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Einstein e as interfaces entre história, filosofia e ensino de física

Einstein and the interfaces between history, philosophy and physical learning

RESENHAS

Einstein e as interfaces entre história, filosofia e ensino de física

Einstein and the interfaces between history, philosophy and physical learning

Irinéa de Lourdes Batista

Professora Doutora do Instituto de Física da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: ilb@londrina.net

Revista Brasileira de Ensino de Física

Sociedade Brasileira de Física

Edição especial dedicada a Einstein no Ano Mundial da Física

São Paulo, v. 27, n.1, jan./mar. 2005, 173 págs.

É importante e bastante interessante para a comunidade de professores e alunos de física este número da Revista Brasileira de Ensino de Física (RBEF), direcionado para a publicação de trabalhos originais em física de comprovada importância histórica. Essa consideração refere-se tanto à epistemologia quanto à política de formação de novos cientistas e professores nessa área. Do ponto de vista da política de formação, já há muitos anos – e mesmo décadas – a comunidade de pesquisadores e simpatizantes da aplicação da história e da filosofia da física ao ensino de física vem encaminhando moções e solicitações, em simpósios e encontros da área, e promovendo ações para que se publiquem obras clássicas de física na língua portuguesa, de maneira a dar acesso a um público mais amplo, considerando a barreira lingüística. Novas publicações de traduções de trabalhos de Einstein tornam-se, assim, uma ação louvável pela contribuição histórica e pedagógica que oferecem.

Do ponto de vista epistemológico, as produções de Einstein que foram traduzidas demonstram a continuidade das pesquisas desenvolvidas por ele, muitas vezes desconhecida, mesmo do público especializado. É comum encontrar, entre estudantes de física, a idéia de que a contribuição substantiva de Einstein limita-se aos famosos artigos do ano de 1905. Notadamente, os artigos escolhidos versam sobre as concepções de Einstein a respeito dos fenômenos pertencentes ao domínio da física quântica e, também aqui, temos uma contribuição importante dessa edição, pois a caricatura muito divulgada de Einstein, juntamente com a frase "Deus não joga dados", transmite um senso-comum de resistência, senão de negação, de Einstein à física quântica; interpretação que, de fato, não corresponde aos estudos aos quais ele se dedicou.

1 CARACTERIZAÇÃO

A edição especial da RBEF aparece no esteio das comemorações do Ano Mundial da Física, durante o qual muitas semanas de estudos, publicações, simpósios, encontros científicos, dentre outros, dedicaram-se ao marcante ano de 1905, annus mirabilis, no qual Einstein publicou vários artigos dedicados aos problemas candentes da física de sua época. E obteve importantes resultados em todos, o que parece bastante impressionante, se olhado de forma descontextualizada. Os artigos de 1905 e ainda aquele do início de 1906, sobre o movimento browniano, versam sobre diferentes assuntos da física, abrangendo o estudo da energia atômica da matéria, da energia da radiação luminosa e da relatividade dos movimentos na eletrodinâmica. É perceptível aqui uma separação feita por Einstein, conforme temos observado nos estudos contemporâneos de física: de um lado, temos o estudo da constituição da matéria e, de outro, o estudo do movimento relativístico dos corpos e de gravitação e cosmologia.

Retomo a questão da contextualização para mostrar uma dimensão epistemológica e metodológica importante no entendimento da contribuição científica desses trabalhos de Einstein. Sem diminuir seu alcance, cabe-nos ressaltar o perigo da mitificação da obra, elemento de análise que iremos olhar cuidadosamente ao longo desse número especial da RBEF.

2 SOBRE O PERFIL DOS ARTIGOS DA EDIÇÃO

Nesta edição, encontramos duas seções: a primeira contém artigos de Einstein e ensaios sobre sua obra; a segunda, apresenta artigos de revisão sobre relatividade geral e cosmologia. Na primeira seção, os artigos de Einstein são precedidos de ensaios que buscam apresentar ou introduzir o conteúdo do artigo que se segue. Essa é uma estrutura bastante interessante pois, em tese, orienta e prepara o leitor para os principais elementos a serem identificados. Nesse momento, chegamos a um ponto delicado em nossa análise: é preciso escolher entre olhar a proposta do editor, entendê-la, analisando seu alcance ou estabelecer alguns parâmetros para ir além desse entendimento editorial, buscando situá-lo nas discussões atuais, seja no âmbito das pesquisas em história e filosofia da física, seja naquele das pesquisas em ensino de física e sua interface com a física contemporânea e o enfoque histórico-filosófico. Optamos pela segunda abordagem em função do perfil da revista e também na busca de oferecer uma contribuição para o leitor que se interessa pelo estudo das fontes originais da física.

