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Ainda existe consciência?

Does consciousness still exist?

NOTAS E CRÍTICAS

Ainda existe consciência?1 1 Este ensaio foi apresentado em 22/11/2003 no simpósio "Consciência e comportamento" da 2a Jornada de Análise do Comportamento, organizada pelo corpo discente do curso de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos.

Does consciousness still exist?

Renato Rodrigues Kinouchi

Pesquisador do Projeto Temático "Estudos de filosofia e história da ciência" da FAPESP, pós-doutorando do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Kinouchi@usp.br

INTRODUÇÃO

Em 2004 comemora-se o centenário do ensaio "Existe consciência?" de William James (1842-1910). Escrito seis anos antes do falecimento do autor, trata-se de um trabalho da maturidade, que pode ser considerado como uma boa síntese dos resultados obtidos por James ao longo de sua trajetória intelectual. Em resposta à pergunta-título, James diz que durante muitos anos desconfiara da existência da consciência como uma entidade ou substância supranatural, transcendental, uma res cogitans em oposição à res extensa. Nesses termos, ou seja, como entidade ou substância sui generis, o filósofo e psicólogo norte-americano chegou à conclusão de que ela não existia. Entretanto, havia uma função usualmente atribuída à consciência que não poderia ser sumariamente descartada. James chamava a isso de função cognitiva, ou função do conhecer. Com relação a essa função, a essa performance, James entendia que ela, sim, existia. A melhor alternativa para ilustrar o ponto é efetuar uma citação direta, deixando James falar por si mesmo:

Permitam-me imediatamente explicar que eu apenas procuro negar que a palavra consciência represente uma entidade, mas insisto muito enfaticamente que ela representa uma função. Digo que não há substância ou qualidade ab-original do ser (...), mas na experiência há uma função exercida pelos pensamentos, e é para isso que uma tal qualidade do ser é invocada. Essa função é o conhecer. A 'consciência' é suposta necessária para explicar o fato de que as coisas não apenas são, mas podem ser reportadas, conhecidas. Qualquer um que riscar a noção de consciência de sua lista de primeiros princípios ainda terá que oferecer algum modo pelo qual tal função [do conhecer] é executada (1976 [1904], p. 4).

Aqui a palavra função nos remete ao campo das ciências biológicas. James, que era médico, trazia de sua formação a idéia de que os seres humanos são sistemas biológicos que procuram sobreviver em seu meio ambiente. E para que um sistema biológico sobreviva, seus diversos órgãos precisam executar funções vitais de maneira coordenada. O órgão denominado coração tem a função de bombear o sangue para os tecidos, o pulmão tem a função de proceder às trocas gasosas, e assim por diante. O cérebro, por sua vez, coordena tais funções, e tem ainda a característica adicional, e peculiar, de ser o órgão onde se dá a função da cognição. James naturalizou a consciência, definindo-a como sendo a função biológica da cognição, do conhecer.

Entretanto, como ficam então as tradicionais dicotomias entre coisa e pensamento, matéria e espírito, corpo e mente, objeto e sujeito, conhecido e conhecedor? Estaria James, no final das contas, reduzindo o mental ao material? A resposta para essas indagações constitui o cerne da metafísica jamesiana, conhecida como empirismo radical. Trata-se de um monismo neutro que procura dissolver as dicotomias acima mencionadas. Para James, há apenas uma substância primeva, a experiência pura, da qual tanto as coisas como os pensamentos são feitos. A usual oposição entre coisas e pensamentos decorre, na verdade, da maneira como nós agrupamos essa tal experiência pura.

Vemos que existem alguns fogos que sempre queimam palitos e aquecem os corpos, e que há algumas águas que sempre apagam os fogos; enquanto que há também outros fogos e águas que não agem da mesma maneira. O grupo geral das experiências que agem, que não apenas possuem suas naturezas intrinsecamente, mas que expressam tais naturezas de forma adjetiva e energética [...], tal grupo inevitavelmente vem a ser contrastado com o grupo de experiências cujos membros falham em manifestar-se de uma maneira energética [...] Facas mentais podem ser afiadas, mas elas não cortam madeira real [...] Com os objetos reais, pelo contrário, as conseqüências sempre acontecem; e assim as experiências reais são separadas das mentais, as coisas são separadas dos nossos pensamentos acerca delas (James, 1976 [1904], p. 17).

