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Sobre as origens da crítica da tecnologia na teoria social: Georg Simmel e a autonomia da tecnologia

On the origins of the critique of technology in social theory: Georg Simmel and the autonomy of technology

Resumos

No pensamento de Georg Simmel deparamo-nos com uma atenção específica e completamente antecipatória, ainda que embrionária, do tema da ciência e da tecnologia modernas na sociedade industrial e metropolitana. No âmbito da teoria social e das humanidades, este fato coloca-o entre os pioneiros da reflexão neste campo. Esta constatação, porém, não foi ainda reconhecida nem submetida à análise profunda pela atual e influente corrente de estudos sociais sobre a tecnologia ou pelo ramo filosófico que se tem dedicado, nas últimas décadas, a sua interrogação e meditação. Este ensaio é composto por quatro partes principais: na primeira parte, apresenta-se sumariamente o contexto do pensamento sociológico sobre a tecnologia no tempo de Simmel, de forma a sustentar o seu pioneirismo nessa área; na segunda, desenvolve-se a conexão entre os elementos essenciais da sua proposta epistemológica para a apreensão da realidade social e a forma como, através do exemplo do dinheiro, compreendeu a mediação via objetos ou artefatos; na terceira, revela-se a sua compreensão do fenômeno tecnológico como sistema cultural; na última parte, reconstitui-se o seu Zeitdiagnostik e a argumentação precoce em favor da tese da autonomização da tecnologia.

Tecnização interior; Simmel; Tecnologia; Cultura; Desvio factício; Heterogonia dos fins; Meios e fins; Modernidade


In the thought of Georg Simmel we find a specific attention completely anticipatory, though in embrionic form, on the subject of modern science and technology in industrial and metropolitan society. In the field of social theory and humanities, this puts him amongst the pioneering thinkers in this area. However, these facts have not been recognized, and a deeper analysis of Simmel's work is missing both from currently influential social studies on technology and from philosophical investigations and reflections on technology in recent decades. This essay is divided into four parts: Part one contains a summary of sociological thought on technology in Simmel's time, providing the basis for the argument that he was a pioneer in this field. Part two develops the connection between key elements of his epistemology for understanding society and the way in which, using money as an example, he interpreted exchange by means of objects or artefacts. Part three shows how Simmel understood the phenomenon of technology as a cultural system. Finally, part four rebuilds his Zeitdiagnostik and the visionary arguments he developed in favour of the thesis of autonomous technology.

Inner technization; Simmel; Technology; Culture; Factitious bias; Heterogony of ends; Means and ends; Modernity


ARTIGOS

Sobre as origens da crítica da tecnologia na teoria social: Georg Simmel e a autonomia da tecnologia

On the origins of the critique of technology in social theory: Georg Simmel and the autonomy of technology

José Luís Garcia

Investigador do Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, Portugal. jlgarcia@ics.ul.pt

RESUMO

No pensamento de Georg Simmel deparamo-nos com uma atenção específica e completamente antecipatória, ainda que embrionária, do tema da ciência e da tecnologia modernas na sociedade industrial e metropolitana. No âmbito da teoria social e das humanidades, este fato coloca-o entre os pioneiros da reflexão neste campo. Esta constatação, porém, não foi ainda reconhecida nem submetida à análise profunda pela atual e influente corrente de estudos sociais sobre a tecnologia ou pelo ramo filosófico que se tem dedicado, nas últimas décadas, a sua interrogação e meditação. Este ensaio é composto por quatro partes principais: na primeira parte, apresenta-se sumariamente o contexto do pensamento sociológico sobre a tecnologia no tempo de Simmel, de forma a sustentar o seu pioneirismo nessa área; na segunda, desenvolve-se a conexão entre os elementos essenciais da sua proposta epistemológica para a apreensão da realidade social e a forma como, através do exemplo do dinheiro, compreendeu a mediação via objetos ou artefatos; na terceira, revela-se a sua compreensão do fenômeno tecnológico como sistema cultural; na última parte, reconstitui-se o seu Zeitdiagnostik e a argumentação precoce em favor da tese da autonomização da tecnologia.

Palavras-chave: Tecnização interior. Simmel. Tecnologia. Cultura. Desvio factício. Heterogonia dos fins. Meios e fins. Modernidade.

ABSTRACT

In the thought of Georg Simmel we find a specific attention completely anticipatory, though in embrionic form, on the subject of modern science and technology in industrial and metropolitan society. In the field of social theory and humanities, this puts him amongst the pioneering thinkers in this area. However, these facts have not been recognized, and a deeper analysis of Simmel's work is missing both from currently influential social studies on technology and from philosophical investigations and reflections on technology in recent decades. This essay is divided into four parts: Part one contains a summary of sociological thought on technology in Simmel's time, providing the basis for the argument that he was a pioneer in this field. Part two develops the connection between key elements of his epistemology for understanding society and the way in which, using money as an example, he interpreted exchange by means of objects or artefacts. Part three shows how Simmel understood the phenomenon of technology as a cultural system. Finally, part four rebuilds his Zeitdiagnostik and the visionary arguments he developed in favour of the thesis of autonomous technology.

Keywords: Inner technization. Simmel. Technology. Culture. Factitious bias. Heterogony of ends. Means and ends. Modernity.

Introdução

Obras extremamente valiosas de investigação sobre os modos como a análise social e as humanidades concebem a tecnologia não mencionam nem prestam atenção ao visionarismo de Simmel ainda que embrionário, concernente ao tema da ciência e da tecnologia modernas na sociedade industrial e metropolitana. Esses são, nomeadamente, os casos dos estudos de Jay Weinstein (1982), de Carl Mitcham (1994), dos ensaios editados por Mikael Hard e Andrew Jamison (1998), e de um grupo de diferentes artigos publicados por Gilbert Hottois e Pascal Chabot (2003). Surpreendentemente, nenhuma destas obras faz referência a sua contribuição para a análise da tecnologia e para os conceitos que avançou para compreender a "época científico-tecnológica", usando uma expressão que se encontra em sua opus magnum, Filosofia do dinheiro (1990 [1916], p. 484), publicada há mais de cem anos, precisamente no primeiro ano do século xx. Em sentido idêntico (até onde foi possível conhecer) ao trabalho notável realizado pelo ilustre e já amplo grupo de autores e acadêmicos que, através da tradução dos seus escritos, comentário científico e filosófico, ensino e divulgação, permitiu colocar Simmel, nas duas últimas décadas, no merecido lugar de clássico da sociologia e pensador insigne e influente, é possível acrescentar o seu papel como precursor da reflexão sobre o mundo moderno como sociedade tecnológica e, em particular, como primeiro formulador da tese da autonomização da tecnologia.1 1 Esta é, pelo menos, a situação das importantes interpretações da obra de Simmel propostas por Aron (1981 [1935]), Levine (1980 [1957]), Weingartner (1962), Oakes (1980, 1984), Freund (1981), Frisby (1992 [1981], 2002 [1984]), Léger (1989), Watier (1986, 2000), Liebersohn (1988), Weinstein & Weinstein (1993), Vandenberghe (1997, 2002), Waizbort (2006 [2000]) e Leck (2002), que não focalizam ou não interpretam detalhadamente a relação que é possível estabelecer entre o seu pensamento e muitas das abordagens e conceitos que posteriormente se tornaram correntes na análise da tecnologia e da sociedade tecnológica. A mesma lacuna se detecta igualmente em obras mais antigas que editaram estudos sobre Simmel, como as de Wolf (1959) e Coser (1965), que contam com ensaios de uma plêiade de figuras onde se incluem, para além dos próprios editores, Durkheim, Tönnies, Bouglé, Sorokin, Salomon e Becker, entre outros.

Preencher essa ausência, complementando o trabalho das aproximações citadas sobre a tecnologia e sobre o pensamento de Simmel, é o principal objetivo do presente ensaio. Revela-se neste a perspectiva teórica que guiou a sua visão, apresentam-se os seus principais esclarecimentos no que concerne à tecnologia e chama-se a atenção para a poderosa ressonância que deles é possível detectar na contracorrente cultural que se formou ao longo do século xx em torno da crítica à sociedade tecnológica.

O exame da sua obra, através do ângulo de análise suscitado pelo debate sobre a tecnologia, conduz-nos ao convencimento de duas questões: a primeira é que Simmel se encontra entre os primeiros teóricos, tanto na filosofia como na sociologia, a considerarem a tecnologia e a tecnicidade como um fenômeno crucial; a segunda é que os seus esclarecimentos sobre a modernidade como uma era científico-tecnológica são não apenas penetrantes, como deixaram um legado de significações e de crítica que se tornaram claramente identificáveis muito mais tarde. Como é compreensível, existem sérias limitações nos desenvolvimentos que Simmel esboçou há mais de um século sobre a questão da tecnologia e, sobretudo, não se pode esperar encontrar neles o tratamento de muitos dos grandes desafios que o pensamento dos nossos dias tem de enfrentar. Mas a teoria da cultura que ergueu ao longo de toda a sua obra, a sua posição cética relativamente à ideologia do progresso, a distância que estabeleceu quanto ao historicismo e ao cientificismo, a coerência que mantém entre esse afastamento crítico e o entendimento que propõe da sociologia como ciência social, o quadro que traçou da relação do homem com o mundo na sociedade moderna, a análise que realizou do dinheiro como objeto mediador em um contexto caracterizado pela monetarização, tecnicização, megaurbanização e implicado em uma determinada concepção da vida e das relações humanas contêm posições de grande alcance sobre o significado social e axiológico da tecnologia moderna e do seu dinamismo independente, a fenomenologia da instrumentalização, o processo de objetivação (Entäusserung), alienação (Entfremdung) e reificação (Verdinglichung), sendo estes últimos problemas bem conhecidos e analisados pelos atentos estudiosos de Simmel.

Este ensaio é composto por quatro partes principais: na primeira parte, apresenta-se sumariamente o contexto do pensamento sociológico sobre a tecnologia no tempo de Simmel, de forma a sustentar o seu pioneirismo nesta área; na segunda, desenvolve-se a conexão entre os elementos essenciais da sua proposta epistemológica para a apreensão da realidade social e a forma como, através do exemplo do dinheiro, compreendeu a mediação via objetos ou artefatos; na terceira, revela-se a sua compreensão do fenômeno tecnológico como sistema cultural; na última parte, reconstitui-se o seu Zeitdiagnostik e a argumentação precoce em favor da tese da autonomização da tecnologia. Este trabalho de análise teórica será orientado pela idéia de que a herança simmeliana do estudo dos alvores da modernidade e da expansão científico-tecnológica exige hoje menos o esforço da sua impossível restituição pura e mais uma tarefa de interpretação rigorosa, mas inequivocamente inventiva, pois a procura de não tergiversar a semântica original daquela não deve impedir que a sua problematização seja consentânea com o imperativo de refocalização decorrente do tempo em que vivemos.

1 O pioneirismo de Simmel na reflexão crítica sobre a tecnologia

Os esclarecimentos formulados por Simmel quanto à tecnologia têm um caráter totalmente antecipatório no modo singular como deram início à reflexão crítica sobre a tecnologia e sobre a civilização científico-tecnológica no interior da teoria social e da sociologia. Idêntica apreciação pode, como já se disse, ser feita para a filosofia e as humanidades. Evidentemente, a tecnologia marcou sempre presença no pensamento moderno, mas o que pode ser designado como o problema da tecnologia permaneceu opaco, pelo menos, até a geração de teóricos sociais da passagem do século xix para o século xx. Com efeito, durante o período de formação da era moderna, em que através da racionalidade se entrelaçaram estreitamente as ciências físico-naturais, o espírito inventivo e a organização complexa do trabalho, a sociologia emergente, na qualidade de conhecimento que nascia para se dedicar ao estudo científico dos fatos sociais como fenômenos sui generis, partilhava largamente do objetivo de expansão tecnológica e industrial do Ocidente. Durante todo esse tempo e no conjunto complexo de circunstâncias que contextualizaram e ajudaram a formar a sociedade progressiva ocidental, onde se destacam processos como a revolução industrial inglesa, o movimento das Luzes e a presença crescente da ciência e da tecnologia nas esferas práticas da vida, pioneiros da sociologia e pensadores como Saint-Simon, Comte, Cournot e Marx, apesar das suas enormes diferenças em outros aspectos, partilhavam uma posição global de confiança e voluntarismo quanto às possibilidades de orientação racional e científica da sociedade tecnológica.

Com a ressalva de que a esfera científica a que se referiam pouco ou nada tinha a ver com o movimento ininterrupto de descobertas e inovações ligadas ao dinamismo da atual organização social da ciência, a sua relação com a – ou mesmo a procura da – racionalidade econômica, a burocratização e o apoio financeiro e político do Estado, cujas tendências vinham já da segunda metade do século xix, mas que só culminaram no século xx, aqueles teóricos, animados pela confiança no quadro mental da ciência e da tecnologia, não pressentiram nada de essencialmente problemático, nem no caráter singular da tecnologia moderna, nem em um projeto de sociedade que tinha também muito de singularmente tecnológico. A sua visão da tecnologia caracterizava-se por uma tendência prometeica, para utilizar a categorização de Hermínio Martins, onde aquela aparecia como o grande meio para um veloz e total melhoramento da situação humana, sobretudo da maioria empobrecida (cf. Martins, 1996, p. 199-223, maxime 202). Em conseqüência, a atitude geral de onde partiam esses pioneiros da análise social levou-os a absterem-se de todo o questionamento diferenciado, claro e crítico que pudesse ser diretamente dirigido à tecnologia moderna e à sociedade tecnológica, em particular no que diz respeito a problemas tão substanciais como o do seu sentido para a cultura e a liberdade humanas.

No que diz respeito ao positivismo comteano, como ainda recentemente Juliette Grange (2000) discutiu e no mesmo sentido da argumentação de Hermínio Martins, aquela avaliação não deve ser confundida com a tendência errônea de o entender como pura expressão de tecnocracia ou cientificismo, nem pode ignorar que o inventor do termo sociologia colocou-se – aliás, como Cournot e Marx – em um ponto de reflexão de âmbito filosófico sobre as relações entre política e ciência que é hoje largamente descurado, salvo raras exceções, quer pelos meios da "política científica", quer pela filosofia política. Apesar de muitas das suas concepções se terem tornado obsoletas, o pensamento desses teóricos do século xix é totalmente distinto do compromisso cego na aplicação industrial das ciências, da afirmação de uma teocracia do cientificismo, e não manifesta adesão ou entusiasmo por uma ética utilitária. Em síntese, não é "infinitista", pois não é portador de uma concepção ilimitada do progresso material (cf. Martins, 1996). No caso do fundador do positivismo – talvez um dos autores mais sujeitos a entendimentos superficiais e a calamitosas interpretações –, a ciência não era concebida sequer como tendo uma natureza prática ou que visasse explicitamente a ação.2 2 A teoria de Comte não é um empirismo, e a sua argumentação estabeleceu sempre uma fronteira vincada entre o caráter especulativo dos conhecimentos científicos e a natureza dos conhecimentos técnico-práticos. O positivismo de Comte tende a atribuir à racionalidade um lugar sempre crescente, a expensas da empiricidade dos fatos observados.

Nos derradeiros anos do século xix, ao mesmo tempo em que muitos dos aspectos organizativos da investigação científico/tecnológica tinham sido alterados no sentido de uma crescente divisão do trabalho, especialização e ligação à economia, ao Estado e à guerra, a sociologia tinha já atingido o estatuto de uma disciplina autônoma e aceite na academia. Em 1895, Émile Durkheim publica Les règles de la méthode sociologique, que antecedeu o começo da edição de L'Année Sociologique, em redor da qual se vai formar a escola francesa de sociologia e, no mesmo ano, é fundado o departamento de sociologia da Universidade de Chicago, que tomou a iniciativa de editar o American Journal of Sociology. Perante o elemento completamente novo que constitui a ciência experimental, a tecnologia moderna e a organização social do trabalho científico à escala da história universal, a sociologia, embora já institucionalizada, com a relevante exceção dos esclarecimentos críticos apresentados por Simmel (e, em um sentido distinto, por Thorstein Veblen), continuou a não conceder relevância à expansão da "cultura objetiva", a não utilizar o seu conceito na interrogação sobre o período científico-técnico, sobre as opções técnicas e sua relação com os padrões de vida social e axionormativos que se iam tornando prevalecentes. A ideologia do progresso, em que a sociedade se baseava como mundividência, representava largamente uma força cultural e de valores de legitimação social que continuava a mostrar-se capaz de vincular a economia, o trabalho e a mudança tecnológica.

No entanto, nesse prelúdio para o século xx e, sobretudo, no arco de tempo entre as duas guerras mundiais, o mundo que tinha tido início um século e meio antes começou a ser discernido por um notável conjunto de teóricos sociais e sociólogos, alguns dos quais souberam aliar as interrogações sobre a época à natureza e ao destino do ser humano. A oposição entre a tendência para a suposta perfectibilidade social prometida pelos idealistas mais utópicos do progresso, do liberalismo e do socialismo, largamente decorrente do historicismo quase congênito de uma parte significativa do pensamento moderno, e os contextos de alienação, indiferença, calculabilidade, mecanização e monetarização que se estavam a afirmar no mundo industrializado e das grandes metrópoles constitui o pano de fundo da reflexão de autores que, na Europa e nas Americanas, distanciaram-se criticamente do otimismo ingênuo em torno da ambição prometeica de ser dono e senhor da natureza através da tecnologia e da ciência, assim como do percurso de poder e abundância material tomado pelo mundo ocidental.

O tópico da ciência e da tecnologia apresenta-se na obra de Simmel de duas formas: por um lado, através dos esclarecimentos explícitos e incisivos que apresenta no seu célebre estudo sobre o dinheiro, sobretudo no derradeiro capítulo, texto parcialmente germinado em 1889 para um seminário de economia política de Gustav Schmoller; por outro, em vários trabalhos e ensaios relevantes, anteriores e, sobretudo, posteriores àquela obra, que contêm idéias poderosas, originais e decisivamente influentes sobre o período moderno como idade científico-tecnológica. Neste segundo caso, devem ser claramente incluídos os trabalhos onde, de modo prolixo, aprofunda a sua teoria da cultura e o diagnóstico da sociedade moderna. Defendendo que a cultura humana se expressa de duas formas contrapostas fundamentais – a cultura objetiva e a cultura subjetiva – e seguindo o ideal formativo procedente de Herder, Humboldt e Hegel, Simmel integra a ciência e a tecnologia na primeira, em conjunto com outras formas de realização das potencialidades culturais humanas. Na medida em que aquele par de conceitos joga um papel central no seu pensamento sobre a cultura humana e na análise do mundo moderno, os seus estudos sobre a cultura invocam implicitamente e tornam presente o fenômeno da ciência e da tecnologia. Muito do que Simmel discute relativamente à esfera da cultura pode ser alargado para a interrogação sobre a tecnologia.