Os artigos de Einstein são apresentados na seqüência:

• Sobre o princípio da relatividade e suas implicações, 1907.

• A teoria da radiação de Planck e a teoria do calor específico, 1907.

• Sobre o estado presente do problema da radiação, 1909.

• Sobre o desenvolvimento das nossas concepções sobre a natureza e a constituição da radiação, 1909.

• Sobre a teoria quântica da radiação, 1917.

• Sobre o teorema quântico de Sommerfeld e Epstein, 1917.

• Teoria quântica do gás ideal monoatômico. Segundo tratado, 1925.

Ao primeiro, antecedem três ensaios e, a cada um dos posteriores, um ensaio bem sintético. De todos eles, apenas o de Roberto A. Martins, "A dinâmica relativística antes de Einstein", destaca-se do ponto de vista histórico e teórico-conceitual, apresentando problematizações e análises de precedentes históricos que contextualizam as origens das pesquisas de Einstein. Todos os outros apresentam os trabalhos de forma paradigmática e, por vezes, o ensaio atinge um tom quase mitificador, quando não heróico, sobre a obra de Einstein. Para uma revista dedicada ao ensino de física, consideramos que esses ensaios poderiam desempenhar um papel didático para o entendimento do artigo de Einstein a que se referem, fornecendo ao leitor um maior detalhamento teórico-conceitual e contextualizando os resultados contidos nos artigos no sistema de idéias em que se originam; e, além disso, estar mais atentos à visão de ciência, de cientista e de comunidade científica que estão transmitindo.

Em uma análise teórico-metodológica dos ensaios introdutórios aos artigos de Einstein, não encontramos outros cuidados historiográficos nem filosóficos, o que decorre de serem os comentadores todos físicos de profissão, tendo uma mínima formação histórico-filosófica. Essa situação é tratada por T. S. Kuhn, em Tensão essencial: para entender de tópicos científicos contemporâneos é necessária uma formação científica, a qual, via de regra, distorce a visão histórico-filosófica. Uma solução rápida é produzir textos em parceria entre os profissionais de diferentes áreas; ou então, os autores possuírem formação complementar à área de origem, processo que demanda tempo. Assim, os textos que introduzem os artigos originais sofrem da falta de fundamentação em análises filosóficas e históricas. Mas não percebemos, em contrapartida, erros teórico-conceituais em física, o que é um elemento importante para a perspectiva que inspira este comentário de articulação entre as áreas do conhecimento para o benefício do ensino de física, que é foco central da revista.

Defendemos essa posição pois consideramos que uma discussão com abordagem histórico-filosófica recria o ambiente que permite entender a origem da problemática, do desafio conceitual e/ou empírico – como se apresentaram as questões, as hipóteses, os elementos conflitantes – e os desenvolvimentos subseqüentes, atingindo os conhecimentos procedimentais (os modos) além dos declarativos (o quê), para uma reestruturação fundamental, no sentido de ruptura com as bases conceituais e empíricas originais. Uma elaboração conceitual que implica o abandono de um corpo teórico prévio, com a proposição de uma idéia totalmente nova, representa a superação de uma estrutura epistemológico-cognitiva subjacente.

