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Os Estados Unidos e o ressurgimento da lógica

The United States and the revival of logic

DOCUMENTOS CIENTÍFICOS

Os Estados Unidos e o ressurgimento da lógica1 1 Conferência proferida em 30 de julho de 1942, na sede da União. Publicada em: Silva, A. C. P. e. (Ed.). A vida intelectual nos Estados Unidos. São Paulo, União Cultural Brasil-Estados Unidos, 1945. v. 2. p. 267-86. Foram feitas no texto modificações ortográficas e tipográficas, mas manteve-se o estilo expressivo do autor, que redigiu o texto em português. Agradecemos a União Cultural Brasil-Estados Unidos por ter gentilmente cedido os direitos de publicação

The United States and the revival of logic

Willard Van Orman Quine2 2 Prof. Willard Van Orman Quine, natural de Akron, Ohio, nasceu em 25 de junho de 1908. Fez o curso superior no Oberlin College, Ohio. Dedicou-se à Mátemática, em cujos estudos logo se lhe evidenciou o valor de cientista. Recebeu no Oberlin College o grau de A.B. "summa cum laude". Realizou estudos em Viena, Praga, Varsóvia. Professor de Lógica Matemática na Faculdade de Harvard, revela-se o cientista de escol e pesquisador incansável. Obras publicadas: "A system of logistic", "Mathematical logic", "Elementary logic". Associate Professor de Harvard. O ilustre professor visitou em estudos 49 países. No Brasil, fez uma série de preleções sobre Lógica, na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo.

Dentro das sete ou oito últimas décadas, a lógica vem evoluindo, a ponto de se tornar ciência nova. Talvez fosse melhor dizer-se, simplesmente, que se tornou uma ciência. Nesse desenvolvimento, de capital importância para a matemática e a filosofia e cujos benefícios prometem estender-se, ainda, a outras ciências –, os Estados Unidos desempenharam, até há pouco, papel secundário. Entretanto, durante os últimos vinte anos, | a situação se modificou bastante, a ponto, mesmo, de constituir aquele país o principal centro de atividade no campo da lógica.

Naturalmente, em minha palestra desta noite, ocupar-me-ei mais da lógica que dos Estados Unidos.

Que é, então a lógica? Tentei defini-la ao iniciar meu curso na Escola Livre de Sociologia e Política, mas a definição e as considerações preliminares que então emiti se prolongaram por quase uma hora. Os senhores podem ficar descansados, pois não é minha intenção repetir aqui essa dissertação.

Tomemos, como ponto de partida, a idéia, bem vaga, de que a lógica, de uma maneira ou de outra, se relaciona com o raciocínio, e passemos a considerar os contrastes mais frisantes entre esta ciência e as outras maneiras de abordar o estudo do raciocínio.

De um lado, bem destacada da lógica, acha-se a psicologia. Esta, como a física ou a astronomia, é uma ciência que observa a natureza, registrando uniformidades, buscando causas e efeitos e formulando leis naturais. Por exemplo, um indivíduo toma o chapéu e olha para a janela. Os raios de luz que lhe ferem a retina vêm distorcidos pelas gotas d'água no vidro. O homem volta-se e toma o guarda-chuva. O psicólogo procura uma cadeia de causas e efeitos, sejam quais forem, que ligue as duas ações físicas: a da luz distorcida que fere a retina e a de tomar o guarda-chuva. Quando o psicólogo pergunta: "Como é que a gente sabe?"– pergunta-o com o mesmo espírito com que indaga o astrônomo: "Por que é que os planetas seguem rotas elípticas?" – procurando, assim, uma cadeia causal ainda desconhecida que ligue fatos conhecidos e observáveis no mundo natural.

Deixemos ao psicólogo a tarefa de procurar a cadeia desconhecida entre os dois fatos conhecidos: o bater da luz na retina e o tomar do guarda-chuva. Como é | que sabemos que existe luz ferindo a retina do homem e que o homem toma o guarda-chuva? Como é que podemos conhecer o mundo, em geral, e, em particular, as circunstâncias: luz, gotas d'água, homem e guarda-chuva, antes de levantar a questão psicológica de uma cadeia ligando esses fatos aparentemente conhecidos?

A questão dos fundamentos da psicologia, bem como de qualquer outra ciência, não pode ser tratada dentro da própria psicologia – segundo alguns autores – sem cairmos num retrocesso indefinido. O problema de evitar este retrocesso – se é que ele existe bem como de explicar porque não existe – no caso negativo – pertence antes à filosofia que a qualquer ciência natural. Constitui ele problema típico, senão único, da parte da filosofia chamada epistemologia, ou seja, a teoria do conhecimento. Este campo de exercício mental pode ser tão breve quão vagamente designado como consagrado ao exame filosófico das bases gerais do conhecimento.