Ou seja, ao conhecer o mundo, nós colocamos as experiências em determinadas classes. Um modo muito usual é separá-las em termos duais – por exemplo, classe das coisas e classe dos pensamentos. Mas no entender de James, a experiência imediata, a experiência-caos que nos bombardeia a todo instante, essa não vem de antemão subdividida em classes. Não há um território privilegiado das idéias. E é por isso que a consciência, no sentido substancialista, ou seja, entendida como res cogitans, é considerada por James como uma entidade fictícia. "A entidade é fictícia, enquanto que pensamentos, no concreto, são completamente reais. Mas os pensamentos, no concreto, são feitos do mesmo estofo que as coisas" (James, 1976 [1904], p. 19; grifo no original). Em outras palavras, nós é que separamos os pensamentos e as coisas materias, mas tais classes de experiências não se encontram dicotomizadas inerentemente; por isso é que a entidade sui generis chamada consciência é tomada por James como uma ficção.

A título de ilustração, Bertrand Russell, em The analysis of mind, inspira-se no monismo neutro jamesiano para dissolver uma outra dicotomia, a de sujeito versus objeto. Para o filósofo inglês, a diferença entre sujeito e objeto não é uma questão substancial mas sim topológica: um sujeito é uma coleção de acontecimentos num mesmo lugar, enquanto que um objeto é uma coleção de mesmos acontecimentos em vários sujeitos. Russell (1992 [1921], p. 100) vale-se da seguinte metáfora 'astronômica': "nós podemos juntar ou (1) todas as aparições de diferentes estrelas num mesmo lugar", como numa fotografia tirada por um sujeito, "ou (2) todas as aparições de uma dada estrela em diferentes lugares" – várias fotografias de um mesmo objeto tiradas por vários sujeitos. Destarte, um objeto é uma interseção entre várias perspectivas subjetivas, enquanto que uma perspectiva subjetiva é uma coleção de vários objetos. Mas o material do qual sujeito e objeto são feitos é o mesmo, a saber, a experiência. O que os distingue é o modo como a experiência é agrupada nas, por assim dizer, situação-sujeito e situação-objeto.

Retornando a James, reitere-se que suas críticas dirigem-se à noção de substância pensante sui generis. Não obstante, já vimos que no modelo jamesiano há espaço para a consciência quando ela é entendida como função cognitiva; trata-se, por assim dizer, da razão concreta. Em resumo, James descarta a noção substancialista mas permanece com uma noção funcional da consciência. Posto isso, passemos a detalhar como essa função cognitiva opera, isto é, como a consciência nos ajuda no processo de conhecer o mundo que nos rodeia. Mas para tanto teremos que 'recuar' na obra jamesiana e examinar alguns temas do célebre Princípios de psicologia, de 1890. Em particular, precisamos considerar as críticas jamesianas à chamada teoria do autômato consciente, segundo a qual somos máquinas dotadas de uma consciência epifenomenal, e ponderar sobre a hipótese à darwiniana apresentada por James, isto é, que a consciência foi selecionada no decurso da evolução porque incrementa o desempenho do aparato neural. Uma conseqüência curiosa será que, pelo menos no meu ver, a psicologia jamesiana de certa forma corrobora a análise funcional skinneriana.2 2 A esse respeito recomendo o texto de Rose (1982), Consciência e propósito no behaviorismo radical. Na verdade, este ensaio é uma espécie de paráfrase à jamesiana do trabalho de Rose; isto é, os mesmos temas são tratados, a saber, evolução, propósito, variação e seleção, mas desta feita por intermédio da psicologia de James. Não que James tenha pressagiado o comportamento operante, ou que o behaviorista tenha simplesmente copiado coisas de James. Muito pelo contrário, os dois modelos são bastante diferentes, principalmente no que tange ao conceito de consciência. Mas há também o que eu chamaria de 'traços teóricos invariantes', isto é, idéias basilares que constituem um núcleo comum na obra desses autores. Desde já apresento três delas que me parecem extremamente importantes: primeira, a noção de que a psicologia deve considerar a evolução dos organismos; segunda, a noção de que a ação dos organismos envolve propósitos, havendo uma direcionalidade no comportamento; em terceiro lugar, que essa direcionalidade pode ser explicada em termos de variação e seleção.