Entre os mais relevantes textos do autor sobre a cultura, e que têm pertinência para o campo que estamos a considerar, contam-se os apontamentos expostos no contexto do problema da divisão do trabalho na sua primeira obra significativa, Sobre a diferenciação social, de 1890, que contém diversas incursões em problemas que tratará nos seus escritos seguintes, o seu famoso, curto e incisivo ensaio sobre a vida nas grandes cidades, "A metrópole e a vida do espírito", de 1903, o ciclo que compõe Schopenhauer e Nietzsche, de 1907, os textos "Da essência da cultura", "O futuro da nossa cultura", "O conceito e a tragédia da cultura" e "O conflito da cultura", seu último ensaio, publicados entre 1917 e 1919. Descobrem-se ainda algumas notas muito originais quanto à relação entre cultura, tecnologia e gênero nos estudos "O masculino e o feminino" e "Cultura feminina". Em todos estes trabalhos é possível reconhecer observações remissíveis lato sensu à tecnicidade da vida moderna. Não são, pois, apenas os brilhantes esclarecimentos explícitos desenvolvidos por Simmel em Filosofia do dinheiro que o catapultam para o lugar de um dos pioneiros da análise da relação entre a tecnicidade e o caráter da vida contemporânea e, na teoria social, segundo a posição que aqui avançamos, o primeiro formulador da tese da autonomia da tecnologia. É verdade, no entanto, que o âmbito alargado do seu estudo sobre o dinheiro oferece um esclarecimento mais sólido e rico de matizes da compreensão crítica simmeliana da cultura moderna e da tecnologia, constituindo ao mesmo tempo um dos seus primeiros intentos, razão pela qual lhe será prestada neste texto uma atenção privilegiada.

Depois da Segunda Guerra Mundial, Simmel não exerceu, nem na Alemanha, nem nos EUA, uma influência no pensamento comparável àquela que obteve no tempo em que viveu. Tendo nascido no mesmo ano que Durkheim (1858) e sendo apenas um pouco mais velho do que Weber (nascido em 1864), a sua presença intelectual posterior foi muito menor que a destes. Mas, na sua época, apesar de apenas ter acedido a uma cátedra de sociologia aos 56 anos, quatro anos antes de morrer e em uma universidade periférica (Estrasburgo), devido a resistências anti-semitas que lhe bloquearam a ascensão, teve um papel muito destacado no estabelecimento da sociologia como disciplina autônoma e uma importância extraordinária na reflexão sociológica e filosófica do período anterior à Primeira Guerra Mundial. A relevância de Simmel para a sociologia alemã é de grande alcance, tendo ministrado os primeiros cursos da nova disciplina, em Berlim, entre meados da década de 1890 e 1918, altura em que finalmente foram institucionalizadas as cadeiras de sociologia na universidade germânica.3 3 Influenciou figuras destacadas ligadas ao círculo de Durkheim, como Célestin Bouglé, e o começo da edição de L'Année Sociologique contou como segundo artigo com um ensaio da sua autoria. A repercussão do seu pensamento foi imensa na sociologia norte-americana na fase da sua institucionalização universitária, em particular na Escola de Chicago por via de Robert Park, seu antigo aluno em Berlim, e por iniciativa de Albion Small muitos dos seus ensaios foram traduzidos e publicados no American Journal of Sociology (cf. Frisby, 2002 [1984]).

O contraste entre os primeiros cinqüenta anos do século xx – com um crash econômico, duas guerras mundiais, grandes revoluções seguidas ou precedidas de guerras civis, o fascismo e o stalinismo em países centrais, as deflagrações atômicas – e as grandes aspirações contidas nos esboços de sociedades ideais, que se caracterizavam pelo seu utopismo tecnológico ou onde o avanço técnico detinha um papel crucial (cf. Martins, 2000), está entre os acontecimentos que contribuíram para que um espectro de pensadores começasse a meditar sobre a ciência, a tecnologia moderna e a ideologia do progresso. Neste contexto, alguns teóricos sociais influentes da primeira metade do século xx, após os esclarecimentos de Simmel, em particular Max Weber, Max Scheler, Lewis Mumford, Harold Innis (que integrou a Escola de Chicago, antes de rumar para Toronto), estabeleceram uma posição de distanciamento profundo relativamente às grandes cosmovisões modernas de expansão da tecnologia e da indústria, bem como de crítica ao cientificismo proeminente do ambiente filosófico e sociológico do seu período, tendo sido acompanhados por Hannah Arendt e Eric Voegelin na teoria política. Simultaneamente, analisaram várias das categorias centrais do pensamento moderno, não como fenômenos emancipadores, mas como elos do surgimento dos poderes impessoais e da burocratização associados aos paradoxos da racionalização moderna.

O questionamento de fundo sobre as bases do mundo moderno e o papel da tecnologia motivou uma reflexão continuada nesse período que envolveu outros pensadores, merecendo destaque, a este respeito, Husserl (que se correspondeu com Simmel), Jaspers, Heidegger, Ortega y Gasset (que foi seu aluno e retomou quase explicitamente várias das intuições de Simmel em Meditação sobre a técnica) e Blumenberg, na filosofia; Horkheimer, Adorno e Marcuse, na teoria social. Outros teóricos que prestaram enorme atenção a esta temática, como Franz Borkenau, Jacques Ellul e Georges Fridmann, permanecem tão negligenciados quanto a tendência original da sua investigação. Ensaístas e ativistas de diversas proveniências e tão diferentes como Manfred Schröter, Albert Schweitzer, George Sorel, Oswald Spengler, Ernst Jünger e Günther Anders, um historiador como o britânico Arnold Toynbee e um filósofo e historiador da ciência como o francês Alexandre Koyré, e arquitetos como o suíço Siegfried Gideon, mostraram igualmente uma enorme sensibilidade a essa problemática.

Weber é, sem dúvida, o teórico social geralmente mais associado a essa importante reflexão das primeiras décadas do século xx dedicada à análise da modernidade e à inquirição da racionalização associada à ciência e à tecnologia. Não sendo destituída de sentido, essa identificação não é absolutamente exata, pois não faz justiça precisamente a Simmel, o autor que forneceu muitas das fontes desse pensamento.4 4 A este propósito, cabe chamar a atenção para o recente estudo de Lawrence T. Nichols (2001), no qual se tenta elucidar, no âmbito de uma preocupação de fundo sobre a relação entre os paradigmas científicos e os contextos da cultura organizacional no mundo acadêmico, o «imperativo situacional» que envolveu a permanência de Parsons em Harvard e terá contribuído para que, ao necessitar do parecer positivo de importantes pareceristas desta universidade, tivesse destruído um capítulo inteiro de The structure of social action – a sua primeira obra importante – dedicado precisamente à concepção de Simmel da sociologia. De fato, só muito mais tarde foi reconhecida, por parte da sociologia e da filosofia, a importância do diagnóstico da época de Simmel, na seqüência do impulso das obras dos anos cinqüenta já referidas e da grande proliferação de estudos das duas últimas décadas.5 5 Na Península Ibérica, a recepção de Simmel é tardia. Na Espanha, têm sido traduzidos e publicados muitos dos seus ensaios, geralmente contando com pequenos e rigorosos prólogos. Para além da introdução de Francisco Jarauta a Rembrandt, esse é o caso da abertura aos textos de Simmel (1998) editados em El individuo y la libertad, de Salvador Mas, que tem o mérito de assinalar de passagem que a noção de cultura objetiva, presente no seu pensamento, pode ser relacionada com a crítica da ciência e da tecnologia. Um fato merecedor de aplauso é a versão castelhana da volumosa Filosofia do dinheiro ter precedido a edição dos ensaios mais breves de Simmel. Em Portugal, após a publicação de Cultura feminina, em 1969, com um prefácio de Romeu de Melo e uma bela introdução de Natália Correia, e Problemas fundamentais de filosofia, um ano depois, foram apenas traduzidos, do alemão, "A teoria do conhecimento da ciência social", "Superioridade e subordinação", "A luta" e excertos de "O cruzamento de círculos sociais"; do francês, "Influência do número das unidades sociais sobre as características das sociedades", para a coletânea de textos Teorias sociológicas, editada por Manuel Braga da Cruz (1989); do inglês, Carlos Fortuna traduziu "A metrópole e a vida do espírito". Carlos Fortuna, Teresa Sousa Fernandes, José Machado Pais e o autor deste texto apresentam em algumas das suas publicações uma interpelação manifestamente ligada ou aos tópicos ou aos conceitos simmelianos. Mas, a este respeito, decerto nenhumas outras palavras são tão autorizadas e eloqüentes como as que Jürgen Habermas escreveu:

As teorias da sociedade orientadas para a formulação de diagnósticos da época que – partindo de Weber – conduzem, por um lado, a Horkheimer e Adorno, através de Lukács e, por outro, a Gehlen e Schelsky, através de Freyer, vão beber todas na fonte da filosofia da cultura simmeliana. Max Weber desenvolve na sua famosa Zwischenbetrachtung um paradoxo da racionalização que se apóia nos elementos neokantianos do diagnóstico simmeliano e, mais concretamente, no potencial de conflito inerente a esferas de valor e ordens de vida alienados e distanciados (Habermas, 2001, p. 154).

Muitos dos seus conceitos e análises permitem aproximações a teorias e problemáticas relativas ao debate sobre a sociedade de massas tecnológica posteriores ao seu tempo, tais como a importância da mediação instrumental, a definição do problema da tecnologia, a monetarização da economia e do estilo de vida, o fenômeno do nivelamento e o consumismo, a alienação cultural, a racionalidade, a comensurabilidade e o distanciamento entre os meios e os fins da ação, a aceleração do mundo contemporâneo, a relação entre a época científico-tecnológica e a vida metropolitana, o estado ausente de essência ou especificidade perante o mundo (patente no seu famoso conceito tipo-ideal blasé ou indiferente). A esta tão significativa gama de aspectos deve ainda ser acrescentada a antecipação de Simmel no que concerne a muitas das aproximações próprias da fenomenologia quanto a nossa experiência de todos os dias mediada por "técnicas da vida prática", utilizando um conceito seu para caracterizar o dinheiro, mas também a nossa relação com o tempo e o espaço, tão presentes em Filosofia do dinheiro e no seu texto "A aventura".

É certo que pode ser objetado que Simmel não dedicou um estudo particular à questão da tecnologia, mas os desenvolvimentos e as implicações da ciência e da tecnicidade moderna têm uma presença importante em muitos dos seus trabalhos centrais, na medida em que a compreendeu como parte integrante e característica da cultura moderna que se expande para a esfera da religião e da arte, da vida urbana e da economia. Neste sentido, aplica-se a Simmel o comentário que, sobre idêntica situação, Julien Freund, o penetrante conhecedor de Weber, teceu a propósito deste. Após ter chamado a atenção para a aparente contradição de Weber ter sido um dos sociólogos contemporâneos que mais enfatizou o papel capital da tecnologia, sendo possível encontrar este conceito "quase em todas as páginas dos seus escritos sociológicos" (Freund, 1998 [1966] p. 279), embora não tenha consagrado uma obra especial ao seu tratamento, Freund argumenta: "Na verdade, se Weber não considerou aconselhável devotar um estudo especial à técnica, foi porque a encontrou em toda a parte no decurso das suas investigações" (p. 279).

2 Epistemologia e mediação instrumental

É no contexto de uma teoria da cultura de enormes implicações que tem lugar a contribuição original de Simmel para o tema da tecnologia. A importância concedida à cultura é indissociável de uma posição epistemológica original para a análise sociológica, que se expressa na importância concedida ao plano da experiência subjetiva e ao processo da sua transferência para a dinâmica social e material no seu conjunto. Na sensibilidade de Simmel para meditar sobre todas as facetas da vida e, sobretudo, sobre as coisas próximas, é possível reconhecer, secundando Ortega y Gasset, a raison d'être de um projeto que procura encontrar até as categorias transcendentes do ser presentes em uma simples asa de uma jarra e uma tendência espinosista, presente em toda a sua obra, que o fazia pensar que qualquer ponto da realidade é um modo do universo e contém em si todos os princípios da estrutura universal (cf. Ortega Y Gasset, 1983 [1958], p. 137).

Em Sobre a diferenciação social, na seqüência do tratamento do processo de diferenciação e do desenvolvimento da individuação humana, um problema paralelamente tratado por Durkheim e Tönnies, Simmel, dez anos antes da publicação do seu estudo sobre o dinheiro, formula pela primeira vez uma teoria da objetividade racional da cultura que constitui o germe de sua tese da tragédia da cultura. Um dos seus mais consagrados intérpretes, David Frisby, salienta esse fato e mostra como Simmel já apresentava nesse trabalho a idéia de que instituições e formas de vida plenas de sentido e intensamente significativas estavam sendo substituídas por outras que, per se, pareciam completamente mecânicas, externas e negligentes (cf. Frisby, 2002 [1984], p. 76-93, maxime, p. 88). Esta transformação era considerada por Simmel como uma expressão peculiar da vida cultural, acrescentando que os sujeitos tendiam a não mais incorporar grandes ideais e exemplificando com a figura do soldado moderno por comparação com a do cavaleiro medieval, ou a do operário com a do artesão. O aumento da complexidade dificultava a incorporação, por parte dos indivíduos, de um conceito altamente unificador. A diferenciação que separa o elemento intelectual de uma atividade fazia com que os aspectos mecânicos e intelectuais ganhassem uma existência separada. Esse seria, por exemplo, o caso da apropriação do elemento intelectual da atividade de uma bordadeira por parte da máquina de bordar. A atividade dessa trabalhadora torna-se muito mais negligente após a sua objetivação maquínica. As instituições, as ordens e as associações sociais têm, assim, tendência para se tornar mais mecânicas e externas e não servir o progresso da cultura (cf. Frisby, 2002 [1984], p. 76-93).

Das inúmeras vezes que foi interpelado para definir a cultura, o seguinte excerto é um dos mais elucidativos:

Pode-se considerar a cultura como o aperfeiçoamento do ser humano influenciado pela assimilação da herança espiritual que a espécie objetivou no decurso da sua história. A cultura de um indivíduo é, pois, função de a sua intrínseca natureza se haverem adicionado determinados valores objetivos: costumes, moral, conhecimento, arte, religião, formas sociais, qualidades de expressão. Aquela estabelece-se, assim, como resultado de um consórcio entre o espírito objetivo e o subjetivo, consórcio esse cuja influência é, sem dúvida, imprescindível para o aperfeiçoamento individual (CF, p. 21).

O processo cultural ocorre, portanto, no quadro de um dualismo básico que habita o ser humano. Por um lado, o espírito objetivo derivado das objetivações em que cristaliza a vida originada pela subjetividade; por outro, e em sentido contrário, o espírito subjetivo, vindo da configuração que ascende da natureza para a cultura e que procura a nobreza da vida individual. Subjetividade e objetividade, interioridade e exterioridade revelam uma cesura irreparável, embora aberta a um movimento infinito que, pese estar submetido à procura da unidade, não tem uma completa solução identitária. É esse movimento de dupla postulação, ao solicitar o homem na busca de unidade, que constitui o fluxo entre ser e devir, que tece e entretece a multiplicidade da sua situação no mundo. Nesta linha de raciocínio, a cultura subjetiva e a cultura objetiva são, ora uma derivação, ora uma expressão da relação autônoma entre vida e forma.6 6 A proposta sociológica de Simmel pretende esclarecer "formas de associação" autoconstituintes da sociedade (tais como a subordinação, o conflito, a competição, o mimetismo, a divisão do trabalho) e conteúdos (como os interesses, as inclinações, os desejos, as pulsões, os fins e os estados psíquicos). Dos seus primeiros escritos ao derradeiro, publicado já postumamente, Lebensanschauung, a idéia de vida nunca deixou de ser uma obsessão de Simmel. Compreendeu-a quer na sua objetividade sem consciência ( Zôê, em grego, Leben, em alemão), quer como experiência subjetiva do vivido ( Bios, em grego, Erleben, em alemão). A insistência em pôr em ação no seu pensamento categorias dualistas, relacionais, processuais, fluidas e metafísicas encontra-se fortemente ligada a sua idéia vitalista da vida como movimento de vida. A experiência subjetiva da vida é entendida como movimento criador e aberto à unidade que pressupõe a oposição entre formas e conteúdos. A vida constitui, deste modo, um terceiro elemento que abarca a dinâmica movente, tensa e estruturante de uma oposição que torna plausível uma complementaridade que é sempre problemática.

Tal como virá a ser um tema recorrente de Max Weber, Simmel esteve sempre preocupado com o fato de a modernidade ser cada vez mais caracterizada pela tecnicidade, no sentido de um tipo de ação pautada pela inespecificidade, métodos formais e objetivos de administração por cálculo e controle, quantificação e impessoalidade. Este entendimento será o fulcro de Filosofia do dinheiro, o primeiro grande trabalho em que Simmel se desloca da abstração geral da teoria da cultura para a análise da significação social do dinheiro e da relevância do seu papel de mediação para o ambiente cultural em que se move e que contribuiu para criar. O dinheiro que, de forma reconhecida, já tinha também merecido a atenção de Marx porventura, menos em O capital do que no seu longo esboço manuscrito, escrito em 1857-1858, e que constitui os Grundrisse, em um capítulo deste que se abre a uma leitura de superior latitude comparativamente ao primeiro, no sentido de ir mais além da relação do capitalismo com a questão do valor7 7 A esse respeito, vale a pena também considerar A questão judaica, de 1844, onde Marx dá prosseguimento a sua orientação crítica da ordem jurídico-política em nome da realidade econômica por ela recoberta. – constitui o objeto par excellence que instigou Simmel a realizar um estudo de base filosófico-cultural da sociedade moderna. Filosofia do dinheiro é, de fato, um longuíssimo ensaio sobre a sociedade, a cultura e a vida do homem moderno, realizado a partir da minuciosa exploração metafórica do dinheiro como medium instrumental e apresentado com dimensões tratadistas.