A psicologia tem a peculiaridade de constituir uma ciência importante e interessante, sem fazer parte da lógica. O mesmo não se dá com a epistemologia. Muita gente, pelo menos, considera a epistemologia como uma subdivisão da lógica. Assim, o estudo do raciocínio em geral compreende uma parte que pertence à psicologia e o resto que compete à lógica, no sentido mais amplo da palavra. Da lógica só consideramos, até agora, a parte chamada epistemologia. Restam duas partes a reconhecer, chamadas lógica indutiva e dedutiva. O sentido mais corrente e mais justo da palavra "lógica" é o que apenas inclui a lógica indutiva e dedutiva, deixando de lado a epistemologia como campo estranho e independente. A lógica, seja ela indutiva ou dedutiva, tem por tarefa prática o estabelecimento de regras destinadas a guiar e facilitar o raciocínio. É por isso que vulgarmente se refere à lógica como a "arte do raciocínio". | Nas ciências naturais, baseando-se em uns poucos casos observados, elaboramos ousadamente leis de caráter geral; e é este gênero de operação mental que a lógica, em particular a lógica indutiva, tenta facilitar. Teoricamente, a um dado acervo de fatos observados, qualquer uma de um número infinito de leis gerais poderia indiferentemente se enquadrar. Da mesma forma, se tomarmos alguns pontos esparsos num plano geométrico, poderemos ligá-los por meio de uma curva contínua que apresente qualquer forma específica de uma variedade infinita de formas. A curva tem de tocar os pontos, mas pode entre eles e além deles vagar como quiser. Analogamente, uma lei geral tem de enquadrar os fatos observados, mas goza, além deles, de uma latitude ilimitada. A descoberta, entre tantas leis, da lei que enquadrará não só os fatos observados mas também os ainda não observados, depende duma conjetura inteligente. Cabe à 1ógica indutiva facilitar tal conjetura. Para realizar esta função prática, porém, a lógica indutiva tem de ocupar-se, em grande parte, com teoria pura; e esta teoria, na realidade um ramo da matemática, se chama estatística.

A lógica dedutiva trata, em seu aspecto de arte do raciocínio, do tipo de raciocínio que não se contenta com meras conjeturas. Trata do tipo de raciocínio que conduz de dados enunciados, sejam verdades conhecidas ou hipóteses supostas, a outros enunciados que são conseqüências inexoráveis dos dados. Este tipo de raciocínio é característico da matemática. Mas desempenha papel, também, nas ciências naturais, visto que mesmo uma lei conjetural, sugerida indutivamente por uns poucos dados, tem de ser examinada em relação a suas conseqüências. Se da hipótese podemos derivar, de maneira estritamente dedutiva, um enunciado em conflito com fatos estabelecidos, já sabemos que será necessário abandonar a hipótese. |

Foi na lógica dedutiva que se realizaram os grandes e recentes progressos; e é a ela que a palavra "lógica" tende cada vez mais a se restringir. Da lógica indutiva, a parte teórica a estatística tem seu lugar entre outros ramos da matemática; e a parte prática ou tecnológica é chamada comumente a metodologia científica, sem uso da palavra "lógica". E uma parte considerável do que aparece nos escritos sobre a lógica indutiva, ou metodologia científica, pertence, em verdade, à epistemologia não sendo cercados, felizmente, os campos intelectuais.

A lógica dedutiva, para realizar a função prática de guiar o raciocínio dedutivo, tem de preocupar-se em grande parte com teoria pura. De fato, ela se ocupa tanto com as estruturas gerais e abstratas, que formam a base de todas as regras do raciocínio dedutivo, que a designação "arte de raciocínio" parece estranha. Longe de ser principalmente uma tecnologia, a lógica dedutiva é tão teórica e abstrata quanto possível. Isto fica especialmente claro na nova lógica, que constitui hoje a base teórica da matemática pura em geral. Mas, mesmo a forma antiga da lógica dedutiva – a lógica formal de Aristóteles – era principalmente um estudo teórico, talvez porque seu desenvolvimento fosse insuficiente para comportar aplicações de grande valor prático.