1. O EVOLUCIONISMO DA PSICOLOGIA JAMESIANA

Na época de James, e mesmo hoje em dia, há uma espécie de visão herdada muito difícil de ser combatida. Trata-se da "teoria do autômato consciente". Essa teoria, cujas raízes filosóficas podem ser encontradas no cartesianismo, assevera que os seres humanos são uma espécie de máquina complexa com a peculiaridade de possuir consciência. Descartes distinguia claramente a substância pensante e a matéria extensa, o que dava ensejo ao legendário problema da interação entre substâncias consideradas distintas ou, se se preferir, ao problema mente-corpo, cujo tratamento requereu de Descartes uma hipótese ad hoc pouco convincente, a da glândula pineal. A despeito disso, no cartesianismo propriamente dito, a interação de fato acontece, numa via de mão-dupla, de modo "que não estou apenas alojado em meu corpo, como um piloto em seu navio, mas que, além disso, estou a ele vinculado muito estreitamente e de tal maneira confundido e misturado que formo com ele um único todo" (Descartes, 1999 [1641], p. 323). Entretanto, em face das dificuldades envolvidas na ação da mente sobre a matéria, a teoria do autômato consciente disseminou-se como uma espécie de cartesianismo materialista onde somente a matéria é que influencia a mente: uma via de mão única. Mas conquanto tal teoria considere que a consciência realmente existe, essa consciência desempenha um papel meio estranho. Isso porque a teoria do autômato consciente caracteriza a consciência como um epifenômeno. E o que é um epifenômeno? Um epifenômeno pode ser caracterizado como um subproduto inerte de algum processo. Por exemplo, o som das batidas de nosso coração é um subproduto, um efeito secundário, do funcionamento do coração. Assim, o som dos batimentos é um epifenômeno que em nada interfere no processo de circulação sanguínea. Um outro exemplo é a fumaça expelida por locomotiva a vapor, que também em nada interfere no movimento do comboio. Em suma, epifenômenos tais como o som do coração, ou a fumaça da locomotiva, não possuem eficácia causal, isto é, em nada contribuem para o decurso dos eventos.

James considerava que quando a consciência é tratada como um epifenômeno, então ela é banida para "o limbo do não-causal, de onde nenhuma interferência precisa ser temida" (1983 [1890], p. 138). Isso é uma espécie de ostracismo teorético. Ao mesmo tempo em que se reconhece a existência da consciência, nega-se sua eficácia causal, de modo que ela vira uma coisa secundária, apartada da natureza, e com um papel praticamente insignificante. Preserva-se a visão herdada dualista pagando-se o preço de se admitir que há um fantasma na máquina (cf. Ryle, 1949).

James se valia então de uma argumentação darwinista para mostrar que havia alguma coisa de errada nessa idéia de que a consciência é um epifenômeno. O raciocínio é mais ou menos o seguinte. Muito provavelmente a consciência tem um custo metabólico, isto é, a consciência gasta energia. Ora, se uma coisa tiver um custo mas não oferecer nenhuma vantagem, por que tal coisa seria selecionada durante a evolução de nossa espécie? Nesse caso, deveria haver uma pressão seletiva contra os organismos conscientes. É até possível cogitar que a emergência da consciência tenha sido um feliz acontecimento; todavia resta a pergunta: se a consciência é um epifenômeno custoso, que não gera benefícios, porque ela não acaba sendo de uma vez por todas extinta? Disso se retira que a consciência deve proporcionar alguma vantagem adaptativa, caso contrário haveria pressão seletiva contra um tal "desperdício".