Neste estudo de grande alcance, Simmel toma como ponto de partida o problema do valor, aproximando-se da escola neokantiana de Baden, para descobrir a essência do dinheiro na forma pura de interpermutação.8 8 Para uma compreensão profunda deste problema, ver Natália Canto Milà (2005). Este ato, por um lado, incorpora o elemento ou a função das coisas através das quais elas se convertem em econômicas e que não expressam estas, mas a sua totalidade, por outro, joga a sua significação na transformação do valor que se agrega às coisas através do seu intercâmbio. O pensamento que tece sobre o todo social flui em dois sentidos principais ao longo de um caudal discursivo quase ininterrupto. O primeiro é realizado a partir do entendimento do dinheiro como produto da objetivação e autonomização do valor. O segundo é feito através da apresentação do dinheiro, em parte, na qualidade de força estimuladora e produtora da reificação das relações sociais e da transformação dos fins da ação em meios; em parte, ligado à lógica de uma certa libertação individual que impulsiona (e que tantas vezes alguns dos seus comentadores, como veremos, realçam de forma unilateral).

De início, no Prólogo de Filosofia do dinheiro encontra-se expresso um entendimento sintético da sua original epistemologia para a sociologia. Essa compreensão é todo um enunciado das intuições organizadoras de um "tipo de investigação" que realça a significação da cultura e não remete a mediação via objetos ou artefatos para uma espécie de "indeterminismo absoluto". Pelo contrário, verifica-se uma tentativa consciente e consistente de ilustrar a relação movente entre os meios e as formas sociais, uma intuição de enorme interesse e originalidade para a análise da mediação instrumental. Com um estilo que pretende "sondar, a partir do singular e do imediato, do que é simplesmente dado, a camada das significações espirituais últimas", segundo a sua bela formulação no prólogo de uma outra obra (R), o seu propósito é evocar a variedade dos movimentos que se atraem e repulsam, se relacionam e explicam. É deste modo que tenta "tornar inteligível a essência do dinheiro a partir das condições e relações da vida geral", por um lado, e a "tornar inteligível a essência e a organização da última a partir da influência do dinheiro", por outro (PM, p. 54). Salientando o papel autopropulsor do medium dinheiro, este insere-se também no contexto da intensa contradição entre a cultura objetiva e subjetiva característica da modernidade: "O dinheiro não é mais do que um meio, um material ou um exemplo para a representação das relações que existem entre os fenômenos mais superficiais, `realísticos' e contingentes e os poderes mais idealizados da existência, as correntes mais profundas da vida individual e da história" (PM, p. 55). Com este enfoque, Simmel procura aceder ao processus aberto e transitivo da vida e evitar qualquer tipo de determinismo ou reducionismo, econômico, sociológico ou tecnológico.9 9 A seguinte passagem é igualmente clarificadora: "Segundo uma perspectiva metodológica, podemos formular a nossa principal intenção do seguinte modo: é feita uma tentativa para construir um novo patamar sobre o materialismo histórico de tal forma que o valor explicativo da incorporação da vida econômica na causalidade da cultura intelectual seja preservado e, ao mesmo tempo, que estas formas econômicas sejam reconhecidas como o resultado de valorizações e correntes mais profundas de pressupostos psicológicos ou mesmo metafísicos. Na prática do conhecimento, isto deve desenvolver-se em uma reciprocidade infinita" (PM, p. 56).

Ao longo do seu vasto estudo sobre o dinheiro, Simmel reitera sistematicamente a tecnicidade do seu âmbito de uma forma completamente invulgar na sociologia. Como definirá na parte final da obra, o dinheiro é uma técnica da vida exterior (ou technique of practical life, na tradução de Bottomore e Frisby, PM, p. 485). Talvez nos seja até autorizado dizer que, na sua visão, o dinheiro como meio tem como que um "modo de existência", lembrando a expressão sobre os objetos técnicos de Gilbert Simondon (1969), no sentido de que também se verifica na sua realidade, e no movimento objetivo da ação mediadora que através do dinheiro se concretiza, algo como um modo de ser em que os homens participam, não como meros usuários, mas como plenos intervenientes. O dinheiro assegura, pela sua mediação, a conversão dos valores de uso de objetos únicos em valores de troca substituíveis. Um pouco à semelhança do que Simondon irá observar para os sistemas técnicos, a lógica da rede monetária que a circulação do dinheiro impulsiona também institui uma malha de ligações, não só com as coisas, mas do homem consigo mesmo, destinado a um devir de ligação com o próprio mundo que o sistema monetário criou. Tendo necessidade de intervir para que o dinheiro exista, conferindo-lhe nesse processo uma condição de existência protegida e separada, o homem como que se vê elaborado por um sistema – neste caso, a economia monetarizada – que do homem apenas conserva o seu eco.

Assim, o movimento próprio da circulação do dinheiro consiste em um processo que desvaloriza a essência singular de cada objeto em troca de sua posterior revalorização como dinheiro. Esta revalorização transforma finalmente o objeto em um signo desvalorizado, no sentido de inespecífico e quantitativo. Tal como Marx descreveu nos Grundrisse, os objetos, transmutáveis em mercadorias através da ação do dinheiro, transmutam-se pari passu em dinheiro; este, por sua vez, transmuta-se em todas as mercadorias. Na cadeia animada pelo dinheiro, todos os objetos que ela possa abranger adquirem a forma inessencial da mercadoria. A circulação dos objetos, que a circulação do dinheiro permite, implica a autonomização da própria circulação como fonte de valor.

Por isso Simmel, começando por definir o dinheiro como um meio, acaba por perceber nele, afinal, mais do que um meio de trocas, pois a mediação que efetua fundamenta e assegura o funcionamento de todo o sistema abrangido pela monetarização. Ao impor-se como código absoluto, o meio dinheiro estabelece o seu próprio fim, autonomiza-se, o intermediário converte-se no elemento decisivo. Daí a sua atribuição final do dinheiro como "meio dos meios" (PM, p. 485), em uma exploração do seu papel mediador que contém já a insinuação de um entendimento do processo de mercadorização como "economia política do signo", para lembrar o conceito de Jean Baudrillard (1981 [1972]). No entanto, essa exploração, que é também metafórica, não implica um regresso à noção do dinheiro como mero símbolo, própria de Locke e de outros teóricos do século XVIII. O dinheiro como objeto não aparece, assim, com um estatuto simplesmente funcional ou figurante. Mas o conceito que é enfatizado para compreender a dinâmica que imprime na sociedade é, sem dúvida, o do dinheiro como instrumento mediador: ele é o resultado e a forma impulsionadora de um processo de transformações encadeadas de forças econômicas, necessidades sociais e correntes simbólicas que se vão desenvolvendo, implicando e redefinindo interminavelmente. Ao longo da sua análise, o que é destacado é o dinheiro como símbolo, como dinheiro-signo, e o seu movimento de "troca-signo".

A tecnicidade que envolve a mediação da sociedade moderna constituiu um desafio que Simmel não negligenciou. Ainda que, provavelmente, não se tenha apercebido plenamente de muitas das conseqüências da sua intuição, não lhe escapou o fato de ser através dessa mediação que a co-evolução da ação homem-tecnologia poderia ser mais estreita e plena de implicações. No aprofundamento sintético que realizará em um dos seus últimos grandes ensaios, Simmel elucida de forma magnífica a sua concepção ao falar da importância da "corrente de sujeitos a sujeitos através de objetos, na qual uma relação metafísica entre sujeito e objeto adquire realidade histórica" (CTC, p. 68). Como será devidamente ilustrado, esta perspectiva permitiu-lhe realizar uma abordagem absolutamente única no seu tempo relativamente à análise das repercussões do dinheiro no mundo social e à descrição fenomenológica da monetarização na consciência e na vida do espírito.

Ariel Morabia, em um apontamento sobre a influência do conceito Diskrepanz de Simmel na fenomenologia da técnica de Günther Anders, esclarece lucidamente que o dinheiro é o "presságio" e o "sinal" de um agir humano pautado pela discrepância entre os valores objetivos e os valores culturais. "É a partir dessa décalage, entendida como perda de significação e como nuclearização do social, que Simmel elabora a noção de `lei individual' como princípio da ética em que apenas o indivíduo é `o agente concreto da práxis'" (Morabia, 2003, p. 169). Um dos mais interpelantes dos novíssimos comentadores de Simmel, Frederick Vandenberghe, tem toda a razão quando faz uso do jargão sociológico para dizer que, em Filosofia do dinheiro, por um lado, Simmel, na parte que intitula "analítica", "trata o dinheiro como variável dependente", descrevendo nesta "a gênese teórica do dinheiro em termos de objetivação e autonomização do valor", por outro, na parte "sintética", trata-o "como uma variável independente", estudando "as conseqüências da monetarização universal segundo a dialética da libertação do indivíduo e da reificação das relações sociais" (Vandenberghe, 2002, p. 72).

De fato, Simmel centra-se na determinação mútua entre a sociedade e o seu sistema de trocas econômicas, surgindo este valorizado poderosamente na sua pertinência simbólica. O quadro que traça é o de um processo em espiral no qual, através do meio instrumental dinheiro de medir e calcular o valor econômico, meio veloz que imprime a velocidade, foram o próprio hábito de cálculo, a idéia de valor econômico e a aceleração que acabaram por introduzir-se na vida quotidiana, inserir-se nos valores pessoais, nos estilos de vida e nas relações sociais.10 10 Este ângulo de análise, claramente evocativo e valorizador das relações, sentidos sociais e espirituais que a instrumentalidade dos meios da cultura objetiva abre e põe em movimento, parece-nos harmonioso com a importância que o conceito de Wechselwirkung teve no seu trabalho, como é bem salientado, em um texto recente, por Christian Papilloud (2000). Chamando a atenção para a composição da palavra Wechselwirkung, Wechsel (mudança no sentido de Tausch, trocar) e Wirkung (efeito), em conjugação com a tradição teórica que lhe subjaz, Papilloud argumenta que a sua tradução como "interação" ou "ação recíproca", comum nas publicações em francês e inglês, é inexata e altera o sentido do pensamento de Simmel. De acordo com Papilloud, a estrutura mínima do termo pode ser descrita do seguinte modo: "Há um movimento de atração e repulsão que realiza um efeito e muda, donde saem efeitos de mudanças trocadas" Seguindo esta sugestão, Wechselwirkung pode ser traduzido, em português, por "efeito(s) de mudança(s)" – em francês, é proposto effet(s) de changement(s) – , sugerindo um processo que pelo seu próprio movimento produz efeito, mudança, faz mudar e supõe a troca (Papilloud, 2000, p. 109). Não perdendo de vista a conexão entre os diferentes âmbitos da objetividade e da subjetividade na ação do homem e no mundo social, é muito provável que esta seja, no interior da sociologia, uma das mais precoces e lúcidas aproximações destinadas a apreender as figuras de ligação e transição no acontecer aberto da realidade de um modo que dá "a pensar através da imagem" e que "guia o espírito através do movente e do movimento" (Papilloud, 2000, p. 111). Enquanto "variável independente", o dinheiro modela a nossa experiência com o mundo através da sua permanência ou perduração no plano profundo da realidade, a modalidade de mediação tecnicizada que Don Ihde (1990) chama "relação de fundo" (background relation). A experiência com o dinheiro faz com que a relatividade dos objetos econômicos que o dinheiro incorpora impregne-se no próprio ser, conduzindo a um incremento da racionalização e da despersonalização em todas as esferas da vida. Em conjunto com a sua teoria da cultura, este tipo de concepção fornece a Simmel uma base sólida para a reflexão sobre os usos e significados dos objetos, a cultura das mercadorias e a experiência do ser humano com a realidade através da tecnicidade. Sem dúvida, um tal trabalho constitui uma das antecâmaras da crítica do mundo moderno e da fenomenologia da instrumentalização.

Só muito mais tarde é que a pista prosseguida por Simmel em colocar, como "variável independente", um meio, um objeto ou um artefato teve seguidores como Innis, Mumford ou Norbert Elias. Innis (1971 [1923]) destacou a ação das tecnologias da comunicação nas transformações sociais e históricas, nelas englobando o comboio, já anteriormente salientado por Marx.11 11 A este respeito, ver Filipa Subtil (2003). Mumford (1934) valorizou o relógio como um aparelho tecnológico-chave para a criação do mundo em que vivemos. Norbert Elias (1989 [1939]) concedeu importância civilizacional aos mais diversos instrumentos da vida doméstica, entre os quais os utensílios de trinchar e pegar os alimentos, considerados como "encarnação das psiques" e "materialização de situações sociais e de leis de organização social" (Elias, 1989 [1939], p. 166). Mais recentemente, Langdon Winner (1986) teve a virtude de destacar enfaticamente a pertinência política da tecnologia e a sua relação com a ordem social.12 12 No polifacetado estudo de Jared Diamond (2002 [1997]), é também destacado o papel dos objetos, das técnicas e dos elementos naturais, entre outros fatores, na criação de universos em certos períodos ou episódios-chave da história mundial. Historiadores como F. Braudel e C. Cipolla concederam igualmente grande importância causal a esses fatores.

O estudo de Simmel sobre o dinheiro não é uma análise da sua utilização ou do mundo econômico, mas da relação entre os domínios do espírito e a realidade social, na medida em que esta interação encontra-se modelada pelo medium dinheiro, seus significados e comportamentos que origina. Através do estudo do dinheiro, oferece um magistral exemplo de interrogação do mundo dos objetos que crescentemente passou a envolver e a ligar os seres humanos. Qual arqueólogo, diante da materialidade do dinheiro, vê neste apenas a ponta de um icebergue de tendências e ligações, não só econômicas, mas também espirituais, de estilos de vida e relações com o mundo. O seu objetivo revelar-se-á, como veremos, menos o dinheiro, e mais todo o panorama, o mundo específico que o meio dinheiro ajudou a criar, por outras palavras, a cultura moderna, a vida, como categoria metafísica, na sociedade tecnológica.

3 Desvio factício da cultura humana e tecnicização interior: a tecnologia como estado da relação do ser humano com o mundo

É no terceiro e derradeiro capítulo de Filosofia do dinheiro, dedicado às relações entre a economia monetária e o "estilo de vida", nomeadamente a partir da sua segunda seção, que se encontram precisamente a primeira grande formulação da teoria da cultura de Simmel e os seus esclarecimentos mais explícitos dedicados à ciência, à tecnologia e à tecnicidade da vida moderna. É igualmente este capítulo que se transforma em um dos mais clarividentes Zeitdiagnostiker das tendências profundas da época moderna.13 13 Mais uma vez as palavras de Habermas são claras a este respeito: "Julgo que Simmel deve a sua impressionante influência, ainda que muitas vezes anônima, ao diagnóstico da época de base filosófico-cultural, que desenvolveu pela primeira vez no capítulo final de Filosofia do dinheiro" (2001, p. 151). Sobre a importância do diagnóstico da época feito por Simmel, ver Villegas (1998 [1996], p. 116-224), Giner (2004 [2001], p. 341-86), Waizbort (2006 [2000], p. 115-303). Em relação ao mesmo aspecto, ver também a excelente revista dedicada à obra de Simmel, organizada por Olga Sabido Ramos (2003).

A exposição da sua teoria da cultura segue as linhas gerais já entreabertas. A relação discrepante entre a cultura objetiva e a subjetiva constitui em definitivo o seu problema (PM, p. 450). A sociedade moderna distingue-se pela agudização da distância entre essas duas formas culturais:

Se se comparar a época contemporânea com a de há cem anos, é decerto possível dizer – com algumas exceções – que as coisas que determinam e rodeiam a nossa vida, instrumentos, meios de transporte, produtos da ciência, da técnica e da arte, estão incrivelmente cultivados, mas a cultura dos indivíduos, pelo menos nos estratos superiores, não está tão avançada e, inclusivamente, até se encontra frequentemente em declínio. Esta é uma situação que nem precisa de demonstração (PM, p. 448).

Para que não restem dúvidas, enfatiza o seu veredicto: "O fato de a máquina ter-se tornado muito mais sofisticada do que o trabalhador é parte do mesmo processo" (PM, pp. 448-9).

Na seqüência desta posição, empreende uma argumentação que salienta a discrepância entre o saber operativo/instrumental e a sabedoria situada na esfera ética. Tal discrepância é, aliás, um problema que nunca perdeu de vista ao longo de toda a sua obra, embora permaneça imensamente descurado, como já se disse, em muitos dos que o têm interpretado. Aquela discussão é lançada a partir de uma interrogação retórica que formula para demonstrar a intuição fenomenológica de que a cultura moderna incorre no perigo de renunciar à compreensão do que é capaz de fazer: "Quantos trabalhadores, incluindo os que estão na grande indústria, podem hoje compreender a máquina com que trabalham, ou seja, compreender o espírito invertido nela?" (PM, p. 449) E o que sucede no mundo da indústria ocorre em várias outras áreas. É exatamente no raciocínio que Simmel apresenta para este fenômeno que a sua posição se torna clara quanto à genealogia histórico-filosófica dos problemas relativos à predominância da cultura objetiva e da tecnicidade no surgimento do mundo moderno. Ao contrário do que virá a ser, menos de duas décadas depois, a tese de Spengler, e mais tarde a de Jünger e Heidegger, Simmel não se posicionou hostilmente contra as instituições modernas, democráticas e liberais, não situou os fundamentos do problema da tecnologia nos mundos de Atenas e Jerusalém nem, muito menos, como ocorrerá com Horkheimer e Adorno, no Iluminismo, vendo até no soçobrar da sua paideia14 14 Utiliza-se aqui este conceito não na acepção mais restrita da sua origem grega, como formação do indivíduo jovem, mas na alargada proposta por Werner Jaeger, como processo constituinte de um novo anthropos. um retrocesso no enfrentamento da objetivação e da alienação.

Em rigor, Simmel começa por expor, a este respeito, que

a preponderância da cultura objetiva sobre a subjetiva, desenvolvida durante o século xix, refletiu-se parcialmente no fato de que o ideal pedagógico do século xviii – orientado para a formação do ser humano, isto é, para um valor pessoal e interior – foi substituído naquele século pelo conceito de "educação", no sentido de um corpo de conhecimentos objetivos e padrões de comportamento. Esta discrepância parece estar continuamente a ampliar-se (PM, p. 449).