A lógica formal de Aristóteles, constituída sobretudo da teoria do silogismo, sobreviveu à Idade Média sem sofrer mudança ou progresso importante. Ainda na segunda metade do século dezoito, o célebre filósofo Kant podia indicar a lógica formal como uma ciência que já se aperfeiçoara, já se completara, dois mil anos atrás. Entretanto, os homens costumavam fazer frutuosos raciocínios dedutivos, de maneiras pouco relacionadas com as da lógica existente. Considere-se o exemplo seguinte: Sabemos que toda pessoa que entra num | determinado prédio, sem ser acompanhada dum membro duma certa firma, é interrogada pelo guarda. Sabemos, além disso, que alguns dos subalternos de Fiorecchio entraram no prédio sem ser acompanhados por nenhuma outra pessoa. Sabemos, ainda mais, que o guarda nunca interrogou nenhum subalterno de Fiorecchio. Concluímos, sem grande dificuldade, que um ou mais dos subalternos de Fiorecchio pertencem à firma. Nossos ancestrais concluiriam o mesmo, sem o benefício da lógica moderna. Contudo, quem poderia reduzir a passos sucessivos esta dedução, dentro da lógica tradicional? E se se procura reduzir à lógica tradicional, este ou outro exemplo típico de raciocínio um pouco complicado, tem-se, geralmente, de recorrer não só aos métodos de Aristóteles, mas, também, aos de Procrusto. A lógica antiga sempre usou, como ilustrações, raciocínios em que não se necessita de um guia; por exemplo, se todo homem é mortal e Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal. Os raciocínios complexos, para os quais um guia seria benvindo, tiveram de executar-se pela luz primórdia da razão. Dessa maneira, realizaram-se, em particular, os progressos vastos da matemática. Contudo, os matemáticos e outros raciocinavam assim sem reparar, em geral, na inadequação teórica da lógica formal da época, ou, ao menos, sem ocupar-se duma reforma ou extensão dessa lógica. Talvez já se tivessem acostumado a não pensar em lógica quando se tratava realmente de raciocinar.

E por que não continuar assim? Se podemos fazer os raciocínios matemáticos e a dedução sobre os subalternos de Fiorecchio sem uso da lógica, antiga ou nova, qual o benefício dela? Mas, a necessidade da lógica, antiga ou nova, qual o benefício dela? Mas, a necessidade dum novo exame das técnicas de dedução evidenciou-se principalmente na própria matemática, como vamos agora ver. |

Os matemáticos estavam tão ocupados com seus raciocínios e descobertas sobre números, funções e outras coisas matemáticas, que não tinham tempo para raciocinar sobre o próprio raciocínio. Mas o progresso da matemática chegou a tal ponto, que o papel dos métodos dedutivos teve que entrar em cena, requerendo estudo especial. Tal se deu principalmente com o advento das infinidades superiores.

Foi o alemão Jorge Cantor (cujas teorias são renegadas, atualmente, na Alemanha, por pertencerem à matemática judaica) que descobriu, nos fins do século dezenove, que há vários graus de infinidade. Pode ser que duas classes sejam infinitas e ainda que uma seja maior que a outra. Era preciso aceitar números infinitos, além dos números usuais, para medir esses tamanhos diferentes entre classes infinitas. Cantor mostrou que a multiplicidade dos números infinitos é mesmo infinita e, de fato, duma infinidade superior à infinidade medida por qualquer dos números infinitos.

Esta teoria contém muitos resultados estranhos. Por exemplo, Cantor demonstra que a quantidade de números inteiros não é maior do que a quantidade de números pares; e que a quantidade mesmo de números inteiros e fracionais não é maior do que a quantidade de números inteiros simplesmente; mas que a quantidade de números reais é maior do que a quantidade de números inteiros. O tipo de raciocínio que depende de "intuição" ou de "bom senso", tão usual na matemática, falha neste estudo de infinidades superiores. A faculdade de imaginação torna-se inútil, quando se vai além dos números e classes finitos, ou, em todo caso, além do primeiro grau de infinidade. É preciso, para explorar o mar que Cantor descobriu, prosseguir por navegação cega, dependendo apenas do uso rigoroso de regras válidas de dedução e aceitando as conseqüências. Neste sentido, as técnicas da lógica moderna se têm | mostrado, posteriormente a Cantor, um instrumento útil de pesquisa, nas mãos, por exemplo, do alemão Löwenheim, do norueguês Skolem e do austríaco Gödel.