Mas há ainda um ponto adicional. James achava que tal vantagem só se efetivaria se a consciência influísse no decurso da evolução da espécie. Ou seja, a consciência deve ter algum papel causal de fato. Mais do que correr paralelamente aos processos neurais, ela deve ser capaz de influenciá-los. Portanto, o argumento de James engendra duas coisas: a noção de que a consciência existe como função biológica que oferece vantagens adaptativas e, o que é mais importante, essas vantagens são a expressão de sua eficácia causal no processo evolutivo. Isso é a naturalização da consciência, ou seja, colocar a consciência em pé de igualdade com todos os outros processos causais, quer biológicos, neuroquímicos ou físicos. Fica manifesto que o naturalismo de James é um naturalismo amplo que, ao invés de reduzir a consciência aos níveis inferiores, a coloca como um elemento a mais no rol dos determinantes da evolução da espécie humana.

2. CONSCIÊNCIA E PROPÓSITO

Um segundo ponto que devemos assinalar é que os fenômenos psicológicos via de regra demandam um propósito, uma meta a ser alcançada. No capítulo de abertura dos Princípios de psicologia, James discorre como os fenômenos físicos diferem dos psicológicos no que tange à questão do propósito. O exemplo que James apresenta é o seguinte. Limalhas de ferro são inevitavelmente atraídas por um imã. Se colocarmos um anteparo entre as limalhas e o imã, então as limalhas irão bater no anteparo mas nunca irão contorná-lo. O mesmo não acontece com um homem, por exemplo, Romeu, que se vê impedido de alcançar sua amada, Julieta. Não há muro que impeça Romeu de beijar Julieta, pois o amante fará qualquer coisa para contornar o problema. A meta de Romeu é Julieta, mas os meios para alcançar tal meta podem variar. Já para o caso das limalhas de ferro, os meios nunca variam, pois elas são invariavelmente atraídas pelo campo magnético do imã de uma forma determinada.

Nesse ínterim, qual o papel da consciência nessas ações que têm um propósito? Para James, certamente o substrato neural que dá suporte à consciência é uma espécie de máquina. Mas quando existe consciência, essa máquina se torna uma perseguidora de fins (a fighter for ends). Aliás, pode-se dizer que a cognição é praticamente subserviente à realização das metas, em especial com relação à meta de sobrevivência. Eu não diria, entretanto, que a consciência serve somente à sobrevivência. Certamente serve a isso antes de tudo, mas, ainda assim, às vezes as metas da consciência podem ser até opostas às metas da maquinaria corporal. Por exemplo, tome-se o caso do pintor Cândido Portinari, que, a despeito de uma intoxicação por causa do chumbo das tintas, continuou a pintar os famosos painéis "Guerra e Paz" para a ONU. Ora, certamente o pintor estava consciente do que fazia. Por sinal, James assinalava que a consciência é mais intensa quando há conflito entre a meta da sobrevivência e alguma outra meta importante: "Onde a indecisão é grande, como antes de um salto perigoso, a consciência é agonizantemente intensa" (1983 [1890], p. 145). Diga-se de passagem que um dos hobbies prediletos de James era o alpinismo, prática que ocasionalmente oferece o risco de um salto mal-sucedido.

Em síntese, a consciência incrementa o funcionamento da maquinaria cerebral, capacitando-a a alcançar suas metas desejáveis, sejam elas quais forem. Já dissemos também que a idéia de realização de uma meta, ou propósito, significa que há alguma direcionalidade no decurso do comportamento. Sobre os mecanismos fisiológicos subjacentes a essa perseguição de metas, James especulava que:

A consciência, quando apresenta suas metas ao cérebro e conhece quais são as possibilidades que a levarão a elas, irá, se dotada de eficácia causal, reforçar [to reinforce] as possibilidades favoráveis e reprimir as desfavoráveis ou indiferentes. Nesse caso, as correntes nervosas, que correm através das células, seriam fortalecidas pelo despertar da consciência em certo curso e não em outro (1983 [1890], p. 144-145).