Argumentamos que uma abordagem histórico-filosófica contribui para a compreensão do por que uma proposição é considerada comprovada, estabelecida como conhecimento, e como ela se relaciona com outras proposições da física. Pensamos que o estudioso, que é estimulado a pensar mediante uma estrutura epistemológicocognitiva relacionada a um dado conteúdo, estará mais apto a explicar proposições e conceituações, de maneira articulada, e a desenvolver, por meio de sua própria crítica, uma visão ampliada e consistente da atividade científica. Dessa forma, o desenvolvimento didático – formal e empírico – do conteúdo físico (e também de outras ciências) deve levar em consideração a história desse conteúdo e os problemas de interesse epistemológico (problemas geradores), pois o desenvolvimento de um trabalho que envolva tais dimensões pode propiciar uma compreensão maior do processo de criação de conhecimentos físicos, evidenciando o papel da epistemologia histórica da física como agente atuante na inteligibilidade das teorias. Pensamos, em suma, que o processo de ensino e de aprendizagem na educação científica deve invocar o trabalho com uma abordagem pedagógica que envolva integradamente a história, a filosofia e a ciência.

No elenco de nossas preocupações, também possuem lugar as argumentações a respeito da aplicação dos referenciais históricos e filosóficos ao ensino das ciências, que consideram a pertinência e a necessidade desses referenciais como elementos na decisão sobre sua aplicação. Sustentamos que a abordagem histórico-filosófica funciona como um fio condutor dos raciocínios,1 1 É importante salientar que esse fio não evoca qualquer linearidade nos raciocínios e sim um auxílio para sair de uma situação problemática ou para dominar um raciocínio, um sistema de idéias, dentre outros. como um elemento na estrutura didática que favorece a cognoscibilidade dos conteúdos, que justifica racionalmente sua coordenação didática, estabelecendo-se no próprio corpo integrado das estruturas de ensino e, como pretendemos, de aprendizagem.

Desse modo, em função de sua coerente adaptação didática, os instrumentais obtidos pela análise histórico-filosófica integram-se de maneira a ficarem quase indiferenciáveis, indo além da participação como exemplos históricos adicionais ao ensino ou como elementos orientados para a integração entre ciência, tecnologia e sociedade. Essa integração relacional e cognitiva é a principal característica que buscamos evidenciar, com a apresentação de recursos teórico-metodológicos para obtê-la no ensino, reconhecendo que um dos desafios postos é o pleno entendimento de que se trata de um processo interdisciplinar, no qual o objetivo norteador da elaboração didática é o ensino de uma ciência, que dita as prioridades das escolhas. Dessa forma, como é de nossa convicção, fortalece-se a compreensão do conhecimento científico e não se confunde o seu ensino com o ensino de história e filosofia da ciência.

Nesse sentido, detectamos uma lamentável ausência, nesse número especial, de artigos sobre investigações das questões em ensino e em aprendizagem da teoria da relatividade, da física quântica, de campos, enfim, temas afins aos artigos de Einstein que poderiam estar na segunda seção, na qual encontramos seja artigos técnico de física teórica seja de divulgação em física contemporânea. Aqui também notamos a ausência de foco para o público da revista, pois ao artigo de caráter técnico falta uma conceituação mais explícita e um detalhamento do algoritmo, o que contribuiria para o entendimento do leitor não especialista, enquanto os de divulgação não trazem informações novas para esse leitor, o que pode ser confirmado pelas referências apresentadas. Ressalte-se que há dois artigos bem escritos e didáticos, que podem ser utilizados na graduação: "Gravitação semi-clássica", de G. Matsas, e "Cem anos de descobertas em cosmologia e novos desafios para o século XXI", de I. Waga.

Há ainda uma lacuna no que se refere aos resultados empíricos ou ainda às aplicações tecnológicas das temáticas abordadas. Artigos dessa natureza enriqueceriam o panorama, pois apontariam para os vários debates sobre os problemas das corroborações empíricas e das elaborações científicas em questão, seja na física quântica ou na de campos. As aplicações tecnológicas, como os radiotelescópios e as inúmeras aplicações de fotosensores, por exemplo, seriam importantes também para um entendimento da relação entre ciência e tecnologia e seu papel na sociedade.