Mas, para que nos atrapalharmos com essa teoria esquisita de números infinitos? Os senhores se lembram do Coelho de Março, em Alice no País das Maravilhas. Ele explicou a Alice que estava, com seus dois amigos, constantemente tomando chá, porque eram sempre seis horas, estando seu relógio quebrado; e que muitos lugares estavam postos, em torno da mesa, para que pudessem trocar de lugar depois de cada chá. Mas, quando Alice lhe perguntou o que faziam ao completar a roda da mesa, o Coelho queixou-se que o assunto já estava ficando cacete. O matemático que dá as costas aos números infinitos faz exatamente como o Coelho de Março. Temos de atrapalhar-nos com essa teoria por amor da coerência. Cantor estabeleceu sua teoria à base de princípios já aceitos e empregados no desenvolvimento doutras partes da matemática, por meio de métodos de dedução igualmente aceitos e empregados. Não podemos, coerentemente, repudiar a teoria de números infinitos, seja esquisita como for, sem sacrificar, ao mesmo tempo, as partes familiares e úteis da matemática que compartilham o mesmo fundamento.

Ou talvez possamos livrar-nos de partes daquela teoria sem sacrifício, da maneira seguinte: talvez possamos formular os princípios fundamentais da matemática, e os métodos de dedução, de tal maneira que sejam suficientes para as teorias matemáticas familiares e úteis, mas não para as partes mais esquisitas da teoria cantoriana. Mas vemos, assim, que, mesmo para afastar a aritmética infinita, dum modo matemático e não político, é preciso tornar explícitos os métodos de dedução e estudá-la intensivamente.

Um motivo ainda muito mais imperativo de tal indagação lógica surgiu no começo deste século, com a | descoberta, pelo lógico inglês Bertrand Russell, que os princípios do raciocínio aceitos e usados tacitamente na matemática, e talvez fora dela, são capazes de envolver-nos em contradições. Esta descoberta precipitou uma crise. Os princípios da lógica dedutiva tiveram de ser explícita e cuidadosamente formulados e mesmo revistos, para que a matemática em geral fosse bem fundada.

Essas contradições, ou paradoxos, são curiosas e divertidas. Uma tal contradição envolve a noção de denotação, no sentido de que o adjetivo "humano" denota cada homem, o adjetivo "verde", cada coisa verde e o adjetivo "comprido", cada coisa comprida e assim por diante. Chamemos agora heterólogo todo adjetivo que não se denota a si mesmo. Por exemplo, o adjetivo "comprido" é heterólogo, porque não se denota a si mesmo, isto é, não é comprido. O adjetivo "inglês" é heterólogo, porque não é inglês, é português. O adjetivo "monossílabo" é heterólogo, porque não é monossílabo, é pentassílabo. Doutro lado, o adjetivo "curto" não é heterólogo, porque se denota a si mesmo; é curto. O adjetivo "português" não é heterólogo, porque é um adjetivo português. O adjetivo "pentassílabo" não é heterólogo, porque é pentassílabo. Agora, o paradoxo surge quando perguntamos em respeito ao próprio adjetivo "heterólogo", se ele é heterólogo. É heterólogo se, e somente se, não é heterólogo.

Este paradoxo, devido ao lógico alemão Kurt Grelling, não é paradoxo puramente lógico, porque depende das noções não lógicas de adjetivo e denotação. Mas o paradoxo originário de Russell é muito análogo a ele, e ainda puramente lógico. Trata da classe cujos membros são exatamente as classes que não são membros de si mesmas. Essa classe é membro de si mesma se, e somente se, não é. |

Estes paradoxos e outros mais complexos são, embora divertidos, causa de problemas bem sérios. Suas repercussões na matemática continuam até hoje. E, como já reparamos, o surgimento dos paradoxos tornou o ressurgimento da lógica imperativa.

Outro motivo desse ressurgimento se acha no esforço, no sentido de basear certas idéias dúbias da matemática noutras idéias mais claras. O advento duma teoria esquisita de números infinitos evocaria, obviamente, uma tentativa para definir a noção de número em geral, e a noção de infinidade, à base de outras noções mais fundamentais. Também havia na matemática, muito antes dos números infinitos de Cantor, outras noções que necessitavam esclarecimento por definição baseada em noções claras. Uma daquelas noções era a do infinitésimo, fundamental ao cálculo diferencial desde o tempo de Newton e de Leibniz. Era uma noção absurda: a de um número positivo infinitamente pequeno, mas todavia acima de zero. Foi Weierstrass, no século passado, que eliminou este absurdo e fundou as outras noções de cálculo diferencial sobre uma base sólida, chamada teoria de limites. Ainda outra noção que necessitava esclarecimento era, naturalmente, a noção de número imaginário – a raiz quadrada de menos um. O matemático já conquistou o direito de poder falar sem sentido, se quiser, pois, apesar disso, presta grandes serviços às ciências naturais a que a matemática se aplica. Mas, seria interessante, sob o ponto de vista filosófico, pelo menos, prover tais noções de sentido e compreender o conteúdo da matemática. Isto poderia ser útil até mesmo ao próprio matemático.