Destarte, o papel da consciência seria, em grande medida, dirigir as dinâmicas cerebrais, no sentido de dar uma direção às correntes nervosas do cérebro. Parece uma espécie de behaviorismo neurofisiológico, e o mais curioso é que James utiliza em sua descrição o verbo to reinforce, que é uma expressão tipicamente skinneriana (cf. Skinner, 1953). Uma coisa que levanta certos constrangimentos nesse assunto é a crítica de que se está propondo algum tipo de teleologia fisiológica. Bem, agora precisamos mostrar que não há de fato tal teleologismo, ou melhor, que podemos explanar tal direcionalidade em termos de causas eficientes. Chegamos finalmente ao que eu considero o cerne da psicologia de James: explicar a ação humana em termos de variação e seleção.

3. O FLUXO DA CONSCIÊNCIA COMO VARIAÇÃO E SELEÇÃO

James (cf. 1992 [1880]) costumava dizer que, do ponto de vista teórico, a grande contribuição de Darwin foi separar dois ciclos de causalidade inter-relacionados na evolução das espécies: causas da produção e causas da preservação dos fenômenos. O conceito de variação acidental é a causa da produção de espécimes variantes; já a seleção natural responde pela preservação de algumas dessas variantes em detrimento de outras. Em sua psicologia James passou a também separar tais ciclos de causalidade, identificando as causas da produção dos eventos psicológicos, bem como as causas da preservação de alguns desses eventos. Em resumo, a psicologia jamesiana se baseia em uma espécie de lógica darwinista da interação entre variação e seleção.

Para James, as causas da variação do comportamento decorrem da instabilidade da matéria cerebral, considerada como sendo extremamente complexa, sujeita a inúmeras variáveis, de modo que, no final das contas, um tal sistema físico engendra uma boa dose de acaso. Nas palavras de James, "o cérebro é um instrumento de possibilidades, não de certezas" (1983 [1890], p. 144). Diga-se ainda que o psicólogo considera que não existem dois eventos cerebrais iguais, pois isso demandaria que houvesse a mesma configuração de todas as variáveis que compõem a produção das correntes nervosas. Pode haver sim semelhança entre dois eventos cerebrais quaisquer. Mas, em todo caso, tais eventos são variações que apenas guardam semelhanças entre si. Em resumo, o cérebro fornece essas variações nunca idênticas, de modo que as causas da produção dos eventos psicológicos repercutem a instabilidade da matéria cerebral. Tais considerações sobre a matéria cerebral, a meu ver, foram inovadoras e decisivas. Nós, psicólogos, costumamos achar que a matéria é uma coisa dura, invariante, regida por leis coercitivas deterministas. Todavia, a física do século XX, em particular a mecânica quântica, em oposição à física dos séculos anteriores, considera a matéria uma coisa não completamente estável, mas sujeita a flutuações probabilísticas.

Já para o caso da consciência, propriamente dita, James sustenta que ela é a causa da preservação das dinâmicas cerebrais. Isto é, a consciência é um segundo ciclo de causação, onde certas variações acidentais, oferecidas pelo aparato cerebral instável, são selecionadas, preservadas. A consciência poderia ser chamada de órgão cuja função é selecionar dinâmicas cerebrais mais adaptativas. Ela atua apenas mantendo o que já foi produzido. A consciência é uma forma de 'deixa estar'. Ora, mas como ela faz esse processo de 'deixa estar'? A resposta é que a consciência suprime certas dinâmicas cerebrais que concorrem entre si. Ou seja, a consciência tem um papel negativo; ela seleciona uma coisa via a exclusão das outras. A esse processo de seleção por exclusão James dá o nome de exercício da vontade, ou ainda, esforço de atenção. A consciência exerce sua vontade quando suprime certas alternativas oferecidas pelo aparato neural. Note-se que o conceito de vontade é bem diferente daquilo que chamamos de desejo. Quando temos um desejo, o comportamento flui, por assim dizer, facilitadamente. Mas com relação à vontade, sempre há negação daquilo que é o mais fácil. Com efeito, quando dizemos que alguém venceu na vida por causa de sua força de vontade, nunca imaginamos que a vida de tal pessoa foi fácil; muito pelo contrário, a força de vontade requer esforço e trabalho.