Para compreender esta situação, Simmel situa, em um primeiro momento, o espírito subjetivo no plano da ação ética e realiza uma digressão, dirigindo-se à Grécia antiga e à linha de pensamento do Fedro de Platão. Seguindo Platão, não localiza na experiência a origem da "essência pura, da significação absoluta, dos objetos mundanos", mas em uma "atitude epistemológica do nosso espírito":

quer consideremos o nosso conhecimento como um resultado imediato de objetos exteriores ou como um processo puramente interno [ ] concebemos sempre o nosso pensamento – na medida em que este é aceite como verdadeiro – como o cumprimento de uma exigência objetiva, a reprodução de um modelo imaginário (PM, p. 450).

Daqui segue-se que, na prática corrente de todos os dias ou nos âmbitos mais elevados da espiritualidade, a nossa atuação supõe a existência de um "ideal de conhecimento", de uma "fórmula da nossa vida" (PM, p. 451).

A forma específica de existência desse ideal de conhecimento, que se enfrenta ao nosso conhecimento real como norma ou totalidade, corresponde a uma idêntica relação entre o conjunto de valores e prescrições morais e a atuação real dos indivíduos. Simmel entende essa forma específica de existência de um ideal de conhecimento como o cerne da "esfera ética", segundo a sua própria expressão, a qual nos faculta "a consciência do fato do nosso comportamento corresponder de forma positiva ou negativa a uma norma intrinsecamente válida" (PM, p. 451). Parece, pois, ser bastante nítida a sua aproximação a uma concepção ontológica, mas não totalizadora, desse domínio ético: "Esta norma – que pode divergir no seu conteúdo em diferentes pessoas e em diferentes períodos das suas vidas – não se pode encontrar nem no espaço nem no tempo, nem tão-pouco coincide com a consciência moral, a qual está dependente daquela" (PM, p. 451). Coerente com esse entendimento, é distintivo da vontade humana ser orientada por "um programa ideal" e, mais do que isso, ser a atualização de uma "possibilidade pré-determinada" contida em um "tesouro de possibilidades" (PM, p. 451). Cada fragmento da nossa existência prática possui uma significação e uma coesão enquanto realização parcial de uma totalidade. É desta maneira que os indivíduos, de um ponto de vista epistemológico, inferem os seus conteúdos vitais de um "reino de entidades objetivamente válidas" e que obtemos aqueles conteúdos vitais do "armazenamento do trabalho espiritual da espécie humana" (PM, p. 452).

Em um segundo momento, Simmel postula a tese de que a emergência das formas culturais implicadas na objetivação da vida, pelo seu próprio movimento, tendem a separar-se do seu conteúdo. Nas sociedades que conhecem desenvolvimentos cada vez mais complexos de conexões e intermediações para atingirem as finalidades que perseguem, a cultura é caracterizada por um hiato extremo entre a vida que luta por se exteriorizar, e que se exprime em formas que integram a cultura objetiva, e as formas espirituais constituintes da cultura subjetiva, capazes de a integrar em um reino de valores e de universalidade. O mundo objetivo adquire, então, independência com respeito à atividade humana que o produziu. Logo que os seres humanos dão início à consolidação metódica e concreta das formas culturais, estas tendem a tornar-se autônomas e definitivas. "Com a objetivação do espírito aparece a forma que permite a conservação e acumulação do trabalho da consciência. Esta objetivação é a mais importante e mais rica em conseqüências de todas as categorias históricas da humanidade" (PM, p. 453). As formas desligam-se das suas finalidades e seguem o seu curso. Os conteúdos culturais tornam-se independentes do processo subjetivo de onde surgiram. Esta condição necessária do próprio desenvolvimento do sujeito pode, porém, entrar em contradição com o próprio sujeito. A objetivação do mundo contém a semente da própria objetivação do espírito. Situada sempre no interior desse dualismo, a cultura contemporânea conhece um paroxismo trágico ditado pela hipertrofia da cultura objetiva e a contração da subjetiva. Assim, o homem está sob a ameaça de ser subjugado pelos objetos da sua própria criação. Ao dar origem a um mundo com uma tal profusão de objetivação, os seres humanos têm tendência a deixar escapar freqüentemente do seu horizonte os fins que conferem sentido e importância aos meios. Como se constata, a afirmação de um mundo crescentemente relacional, multicêntrico, fracionado e reticular, sujeito às forças impessoais da objetivação, do calculismo e, simultaneamente, à tentação subjetivista e à intensificação da vida emocional, que se erguia diante de Simmel e o impeliu a sua observação, não o levou a desligar-se da tradição do universalismo, da totalidade, da objetividade e do sujeito. Simmel não abraçou, porém, o estreito quadro dicotômico de muitas interpretações do universalismo.

Ora, é a partir daquela inscrição do mundo objetivo e da vida fragmentária de cada um no confronto com esse horizonte de referência de valores ideais não monetarizáveis que o conceito de estilo de vida é por si definido. Assim, o estilo de vida de uma comunidade depende da relação entre a cultura objetivada e a cultura dos sujeitos (PM, p. 453). É em função do balanço que se vai estabelecendo na estrutura quiástica da cultura humana que o estilo de vida de uma sociedade deve ser determinado. De acordo com Simmel, quanto mais aumentar o número de conexões intermédias de todo o tipo existentes em uma sociedade, maior será a tendência para que a relação discrepante entre a cultura objetiva e a subjetiva oriente-se para a preponderância da objetivação, o processo cultural separe-se do seu conteúdo, a cultura das coisas subjugue a cultura subjetiva. Torna-se cada vez mais nítido que o conceito de objetivação, no seu pensamento, tem a função de analisar o caráter específico do mundo moderno.

Simmel começa por detectar a razão profunda da tendência para a objetivação extrema da cultura no "significado das determinações numéricas" (PM, p. 453). Nos círculos reduzidos, a relação entre a cultura objetiva e a dos sujeitos é praticamente coincidente. Mas uma elevação do nível cultural, quando é paralela a um crescimento do círculo numérico, tende à separação entre aqueles dois âmbitos culturais. Na sociedade moderna, este fenômeno dá-se poderosamente sob a estrutura da divisão do trabalho, tanto na esfera da produção como na do consumo, embora já se tivesse manifestado claramente de outra forma na Atenas clássica. A força que adquiriu o esquema de evolução da determinação numérica surge, no período moderno, como divisão do trabalho e tem como conseqüência a separação "da pessoa trabalhadora da obra produzida e permite que o produto ganhe uma independência objetiva" (PM, p. 457).

Novamente, Simmel refere à Grécia clássica, desta vez para mostrar como a densidade dessa sociedade era propensa à separação dos fatores subjetivo e objetivo, a qual teve expressão na "filosofia no seu cume" (PM, p. 453). Contudo, segundo o seu raciocínio, a "Atenas do século de ouro" soube evitar esse efeito da separação entre a cultura objetiva e a subjetiva (PM, p. 453). O juízo de Simmel nesta matéria deve ser considerado como muito firme. Na verdade, em uma importante obra posterior, Schopenhauer e Nietzsche, tem a oportunidade de aprofundar a visão sobre as conseqüências da complexidade incessante promovida pelas inúmeras intermediações próprias do crescimento numérico das civilizações e das culturas que designou por amadurecidas. Nesse estudo, argumenta que a conjugação das diferentes atividades práticas que se deparam aos seres humanos dessas sociedades tende a complicar a relação entre os meios e os fins dos sujeitos. O prolongamento interminável das finalidades transforma a existência humana em uma sucessão de fragmentos e parcialidades que se tornam, assim, objeto da intervenção tecnicizada. Como conseqüência, os homens perdem de vista o telos que oferece sentido a sua ação. Essa situação esteve na origem da emergência dos sistemas filosóficos e religiosos capazes de uma orientação para valores últimos e para uma visão global do mundo.

A filosofia de Sócrates e Platão, com a sua exigência de manter sempre a moralidade como horizonte de toda a ação, em conjunto com o advento e a expansão do cristianismo, no marco da crise da Antiguidade, e com a mensagem da salvação e a expectativa da sua realização constituíram, segundo Simmel, a resposta à angústia da perda das finalidades. Esta foi a idade axial, se quisermos usar o conceito que Jaspers irá sugerir e Mumford tornar fulcral, que guiou a ação humana até ao enfraquecimento da vitalidade ou à quebra da tensão, na expressão de Weber, do páthos grandioso da ética cristã, ao longo do século xix. A expansão da divisão do trabalho e o aumento da sua especialização, o crescimento infinito da cultura objetiva e a proliferação explosiva de objetos comerciais, o vazio ético da cultura impregnada pela objetividade indiferente do dinheiro impelem agora a alma para a aspiração de uma finalidade absoluta da vida. Esta, no entanto, não é consonante com a ausência de uma essência fixa da moderna sociedade capitalista, tecnicizada e megaurbanizada. O aspecto aritmético, psicointelectualista, descolorido e inessencial da vida acaba por sobrepor-se aos valores interiores, mais profundos e elevados do ser humano. Nesta avaliação, Simmel, como farão Durkheim e Weber, retoma o tópico do grupo de pensadores não anti-religiosos do século anterior sobre as conseqüências da dificuldade do Iluminismo em criar convicções que jogassem o papel que a fé religiosa tivera. Através de Hegel, como lembra Dorinda Outram, o pensamento alemão interrogou-se muito cedo sobre este problema. No interior dessa corrente, o Iluminismo é visto como "um projeto incompleto para a liberdade intelectual e espiritual", que oferece uma imagem de homem "que enfatizava a autonomia humana e a auto-suficiência" e o enreda "no seu próprio solipsismo, incapaz de se julgar a si próprio ou de criar laços não utilitários com outros seres humanos" (Outram, 2001 [1955], p. 61).

A transformação da cultura objetiva em finalidade da ação do ser humano conduz ao atrofiamento do espírito subjetivo, ao subordinar o sentido da vida humana ao predomínio de um dos aspectos do seu modo de ser sobre os outros. Na visão simmeliana, esse processo pode ser designado por redução do dualismo da cultura a um espírito objetivado, apenas formalmente intelectualizado, em uma palavra, tecnicizado. Esta tecnicização interior, segundo o conceito que aqui propomos, como objetivação extrema da vida e do pensamento, revela uma distorção atrofiada da ação humana e uma desfiguração coisificadora dos homens e das mulheres. Um tal desvio reificado da cultura, digamo-lo também de uma forma que não era propriamente a de Simmel, pode ser definido como constituindo um estado da situação alienada do ser humano com o mundo em uma época peculiarmente científico-tecnológica.15 15 Esta concepção sobre o rumo seguido pelo processo histórico-cultural encontra-se sintetizada com uma clareza extraordinária nos derradeiros períodos de um outro texto: "Pelo menos, o desenvolvimento histórico vai na direção de aumentar cada vez mais a distância entre as realizações culturais objetivamente criadoras e a situação cultural dos indivíduos. A dissonância da vida moderna, em especial a intensificação da tecnologia em todas as esferas, combinada com a profunda insatisfação com ela, surge em grande medida do fato de que as coisas se tornam cada vez mais cultivadas, mas as pessoas só em uma medida mínima estão em condições de alcançar, a partir do melhoramento do objeto, uma melhoria das suas vidas subjetivas" (EC, p. 45).

Quanto a este tópico, não é abusivo estabelecer pontos de contato entre a interpretação de Simmel e dois estudos publicados meio século depois: The transformations of man (1956), um importante ensaio de antropologia filosófica de Mumford, e "Mundo da vida e tecnificação sob os aspectos da fenomenologia" de 1963, uma conferência de Hans Blumenberg realizada sob o mote da discussão com a fenomenologia de Husserl e a sua perspectiva sobre a "crise das ciências européias".

De acordo com Mumford, desde o século vi a. C. e no período de tempo que vai da emergência da filosofia em Atenas à formação do cristianismo, teve expressão na Europa e na Ásia um processo de formação de um período axial ou de religiões axiais da história humana. Mumford assinala esta seqüência como a base espiritual e de valores que deu origem a uma nova persona e a um novo conceito de comunidade dos seres humanos, cujas características estão estabelecidas pela tendência a representar a vida como uma batalha constante entre as forças do bem e as forças do mal, pelo cultivo da vida interior em detrimento da exterior e pela separação completa entre o natural e o ideal. O confronto proposto por Simmel entre a cultura subjetiva e a cultura objetiva, conceitos herdados das categorias hegelianas de "espírito subjetivo" e "espírito objetivo", situam-se de modo claro no interior desta memória de longa duração.

Blumenberg (1963), por sua vez, vislumbra na disputa de Sócrates com a proposta sofística de separar o conhecimento (theoria) do domínio dos objetos (techné) a raiz da tradição de resistência favorável à subordinação da instrumentalidade perante a moralidade. De acordo com a sua interpretação, durante a segunda metade do século v a. C. surge, pela primeira vez, um tipo de saber concentrado no "como se fazia algo", na perícia e nas regras da manipulação que, desvinculado de referências filosóficas no campo da política e do direito, poderia estar ao serviço de qualquer fim. Esta proposta de uma "técnica" divorciada de referências sobre a sua fundamentação e justiça deparou com a luta promovida pela exigência de manter sempre a primeira dependente da pergunta sobre a sua legitimidade. O reino da techné, da destreza e da instrumentalidade, não poderia ser dissociado da compreensão e da norma de retidão que o justifica.16 16 Recentemente, para caracterizar precisamente aquela atitude clássica dos gregos em considerarem a tecnologia uma forma de conhecimento imperfeita, social e moralmente desestabilizadora e negativa, que devia ser objeto de apertadas restrições religiosas, políticas e culturais, Carl Mitcham (1996) sugeriu o conceito de "ceticismo moral". Sensivelmente na mesma altura, Hannah Arendt, em A condição humana (2001 [1958]), conceitualizou esta ação, no domínio que designa por vita activa, como uma atividade de "fabricação" ou know how. Segundo Blumenberg, a filosofia alcançou o seu estatuto clássico na Antiguidade, não só pelo seu distanciamento da retórica, mas também por assumir nos seus fundamentos as determinações conceituais através das quais, a partir dessa altura, se pôde colocar o saber operativo sob suspeita, no sentido de uma mera técnica sem relação com o que realmente é o verdadeiro e o bom. Não significou apenas uma supremacia da consideração teórica como a mais adequada à razão humana, mas, sobretudo, a primazia de toda uma região de objetos intacta e intangível para o homem – o reino que Simmel chama de armazenamento do trabalho espiritual da espécie humana ou, na tradição helenística pós-socrática, dos procedimentos de reta conduta que só eles alcançam em si mesmos o sentido.

Cremos que é precisamente neste sentido que os famosos ensaios de Simmel sobre a metrópole, a tragédia da cultura e a cultura feminina devem ser interpretados, e não – nota bene – como pós-modernos avant la lettre. Tudo nos parece indicar que a importância que concede a esses âmbitos da vida, e a outros como o consumo, a viagem e os sentidos, fica a dever à sólida consciência de que é na ligação íntima entre várias dessas esferas que os modelos e as atividades de caráter moral e social podem produzir os seus resultados, e daí também o seu interesse pelas ligações entre os planos econômico, metafísico e político, reforçado pela relevância que concede ao problema da integração plena e coerente do indivíduo na vida da cidade, da polis. A denúncia reiterada da objetivação da cultura moderna e do modelo de racionalidade calculista, aritmético, quantitativo e utilitário – estes são os sentidos das suas expressões para designar o "espírito moderno [...] resultado da economia monetária, [que] corresponde ao ideal das ciências naturais" (MVE, p. 33) – tem correspondência com a categoria fundamental que Simmel aponta no seu diagnóstico da época moderna, científico-tecnológica e metropolitana: a cultura da indiferença, o blasement, a incapacidade para perceber as distinções significantes entre as coisas.

Na promoção da atitude de indiferença, ao tremendum da estimulação sensorial que a vida da metrópole provoca associa-se o "reflexo subjetivo da completa monetarização da economia, na justa medida em que o dinheiro toma o lugar de toda a diversidade das coisas e sujeita todas as diferenças qualitativas ao critério do `quanto custa'" (MVE, p. 35). A este respeito, vale a pena lembrar que Simmel não chegou sequer a assistir ao sensorium de regularidade, ampliação, distorção, ruído e simulacro trazido pelo que Mumford designou ironicamente como a "bênção" repetitiva da máquina e dos meios eletrônicos (cf. Mumford, 2001 [1952], p. 87-8). "Na medida em que o dinheiro, incolor e insensível à qualidade, se torna o denominador comum a todos os valores, ele se transforma em um terrível nivelador: esvazia, de uma forma incontornável, a essência das coisas, as suas peculiaridades, o seu valor específico e as suas singularidades" (Mumford, 2001 [1952], p. 87-8). Em uma interpretação muito esclarecedora da perspectiva de Simmel sobre as metrópoles, Leopoldo Waizbort17 17 Refira-se de passagem que a importância do estudo deste autor sobre Simmel não se confina ao capítulo sobre a cidade moderna. As aventuras de Georg Simmel de Waizbort é um das mais aprofundadas e detalhadas investigações sobre a obra (e também a vida) já realizadas sobre Simmel, um trabalho que temos o privilégio de ter originalmente na língua portuguesa. salienta precisamente os aspectos referidos:

As condições de vida na cidade grande e moderna criam condições e necessidades específicas de sensibilidade e comportamento. Os modernos vêem muitas imagens, são bombardeados, ao colocarem os pés para fora de casa, com o fluxo enorme das imagens (caberá à televisão trazê-las para o interior). Mas a sua capacidade de atribuir sentido a elas não acompanha a velocidade com que se apresentam à consciência. O modo de experiência da realidade que está então em jogo é radicalmente distinto (Waizbort, 2006 [2000], p. 323).

A quantidade de estímulos com que o habitante da grande cidade se vê defrontado "exige-lhe tanto, que ele não é mais capaz de responder adequadamente a eles. Sua indiferença é análoga à do dinheiro" (Waizbort, 2006 [2000], p. 328).

