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O DNA francês: biossociabilidade e politização da vida

French DNA: biosociability and politization of life

RESENHAS

O DNA francês: biossociabilidade e politização da vida

French DNA: biosociability and politization of life

Messias Basques

Iniciação Científica do Departamento de Sociologia, Universidade de São Paulo. messiasjr@usp.br

French dna: trouble in purgatory

Paul Rabinow

The University of Chicago Press

Chicago/London, 1999, 201 págs.

Nas primeiras páginas de French dna: trouble in purgatory, Paul Rabinow nos diz que este é um livro sobre uma zona heterogênea onde genômica, bioética, grupos de pacientes, capital de risco, nações e Estados se encontram. Já na epígrafe do primeiro capítulo há uma menção a Max Weber que identificou o capitalismo moderno e as inovações científicas como vetores da corrosão generalizada da solidariedade humana. Ao longo de seu livro, Rabinow tentará demonstrar

um variante francês de outro modo de subjetivação (e seus descontentes) [...] O caso francês em questão valoriza a "benevolência" como uma virtude e instrumento através da qual tanto o capitalismo quanto a ciência podem ser colocados a serviço da solidariedade (Rabinow, 1999, p. 9).

O autor adverte, pouco depois, que técnicas disciplinares de individualização e regulação não serão centrais em sua exposição. Reconhece também sua inspiração no trabalho de Heller e Fehér (1994) no que concerne ao uso do conceito de "espírito", que lhe permitirá situar o caso em questão no modelo analítico da biossociabilidade. A propósito do sentido deste último conceito, Heller e Fehér argumentam que a partir do momento em que a ciência moderna passou a questionar a alma cristã, passou do mesmo modo a necessitar de outra forma de entender o corpo. Assim, enquanto estes autores acreditam que o elemento espiritual seja uma solução moderna para a questão da relação entre corpo e alma, Rabinow argumentará que o que se nos apresenta é menos uma questão de crença ou mudança de época do que uma alteração basilar de toda uma série de elementos (alguns novos, outros não) e sua configuração na prática.

Rabinow ressalva que, no domínio da bioética, o que está em pauta é a própria noção de humanidade, não em um sentido material, mas precisamente em um sentido espiritual. Do mesmo modo, o que estaria em crise seria a noção de dignidade, o símbolo que permeia a Declaração Universal dos Direitos do Homem como uma espécie de antídoto a qualquer tentativa futura de reaparição de Auschwitz. Atualmente, não entra em questão nem os corpos dóceis nem as almas condenadas (ainda que tais questões não tenham deixado de ser relevantes). O que está em jogo, prossegue o autor, são as conseqüências do processo de reconfiguração no qual vivemos, no qual se dá a fusão entre saúde e identidade, entre riqueza e soberania, entre conhecimento e valor. Por conseguinte, estamos também às voltas e imbricados com o processo que põe em evidência o modo pelo qual as tecnologias nos afetam social e corporalmente. Em suma, estamos sendo confrontados com as seguintes questões: que formas estão surgindo? Quais práticas lhes são correlatas? Que direção estão tomando as disputas políticas? Qual o espaço ocupado pela ética atualmente?

É incontestável que mudanças profundas estão ocorrendo nos âmbitos da compreensão, manipulação, representação e intervenção nas formas de vida. Mas, para Rabinow, as mudanças colocadas pelas novas tecnologias são apenas partes dessa situação confusa. Como o autor tem procurado demonstrar em seus artigos e livros, vislumbramos, há tempos, a aparição da biosocialidade como lugar primário da identidade: "uma biologização da identidade que não se assemelha às outras categorias preexistentes (como raça e gênero) no que compreendemos como manipulável e passível de aperfeiçoamento" (Rabinow, 1999, p. 13).

Cabe notar que o conceito de biopoder proposto por Foucault volta a ser central nessa discussão, ainda que Rabinow insista que seja preciso repensar o que podemos caracterizar como bíos na modernidade, uma vez que já está claro que os novos conhecimentos sobre genômica implicarão mudanças radicais nos âmbitos social e político, mas o que ainda está pendente é como as mudanças referidas à bíos irão interagir com as velhas e as novas relações de poder.

No livro resenhado, que precede o artigo de 2006 publicado em conjunto com Rose Rabinow, Paul Rabinow demonstra que nutria maior afinidade com a obra de Giorgio Agamben (2003), sobretudo quando diz que "ninguém mais pode aludir ao avanço da biopolítica no ocidente sem recorrer à descrição de Giorgio Agamben sobre a distinção entre bíos e zoé. A meu ver, a problematização da vida nua toca num ponto central para a análise aqui empreendida" (Rabinow, 1999, p. 16). Mas Rabinow já sustenta em seu livro que a articulação entre bíos e zoé – que foi potencializada após a Segunda Guerra Mundial, colocando no centro das preocupações hodiernas a questão da "dignidade da pessoa humana" em resposta aos programas de aperfeiçoamento a qualquer preço da raça ou das populações – estaria sendo progressivamente diluída.