Tal programa de reduzir noções matemáticas umas a outras, na direção de maior clareza, não parece, talvez, depender do desenvolvimento de uma nova lógica. O que aconteceu, porém, foi que a análise ficou dependendo do uso e da compreensão, cada vez mais exatos, | de noções auxiliares do gênero das que desempenham papel central nos princípios da própria – lógica as noções de classe, de relação, e as que correspondem às palavras "se", "logo", "não", "e", "é", "todo", "algum" e várias outras. O mais surpreendente é que todas as noções matemáticas demonstraram ser reduzíveis não só a algumas entre si, mas, completamente, às noções lógicas auxiliares. Descobriu-se, ademais, que essas noções lógicas são reduzíveis, por sua vez, a três: uma, correspondente à palavra "nem"; outra, à palavra "é" e uma terceira à palavra "tudo", acrescida de um sistema de pronomes. Todo enunciado da matemática se torna, pois, segundo essas reduções, mera abreviação de um enunciado puramente lógico, escrito exclusivamente em termos das três citadas noções, sem nada mais a aduzir-se.

Não diminuímos a importância teórica dessa redução quando mencionamos que o teorema "2 + 2 = 4", quando escrito em termos deste pequeno vocabulário, se expandiria até a um comprimento de alguns metros e que o teorema binomial se prolongaria do Pólo Norte ao Pólo Sul. Sem embargo, fica entendido que toda lei matemática é abreviação de uma lei lógica. A matemática pura é reduzida à lógica.

A lógica antiga não é repudiada pela nova. Aquela corresponde à infância e esta à idade adulta da mesma ciência. Como Whitehead disse, há oito anos atrás, num prefácio que escreveu para meu primeiro livro: "No desenvolvimento moderno da lógica, a tradicional lógica aristoteliana tomou o seu lugar como uma simplificação do problema completo que o assunto apresenta. Há, nisto, uma analogia à aritmética de tribos primitivas comparada à matemática moderna". A analogia que Whitehead assinala é exata, mesmo por que | a nova lógica, como matemática, faz uso essencial de uma linguagem esquemática e poderosa de símbolos.

Entretanto, apesar de ser mais geral e mais poderosa do que a lógica antiga, a nova lógica atingiu um extremo de economia – não só para si como para a matemática pura em geral, conforme acabamos de observar.

E, feição não menos saliente: atingiu novas alturas de rigor e exatidão, chegando mesmo a estabelecer novas normas, a esse respeito, para a matemática.

A nova lógica já se integrou com o corpo da teoria matemática, não só como base teórica, da maneira já considerada, mas também como instrumento prático, para a pesquisa dentro de vários ramos matemáticos especiais. Para dar um único exemplo: o célebre problema matemático, chamado o problema do contínuo, foi resolvido, quanto a uma das duas partes em que ele se subdivide, três anos atrás, pelo austríaco refugiado Kurt Gödel, que lançou mão de meios técnicos da nova lógica.

Um dos efeitos importantíssimos da nova lógica, nas duas décadas passadas, foi uma série de descobertas sobre o alcance e os limites do método matemático. Uma dessas descobertas é devida ao mesmo Gödel. Esse lógico descobriu que nenhum sistema dedutivo pode ser coerente e ao mesmo tempo bastar para a matemática, nem para a lógica ou para a própria aritmética de números inteiros. De posse de qualquer sistema da aritmética, Gödel mostra como construir um enunciado, de índole puramente aritmética, que será um teorema do sistema se, e somente se, for falso, de modo que os teoremas do sistema ou incluem um falso, ou excluem um enunciado aritmético verdadeiro.

É um resultado verdadeiramente surpreendente. Dir-se-ia que a verdade de um enunciado matemático consiste, mesmo, na possibilidade de sua demonstração. | O resultado de Gödel, todavia, mostra que não pode existir uma sistematização coerente da matemática tal que qualquer enunciado matemático verdadeiro admita demonstração. Que dizer, então, dos restantes? Que queremos dizer quando os chamamos de verdadeiros ou falsos? Aqui há uma crise, mesmo, na filosofia da matemática. Essa crise perdura ainda hoje.

Essa descoberta fundamental foi só possível em virtude da formulação rigorosa, dentro da nova lógica, das regras de dedução, na forma explícita de regras para a permuta, substituição etc. dos ideogramas que aparecem escritos nos teoremas matemáticos. É unicamente sob uma formulação tão explícita que os métodos de demonstração, na matemática, ficam susceptíveis duma pesquisa tão penetrante quanto a de Gödel – uma pesquisa que consistiu, de fato, de uma aplicação de métodos matemáticos ao estudo dos mesmos métodos matemáticos.