Sendo verdade que Simmel não vê na objetividade do mundo moderno um desenvolvimento univocamente negativo, pois destaca os vínculos que a mobilidade e o comércio incrementam entre os indivíduos e o sentimento de independência individual que provém da impessoalidade do dinheiro, o ponto nodal da sua perspectiva deixa perceber repetidamente a idéia – de fundo aristotélico – que a plenitude da realização existencial e pessoal só se pode dar através da inserção harmoniosa na polis. A própria utilização dos conceitos de alma, pessoa, espiritualidade, metafísica e virtude, tão presentes na Filosofia do dinheiro, nos textos sobre a cultura e a metrópole, indicia a sua inscrição no conceito de persona da tradição helênica pós-socrática, do cristianismo e do direito romano. Nesse conceito, só o indivíduo que transcende constantemente a si próprio, em termos de um agir adequadamente humano, no sentido de ético, pode ultrapassar os limites da individualidade psicofísica. Mas o permanente questionamento do sentido global da realidade e a procura de padrões de vida de cada sujeito estão ainda ligados à urgência que os seres humanos experimentam em ter um horizonte de referência para orientar a sua vida. A desconexão do homem com o mundo, estimulada pela cultura da indiferença e a hipervalorização da atividade produtiva, corresponde a um grau extremo de alienação. Por assim ser é que Simmel escreveu:

Este exagerado crescimento da cultura objetiva tem-se revelado cada vez menos benéfico para o indivíduo. Talvez por estar menos consciente do que ativo, enredado pelo obscuro complexo dos seus sentimentos, o indivíduo vê-se reduzido à condição de desprezível expressão numérica. Torna-se um mero elemento da engrenagem dominado pela implacável organização material e por forças que, gradualmente, o privam de tudo o que tenha a ver com progresso, espiritualidade e virtude (MVE, p. 41).

A análise de Simmel chega mesmo a ser irônica e contundente:

Basta assinalar que a metrópole é a sede desta cultura, que eliminou todas as características da pessoa. Nos edifícios e nas instituições educativas, nas maravilhas e nas benesses das técnicas de conquista de espaço, na constituição da vida social e nas instituições estatais concretas, por todo o lado, deparamos com impressionantes formas de cristalização e despersonalização dos empreendimentos culturais, perante as quais a personalidade dos homens, por assim dizer, só muito dificilmente pode ser conservada (MVE, p. 41).

Simmel estava de tal maneira convencido do significado do "antagonismo" que os homens e as mulheres tinham de enfrentar para resistir "à uniformização e à submissão perante as engrenagens sociotecnológicas" que Weber analisará sob o conceito de "jaula de ferro da burocracia", Mumford no de "megamáquina" e em Kafka encontrará o expoente literário que o considerava, como sublinhou enfaticamente no incipit deste texto, "uma atualização da luta pela sobrevivência que o homem primitivo teve de travar com a natureza" (MVE, p. 31). A "independência" e a "individualidade" que o sujeito moderno queria preservar estavam em causa pelos "poderes supremos da sociedade, o peso da herança histórica, a tecnicidade e a cultura da vida contemporânea" (MVE, p. 31). Ao mesmo tempo, Simmel foi quase certamente o primeiro teórico social a admitir a hipótese de uma relação entre ciência, tecnologia e gênero, algo que também ainda não foi assinalado, realizada a partir da correspondência entre a dualidade da cultura e a bipolarização das identidades sexuais. A natureza objetiva de uma das dimensões da cultura humana não o impeliu a considerá-la independente da diferença entre homem e mulher. Sempre no interior do seu sistema dual de dependências mútuas entre vida e formas, Simmel define, como princípio masculino, a atividade de um espírito que se desenvolve bidimensionalmente e em que a verdade irrompe através de um conhecimento que requer uma relação dedutiva do pensamento lógico. Como princípio feminino, postula a imanência decorrente da participação das mulheres no todo da experiência e da vida que faz com que a verdade tome a forma de sabedoria (cf. Fernandes, 1993). O jogo relacional presente na proposta de Simmel explora sobretudo uma possibilidade, evocada a propósito da medicina:

Trata-se, sim, de saber se podemos alimentar a esperança de assistir ao advento de novos conhecimentos que enriqueçam a ciência médica e sejam resultantes de uma contribuição feminina relacionada com aqueles problemas que transcendam as faculdades do homem. Quanto a mim, aceito esta possibilidade, baseando este juízo no fato de tanto o diagnóstico como o tratamento dependerem notavelmente da faculdade de o médico poder sentir em si próprio o estado em que o doente se encontra. É freqüente estabelecerem-se conclusões prematuras através de métodos puramente objetivos de observação clínica, precisamente por os não secundar uma espécie de conhecimento subjetivo – o qual pode ser instantâneo e instintivo ou, então, adquirido em face de manifestações externas – do estado e sentimentos do doente. Considero este conhecimento complementar, como importantíssima condição ou qualidade para o desempenho da medicina, só podendo atribuir-se ao seu caráter espontâneo e intuitivo o fato de aos próprios médicos passar despercebido (CF, p. 38).

Afirmando-se pela empatia, o princípio feminino pode obliterar a indiferença dos métodos objetivos típicos do princípio masculino.

4 Heterogonia dos fins e autonomização da tecnologia

A idéia precoce de algumas das concepções da independência ou autonomia da tecnologia é o culminar dos principais componentes dos esclarecimentos embrionários de Simmel para o tema que estamos tratando e que têm uma presença proeminente em Filosofia do dinheiro. Esta linha de pensamento decorre, de forma coerente, do aprofundamento da já assinalada caracterização da condição cultural dos seres humanos na época moderna. Mas, ao mesmo tempo, avança em direções de maior amplitude e conseqüências, que implicam interrogar os objetivos do progresso tecnológico em confronto com a pergunta pelos fins últimos da vida humana. O resgate da argumentação de Simmel nesta questão torna extremamente clara a influência que exerceu na concepção weberiana de "racionalização", bem como em todas as noções complexas de tecnologia que recusam a sua definição como um simples conjunto de meios instrumentais, visíveis em Weber, Ellul, Mumford, Marcuse e em vários autores contemporâneos.

De acordo com Simmel, é próprio do processo cultural moderno o perigo de os âmbitos objetivos tornarem-se autônomos relativamente aos sujeitos que os construíram. A ciência e a tecnologia, entre outros domínios como a arte, estão entre essas esferas. O "grande processo de objetivação da cultura moderna" é, na sua perspectiva, o quadro de conjunto em que o conteúdo cultural, de uma forma mais evidente, transforma-se em espírito objetivo, não apenas em relação àqueles que o recebem, mas também para aqueles que o produzem (cf. PM, p. 463). A configuração contemporânea desta relação está determinada pela divisão do trabalho e pela especialização, tanto no sentido das pessoas como das coisas (cf. PM, p. 463), sendo também o resultado da economia monetária (cf. PM, p. 468). A época em que o predomínio da cultura objetiva apresenta-se tão avassalador sobre a cultura subjetiva indica, portanto, a transição para uma sociedade predominantemente monetarizada, tecnicizada e metropolitana. Simultaneamente, à medida que a divisão do trabalho se complexifica e a economia se monetariza, mais o homem vê perturbada a consciência do sentido da sua vida. Integrando a crescente independência do mundo objetivo, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia modernas impõe-se ao homem como se se tratasse de um fenômeno da natureza.

É neste cenário que ocorre o fenômeno para o qual propomos a designação de "heterogonia dos fins" (expressão cunhada por Wundt e que tem afinidades com o conceito de "paradoxo das conseqüências" de Weber): a tensão extrema entre a cultura objetiva e a subjetiva transforma-se em uma estrutura utilitarista sistemática em que todos os meios acedem à qualidade de fins. Todos os fins e propósitos são reduzidos a meios. A tecnologia é precisamente uma das expressões mais destacadas por Simmel relativamente às aporias humanas no quadro do vazio ético da objetivação da sociedade tecnológica, monetarizada e metropolitana. No próprio sentido das suas palavras, é no caráter mágico, opaco, não explícito e danoso dos fins últimos, que a tecnologia supostamente oferece, que se constata a prova absoluta de como os meios superaram os fins. Deste modo, o significado social da tecnologia advém da sua consideração no quadro de um entendimento dos fins que é produto da restrição da razão aos meios e à lógica do poder. O sujeito reduz-se ao elemento que o reduz. Reconstituamos, uma vez mais, os passos do pensamento simmeliano, salientando o problema de fundo da sua precoce postulação relativamente à autonomização da tecnologia.

A divisão do trabalho começa por estar na origem da "incomensurabilidade entre a realização e o realizador" (PM, p. 455). A unidade espiritual fica, desde logo, em causa em um enredo interminável e desdobrável de séries de meios-fins. "A pessoa já não se vê a si mesma na sua obra; esta torna-se tão pouco parecida ao todo pessoal-espiritual e surge apenas como uma parcialidade completa da nossa essência, indiferente à unidade total do homem" (PM, p. 455). Segundo a sua reflexão, quanto mais o fenômeno da divisão do trabalho é atravessado por múltiplas instâncias de mediação, mais o caráter de cada uma dessas instâncias consiste em ser válido e eficaz como parte de uma totalidade. Por conseguinte, também mais objetiva e independente é essa totalidade relativamente à vida dos sujeitos que lhe dão origem.

Um tal processo de diferenciação, que separa os conteúdos isolados da subjetividade humana no sentido de os tornar objetos "com caráter e movimento independentes" (PM, p. 456), é o esquema geral da complexidade social. Este esquema abrange também as relações entre o consumo e a produção, fazendo com que a divisão do trabalho e a especialização estejam indissociavelmente entrelaçadas com a cultura do consumismo.

À medida que o consumo se amplifica, também este torna-se inexoravelmente mais dependente da expansão da cultura objetiva. Semelhante encadeamento tem origem na regra de que "quanto mais objetivo e impessoal é um objeto, mais apropriado ele é para um maior número de pessoas" (PM, p. 455). A diferenciação crescente da produção está implicada, portanto, com a uniformização subjetiva dos desejos. O crescimento do consumo fica a dever-se à acessibilidade e à atratividade dos objetos para o maior número de indivíduos. Contudo, essas características resultam apenas da diferenciação extrema da produção que permite produzir os objetos de modo serializado e barato, tal como é requerido pelo volume do consumo. A produção em massa e o consumo massivo estão mutuamente condicionados, estimulando a estandardização e a impessoalidade dos objetos:

Na medida em que a divisão do trabalho destrói a produção para o cliente [ ] desaparece também a aura subjetiva do produto, inclusive do ponto de vista do consumidor, porque a mercadoria é agora produzida independentemente dele. Torna-se um dado objetivo, do qual o consumidor se aproxima de fora e cuja existência específica e qualidade são autônomas dele (PM, p. 457).

Nada caracteriza de forma tão clara "a objetivação crescente do cosmo econômico e a sua independência impessoal em relação ao sujeito consumidor" do que o contraste "entre a casa moderna de confecções, altamente especializada, e o trabalho do alfaiate, que era recebido em casa" (PM, p. 457).

A distância entre os objetos e a alma humana, que assinala a relação alienada na esfera do consumo, está já implicada no processo que, no âmbito da produção ou do trabalho, "separa o trabalhador do trabalho produzido e permite que este último ganhe uma independência objetiva" (PM, p. 457). A obra criada já não projeta a alma do criador nem toca a alma do sujeito consumidor. Ela é o resultado do "fracionamento do trabalho em operações parciais cada vez mais especializadas, [de] as relações de intercâmbio se tornarem crescentemente mais complicadas e mediatizadas, com o resultado que a economia deve ter mais obrigações e relações que não hão de ser diretamente recíprocas" (PM, p. 457). O "caráter do conjunto da circulação econômica" vai-se tornando objetivo, e a "subjetividade é destruída e convertida em reserva fria e objetividade anônima", à medida que "entre o produtor e aquele que compra os seus produtos interpõem-se tantas e tantas estações intermédias que fazem com que um perca de vista o outro" (PM, p. 457). A divisão do trabalho é entendida como repartição da produção, fracionamento e especialização. A relação entre o consumo e a complexificação da produção é, no entanto, apenas um dos aspectos do esquema de condicionamento mútuo entre a objetivação da cultura e a divisão do trabalho.

Na verdade, à circunstância anterior Simmel agrega a idéia de que, no século xix, o trabalho se já tinha convertido em mercadoria:

O fato de, agora, o trabalho partilhar o mesmo caráter, as formas de valorização e o destino de todas as outras mercadorias significa que se converteu em algo objetivamente separado do próprio trabalhador, algo que este não só não é, mas que nem sequer já possui. Isto é assim na medida em que a sua quantidade potencial de trabalho converte-se em trabalho real e este já não pertence ao trabalhador, mas somente o seu equivalente em dinheiro, enquanto a primeira pertence a outra pessoa ou, dito de forma mais apropriada, a uma organização objetiva do trabalho (PM, p. 456).

O resultado dessa evolução dos meios e da força de trabalho fica patente no produto final. Este, na "época capitalista", é "um objeto com um caráter claramente autônomo, dotado de leis próprias de movimento, manifestamente alheio ao próprio sujeito que o produz lá onde o trabalhador está obrigado a comprar o seu produto de trabalho quando o quer adquirir" (PM, p. 456). O aumento da distância entre o sujeito e as suas criações provém também das conseqüências da especialização e da diferenciação dos próprios meios e instrumentos de trabalho, que impede os trabalhadores de reconhecerem a sua intervenção no resultado da sua atividade: "Ao converter-se em totalidade e ao realizar uma parte cada vez maior do trabalho, o poder autônomo da máquina confronta o trabalhador, na exata medida em que este já não é uma personalidade individualizada, mas apenas alguém que leva a efeito uma atividade objetivamente determinada" (PM, p. 459).

Este "padrão geral de evolução", que transcende o "trabalhador assalariado individual", atravessa também o contexto científico, o qual é caracterizado, por Simmel, pela

imensa divisão de trabalho da ciência [que] é a causa de que unicamente um número muito pequeno de investigadores pode criar as suas próprias condições de trabalho; um número infinito de fatos e métodos têm de ser admitidos simplesmente como material objetivo procedente do exterior, isto é, como propriedade intelectual dos outros a ser usada para mais investigações (PM, p. 456).

Em sua opinião, essa tendência contrasta com a que, "na esfera da tecnologia", teve lugar nos começos do século xix "quando as mais espetaculares invenções se sucediam umas às outras na indústria têxtil e nas fundições" e em que "os inventores não só tinham de construir as máquinas com as suas mãos e sem a ajuda de outras máquinas, mas que, inclusive, tinham de imaginar e criar as ferramentas necessárias para isso" (PM, p. 456). "Em sentido amplo e, em todo o caso, no sentido implicado aqui, a situação atual na ciência", continua Simmel, "pode ser considerada como uma separação entre o trabalhador e os seus meios de trabalho. Isto porque, na atual situação da investigação científica, o material objetivo do produtor está certamente separado do processo subjetivo do seu trabalho" (PM, p. 456). Com este olhar precoce sobre as alterações na estrutura do trabalho científico, no sentido de uma organização complexa, especializada, fragmentada e nada alheia ao processo geral de objetivação e reificação, Simmel estava dando os primeiros passos de uma análise sobre a importância das mudanças sociais na própria ciência, que se tornou comum a muitos dos seus observadores.18 18 Ver por exemplo, a este respeito, o que escreve Alden S. Klovdahl: "Em contraste [com a revolução científica da era moderna que teve um caráter cognitivo], o que mudou mais radicalmente neste século foi a organização social da ciência [ ] Os métodos de contabilidade que tornaram possível a empresa capitalista foram ampliados e aplicados inicialmente à tecnologia e depois à ciência. [ ] A incansável busca de racionalidade econômica em parte alguma foi mais evidente do que na burocratização da pesquisa. Para os cientistas, no plano individual, isso significou uma transformação de exploradores independentes em empregados bem-posicionados na escala hierárquica de carreiras em grandes organizações, de profissionais ecléticos de amplo espectro em especialistas cada vez mais restritos e de participantes pessoais em comunidades auto-reguladoras em membros anônimos de grandes associações" (1996 [1993], p. 667).

Na linguagem simmeliana, os resultados da ciência começavam a ser o produto da fragmentação mecânico-técnica do trabalho. Não têm propriamente um criador ou, pelo menos, o criador está separado do destino daqueles. Esta análise da captação da ciência pelo hiato cada vez mais aberto entre a cultura dos homens e a cultura das coisas é realizada a partir da própria tradição filosófica alemã da alienação que, devendo aos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx um desenvolvimento profundo, tinham já merecido uma atenção singular da parte de Hegel em Fenomenologia do espírito. Este fato ajuda a compreender os desenvolvimentos tão paralelos de Simmel relativamente a Marx, pois o primeiro não conhecia aquela obra do segundo, escrita em 1844, mas só publicada em 1932 (e traduzida para inglês no período posterior à Segunda Guerra Mundial).

Na vida moderna, prossegue Simmel, as pessoas e as coisas tendem, portanto, a uma constante separação. O pensamento, o trabalho e a habilidade invertem-se em configurações objetivas, livros e mercadorias. "O sentimento de estar oprimido pelas externalidades da vida moderna é não só a conseqüência, mas também a causa de elas nos aparecerem como objetos autônomos" (PM, p. 460). Na sua observação, o mais angustiante dessa circunstância reside no fato de as razões da economia de mercado, da gênese impessoal e da substituibilidade fazerem com que esse reino das coisas, na sua impressionante variedade, acabe por nos ser indiferente (PM, p. 460).

A tendência para a diferenciação completa entre objetos e seres humanos é também reforçada por um novo fenômeno mecânico-técnico – "a mobilidade impessoal". "Os objetos culturais aumentam progressivamente, até constituírem um mundo cada vez mais coerente em si mesmo, que, em alguns pontos – cada vez menos –, atinge a alma subjetiva, com a sua vontade e os seus sentimentos. E esta coesão está determinada por uma certa mobilidade autônoma dos objetos" (PM, p. 460). De acordo com esta formulação premonitória simmeliana, a uma tal automobilidade das coisas, das máquinas e dos veículos corresponde um horizonte de "imobilidade cinestésica" dos sujeitos, se quisermos utilizar o conceito de Husserl, ou de "inércia polar", segundo a noção mais recente do ensaísta francês Paul Virilio (1993 [1990]). A auto-suficiência dos veículos e das máquinas, que leva à atrofia da mobilidade do homem e do seu corpo, começa a converter-se em um dos seus horizontes predominantes. O homem passou a poder ser movido heteronomamente para todo o lado, obedecendo a trajetos e horários, bem como a ser espectador de tudo – através do reino multimídia – sem quase precisar realizar um movimento. "Tem sido dito que o comerciante, o artesão e o investigador gozam hoje de muito menos mobilidade que na época da Reforma. Os objetos materiais ou espirituais movem-se hoje de modo independente, sem portador e transportador pessoais" (PM, p. 460).