Uma questão que costuma levantar problemas nessa área é a idéia de que, ao se levar em conta as contribuições da vontade nos processos cognitivos, parece que estamos embutindo mais alguma agência misteriosa e diáfana. Mas isso, na verdade, não acontece na psicologia jamesiana. A vontade exercida pela consciência se estabelece negativamente. A vontade apenas suprime certas alternativas já oferecidas pela matéria cerebral instável. Assim, nada é criado ex nihilo, do nada; apenas se permite que uma das alternativas oferecidas continue a se desenrolar. Em síntese, a vontade efetiva o selecionamento de um certo curso de ação via a eliminação dos concorrentes. E nessa eliminação não há nada de diáfano, misterioso ou supranatural.

Aqui vale um exemplo. Imaginemos que temos cinco mudas de planta e apenas uma xícara de água para regá-las. Ora, não seria possível sustentá-las todas com esse volume exíguo de água. Então, o mais razoável é escolher apenas uma delas para ser regada. Negamos desenvolvimento às quatro concorrentes e nos concentramos em apenas uma. Em nada violamos o universo físico; apenas negamos certas possibilidades que se apresentavam diante de nós. O exercício da vontade é da mesma natureza. Não produz positivamente nada; apenas escolhe um curso de ação quando suprime as possibilidades concorrentes.

No terreno da produção estética, a vontade também tem esse caráter seletivo de eliminação de alternativas concorrentes. A vontade não cria obras de arte. A vontade se manifesta no artista como um esforço para eliminar as formas que concorrem com o que é intuitivamente pretendido. Segundo James: "O artista notoriamente seleciona seus itens, rejeitando todos os tons, cores, formas que não se harmonizam entre si e com o propósito geral da obra. A unidade, harmonia, e 'convergência de caracteres' [...], que dão à obra de arte sua superioridade sobre a natureza, são devidas à eliminação" (1983 [1890], p. 276; grifo no original). Esse esforço para eliminar os caracteres desarmônicos mostra que, além de inspiração, uma obra de arte demanda muita 'transpiração' por parte do artista. E enquanto a inspiração pode ser inconsciente, ou subconsciente, a vontade envolvida na produção de uma obra de arte é sempre um esforço consciente de fazer os caracteres artísticos convergirem, por meio da eliminação das desarmonias.

Essa vontade naturalizada evita a noção de self iniciador, a idéia de que há uma espécie de homúnculo interno que inicia a ação, também criticada por Skinner (cf. 1990). A vontade não é a força motriz que faz com que o indivíduo deflagre a ação. Na verdade, a vontade é o processo de 'abafar' certas variações que já se originaram de uma matéria cerebral instável. O exercício da vontade é, em síntese, o processo de eliminação seletiva. É assim que a vontade se insere no universo físico, e nisso não há nenhuma operação mágica ou intervenção supranatural. Escolhemos uma linha de ação assim como um jardineiro escolhe uma planta, isto é, por um processo de eliminação das alternativas (mudas) concorrentes. Não se postula aqui uma vontade criadora supranatural, mas tampouco se defende que o exercício da vontade seja uma mera ficção. A vontade, tal como apresentada, seria uma forma bastante natural de selecionismo por eliminação exercido pela consciência, entendida como função, não como substância sui generis.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tenho receio de que esta apresentação sumária da psicologia jamesiana possa estar gerando muitas dúvidas entre os leitores. Em particular, penso que noções tais como as de que o cérebro oferece variações dinâmicas acidentais e que a consciência promove a seleção de algumas delas, exercendo uma pressão seletiva sobre tais variações pelo exercício da vontade, não costumam fazer parte do mainstream da psicologia contemporânea. Por outro lado, pode-se ainda objetar que o modelo apresentado é uma supersimplificação que não se constata empiricamente. Um amigo meu, um psiquiatra com quem converso quase toda semana, costuma assinalar que os fenômenos psicológicos, na realidade, são muito mais complicados do que aquilo que eu apresento, principalmente no que tange à psicopatologia. De minha parte, admito que o modelo realmente simplifica as coisas. Todavia ainda que seja uma simplificação, o modelo me parece suficientemente vigoroso; e não é à toa que a obra de James esteja sendo resgatada por respeitados pesquisadores contemporâneos tais como Anderson (1995), Block, Flanagan & Güzeldere (1997), e Freeman (1999). Para mostrar isso, vou propor uma última consideração.

