta que o nível básico consiste de descrições; se elas são baseadas em observação ou em inferência não importa neste contexto. No primeiro nível colocamos o explanandum, isto é, o fato individual ou evento a ser explicado, ou melhor, a sua formulação lingüística ou matemática. Em termos lógicos, somente sentenças singulares ou conjunções destas devem aparecer neste nível. Imediatamente acima deste nível estão as leis empíricas (determinísticas ou estatísticas, conforme o caso). Podemos usar estas leis empíricas (ou experimentais) na explicação dos fatos ou eventos descritos no nível básico. Estas explicações normalmente nos parecem um tanto triviais, porque elas consistem simplesmente de uma inclusão do fato ou evento individual sob uma classe especificada na lei empírica. Por exemplo, o fato de um vidro funcionar como uma lente de aumento pode ser explicado pelas leis de Snell da refração dos raios luminosos. A lei de Snell especifica a relação entre o ângulo de incidência e o ângulo de refração em termos de uma função matemática simples. A lei de Snell, por seu turno, pode ser derivada a partir da teoria ondulatória da luz. Esta teoria já nos permite derivar não só as leis de refração mas também as de propagação, reflexão, difração, interferência e polarização. Um nível ainda mais alto de explicação é atingido nos princípios da eletrodinâmica (eletromagnetismo) de Maxwell. Aqui os fenômenos da luz são explicados como uma pequena subclasse das ondas eletromagnéticas, juntamente com ondas de rádio, infravermelho, ultravioleta, raios X, radiação gama etc. Mas para entender fenômenos ópticos como a reflexão e a refração, necessita-se de uma teoria da interação das ondas eletromagnéticas com vários tipos de substâncias materiais. Para conseguir isso, as teorias atômica e eletrônica foram introduzidas no final do século XIX. Mas para uma explicação mais completa e precisa, podemos ascender para o nível seguinte, e até aqui o nível "mais alto", qual seja, o das teorias da física quântica.

[§16] Esta análise da estrutura de níveis torna claro, parece-me, o progresso das leis empíricas para teorias de poder explicativo cada vez maior. Falando muito informalmente, é a razão [quociente] fato-postulado que representa o poder explicativo de teorias. O objetivo da explicação científica, através dos tempos, tem sido a unificação, ou seja, a compreensão de um número máximo de fatos e regularidades em termos de um mínimo de conceitos teóricos e suposições. O sucesso notável conseguido, especialmente nas teorias da física, química e, até certo ponto, biologia, tem encorajado a busca de um sistema unitário de premissas explicativas. Se este objetivo é atingível depende, é claro, tanto da natureza do mundo como da engenhosidade dos cientistas. Acho que era isto que Einstein tinha em mente com suas frases famosas: "Deus é sutil, mas Ele não é malicioso"; "a única coisa que é incompreensível é que o mundo seja compreensível". (Há dúvidas sérias sobre o significado de uma terceira frase bem conhecida de Einstein, "Deus não joga dados".) A convicção profunda de Einstein no determinismo básico no "chão duro" [rock bottom] da natureza é compartilhada por muitos poucos cientistas hoje em dia. Pode não haver um chão duro; além disso, não há critério algum que nos diga que chegamos ao chão duro (se de fato tivéssemos chegado!).

[§17] A plausibilidade do modelo de estrutura de níveis foi, porém, drasticamente afetada pelas críticas de Feyerabend. Ele apontou, há vários anos atrás, que praticamente não há exemplos que ilustrem uma dedutibilidade estrita do nível inferior a partir dos superiores, mesmo em teorias com postulados em forma de leis determinísticas. A razão simples é que em uma inferência dedutiva direta não pode haver conceitos na conclusão que não estejam presentes nas premissas e definições. A maioria de nós pensava que definições, ou então leis de ponte [bridge laws], cumpririam esta tarefa. De fato, porém, os níveis inferiores, que (historicamente) antecedem, em sua formulação, a construção dos níveis mais altos, são, via de regra, incisivamente revistos à luz da teoria de nível mais elevado. Este foi certamente o caso das relações entre a física newtoniana e einsteiniana, entre a eletrodinâmica maxwelliana e quântica, etc. Ao apresentar o esquema de níveis em meus cursos de filosofia da ciência, tenho falado, por mais de trinta anos, em "correções de cima" que se acrescentam às afirmações legiformes [lawlike assertions] de nível inferior. Deve-se também admitir que, enquanto algumas dessas correções, dentro de um certo âmbito de variáveis relevantes, são tão minúsculas a ponto de serem praticamente desprezíveis, elas se tornam bastante significativas e até indefinidamente grandes fora deste âmbito. Além disso, e isto é importante, os quadros conceituais das teorias de diferentes níveis são tão radicalmente diferentes que podem excluir quaisquer relações dedutivas. Somente se leis de ponte auxiliarem na definição dos conceitos do nível inferior é que as derivações podem se tornar dedutivas.