No distribuidor automático de mercadorias, Simmel vê o ponto culminante da mobilidade impessoal e o mais evidente exemplo do caráter mecânico da economia moderna: "O distribuidor automático [ ] elimina completamente a mediação humana até na venda a varejo, na qual os negócios continuavam a fazer-se através de relações interpessoais. Deste modo, o equivalente monetário converte-se em mercadoria através de um artifício mecânico" (PM, p. 461). Assim, tal como Marx já assinalara para a estrada-de-ferro, que mais do que transportar produtos produzia mercadorias, a nova prótese mecânica constituída pelo distribuidor automático aprofunda a tendência para a submissão da mobilidade e da circulação ao processo de mercadorização e às regras da economia de mercado. É particularmente apropriada, a este propósito, o comentário de Jean Robert: "A relação entre a marcha a pé e o transporte é o paradigma de toda a relação entre um modo autônomo e o seu contrário, um modo heterônomo de produção" (Robert, 1998, p. 2). Na tradição analítica que Simmel dá os primeiros passos, a retração incessante do ser humano perante a automobilidade dos objetos ou perante os substitutos heterônomos da sua mobilidade física é interpretada como sendo conducente ao debilitamento da relação com o mundo real. Albert Borgmann (1984), um dos pensadores que mais tem insistido neste traço da sociedade tecnológica, tem argumentado convincentemente de que esta circunstância ocorre a partir do momento em que o esforço deixa não só de ser requerido para aceder ao mundo, como nos é induzido o dever de nos libertar dele completamente através dos dispositivos técnicos e do consumo de objetos e artefatos.

Será, porém, algumas páginas depois e a partir da percepção de que "todo o problema resolvido [pela ciência] revela novos problemas e que a aproximação às coisas apenas nos mostra quão longe continuam a estar de nós" (PM, p. 475) que Simmel é levado a lançar um olhar prolongado sobre a ciência e a tecnologia modernas no quadro de alguns elementos do pano de fundo metafísico ocidental. O processo de objetivação dos conteúdos culturais impregna todos os aspectos da cultura moderna ou "evoluída", implicando a separação dos meios sobre os fins da vida. O telos da ação encontra-se perdido diante da influência distanciadora da economia monetária, da ciência e da tecnicidade. A "relação espiritual" com o mundo em que se inscrevem a ciência e a técnica surge como sendo idêntica à do dinheiro onde todos se movem e são movidos por uma "rede teleológica" entre meios e fins.

Em um primeiro momento da sua digressão, Simmel começa por situar aquele enredo no "duplo processo" da tentativa de superação da distância permitida pela ciência (a exemplo da dinâmica de conversão dos valores na forma monetária) (PM, p. 475-6). Através do microscópio e do telescópio, exemplifica, os homens superaram distâncias enormes entre eles e as coisas, embora se tornem conscientes dessas distâncias no exato momento em que as ultrapassam. Trata-se, contudo, de uma circunstância que não está desligada do enleio metafísico em que nos movemos há muito tempo. Os métodos científicos que passamos a utilizar para penetrar nos aspectos internos da natureza dificilmente poderão substituir a proximidade íntima que as sensações e as crenças (mesmo que erradas) da mitologia grega asseguravam à alma humana: "quanto maior é a distância conquistada ao mundo exterior, mais aumenta a distância no mundo espiritual" (PM, p. 476). A origem desta tensão situa-se no processo de distanciamento nas relações propriamente internas e em uma diminuição da distância nas externas: "O mais longínquo torna-se próximo à custa do aumento da distância em relação ao mais próximo" (PM, p. 476). E não cessa de prolongar-se e de propagar-se a todas as esferas da vida. A divisão do trabalho implica a separação do trabalhador dos meios e do produto do trabalho, a produção separa-se do consumo, o sujeito distancia-se das realidades da vida, a ciência e a tecnologia dos seus fins, enfim, a cultura objetiva afasta-se tragicamente da subjetiva.19 19 Hannah Arendt (2001 [1958]) virá também a referir-se à revolução científica do período de Galileu e ao exemplo do telescópio como símbolo do processo que permitiu uma maior acessibilidade do universo à percepção do homem, mas não se transformou em um decréscimo da distância entre o homem e a Terra. Pelo contrário, segundo Arendt, a tendência para diminuir a distância terrestre, que o avião depois proporcionou, deu-se à custa da alienação do homem do seu mundo terreno próximo. Quanto mais a percepção passou a poder abranger toda a Terra, menor foi o espaço terreno que restou ao homem, que assim se concentrou apenas sobre si próprio.

O ponto de partida dos esclarecimentos mais explícitos de Simmel sobre a tecnologia é constituído contra esse fundo de preponderância dos meios sobre os fins típica da sociedade moderna. Em paralelo com o que afirma para o dinheiro, Simmel sustenta a tese de que a categoria de meio reverte-se na de fim no âmbito da tecnologia. Invocando novamente a relação com o estilo de vida, começa por afirmar que os progressos da tecnologia têm um "efeito distanciador" (PM, p. 481) sobre aquele. Por outras palavras, a tecnologia como meio não se retira uma vez atingido o objetivo, não fenece em um efeito determinado; pelo contrário, o fim é que é suplantado pela valorização e pela magnitude do meio, os efeitos ultrapassam os fins. "Isto depende obviamente da preponderância, já enfatizada, que os meios alcançam sobre os fins da vida nas culturas evoluídas" (PM, p. 476). Uma atitude cultural de inquietude, latência e incompletude é conseqüência desta situação: "Na época moderna, especialmente na contemporânea, dá-se um sentimento de tensão, esperança e urgência não resolvidas, como se todavia estivesse por chegar o fundamental, o definitivo, o sentido e o centro de gravidade propriamente ditos da vida e das coisas" (PM, p. 476).

Seguindo Simmel, a ordem entre meios e fins está colocada às avessas. Esta inversão define a situação da tecnologia no mundo contemporâneo: "De modo menos claro, mas mais perigoso e oculto, aparece esta tendência no caráter ilusório dos fins últimos através dos progressos e da valorização da tecnologia" (PM, p. 476). A tecnologia coloca-se no plano da soteriologia na época científico-tecnológica, torna-se uma ideologia salvífica, como dirá Ellul (1987). O fim da existência humana concentra-se totalmente na produção dos meios: "Com esta rede teleológica, elevamos a caráter absoluto a contradição que se encerra no fato de o meio superar o fim: ao aumento da importância dos meios corresponde uma recusa e uma negação crescentes do seu fim" (PM, p. 455).

A situação descrita "impregna cada vez mais a vida social das pessoas, afeta os círculos mais amplos de relações pessoais, políticas e econômicas, e dá, indiretamente, o seu caráter distintivo a determinados grupos de idade e a certos círculos sociais" (PM, p. 455). Nesse sentido, é na medida em que a tecnologia se transfigura de um meio em um fim que ela adquire autonomia. Note-se que esta autonomização não provém, de acordo com Simmel, da soberania que as ciências naturais e a tecnologia têm na sua parcela cognitiva relativamente "a nossa melhor imagem possível das leis da natureza", invocando a concepção de auto-suficiência (self-sufficiency) da ciência de Nicholas Rescher (1999, p. 115), mas do fato de tornar-se uma realidade imanente e de a sua grandeza ser ilimitada, extravasando os domínios especificamente cognitivos. Mesmo quando o progresso tecnológico promove a procura de novos fins, estes fins destinam-se a tornar-se meios desse progresso tecnológico. É por esta razão que a ilusão da tecnologia é danosa e invisível, e tanto mais ameaçadora quanto opaca, pois, na interpretação de Simmel, a tecnologia passa a ser a finalidade da vida. A categoria de meios deixa de ser adequada para caracterizar a tecnologia: "Se a relação entre as realizações tecnológicas e o significado da vida é, no melhor dos casos, a de um meio ou um instrumento, e muito freqüentemente nem sequer tal relação existe, então, entre as causas da ignorância do papel da tecnologia, basta mencionar a grandiosidade do seu desenvolvimento autônomo" (PM, p. 481).

A clarificação do enredo teleológico do par conceitual meio-fim conduz Simmel a interrogar-se sobre o seu fundo original, situando-o em um "erro antigo da metafísica: projetar na totalidade as determinações que aparecem entre os elementos e que, portanto, têm um caráter relativo" (PM, p. 482). Que aos "partidários mais entusiásticos da tecnologia moderna" lhes pareça "muito estranho que o seu comportamento mostre o mesmo tipo de erro formal que o do metafísico especulativo" (PM, p. 482), não invalida o diagnóstico realizado: "a altura relativa que alcançaram os progressos técnicos da época moderna frente às circunstâncias anteriores, com reconhecimento prévio de certos fins, é olhado com uma importância absoluta de tais fins e progressos" (PM, p. 482). Com essa invocação do fundo metafísico tão ao gosto de Simmel do teleologismo da dupla meio-fim, e com a relação que estabelece entre a atitude do tecnófilo e do metafísico especulativo, não está propriamente a introduzir de forma indireta a tese de que o impulso científico do Ocidente encontra no cristianismo uma legitimação essencial, como propuseram Lynn White ou Karl Löwith, entre outros. Não obstante, é certo que no seu pensamento, mais em Schopenhauer e Nietzsche do que em Filosofia do dinheiro, insinua-se sempre a importância dos laços entre a religião cristã e o fundamento da idéia moderna de ciência e até de história. Do mesmo modo, ao ceticismo que sempre manifestou quanto ao cientificismo, ao historicismo e à ideologia do progresso não é alheia a consciência de que a ciência e a tecnologia começavam a substituir a religião como horizonte cultural dominante, afastando-se da tendência de muitos vultos dos séculos xviii e xix que afirmavam a idéia de que toda a sabedoria só poderia ser de ordem secular e que a curiosidade dos homens deveria estar dirigida privilegiadamente para o mundo objetivo.

A rejeição daquelas metanarrativas, por parte de Simmel, era movida por uma imensa e pouco comum – e não só na sua época – lucidez sobre o fato de constituírem, no fundo, representações metafísicas, como podemos estar hoje mais cientes após o balanço da experiência que o século xx realizou com parte delas. Não denotando nostalgia pela ordem do mundo que estava ruindo sob o impulso da modernidade, mas também pondo a descoberto a mentira da objetivação, Simmel interroga-se sobre o enigma metafísico que contribui para legitimar a transformação, através de um critério utilitarista sistemático, da máxima "os fins justificam os meios" no princípio "os meios justificam os fins". No entanto, são poucas as linhas que dedica a um problema complicado e intrigante da história das idéias e que tem sido, em particular, repetidamente interpelado pelo pensamento alemão.

Em Odo Marquard, julgamos encontrar uma contribuição valiosa para a elucidação do problema de que fala Simmel. Resumidamente, é no otimismo da forma leibniziana de teodicéia que Marquard percebe as raízes subinstitucionais que ajudaram a caucionar a lógica inerente ao reino de acumulação ilimitada de meios e ao mundo estritamente utilitário do homem fabricador e demiúrgico, assim redefinido pela antropologia filosófica do século xviii, em que a relação entre meios e fins se perde em uma cadeia infindável, sem nunca atingir algum princípio que acabasse por justificá-la. O principal argumento na definição de Deus da teodicéia leibniziana é otimista: Deus não compensa os males com os bens, os males é que são reabilitados pelo bem que perseguem. Os males são tolerados porque "o ótimo, como fim, justifica os males como condição da sua possibilidade" (Marquard, 1989, p. 46). "O princípio secreto fundamental da teodicéia é – horribile dictu – a máxima: o fim santifica os meios" (Marquard, 1989, p. 46). De acordo com esta interpretação, só Deus escapa à relação meios-fins, o que é interpretado como um "princípio de criação" religioso extremo. Assim, é quando Deus é liberto deste princípio que o mesmo pode, afinal, resultar.20 20 Como conseqüência, assim conclui Marquard, "a não-existência de Deus deve ser permitida ou até mesmo estimulada" (Marquard, 1989, p. 47). Quando Deus foi liberto do seu papel criador, o seu lugar ficou vago para o homem ocupá-lo. Com a crise da teodiceia, o homem como fim em si mesmo passa a ser capaz de usar todo o resto como simples meio, tornando-se o herdeiro que realiza e completa a teodiceia. Todo o fim atingido transforma-se em um novo meio para um outro fim. Em uma passagem dedicada a este mesmo problema, Hannah Arendt (2001 [1958], p. 192-9) apresentara já uma argumentação muito próxima:

Se os critérios do homo faber passarem a governar o mundo depois de construído, como devem necessariamente presidir ao nascimento desse mundo, então o homo faber, mais cedo ou mais tarde, servir-se-á de tudo e considerará tudo o que existe como simples meio a sua disposição (Arendt, 2001 [1958], p. 198).

A crer neste tipo de interpretação, e de regresso às palavras de Simmel, o resultado dessa trama teleológica meios-fins é que o que domina não são os possíveis usos dos meios, mas os próprios meios. Os fins cessam de santificar os meios, os meios é que santificam os fins. É na criação dos meios que radica doravante a finalidade dos fins. A lógica da teodiceia leibniziana permite uma articulação poderosa com o critério utilitarista sistemático do homo faber: para salvar os meios, os fins foram libertos do seu papel criador. Também neste caso, o bem (a tecnologia) só existe através do mal (por exemplo, a escassez ou a doença) e em competição com ele. Bonum através do malum, assim é o esquema legitimador, pelo qual a finalidade ínsita da vida tem-se convertido na fabricação incessante de meios. Desta forma, compreende-se, porventura, melhor a mais decisiva das teses de Simmel relativamente à tecnologia moderna: sob o pano de fundo metafísico da complexidade dos sistemas de fins da cultura moderna e do enfraquecimento do cristianismo e do fim absoluto que oferecia (que Simmel aprofundou em Schopenhauer e Nietzsche), a tecnologia transformou-se no centro dos trabalhos e da importância do ser humano. O homem tem hoje luz elétrica, mas esquece que o essencial não é a luz em si, mas aquilo que torna mais visível. O êxtase perante o triunfo do telégrafo e do telefone leva a negligenciar o conteúdo da comunicação (PM, p. 482).

Não restam dúvidas de que a sua advertência – sublinhe-se uma vez mais – não meramente negativa para o universo da cultura objetiva destina-se a salientar um conjunto de verdadeiros problemas. Estes são relativos a um tipo de intelectualização e ação que restringe a existência humana ao âmbito da calculabilidade, dos valores monetarizados, da acumulação ilimitada de meios como alavancas de uma idéia equivocada de progresso. Sempre que se põem a funcionar os meios, é esse pensamento que está funcionando: "[A] preponderância dos meios sobre os fins encontra a sua apoteose no fato de que a periferia da vida, as coisas fora da sua essência, converteu-se nas coisas dominantes sobre o seu próprio centro, ou seja, sobre nós mesmos" (PM, p. 482). A denúncia de Simmel é realizada em nome de uma genuína filosofia existencial que recusa a ilusão do objetivismo e do universo de poder conceitual e operativo levado a cabo por uma "formulação completamente infantil" de vencer ou dominar a natureza (PM, p. 482) conducente à perda do sentido da vida e do mundo.

Se considerarmos a totalidade da vida, veremos que toda a possibilidade de domínio sobre a natureza pela tecnologia se dá pagando o preço de ficarmos prisioneiros nela e de renunciarmos à espiritualidade como ponto central na vida. As ilusões desta esfera manifestam-se já claramente na terminologia que sobre ela é usada e na qual um modo de pensar, orgulhoso da sua objetividade e da sua desmistificação, revela os aspectos contrários a estas tendências (PM, p. 482).

A natureza não oferece propriamente uma resistência à capacidade científico-tecnológica, na medida em que o elemento teleológico lhe é alheio, a sua sujeição não mudará as suas leis, a propagada eficácia das leis naturais é inexistente, se por ela se supõe uma obrigação iniludível para as coisas. Esse tipo de concepção obriga Simmel a regressar uma vez mais à inesperada imbricação entre a ciência e o fenômeno religioso: "A ingenuidade de um mau entendimento dos métodos das ciências da natureza, como se as leis da natureza operassem na realidade quais poderes reais, da forma como um governante controla o seu império, corre paralela com a crença no controle direto de Deus nas coisas terrenas" (PM, p. 483). E reafirma enfaticamente, realçando esse antiqüíssimo deslizamento entre a antropologização da tecnologia e a tecnificação do ser humano: "Se tudo isto não fosse mais do que formas de expressão, estas conduziriam a todos os pensadores superficiais por entendimentos antropomórficos equívocos, mostrando que a forma mitológica de pensamento também encontra refúgio na concepção científica do mundo" (PM, p. 483).

Ao dar origem a um mundo com uma tal profusão de objetos, forças impessoais e trabalhos, comandado em um plano crescente de domínio por um enfoque instrumentalista, utilitário e aritmético, os seres humanos deixam escapar do seu horizonte os fins que conferem sentido e importância aos meios. A direção heterogônica dos fins significa que o objetivismo e o seu mundo adquirem independência com respeito à atividade humana que o produziu. O homem corre o perigo de transformar-se em um servomecanismo tanto no domínio da produção como no do consumo:

As linhas pelas quais a tecnologia tece as energias e os materiais da natureza para a nossa vida podem ser mais bem vistas como cadeias que nos entorpecem e nos fazem ver como indispensáveis uma grande quantidade de coisas que, para a essência da vida, são prescindíveis. Relativamente à esfera da produção, tem sido afirmado que a máquina, que supostamente deveria libertar o homem do trabalho de escravo em relação à natureza, forçou o homem a ser seu escravo. Tal é ainda mais verdade ao nível da mais sofisticada e compreensiva das relações internas: a afirmação de que dominamos a natureza na medida em que a servimos implica o reverso chocante de que a servimos na medida em que a dominamos (PM, p. 483).