O fato de ter conseguido formular regras de dedução tão explicitamente enquadradas na forma de regras de manipulação de sinais é uma das feições mais frisantes da nova lógica, e uma que teve repercussão notável na epistemologia. Animou um convencionalismo, segundo o qual todas as verdades lógicas e matemáticas dependem, não do caráter da realidade nem duma estrutura essencial da mente, mas apenas de certas convenções lingüísticas que governam o uso das palavras. Esse convencionalismo serviu, por sua vez, para reanimar o tipo radical de empirismo, da escola filosófica que insiste que todo conhecimento seja baseado num registro de observações. Um obstáculo para esse ponto de vista se encontrava no problema do conhecimento lógico e matemático; mas o convencionalismo afastou esse obstáculo, aceitando o conhecimento lógico e matemático como puramente verbal e sem conteúdo. O novo empirismo modificado, chamado empirismo lógico ou | positivismo lógico, é identificado com o nome do Círculo de Viena, tendo-se desenvolvido nessa cidade entre as duas guerras mundiais.

Todos os representantes dessa escola admiravam a nova lógica e, além disso, alguns a entendiam. A nova lógica desempenhava papel importante nos escritos da escola, especialmente nos de Carnap, chefe da escola, sendo ele não menos lógico do que epistemólogo. Assim, nas mentes dos filósofos que conheciam bem a nova lógica, essa ficou identificada com a filosofia do empirismo lógico, tornando-se alvo dos ataques dirigidos contra essa filosofia. É importante lembrar-se que, de fato, a nova lógica não implica essa filosofia, nem mesmo a doutrina do convencionalismo. Talvez a maior parte dos lógicos matemáticos, e eu entre eles, não compartilhem das conclusões principais do Círculo de Viena. Acho, porém, que muitas das contribuições de Carnap têm grande valor. Não se pode negar que o movimento filosófico de que ele é o principal representante é o mais vital e significativo da época.

O cuidado que a nova lógica dispensa aos sinais, e às operações sobre eles, chamou novamente atenção para os problemas lingüísticos, filosóficos e lógicos concernentes às relações entre sinais e objetos: em breve, os problemas da semântica. Ainda que o convencionalismo não seja de clara conseqüência, persiste o fato de que a semântica acaba de fazer progressos científicos de primeira ordem, devidos, em grande parte, ao lógico polonês Tarski. Estou, além disso, convencido de que esses esclarecimentos referentes à semântica têm conseqüências importantíssimas na própria filosofia, conseqüências essas ainda quase desconhecidas, e diferentes das conclusões do Círculo de Viena. Acho que as questões antigas de índole ontológica, como "Que há?", "Que é real?", começam só agora a adquirir algum sentido e mesmo a admitir certas soluções parciais. |

Voltemos, porém, dessas alturas. Queremos, no pouco tempo que nos resta, formar uma idéia do ambiente social da nova ciência cujo conhecimento acabamos de obter. É claro que o seu desenvolvimento foi uma empresa cosmopolita, visto que já tive ocasião de mencionar ingleses, alemães, austríacos, um polaco e um norueguês. Quanto à sua própria origem, a nova lógica representou culturas bastante diversas, sendo fruto da união da tradição aristotélica com a tradição algébrica. Foi o matemático irlandês Jorge Boole que, nos meados do século dezenove, empreendeu o enquadramento da lógica formal numa forma análoga à da álgebra. A nova lógica teve assim rude começo, sendo só mais tarde estimulada e enriquecida pelo crescente interesse nos métodos e fundamentos da matemática. O cálculo de classes e de proposições desenvolvido por Boole e seus sucessores imediatos teve muito em comum não só com as tradições aristotélica e algébrica, mas também com uma terceira, a estóica – embora não seja esta por eles conhecida. Foi só na década passada que o lógico polonês Lukasiewicz chamou a atenção para semelhanças importantes entre a parte mais elementar da lógica moderna e a lógica que foi fundada pelos estóicos gregos e continuada, na Idade Média, por Petrus Hispanus.