Meu argumento é que a identificação do dna com a "pessoa humana" numa relação de auto-evidência (em que as partes simplesmente tomam o lugar da integridade dos corpos) constitui uma identificação "espiritual". Relacionar a "pessoa humana" com as partes de seu corpo ou seu dna é solucionar um problema que se encontrava arredio às nossas tentativas de compreensão (Rabinow, 1999, p. 16).

O autor acredita que suas pesquisas têm confirmado a hipótese de que as práticas e representações da vida nua foram alteradas. Isto é, se antes a vida humana dispunha de atributos que a singularizavam frente aos demais representantes da natureza, com o projeto genoma (humano, animal, vegetal e até mesmo de microorganismos) o dna foi tomado como elemento comum e universal para todos os seres viventes. O alicerce epistemológico que permitiu a elaboração conceitual que estabelece a condição que concerne à bíos e à zoé teria ruído perante as novas descobertas científicas.

Por conseguinte, Rabinow defende que a aliança entre o CEPH (Centre d'Etude du Polymorphisme Humain) e a AFM (Association Française contre les Myopathies) constituiu uma iniciativa de sucesso justamente por articular bíos e zoé em uma dimensão genômica. O autor defende que a matriz que os uniu foi o anseio de mapear o genoma humano, tendo como foco a descoberta dos genes causadores de doenças. A AFM, como tantas outras associações de pacientes, pode então ser representa na figura dos doentes (les malades), novo tipo universal de sujeito. Por trás de todos esses elementos, Rabinow ratifica que as pressões desses sujeitos também se relacionavam com argumentos religiosos que configuram, por sua vez, uma espécie de "pressão purgatória". Purgatória no sentido de que o "Parlamento", onde se encontram pacientes, médicos, cientistas, industriais e membros do Estado, exige que as decisões sejam tomadas com base na compreensão de que a urgência e a precaução são imperativas no que tange à aplicação dos conhecimentos disponíveis. Nesse momento, os pacientes apresentam-se com o argumento (que suas doenças tornam latentes) de que esta pode ser a última oportunidade para que algo seja feito em prol de suas vidas, ao mesmo tempo em que erros e riscos científicos implicados são julgados sob a égide de que deverão ser sistematicamente evitados e, se possível, extintos.

Ao referir-se à gênese dessa associação de sucesso denominada AFM, Rabinow salienta que grupos de pacientes costumam ser diminutos e possuírem interesses difusos. Na França, a situação começou a mudar quando entraram em cena os apelos do pai de um menino portador de uma grave distrofia. Esse homem, chamado Bernard Barataud, perdeu seu filho após inúmeras tentativas e pedidos de socorro em hospitais, aos melhores médicos e cientistas e ao próprio governo francês. Em seu livro, Barataud (1992) faz uma crítica feroz contra o estado de coisas que põe barreiras à descoberta de novos tratamentos e meios-diagnósticos que poderiam, quiçá, ter a faculdade de poupar, e mesmo salvar, as vidas de crianças vitimadas por doenças como aquela que levou seu filho a falecer. Diz Barataud:

Eu não escolhi esta posição. Ela me foi imposta. Porque os órgãos oficiais nos abandonaram, não tivemos outra alternativa. Nós instituímos o Téléthon. Mas sem conhecimento genético avançado não poderíamos fazer muito. Então, criamos o nosso próprio laboratório, o Généthon (Barataud apud Rabinow, 1999, p. 37).

Impulsionado pela sensação cotidiana de dor pela perda de seu filho e falando em nome do sofrimento de tantas outras famílias e grupos de pacientes, Barataud ganhou proeminência e poder no mundo das miopatias. A partir desse momento, ficava claro, para ele e para os pacientes e familiares que o apoiavam, que o único meio de fugir à banalidade do mal causado por essas doenças era depositar todas as suas fichas na ciência, na genômica. A morte de seu filho, bem como a de tantos outros portadores de distrofias, cânceres, AIDS, passou a ser não só uma lembrança constante daquilo que não querem ser destinados a vivenciar, mas sobretudo um ponto a partir do qual descobriram uma esperança pela qual lutar. Ainda que, provavelmente, os ganhos de suas lutas somente estejam à disposição das próximas gerações de pacientes.

Ao ser apresentado por um cientista ao gene que causou a morte de seu filho, Barataud disse: "a origem da doença de Alison [seu filho] está bem a minha frente. Pela primeira vez a besta se tornou visível" (Rabinow, 1999, p. 37). Para Barataud e a então nascente AFM, a descoberta do gene causador da distrofia de Duchene (responsável pela morte de seu filho) representou algo como uma revolução. Agora sabiam contra o que lutar. Mas, à época, a França ainda não estava pronta para participar desse desafio. O que deixou de ser uma barreira a partir do momento em que a aliança entre o maior centro de estudos de malformações e distrofias genéticas da França (CEPH) e o maior grupo de pacientes, familiares e voluntários engajados em debates científicos pela descoberta de curas e tratamentos (a AFM) tornou-se uma realidade.