3 SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS PARA O ENSINO DE FÍSICA

Para complementar nossos comentários, gostaríamos de oferecer fontes bibliográficas complementares para que o leitor possa ampliar o entendimento sobre a temática, enriquecendo-se com análises diferenciadas. Quanto a coletâneas, indicamos o volume 1 de The golden age of theoretical physics, de J. Mehra,2 2 Singapore, World Scientific Publishing, 2001. 2 v. 2 Singapore, World Scientific Publishing, 2001. 2 v. que aborda a primeira metade do século XX, mesclando artigos originais com textos que os apresentam e discutem. Nessa obra encontramos estudos sobre as origens históricas da teoria da relatividade restrita e geral, sobre a origem da teoria do quantum de luz, sobre a fundação da mecânica estatística e ainda sobre o debate a respeito dos princípios de incerteza e complementaridade, todos envolvendo Einstein.

Sources et évolution de la physique quantique, organizado por J. L. Lopes e B. Escoubès,3 3 Paris, Ed. Masson, 1994. possui uma estrutura histórica e conceitual bem articulada, com a expressa proposta da retomada dos textos originais da física inovadora do início do século XX, mas que foi possibilitada pela profícua problematização do fim do século XIX. Em especial, a leitura dos capítulos dois e quatro vai munir o leitor da contextualização e da explicação conceitual para os artigos que seguem a temática em questão.

Entre os elementos ausentes, na revista aqui comentada, constam textos que tratem dos aspectos epistemológicos da obra de Einstein e dos problemas científicos aos quais ele se dedicou. O leitor pode obter essa análise, por exemplo, em dois autores conhecidos, físicos que complementaram a formação científica inicial com investigações histórico-filosóficas. A. Pais e M. Paty escreveram vários textos sobre o trabalho de Einstein. Aqui sugerimos dois mais recentes na forma de livro: Subtle is the Lord. The science and life of Albert Einstein, de Pais,4 4 Oxford, Oxford University Press, 1982. e Einstein philosophe. La physique comme pratique philosophique, de Paty.5 5 Paris, PUF, 1993. Obras escolhidas por serem oriundas de pesquisas amadurecidas ao longo de muitos anos e que propiciam um interessante acesso hermenêutico.

Para estudantes iniciantes em fenômenos físicos, sugerimos:

Einstein, A. Relativity: the special and the general theory. A clear explanation that anyone can understand. 5a. ed. New York: Crown Publishers, 1961 [1952].

Tornar acessível o novo conhecimento: essa é a motivação de Einstein, apresentando os conceitos detalhadamente e driblando as armadilhas que o excesso de algoritmo representa para o leitor iniciante.

Pessoa Júnior, O. Conceitos de física quântica. São Paulo: Livraria da Física, 2003.

Neste livro, temos uma apresentação e discussão dos fundamentos conceituais da física quântica que enfrenta os vários problemas filosóficos e conceituais dessa área, mostrando uma visão multidedutiva para os fenômenos quânticos e seus estudos empíricos.

Freire Júnior, O. & Carvalho Neto, R. A. de. O universo dos quanta. Uma breve história da física moderna. São Paulo: Ed. FTD, 1997.

Um livro sobre a história da física do início do século XX, contextualizada na sociedade e com uma linguagem fluente para todo estudante de ciências e de outras áreas.

Heinserberg, W. et al. Problemas da física moderna. São Paulo: Perspectiva, 1969.

Este livro apresenta ao leitor uma coletânea de artigos que abordam os desafios enfrentados pelos inúmeros pesquisadores envolvidos com os primórdios da física quântica.

Ciência & Ambiente, no número dedicado a Einstein – resenhado neste volume – publica discussões epistemológicas sobre seus resultados científicos, mas explora também a dimensão política da atuação de Einstein, tornando-se um complemento importante à RBEF.

Após essas sugestões de leituras, reafirmamos a importância fundamental da publicação em português de clássicos científicos e louvamos a iniciativa da RBEF. Nosso comentário foi realizado no intuito de enriquecer o debate da aplicação das grandes obras científicas para a formação de novos profissionais em física.

  • 1
    É importante salientar que esse fio não evoca qualquer linearidade nos raciocínios e sim um auxílio para sair de uma situação problemática ou para dominar um raciocínio, um sistema de idéias, dentre outros.
  • 2
    Singapore, World Scientific Publishing, 2001. 2 v.
  • 3
    Paris, Ed. Masson, 1994.
  • 4
    Oxford, Oxford University Press, 1982.
  • 5
    Paris, PUF, 1993.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2005
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