Na linha que Hannah Arendt (2001 [1958], p. 153-9) virá a aprofundar, Simmel anuncia um mundo em que nenhum objeto está a salvo do aniquilamento pelo consumo e em que todas as energias de cada sujeito devem ser canalizadas para a produção de objetos que só no reino da fantasia tiveram alguma vez lugar ou até nunca antes terão sido imaginados. Na era moderna, todas as atividades e todos os seres humanos estão doravante submetidos ao reino da necessidade através do princípio de que a não-emancipação do consumo significa a não-emancipação do trabalho. Essa é a teia estabelecida e estimulada pela divisão do trabalho, a monetarização capitalista e as capacidades científico-tecnológicas.21 21 Don Slater tem razão quando enfatiza que o paradigma do consumo simmeliano observa uma conexão importan- te com o processo de racionalização e reificação, o qual exerceu uma forte influência em Lukács (cf. Slater, 1997, p. 117-8). Sobre este problema, ver também Timothy Bewes (2002). "Assim como, por um lado, nos tornamos escravos do processo de produção, por outro, passamos a ser escravos dos produtos. Ou seja, aquilo que a natureza nos oferece pelos meios da tecnologia acaba por dominar a personalidade e o centro espiritual da vida, através de uma infinidade de costumes, distrações e necessidades superficiais. [ ] De tal modo que o ser humano se tornou estranho para si mesmo e entre ele e o que lhe é mais distintivo e essencial interpõe-se uma insuperável barreira de meios, invenções, capacidades e desfrutes técnicos" (PM, p. 483-4). Tal como Mumford observa para a esfera da reprodução mecânica da arte, consumir de forma contínua tornou-se o imperativo de um novo conjunto humano os consumidores (Mumford, 2001 [1952], p. 79-99). No âmbito da extensão global do capitalismo das últimas décadas, Leslie Sklair (2002) assinala apropriadamente que o nexo entre esse processo e a acumulação privada de capital implica o estímulo de uma "cultura-ideologia do consumismo", que comercializa e apresenta como úteis e atraentes todas as idéias e produtos materiais de que procura apropriar-se.

Enfim, como conseqüência deste quadro, "a espiritualidade e a concentração da alma" do sujeito, "atordoada pelo enorme esplendor da época científico-tecnológica, converte-se em um sentimento desfalecido de tensão e desejo desorientado" (PM, p. 484). O indivíduo é assaltado por uma intranqüilidade e nervosismo onipresentes,

como se todo o sentido da nossa existência fosse tão remoto que não o pudéssemos localizar e estivéssemos sempre em perigo de nos afastarmos em vez de nos aproximarmos dele. Para além do mais, é como se o sentido da vida estivesse ao nosso alcance, se fôssemos capazes de ter um pouco mais de coragem, força ou segurança interior. Na minha opinião, esta intranqüilidade interior, esta urgência desamparada sob o limiar da consciência que empurra o homem moderno do socialismo para Nietzsche, de Böcklin para o impressionismo, de Hegel para Schopenhauer, e vice-versa, não tem origem na pressa e na excitação da vida moderna mas, pelo contrário, é freqüentemente expressão, sintoma e erupção dessa condição interior. A ausência de algo definitivo no centro da alma impele-nos para a procura da satisfação momentânea através de excitações, sensações e atividades externas continuamente novas. É, portanto, isto que nos torna enredados na falta de quietude e tranqüilidade que se manifesta no tumulto da metrópole, na mania das viagens, na procura selvagem da competição e na típica ausência de fidelidade moderna nas esferas do gosto, dos estilos, das opiniões e das relações pessoais" (PM, p. 484).

Os temas, a análise da cultura moderna e até a inspiração para os títulos dos trabalhos que veio a desenvolver estão, como se verifica, já anunciados na parte final da Filosofia do dinheiro.

A perspectiva muito relevante da racionalidade específica da moderna civilização ocidental que Weber veio a desenvolver é reconhecidamente inspirada na reflexão do seu amigo Simmel. Lembremo-nos que, para Weber, todos os diferentes processos sociais e culturais que distinguem o modelo ocidental de racionalização encontram-se unidos pelo fato de implicarem sobretudo a racionalidade da ação – a racionalidade formal – em detrimento dos seus fins ou dos valores – a racionalidade substantiva. O desencanto e a intelectualização do mundo, a emergência de um ethos de realização secular impessoal, a expansão do conhecimento técnico especializado, a objetivação do direito, da economia e da organização política do Estado, o desenvolvimento dos meios tecnicamente racionais de controle sobre o homem e a natureza, e a tendência para sobrevalorizar a ação puramente instrumental face à ação tradicional são todos processos cujo elo comum consiste no fato de o fim em função do qual a ordem social é racionalizada não ser verdadeiramente um fim, mas um meio generalizado que estimula a procura propositada de todos os fins substantivos (cf. Weber, 1987 [1922]).22 22 Em Portugal, Rafael Gomes Filipe (2002), em uma esclarecedora introdução a uma importante tradução de A ciência como profissão, refere Lawrence A. Scafft para reiterar a influência simmeliana em Weber. Nessa introdução, R. G. Filipe situa tal influência a partir de Schopenhauer e Nietzsche, de 1907, obra posterior a Filosofia do dinheiro, onde já está largamente desenvolvida a perspectiva histórica e filosófica de Simmel sobre a cultura e a intelectualização com a qual Weber irá largamente convergir em muitos dos seus desenvolvimentos centrais.

Deste modo, de Simmel a Weber, de Mumford a Marcuse e a Ellul, constituiu-se uma tradição que não pensa a tecnologia como consistindo apenas em um mundo de objetos e de artefatos, não sendo também a civilização científico-tecnológica assim designada devido ao emprego maciço de máquinas e à magnitude dos seus sistemas técnicos. Na consideração de Simmel sobre a tecnologia moderna, este fenômeno é entendido como envolvendo aquilo que Meltzer sintetiza de modo feliz como sendo o seu grande alcance:

Por detrás dos instrumentos físicos e das máquinas reside algo que pode ser designado por "atitude" tecnológica, ou "modo de pensar", ou até "postura" perante o Ser: um entendimento inespecífico, mas geralmente utilitário dos fins, uma atenção privilegiada aos meios e ao poder, a restrição da razão à racionalidade instrumental – a perseguição metódica da maneira mais eficiente de fazer cada coisa –, a fé no domínio e no controle humanos, a crença na superioridade do artificial face ao natural e do mecânico face ao humano, e a visão de que tudo o que o homem encontra na natureza ou na história é apenas matéria-prima e que ele é livre de transformá-la para os próprios propósitos (Meltzer, 1993, p. 292).

No panorama desalentador que sucedeu às deflagrações atômicas do final da Segunda Guerra Mundial e, mais tarde, ao conhecimento público dos gravíssimos danos que as sociedades modernas industriais provocam no ecossistema global, reforçou-se em alguns teóricos a convicção na potencialidade da direção autônoma, ilimitada ou fora de regulação da tecnologia, dando origem a um tipo de reflexão que defende que os avanços técnico-científicos não podem ser aceites de forma cega e receia o afunilamento da vida humana à tecnicidade. Langdon Winner (1977), que intitula uma das suas principais obras exatamente com o conceito de "tecnologia autônoma" e dirige a sua atenção para os processos, padrões e práticas de âmbito tecnológico que substituem cada vez mais outros modos de construção, escolha, ação e influência que eram considerados como especificamente políticos; Ulrich Beck (1992 [1986]), que focaliza as transformações silenciosas e subreptícias impelidas pela política tecnológica responsável por decisões não planificadas e sem legitimidade democrática; e Hermínio Martins (1996), que orienta o seu olhar para a sujeição aos projetos de uma radical alteração da condição humana da tecnologia contemporânea, contam-se entre o punhado de herdeiros, em sentido obviamente amplo, dessa visão do processo de autonomização da tecnologia que Simmel foi o primeiro a nomear e a analisar na teoria social. Weber, Mumford e Ellul prosseguiram, com alguns outros, este tipo de interpretação crítica do domínio da sociedade por parte do imperativo tecnológico e da sua tendência para escapar das nossas mãos. Desta importante tradição, contudo, não se detectam sinais muito fortes na orientação dominante de "estudos sociais da ciência", de perfil construtivista radical e geralmente defensor da noção de que a tecnologia deve ser interpretada no âmbito da sua "construção social" ou "configuração social" (social shaping). A desvinculação da tecnologia, em favor de uma visão de solipsismo sociológico, do atributo de causalidade, de influência penetrante e formativa, o realce das possibilidades de escolha pública ou a não-saliência dos processos e engrenagens – econômicos, culturais e políticos – impositivos e ratificadores das inovações técnicas são características dessa corrente.

Com freqüência extraordinária, a tese da "autonomia da tecnologia" é (mal) compreendida como uma manifestação, em versão pessimista, de determinismo tecnológico, devido a sua imagem de uma sociedade capturada pelo movimento de mudança permanente provocado pelos avanços tecnológicos e pelo condicionamento dos fins humanos às exigências do progresso científico-tecnológico e do seu padrão. No entanto, a perspectiva de Simmel, que, na teoria social, contribuiu de forma embrionária para essa imagem de uma sociedade subordinada ao imperativo tecnológico, apresenta todos os argumentos fundamentais passíveis de rebater um entendimento do determinismo tecnológico que só pode ser considerado como deficiente. Desde logo, o conjunto da perspectiva simmeliana (tal como a de autores antes referidos, independentemente das suas diferenças) caracteriza-se pela negação categórica de que a determinação da sociedade pela tecnologia é inevitável. Depois, essa negação veemente envolve uma recusa epistemológica em que Simmel foi também pioneiro na teoria social e Weber prosseguiu de que a história ou a sociedade são regidas por leis inelutáveis, radicadas ou não na esfera econômica ou tecnológica. Esta negação, por sua vez, envolve uma noção forte de incerteza na relação da ciência natural com o mundo físico e biológico. Finalmente, a concessão de um lugar na vida humana à tecnologia, enquanto cultura objetiva, não significa nesta linha de pensamento, antes pelo contrário, a atribuição da sua primazia na organização social e na vida cultural do homem.23 23 Uma introdução excelente e multidisciplinar aos estudos de ciência encontra-se em David J. Hess (1997).

Como elucidou Carl Mitcham (1989), o entendimento de que a tecnologia é um fenômeno não problemático e que a explicação do mundo deve ser realizada em termos predominantemente técnicos que visem a extensão da consciência tecnológica é próprio de uma "filosofia da tecnologia" cujo lema bem pode ser ilustrado pela famosa máxima, escrita em 1877 por Ernst Kapp, que "toda a história da humanidade, verificada com exatidão, reduz-se, ao fim e ao cabo, a uma história de invenções de melhores ferramentas". Em sentido inverso, o reconhecimento da tecnologia na cultura humana, realizada por Simmel e por autores como os referidos, implica a recusa tanto da sua compreensão meramente artefactual, instrumental, cuja natureza seria valorativamente neutral, como da sua proeminência como força condutora da história e da sociedade. A integração da tecnologia no vasto plano das manifestações culturais do homem, isto é, o reconhecimento de um âmbito próprio da tecnicidade, é feita em uma equação em que as relações com o mundo dos valores – o espírito subjetivo na linguagem simmeliana – são definidas como dialéticas.

Conclusão

Do diagnóstico da cultura do mundo moderno realizado por Simmel, destacam-se três elementos de grande significado para a reflexão sobre a tecnologia. Primo, a tecnologia é um dos resultados da exteriorização do espírito subjetivo no mundo social e cultural e nessa qualidade de objetivação da subjetividade humana integra, por conseguinte, plenamente o processo cultural. Esta inclusão da tecnologia na cultura é realizada através de um entendimento que rompe com uma compreensão restrita, instrumental e remetida para a utilidade, alarga-se a um certo tipo de ação, a formas de organização social, cultural e coloca a descoberto as implicações formativas derivadas do seu papel de mediação e alargamento do raio de ação humano. O que caracteriza o mundo moderno como tecnológico não decorre simplesmente do desenvolvimento material extensivo, mas também da disseminação deste fenômeno para outras áreas da vida apenas formalmente afastadas do mesmo. Secundo, o homem é caracterizado pela sua condição de ser metafísico, e as suas necessidades vitais não são de natureza tecnológica. Conseqüente com a idéia de que a tecnologia não é uma entidade neutral, o seu significado não é, portanto, reduzido a um mero conjunto de objetos e instrumentos, remetendo antes para implicações referentes, quer ao plano mais diretamente axiológico ou político, quer às relações espirituais, isto é, ao estado da própria relação do homem com o mundo. Tertio, como resultado da evolução dos meios e do fenômeno da divisão do trabalho associado à diferenciação capitalista e ao estímulo do dinheiro, a tecnologia adquire o caráter de sistema autônomo, ilimitado e universal, no sentido de fim último e enganoso da ação e do desenvolvimento humanos. Trata-se da alienação do homem em relação aos seus próprios instrumentos e artefatos: a tecnologia deixa de funcionar em relação aos fins do homem; a humanidade passa a funcionar em função da tecnologia.

O que é admirável na visão que Simmel apresenta é a sua inclinação para ilustrar a ambivalência da modernidade através dos traços percorridos pelo ponto de confrontação agudo entre as duas formas de cultura apresentadas ao longo deste texto – a cultura objetiva e a cultura subjetiva. O eixo central da sua análise é a alternância do conflito entre a vida e o espírito, a dualidade real e simbólica que aspira a uma unidade que, na era moderna, torna-se uma busca factícia, mais do que fictícia. O crescimento da cultura objetiva na sociedade moderna liga-se estreitamente a um tipo de intelectualização ou racionalização em que a objetividade do mundo se estende ao tratamento dos conteúdos desse mundo como objetos. Marx tinha assinalado este problema – a reificação – no interior do processo econômico, tanto na economia política como na praxis econômica do capitalismo. E à emanação de relações econômicas, que não eram compreendidas como relações entre produtores, mas como relações entre coisas e objetos, apelidou-a de alienação. A propriedade privada transforma os meios de produção de simples instrumentos e materiais da atividade produtiva do homem em fins que o subordinam, isto é, que o alienam de si, na medida em que de um fim fica transfigurado em um meio, de pessoa em um objeto de um processo impessoal que se valoriza a si próprio e o torna heterônomo sem olhar às suas exigências e necessidades.

Não é o operário que utiliza os meios de produção, são os meios de produção que utilizam o operário. Em lugar de serem consumidos por ele como elementos materiais da sua atividade produtiva, são eles que o consomem como fermento necessário do seu próprio processo vital; e o processo vital do capital consiste somente no seu movimento como valor em constante expansão e multiplicação (Marx, 1906 [1876], p. 339).

No entanto, diferentemente de Marx, Simmel concebe a heteronomia objetiva do homem como um resultado do processo mais amplo de objetivação do pensamento e da cultura humana. A exteriorização da subjetividade humana no mundo social e cultural produz um mundo de conteúdos e objetos culturais que, embora tendo sido obra dos indivíduos, tende a emancipar-se dessa origem e a seguir o seu próprio movimento, não só no sentido autoconstituinte, mas verdadeiramente autônomo. Quando esse universo cultural objetivo torna-se oculto e ameaçador para os sujeitos, essa autonomização transforma-se em reificação, e esta é experimentada como alienação. O significado deste amplo processo de objetivação encontra-se na profunda mudança nos comportamentos emocionais e intelectuais de todas as relações humanas em uma sociedade complexa, monetarizada, tecnicizada e metropolitana. A idéia de reduzir o problema da reificação à compreensão e à subversão da sociedade capitalista é, por conseguinte, simplesmente alheia a Simmel.

Tal como Durkheim, Simmel, embora evitando a tendência atribuída ao primeiro em Les formes élémentaires de la vie religieuse no que toca ao entendimento da religião como manifestação pré-científica da autoridade em uma sociedade, estava também absorvido com as conseqüências para a sociedade advindas da negação do homem moderno em penetrar no todo social através de símbolos e imagens ideais sem legitimação científica. Esta perspicaz interpretação, que Albert Salomon realizou (1962), tem o mérito de nos mostrar que, enquanto Durkheim tratou da dualidade básica do homem, como ser especificamente individual e social apoiando-se na noção de Homo Duplex, e George Herbert Mead recorreu à dialética entre I e Me (Eu e Mim), Simmel esboça uma perspectiva histórico-filosófica suscitada pela interrogação de fundo quanto à situação do homem e do seu conhecimento em um período que concebe como sendo de erosão da unificação da existência interior sob a finalidade única que tinha sido oferecida pela promessa de salvação do cristianismo e das instituições religiosas, as únicas, para além das políticas, com capacidade para constituir a organização da ação social no seu conjunto. Nesta interpretação, que vai no sentido da que realizamos sobre a sua ênfase quanto à relação entre a metrópole e a vida do espírito, Simmel de forma manifesta não crê – questão que tem sido pouco salientada ou entendida por muitos dos que se têm debruçado sobre a sua obra – que em uma sociedade modelada basicamente por critérios utilitaristas, valores monetarizados e pela heteronomia instituída pela tecnologia seja possível, após o declínio da anterior heteronomia religiosa do mundo, estabelecer símbolos apropriados à plena realização existencial dos seres humanos em termos de uma sociedade autônoma integrada por indivíduos autônomos, ou seja, por pessoas. Mas, a esse respeito, algo de importante acaba por distinguir Simmel de Durkheim: a concepção "unitária" que o autor francês tem da relação entre o sujeito e as determinações exercidas por uma ordem social imanente dá lugar no autor alemão, que concebia a sociologia como teoria das formas e da diversidade cultural através da qual a vida, em um entendimento metafísico, se processa, exterioriza e deixa evocar (mais do que captar), a um plano tensional entre duas formas de cultura humana antinômicas que, no entanto, aspiram à unidade. Parece-nos evidente que é por esta ordem de razões que a problemática de Simmel é, no que diz respeito à metrópole, o estado da vida do espírito, ao invés da integração do indivíduo na cidade a partir de um princípio social totalizante. A sua epistemologia é essencialmente solidária com o plano ontológico.

A tão salientada – também por vários dos seus comentadores – dialética da alienação e da liberdade (ou, mais propriamente, de uma certa "individualização", psicologismo e esteticização da vida) que os seres humanos experimentam de modo ambíguo na sociedade moderna esteve sempre articulada com o seu diagnóstico sombrio das conseqüências da divisão e especialização extremas da produção, do consumo e da ciência, que representavam o perigo da renúncia a penetrar e refletir sobre o conjunto de símbolos que permitem a participação harmoniosa na polis. É inequívoco que Simmel reconhece na sociedade moderna, através da divisão do trabalho e da vida metropolitana, maiores possibilidades de abertura para o sujeito localizar-se nos pontos de intersecção de diversos "círculos sociais", através das quais se podem expandir também as suas oportunidades de desenvolvimento individual. Mas enfatiza sobremaneira o perigo de a distância entre o crescimento da cultura global e a dos indivíduos tornar-se cada vez mais incessante, processo que assinalou como próprio da cultura humana, embora com características mais exacerbadas e dramáticas no período moderno.