Os nove pioneiros mais importantes da nova lógica, até a segunda década deste século, representavam cinco países: Irlanda, Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos e Itália. O célebre filósofo e matemático alemão Leibniz encarou, já no século dezessete, um projeto um tanto semelhante à lógica moderna; e, embora não realizasse esse projeto, chegou a antecipar, em escritos que não foram publicados na época, algumas das idéias que iam desenvolver-se de novo e mais sistematicamente na lógica de Boole. |

Pioneiro contemporâneo de Boole, mas cujo trabalho foi menos definitivo, era o inglês Augusto De Morgan, que se ocupou do problema de construir um cálculo para o raciocínio sobre relações. Esse trabalho foi continuado com maior êxito, poucos anos mais tarde, pelo norte-americano Carlos Peirce, que também fez progressos no cálculo de classes e de proposições iniciado por Boole. Outros progressos importantes nessa direção são devidos ao alemão Schröder, da mesma época, isto é, das últimas décadas do século dezenove. Mas desses pioneiros o mais importante foi o alemão Gottlob Frege, cujos livros apareceram entre os anos 1879 e 1921. Foi ele que tornou a lógica a ciência sutil e poderosa que temos hoje. É principalmente a ele, ademais, que devemos a redução da matemática à lógica. É talvez Frege, e não seu predecessor Boole, que merece o título de fundador da lógica moderna.

Outro pioneiro importante, cujos trabalhos tomaram a mesma direção dos de Frege, foi o matemático italiano Peano. Afinal, nos anos 1911-12, o período dos pioneiros terminou, com a aparição da obra monumental, em três grandes volumes, dos ingleses Whitehead e Russell: Principia Mathematica.

O desenvolvimento posterior teve lugar em países igualmente diversos. Devemos muito à Polônia, tendo sido Varsóvia e também Lwów, centros de grande atividade no estudo da lógica desde o ano 1920 até a data da invasão. A Alemanha também produziu muito, especialmente pelos trabalhos do grande matemático Hilbert e vários dentre os seus alunos. A Hungria forneceu, por sua vez, vários pesquisadores, sendo um deles Johann von Neumann, lógico e matemático de grande distinção. A Áustria e a Noruega forneceram, como já notamos, Gödel e Skolem.

Nos Estados Unidos a atividade de Charles Peirce terminou no começo deste século e, durante as três décadas | seguintes, foram escassas as publicações referentes à nova lógica: conheço apenas, dessa época, um artigo do matemático Edward Huntington e outro do filósofo Josiah Royce, mais ou menos pelo ano 1904, um terceiro, freqüentemente citado, de autoria de Henry Sheffer, no ano 1913, e um quarto, muito importante, de autoria de Emil Post, no ano 1922. Apareceu, nesse intervalo, isto é, em 1918, o livro Survey of Symbolic Logic, de autoria de Clarence Lewis, sendo um tratado teórico e histórico sobre a nova lógica.

Foi, aproximadamente, em 1931, que, tanto nos Estados Unidos como na Europa, a lógica iniciou um período secundário de ressurgimento, dentro do seu ressurgimento principal. Foi nessa época que foi divulgada na Europa a descoberta sensacional de Gödel sobre os limites da matemática, e que começou uma atividade mais intensa na Polônia e na Alemanha. Nos Estados Unidos, desde essa época, prosseguiram as pesquisas e as publicações sobre a lógica moderna com intensidade sempre crescente. Dentre os pesquisadores desse período recente, vou, para não me referir a pessoas presentes, mencionar apenas dois: os matemáticos Alonzo Church, de Princeton, e Haskell Curry, de Pennsylvania State College. Ambos publicaram pesquisas bastante substanciais; e Church, em particular, resolveu um problema que já se tinha tornado clássico na lógica moderna, tendo sido assunto de muitas pesquisas na Alemanha e na Hungria.

O volume crescente de artigos sobre a lógica ia sendo publicado, tanto na América como na Europa, uma parte nas revistas de matemática e a outra nas revistas filosóficas. Foi nos Estados Unidos, no ano 1935, que se fundou uma associação para a publicação de uma revista consagrada à lógica: o Journal of Symbolic Logic. Esse magazine, sob a direção hábil de Church, tem servido de meio para a divulgação de importantes artigos | em inglês, francês e alemão, provenientes dos Estados Unidos, Inglaterra, Polônia, Hungria, Suíça e Palestina. Feição importantíssima do Journal é a inclusão de resumos críticos de todos os livros e artigos sobre essa ciência, desde 1935. O registro do material referente ao assunto ficou completo com a publicação, no Journal, duma ótima bibliografia, elaborada por Church, das publicações desde Leibniz até o ano 1935. Como se vê, uma coleção desse magazine é imprescindível a toda biblioteca que tenha uma divisão destinada à lógica, isto é, toda boa biblioteca.