[§18] Em desacordo com Feyerabend, continuo convencido de que, no teste de uma nova teoria, a linguagem observacional relevante não deve ser contaminada por esta teoria; nem é necessário que haja uma teoria alternativa competidora. Se ele asseverar que, na maioria dos casos de teste empírico, há pressuposições de um caráter teórico penetrante, eu argumentaria que essas pressuposições penetrantes [pervasive] por exemplo, concernentes à permanência relativa dos instrumentos de laboratório, dos registros experimentais são "teóricas" somente de um ponto de vista epistemológico profundo, e que não são invocadas, por exemplo, quando tentamos decidir experimentalmente entre teorias rivais nas ciências físicas, biológicas ou sociais.

[§19] Para concluir, gostaria de dizer que a visão "ortodoxa" de teorias científicas pode ajudar a esclarecer sua estrutura lógico-matemática, assim como sua confirmação (ou desconfirmação) empírica. Deve-se salientar, e não apenas admitir acanhadamente, que a reconstrução racional de teorias é uma operação altamente artificial de retrospecto [hindsight operation], que tem pouco a ver com o trabalho do cientista criativo. Nenhum filósofo da ciência em sã consciência considera este tipo de análise como uma receita para a construção de teorias. Mesmo assim, até o cientista criativo emprega, pelo menos informalmente e implicitamente, algum critério de análise e avaliação lógico-empíricas, que o lógico da ciência busca tornar inteiramente explícito. Há aqui talvez uma analogia com a diferença entre um compositor de música criativo e um especialista em teoria musical (contraponto, harmonia etc.). Psicologicamente, a criação de uma obra de arte e a criação de uma teoria científica podem ter muito em comum. Mas, logicamente, os padrões e critérios de avaliação são radicalmente diferentes, se por nenhuma outra razão, porque os objetivos da arte e da ciência são tão diferentes.

[§20] De acordo com a visão padrão, regras de correspondência são regras de designação semântica. Elas fornecem meramente uma interpretação empírica de um sistema de postulados anteriormente completamente não-interpretado (cálculo puro). Deixe-me salientar mais uma vez que esta maneira de considerar teorias é um assunto de reconstrução altamente artificial. Ela não reflete no menor grau a maneira como as teorias se originam. Regras de correspondência assim entendidas diferem de leis de ponte, pois estas fazem asserções empíricas. Por exemplo, se uma lei de ponte afirma a relação entre a energia cinética média das moléculas de um gás e a temperatura termometricamente determinada do gás, então, logicamente falando, isso é uma questão de regularidade empírica contingente. Mesmo assim, numa teoria completa de calor isto é, de acordo com a mecânica estatística e quântica , o comportamento de substâncias termométricas, por exemplo álcool, mercúrio e gases, deveria em princípio ser derivável. Portanto, as leis de ponte devem ser consideradas teoremas das respectivas teorias. Isso pode também ser formulado dizendo-se que uma identificação logicamente contingente de conceitos empíricos com teóricos é assim alcançada. Isso certamente faz parte do que ocorre na redução de leis empíricas para teorias, ou de teorias de nível mais baixo para uma teoria de nível mais alto. Assim, a teoria dos raios de luz (óptica) é reduzida à teoria das ondas eletromagnéticas. Ou raios de luz são identificados com ondas eletromagnéticas de certos comprimentos de onda e freqüências. De forma semelhante, o sal de cozinha comum (cristalino) é identificado com a rede tridimensional de átomos de sódio e cloro, etc. e tal. A redução de (partes da) psicologia à neurofisiologia é ainda científica e filosoficamente problemática e controvertida, mas se ela tiver sucesso, ela envolveria a identificação das qualidades da experiência imediata com certos padrões de processos neurais. Numa teoria unitária da percepção, os dados de observação poderiam então ser caracterizáveis como o aspecto de conhecimento direto [direct-acquaintance] dos estados cerebrais.

Traduzido do original em inglês por Osvaldo Pessoa Júnior

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jun 2010
  • Data do Fascículo
    Jun 2004
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