De acordo com a sugestão que estamos apresentando, o que está em causa, em Simmel, não é a negação da distância ontológica entre os sujeitos e a sociedade, movida por sua pressuposta adoção do "individualismo metodológico". A aceitação da irredutibilidade da sociedade como entidade autônoma perante o indivíduo não tem que significar, e em Simmel não significa, a alienação do indivíduo. A importância que concede à intersubjetividade não o leva jamais a recusar a pertinência do conceito de sociedade, como, aliás, é extraordinariamente explícito na sua teorização sobre a importância mediadora da figura da tríade e da extensão das suas propriedades típicas a todas as subseqüentes formas de agrupamento (INCS). O problema de Simmel reside no fato de o "espírito objetivado" da sociedade, que se manifesta nas criações e organizações materiais, entrar cada vez mais em contradição com a capacidade de integração subjetiva dos indivíduos em termos de desenvolvimento pessoal e social. A interpretação dos seus escritos pela focalização da análise que realiza do desenvolvimento rápido de uma sociedade tecnológica e metropolitana, apoiada nos avanços científicos e que estava transformando por completo as atitudes intelectuais e emocionais de todas as relações humanas, permite revelar em que medida a denúncia da heteronomia do indivíduo procura ser compatível com a tentativa insistente de afirmar uma idéia de autonomia da própria sociedade – um projeto perseguido por outros pensadores, como bem lembra Dupuy a propósito de Castoriadis (cf. Dupuy, 2001 [1992], p. 299-303) – como forma de evitar a negação do sujeito à participação lúcida e criativa no todo social.

Guiar o mundo objetivo do homem por relação ao homem, ou melhor, a uma idéia de homem, define o projeto de Simmel. O ser humano da preponderância da cultura objetiva é o resultado da contração do conceito que tem de si próprio e da sua natureza simbólica/subjetiva. Não se encontra em Simmel uma demonização da cultura objetiva, como também não se poderia constatar a redução do problema da tecnologia a um universo de objetos, artefatos, máquinas ou sistemas mecânicos. Na tradição a que deu início, postular a tecnologia como mero conjunto de aparelhos, seria já concebê-la de forma tecnicizada porque produto de uma reificação do pensamento. Ao focalizar o universo da cultura objetiva e da tecnologia, Simmel salienta um tipo de pensamento para denunciar toda a tendência em restringir a existência humana a esse âmbito. A situação da cultura moderna impele a um debate sobre a natureza e as transformações da vida humana. O ser humano não se deve limitar às possibilidades da tecnologia e da razão científica explicativa, furtando-se às exigências da compreensão, sucumbindo a um desvio factício, retraindo-se no mundo apodítico. Em Simmel, há toda uma antropologia filosófica que se afirma contrária à autonomização – ou ontologização – da tecnologia, na sua qualidade de forma extrema de heteronomia da sociedade que ameaça o conceito e a independência da pessoa. O mundo do homem é o mundo da tensão – ainda que trágica – entre a cultura subjetiva e a cultura objetiva. A esta tensão podemos chamar, com Simmel, alma, espírito, consciência. O mundo em que desaparece essa tensão, devido à hipertrofia da cultura objetiva, é o mundo do quantitativo, da máquina, da tecnologia. A uma tal ausência de tensão podemos, talvez, chamar eficácia. A consciência, e não a eficácia, é que dá a oportunidade ao homem de ser humano, pessoa. Trata-se da denúncia da objetivação do espírito, antecâmara de uma imagem científico-tecnológica do homem, na verdade o que passou a estar em causa como momento crítico, cem anos depois, com a atual deriva do determinismo genético.

Agradecimentos l Hermínio Martins e Filipa Subtil foram as pessoas a quem, pela primeira vez, apresentei, durante uma curta estadia em Oxford, nesse já longínquo abril de 2001, a idéia que foi tomando conta de mim sobre o pioneirismo de Simmel e da Filosofia do dinheiro na crítica da tecnologia no interior da teoria social. Helena Jerônimo, um mês depois, leu um primeiro esboço deste texto e comparou atentamente as citações escolhidas em diferentes traduções daquela obra de Simmel. Também pela mesma altura, tive a oportunidade de conversar com Hugo Mendes sobre esta minha convicção. Gostaria também de lembrar a chamada de atenção de Manuel Braga da Cruz para a importância de Simmel, no início do meu percurso como docente de Teorias Sociológicas (na qualidade de monitor) no ISCTE e quando ainda não tinha sequer finalizado o curso de Sociologia, e o papel destacado que Teresa Sousa Fernandes exerceu em mim sobre o seu relevo para problemáticas perenes da teoria social. A todos recordo no momento de publicar o presente texto. Agradeço também a leitura, comentários e sugestões que Hermínio Martins, Helena Jerônimo e Filipa Subtil fizeram a uma sua versão anterior. Finalmente, o ensaio aqui publicado é uma versão alterada e adaptada à ortografia brasileira de um capítulo do livro Dilemas da civilização tecnológica (editado por Hermínio Martins e José Luís Garcia, Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2003). Agradeço a Marilia Mello Pisani a leitura e o trabalho de adaptação do texto.

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  • 1
    Esta é, pelo menos, a situação das importantes interpretações da obra de Simmel propostas por Aron (1981 [1935]), Levine (1980 [1957]), Weingartner (1962), Oakes (1980, 1984), Freund (1981), Frisby (1992 [1981], 2002 [1984]), Léger (1989), Watier (1986, 2000), Liebersohn (1988), Weinstein & Weinstein (1993), Vandenberghe (1997, 2002), Waizbort (2006 [2000]) e Leck (2002), que não focalizam ou não interpretam detalhadamente a relação que é possível estabelecer entre o seu pensamento e muitas das abordagens e conceitos que posteriormente se tornaram correntes na análise da tecnologia e da sociedade tecnológica. A mesma lacuna se detecta igualmente em obras mais antigas que editaram estudos sobre Simmel, como as de Wolf (1959) e Coser (1965), que contam com ensaios de uma plêiade de figuras onde se incluem, para além dos próprios editores, Durkheim, Tönnies, Bouglé, Sorokin, Salomon e Becker, entre outros.
  • 2
    A teoria de Comte não é um empirismo, e a sua argumentação estabeleceu sempre uma fronteira vincada entre o caráter especulativo dos conhecimentos científicos e a natureza dos conhecimentos técnico-práticos. O positivismo de Comte tende a atribuir à racionalidade um lugar sempre crescente, a expensas da empiricidade dos fatos observados.
  • 3
    Influenciou figuras destacadas ligadas ao círculo de Durkheim, como Célestin Bouglé, e o começo da edição de
    L'Année Sociologique contou como segundo artigo com um ensaio da sua autoria. A repercussão do seu pensamento foi imensa na sociologia norte-americana na fase da sua institucionalização universitária, em particular na Escola de Chicago por via de Robert Park, seu antigo aluno em Berlim, e por iniciativa de Albion Small muitos dos seus ensaios foram traduzidos e publicados no
    American Journal of Sociology (cf. Frisby, 2002 [1984]).
  • 4
    A este propósito, cabe chamar a atenção para o recente estudo de Lawrence T. Nichols (2001), no qual se tenta elucidar, no âmbito de uma preocupação de fundo sobre a relação entre os paradigmas científicos e os contextos da cultura organizacional no mundo acadêmico, o «imperativo situacional» que envolveu a permanência de Parsons em Harvard e terá contribuído para que, ao necessitar do parecer positivo de importantes pareceristas desta universidade, tivesse destruído um capítulo inteiro de
    The structure of social action – a sua primeira obra importante – dedicado precisamente à concepção de Simmel da sociologia.
  • 5
    Na Península Ibérica, a recepção de Simmel é tardia. Na Espanha, têm sido traduzidos e publicados muitos dos seus ensaios, geralmente contando com pequenos e rigorosos prólogos. Para além da introdução de Francisco Jarauta a
    Rembrandt, esse é o caso da abertura aos textos de Simmel (1998) editados em
    El individuo y la libertad, de Salvador Mas, que tem o mérito de assinalar de passagem que a noção de cultura objetiva, presente no seu pensamento, pode ser relacionada com a crítica da ciência e da tecnologia. Um fato merecedor de aplauso é a versão castelhana da volumosa
    Filosofia do dinheiro ter precedido a edição dos ensaios mais breves de Simmel. Em Portugal, após a publicação de
    Cultura feminina, em 1969, com um prefácio de Romeu de Melo e uma bela introdução de Natália Correia, e
    Problemas fundamentais de filosofia, um ano depois, foram apenas traduzidos, do alemão, "A teoria do conhecimento da ciência social", "Superioridade e subordinação", "A luta" e excertos de "O cruzamento de círculos sociais"; do francês, "Influência do número das unidades sociais sobre as características das sociedades", para a coletânea de textos
    Teorias sociológicas, editada por Manuel Braga da Cruz (1989); do inglês, Carlos Fortuna traduziu "A metrópole e a vida do espírito". Carlos Fortuna, Teresa Sousa Fernandes, José Machado Pais e o autor deste texto apresentam em algumas das suas publicações uma interpelação manifestamente ligada ou aos tópicos ou aos conceitos simmelianos.
  • 6
    A proposta sociológica de Simmel pretende esclarecer "formas de associação" autoconstituintes da sociedade (tais como a subordinação, o conflito, a competição, o mimetismo, a divisão do trabalho) e conteúdos (como os interesses, as inclinações, os desejos, as pulsões, os fins e os estados psíquicos). Dos seus primeiros escritos ao derradeiro, publicado já postumamente,
    Lebensanschauung, a idéia de vida nunca deixou de ser uma obsessão de Simmel. Compreendeu-a quer na sua objetividade sem consciência (
    Zôê, em grego,
    Leben, em alemão), quer como experiência subjetiva do vivido (
    Bios, em grego,
    Erleben, em alemão). A insistência em pôr em ação no seu pensamento categorias dualistas, relacionais, processuais, fluidas e metafísicas encontra-se fortemente ligada a sua idéia vitalista da vida como movimento de vida. A experiência subjetiva da vida é entendida como movimento criador e aberto à unidade que pressupõe a oposição entre formas e conteúdos. A vida constitui, deste modo, um terceiro elemento que abarca a dinâmica movente, tensa e estruturante de uma oposição que torna plausível uma complementaridade que é sempre problemática.
  • 7
    A esse respeito, vale a pena também considerar
    A questão judaica, de 1844, onde Marx dá prosseguimento a sua orientação crítica da ordem jurídico-política em nome da realidade econômica por ela recoberta.
  • 8
    Para uma compreensão profunda deste problema, ver Natália Canto Milà (2005).
  • 9
    A seguinte passagem é igualmente clarificadora: "Segundo uma perspectiva metodológica, podemos formular a nossa principal intenção do seguinte modo: é feita uma tentativa para construir um novo patamar sobre o materialismo histórico de tal forma que o valor explicativo da incorporação da vida econômica na causalidade da cultura intelectual seja preservado e, ao mesmo tempo, que estas formas econômicas sejam reconhecidas como o resultado de valorizações e correntes mais profundas de pressupostos psicológicos ou mesmo metafísicos. Na prática do conhecimento, isto deve desenvolver-se em uma reciprocidade infinita" (PM, p. 56).
  • 10
    Este ângulo de análise, claramente evocativo e valorizador das relações, sentidos sociais e espirituais que a instrumentalidade dos meios da cultura objetiva abre e põe em movimento, parece-nos harmonioso com a importância que o conceito de
    Wechselwirkung teve no seu trabalho, como é bem salientado, em um texto recente, por Christian Papilloud (2000). Chamando a atenção para a composição da palavra
    Wechselwirkung,
    Wechsel (mudança no sentido de Tausch, trocar) e
    Wirkung (efeito), em conjugação com a tradição teórica que lhe subjaz, Papilloud argumenta que a sua tradução como "interação" ou "ação recíproca", comum nas publicações em francês e inglês, é inexata e altera o sentido do pensamento de Simmel. De acordo com Papilloud, a estrutura mínima do termo pode ser descrita do seguinte modo: "Há um movimento de atração e repulsão que realiza um efeito e muda, donde saem efeitos de mudanças trocadas" Seguindo esta sugestão,
    Wechselwirkung pode ser traduzido, em português, por "efeito(s) de mudança(s)" – em francês, é proposto
    effet(s) de changement(s) – , sugerindo um processo que pelo seu próprio movimento produz efeito, mudança, faz mudar e supõe a troca (Papilloud, 2000, p. 109). Não perdendo de vista a conexão entre os diferentes âmbitos da objetividade e da subjetividade na ação do homem e no mundo social, é muito provável que esta seja, no interior da sociologia, uma das mais precoces e lúcidas aproximações destinadas a apreender as figuras de ligação e transição no acontecer aberto da realidade de um modo que dá "a pensar através da imagem" e que "guia o espírito através do movente e do movimento" (Papilloud, 2000, p. 111).
  • 11
    A este respeito, ver Filipa Subtil (2003).
  • 12
    No polifacetado estudo de Jared Diamond (2002 [1997]), é também destacado o papel dos objetos, das técnicas e dos elementos naturais, entre outros fatores, na criação de universos em certos períodos ou episódios-chave da história mundial. Historiadores como F. Braudel e C. Cipolla concederam igualmente grande importância causal a esses fatores.
  • 13
    Mais uma vez as palavras de Habermas são claras a este respeito: "Julgo que Simmel deve a sua impressionante influência, ainda que muitas vezes anônima, ao diagnóstico da época de base filosófico-cultural, que desenvolveu pela primeira vez no capítulo final de
    Filosofia do dinheiro" (2001, p. 151). Sobre a importância do diagnóstico da época feito por Simmel, ver Villegas (1998 [1996], p. 116-224), Giner (2004 [2001], p. 341-86), Waizbort (2006 [2000], p. 115-303). Em relação ao mesmo aspecto, ver também a excelente revista dedicada à obra de Simmel, organizada por Olga Sabido Ramos (2003).
  • 14
    Utiliza-se aqui este conceito não na acepção mais restrita da sua origem grega, como formação do indivíduo jovem, mas na alargada proposta por Werner Jaeger, como processo constituinte de um novo
    anthropos.
  • 15
    Esta concepção sobre o rumo seguido pelo processo histórico-cultural encontra-se sintetizada com uma clareza extraordinária nos derradeiros períodos de um outro texto: "Pelo menos, o desenvolvimento histórico vai na direção de aumentar cada vez mais a distância entre as realizações culturais objetivamente criadoras e a situação cultural dos indivíduos. A dissonância da vida moderna, em especial a intensificação da tecnologia em todas as esferas, combinada com a profunda insatisfação com ela, surge em grande medida do fato de que as coisas se tornam cada vez mais cultivadas, mas as pessoas só em uma medida mínima estão em condições de alcançar, a partir do melhoramento do objeto, uma melhoria das suas vidas subjetivas" (EC, p. 45).
  • 16
    Recentemente, para caracterizar precisamente aquela atitude clássica dos gregos em considerarem a tecnologia uma forma de conhecimento imperfeita, social e moralmente desestabilizadora e negativa, que devia ser objeto de apertadas restrições religiosas, políticas e culturais, Carl Mitcham (1996) sugeriu o conceito de "ceticismo moral".
  • 17
    Refira-se de passagem que a importância do estudo deste autor sobre Simmel não se confina ao capítulo sobre a cidade moderna.
    As aventuras de Georg Simmel de Waizbort é um das mais aprofundadas e detalhadas investigações sobre a obra (e também a vida) já realizadas sobre Simmel, um trabalho que temos o privilégio de ter originalmente na língua portuguesa.
  • 18
    Ver por exemplo, a este respeito, o que escreve Alden S. Klovdahl: "Em contraste [com a revolução científica da era moderna que teve um caráter cognitivo], o que mudou mais radicalmente neste século foi a organização social da ciência [ ] Os métodos de contabilidade que tornaram possível a empresa capitalista foram ampliados e aplicados inicialmente à tecnologia e depois à ciência. [ ] A incansável busca de racionalidade econômica em parte alguma foi mais evidente do que na burocratização da pesquisa. Para os cientistas, no plano individual, isso significou uma transformação de exploradores independentes em empregados bem-posicionados na escala hierárquica de carreiras em grandes organizações, de profissionais ecléticos de amplo espectro em especialistas cada vez mais restritos e de participantes pessoais em comunidades auto-reguladoras em membros anônimos de grandes associações" (1996 [1993], p. 667).
  • 19
    Hannah Arendt (2001 [1958]) virá também a referir-se à revolução científica do período de Galileu e ao exemplo do telescópio como símbolo do processo que permitiu uma maior acessibilidade do universo à percepção do homem, mas não se transformou em um decréscimo da distância entre o homem e a Terra. Pelo contrário, segundo Arendt, a tendência para diminuir a distância terrestre, que o avião depois proporcionou, deu-se à custa da alienação do homem do seu mundo terreno próximo. Quanto mais a percepção passou a poder abranger toda a Terra, menor foi o espaço terreno que restou ao homem, que assim se concentrou apenas sobre si próprio.
  • 20
    Como conseqüência, assim conclui Marquard, "a não-existência de Deus deve ser permitida ou até mesmo estimulada" (Marquard, 1989, p. 47). Quando Deus foi liberto do seu papel criador, o seu lugar ficou vago para o homem ocupá-lo.
  • 21
    Don Slater tem razão quando enfatiza que o paradigma do consumo simmeliano observa uma conexão importan-
    te com o processo de racionalização e reificação, o qual exerceu uma forte influência em Lukács (cf. Slater, 1997, p. 117-8). Sobre este problema, ver também Timothy Bewes (2002).
  • 22
    Em Portugal, Rafael Gomes Filipe (2002), em uma esclarecedora introdução a uma importante tradução de
    A ciência como profissão, refere Lawrence A. Scafft para reiterar a influência simmeliana em Weber. Nessa introdução, R. G. Filipe situa tal influência a partir de
    Schopenhauer e Nietzsche, de 1907, obra posterior a
    Filosofia do dinheiro, onde já está largamente desenvolvida a perspectiva histórica e filosófica de Simmel sobre a cultura e a intelectualização com a qual Weber irá largamente convergir em muitos dos seus desenvolvimentos centrais.
  • 23
    Uma introdução excelente e multidisciplinar aos estudos de ciência encontra-se em David J. Hess (1997).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Mar 2010
    • Data do Fascículo
      Set 2007
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