Nos Estados Unidos um terceiro ressurgimento da lógica realizou-se como resultado dos acontecimentos na Europa. Agora temos Gödel, von Neumann e Tarski, representante máximo da grande escola polonesa. Carnap, representante principal do Círculo de Viena, já se tornou cidadão norte-americano, o que eu, testemunha do ato da sua naturalização, posso atestar. Essa concentração de lógicos estrangeiros é só um aspecto do fato de que os Estados Unidos se tornaram, em virtude das divergências internacionais, o repositório da ciência e da erudição mundiais. Lembro-me bem dum passeio nas encostas do Monte Monadnock, quando observei que um fósforo, jogado descuidadamente na floresta, podia quase eliminar os principais lógicos da época.

Não posso mencionar a concentração atual de lógicos no Estados Unidos sem acrescentar que temos, também, independentemente da guerra, os pioneiros ingleses Whitehead e Russell. Ambos estão, porém, já bastante afastados do aspecto científico da nova lógica. É possível que a primeira vez que Whitehead se ocupou com a lógica du-rante quinze anos foi quando dirigiu meus estudos doutorais de lógica nos anos 1931-32.

A instrução geral e elementar da lógica nos Estados Unidos está reconhecendo cada vez mais a existência da nova lógica. O primeiro texto elementar de lógica | em geral que se ocupou, em parte, com as novas teorias, foi o de Ralph Eaton, aparecendo no ano de 1931. Depois disso, ficou o costume de incluir, em cada texto geral da lógica, ao menos alguns capítulos sobre a nova lógica; e, nos últimos anos, dois textos elementares apareceram, nos Estados Unidos, escritos exclusivamente sob esse ponto de vista: um de Tarski e um de minha autoria. Parece cada vez mais provável que o aluno universitário que decide assistir a um curso de lógica se acha destinado à lógica moderna.

A crítica desfavorável persistiu, tanto nos Estados Unidos como em outras partes. Uma força nesse sentido era a igreja católica, baseada na idéia de que o destino da lógica aristotélica está ligado ao destino das doutrinas religiosas. Bom exemplo desse ponto de vista é fornecido pelo escritor religioso Jacques Maritain. É curioso, porém, observar que na Bélgica e na Polônia, países católicos, havia clérigos que se interessavam pela nova lógica. Na Polônia a explicação corrente dos grandes movimentos lógicos era de que a lógica constituía um dos poucos assuntos permissíveis, sendo abstrata demais para que pudesse atrapalhar o governo ou a igreja. Alguns admiradores de Aristóteles acolheram a nova lógica alegremente, considerando-a como uma evidência de que a lógica iniciada por Aristóteles era capaz de tornar-se, como por exemplo a sua biologia, uma ciência importante.

Outra resistência à nova lógica era baseada, como já mencionei, em objeções à epistemologia vienense. Outra, ainda, se baseava na idéia de que a nova lógica era frívola, inconseqüente; – acusação essa, aliás, justificada, em relação aos escritos de alguns lógicos, que se interessavam mais pelos aparelhos simbólicos do que pelos problemas centrais. Os progressos recentes, entretanto, como por exemplo a contribuição de Gödel ao problema do contínuo, estão fazendo calar os céticos de [286] maneira decisiva. Pode-se, com efeito, considerar terminado o período de prova e de desconfiança. A nova lógica já se estabeleceu entre as ciências respeitáveis. E, sob o ponto de vista prático, as técnicas da nova lógica já começam a achar aplicação na vida cotidiana, pois estão sendo aplicadas hoje até na engenharia elétrica e no estudo das cláusulas das apólices de seguro.

Notas

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    Conferência proferida em 30 de julho de 1942, na sede da União. Publicada em: Silva, A. C. P. e. (Ed.).
    A vida intelectual nos Estados Unidos. São Paulo, União Cultural Brasil-Estados Unidos, 1945. v. 2. p. 267-86. Foram feitas no texto modificações ortográficas e tipográficas, mas manteve-se o estilo expressivo do autor, que redigiu o texto em português. Agradecemos a União Cultural Brasil-Estados Unidos por ter gentilmente cedido os direitos de publicação
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    Prof.
    Willard Van Orman Quine, natural de Akron, Ohio, nasceu em 25 de junho de 1908. Fez o curso superior no Oberlin College, Ohio. Dedicou-se à Mátemática, em cujos estudos logo se lhe evidenciou o valor de cientista. Recebeu no Oberlin College o grau de A.B. "summa cum laude". Realizou estudos em Viena, Praga, Varsóvia. Professor de Lógica Matemática na Faculdade de Harvard, revela-se o cientista de escol e pesquisador incansável. Obras publicadas: "A system of logistic", "Mathematical logic", "Elementary logic". Associate Professor de Harvard. O ilustre professor visitou em estudos 49 países. No Brasil, fez uma série de preleções sobre Lógica, na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      Set 2004
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