Os filósofos costumam utilizar os chamados experimentos mentais para examinar as conseqüências de suas formulações. Bom, eu vou propor um 'experimento corporal' que qualquer um poderá realizar. É o que chamo de experimento do 'andar de costas'. O experimento é o seguinte. Quando vocês estiverem em casa, ou em algum local que conheçam bem, experimentem ir de um lugar a outro andando de costas, de olhos abertos, mas sem olhar diretamente para onde estão indo. Experimentem, por exemplo, ir do quarto de dormir à cozinha. Tenho certeza que vocês conseguirão sem muitos problemas. A questão envolvida nesse experimento é a seguinte. Quando nos locomovemos andando para frente, nossos olhos e pernas dirigem-se para uma mesma direção. Assim parece que estamos absolutamente aptos para dar direcionalidade inequívoca aos nossos movimentos. E isso nos passa a idéia de que haveria algum homúnculo, ou self iniciador, que comanda completamente nossas ações em direção a determinados fins; uma espécie de teleologismo. Só que se analisarmos nossa situação no tempo, veremos que as coisas são bem diferentes. Nós não conhecemos o futuro, isto é, não temos acesso ao que está à nossa frente no tempo. Nossa consciência é sempre sobre o presente imediato e o passado. Por analogia, estamos de costas para o futuro. Todavia, parece que conseguimos dar direcionalidade ao comportamento como se estivéssemos andando de costas. Como isso? Cada passo dado de costas é uma variação acidental, meio ao acaso, um passo em cego; entretanto, verificando, de costas, as mudanças que ocorrem em nosso campo visual, podemos ir corrigindo nosso rumo paulatinamente. Segundo minha experiência pessoal, de olhos abertos é possível andar de costas com bastante segurança em um ambiente bem conhecido. Mas ainda que trombemos ou tropecemos em obstáculos de um ambiente desconhecido, basta que excluamos as variações 'pouco' adaptadas, basta que suprimamos novos passos naquela direção. Outras variações passarão a se dar, e assim poderemos contornar o obstáculo outrora desconhecido.

Em nosso experimento, os passos de costas são variações acidentais, já o suprimir passos em determinadas direções é uma forma de seleção dessas variações. Assim, a direcionalidade que observamos no comportamento não se deve a uma causa final que se encontra no futuro. A direcionalidade é o resultado de um processo envolvendo variação e seleção como causas eficientes. E esse simples mecanismo de autocorreção constante, isto é, a supressão dos erros, pode dirigir-nos para onde desejarmos. Não somos máquinas comandadas por algoritmos que nos dirigem diretamente aos nossos objetivos. Somos, na verdade, animais conscientes, perceptualmente de costas para o futuro, mas capazes de corrigir nossas rotas baseados em nosso passado. Certamente levamos muitos tombos, tropeçamos inadvertidamente em diversos obstáculos. Nessa situação só nos resta levantar, refletir que o caminho se encontra obstruído naquele ponto, suprimir as variações acidentais que nos levem a re-encontrar, a re-conhecer tal obstáculo, e esperar que nosso cérebro, esse órgão produtor de variações, nos ofereça alguma outra alternativa mais adequada. Enfim, nosso andar é muito mais um cambalear que vai sendo corrigido paulatinamente. No fundo, os passos que damos são, por assim dizer, passos no escuro; mas a consciência, entendida como função do conhecer, ilumina nosso presente e passado, auxiliando-nos em nossa jornada rumo ao futuro.

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    Este ensaio foi apresentado em 22/11/2003 no simpósio "Consciência e comportamento" da
    2a Jornada de Análise do Comportamento, organizada pelo corpo discente do curso de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos.
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    A esse respeito recomendo o texto de Rose (1982),
    Consciência e propósito no behaviorismo radical. Na verdade, este ensaio é uma espécie de paráfrase
    à jamesiana do trabalho de Rose; isto é, os mesmos temas são tratados, a saber, evolução, propósito, variação e seleção, mas desta feita por intermédio da psicologia de James.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      Set 2004
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