Para Rabinow, "o projeto CEPH-AFM é uma iniciativa biopolítica no sentido de que opera em nome da saúde e bem-estar de uma população ou de uma coletividade" (Rabinow, 1999, p. 42). O autor diz que se interessou em estudar a aliança entre CEPH e AFM porque acreditou que algo diferente estava se passando na França, algo que não poderia ser reduzido tout court à história da saúde pública e da ciência. Em outros termos, podemos dizer que interessava a Paul Rabinow o diagnóstico de um problema presente, que facultasse uma genealogia do seu aparecimento, mas que não fosse fundamentado em metateorias sobre a modernidade oriundas do arcabouço sociológico, histórico ou etnográfico.

O objetivo de Rabinow consiste em identificar as transformações que incidem sobre a ação e as formas de organização contemporâneas. CEPH e AFM, tanto em suas singularidades como em sua aliança, realmente inventaram uma nova forma de ação e organização ao redor, e mesmo no interior, do mundo da genômica. Conforme demonstra Rabinow, trata-se da conjunção de uma produtiva e bem-sucedida experimentação tecnocientífica articulada à aparição das demandas dos grupos de pacientes por retornos terapêuticos e científicos em troca de seu investimento e das lutas nas campanhas do Téléthon, no consecutivo financiamento do laboratório Généthon (resultado da aliança entre AFM-CEPH) e na doação de amostras de sangue com vistas ao mapeamento dos genes responsáveis por suas doenças e distrofias.

Nas palavras do autor,

Daniel Cohen, cientista responsável pelo CEPH, e Bernard Barataud, líder da AFM, são figuras que só se realizam quando se encontram. Barataud precisava dos meios mais avançados para o desenvolvimento de pesquisas e inovação nas tecnologias dedicadas à vida. Cohen precisava de financiamento e respaldo político frente às intervenções do governo francês e de seu comitê de ética, ao mesmo tempo em que suas pesquisas revestiam-se de legitimação social (Rabinow, 1999, p. 175-6).

Rabinow insiste no argumento de que o evento criado pela aliança entre CEPH e AFM demonstrou-se como um caso exemplar em que a genômica dissolveu a articulação prévia entre bíos e zoé, trazendo à tona as amostras genéticas de cromossomos e bancos de dados computadorizados que criam novas relações com as nossas formas de vida e de conhecimento.

Caberia aqui dizer que lamentavelmente a passagem do tempo nos tolhe a possibilidade de conviver com aqueles intelectuais do passado com os quais gostaríamos de dialogar diretamente. Isto porque seria sem dúvida salutar um debate sobre a biossociabilidade com autores clássicos, tais como Hannah Arendt. O que ela nos diria ao ver que a atenção da polis ora se volta para as angústias e necessidades vitais de cada um daqueles indivíduos transformados por seus destinos (biológicos) em habitantes cativos das oikos contemporâneas?

Talvez, a singularidade da aliança entre CEPH-AFM tenha sido a possibilidade de disseminar valores e idéias, representados pelos mais diversos sujeitos e interesses. Conforme a figura "anti-pastoral" desempenhada por Baudelaire (cf. Berman, 1986) perante a modernização que emergia diante de seus olhos, muitos também têm sido aqueles que se dizem contrários à manipulação da vida. E isso tem ocorrido tanto em comitês de ética como em movimentos e associações empenhados em fazer valer o princípio "mais ética, mais limites à ciência". Como bem mostra Rabinow, as tecnologias que produzem o "espírito" dessas controvérsias são elementos centrais da máquina purgatória. O espírito é difuso, devotado para a descoberta do que modifica o estatuto da humanidade e as formas de vida dos seres humanos. A filósofa e professora do Collège de France, Anne Fagot-Largeault, propôs que a ignorância da ética repousa justamente na inobservância de que "o genoma não é sagrado. O que é sagrado são nossos valores ligados à nossa concepção de humanidade" (Fagot-Largeault, 1991, p. 47).

Contudo, diz Rabinow, o estudo da produção do espírito dessas controvérsias é somente uma das modalidades existentes no rol do pensamento crítico. O mesmo objeto poderia ser investigado sob outros enfoques. Em outras palavras:

O que cabe ressaltar, todavia, é que, cada vez mais, novas formas de organização coletiva têm surgido, conjugando diferentes atores, interesses, temporalidades, ou mesmo espacialidades, dentro de um novo modo de existência em que a vida se encontra no centro de nossas preocupações (Rabinow, 1999, p. 180).

À guisa de conclusão, Rabinow aponta para a necessidade de ampliar o campo de estudos da biossociabilidade, uma vez que "O dna francês somente vem acrescentar à narrativa um dentre os muitos casos existentes no rol dessa recente epistemikos bios" (Rabinow, 1999, p. 181).

Um outro exemplo de disputa travada em torno da biossociabilidade, que caberá ao leitor o prazer de acompanhar na descrição apurada de Paul Rabinow, diz respeito à polêmica gerada com a notícia de que o CEPH iria juntar-se a uma empresa farmacêutica norte-americana chamada Millenium Pharmaceuticals. A AFM, a mídia, o governo e seu comitê de ética, dentre outros atores, questionaram de forma veemente a possibilidade de que as amostras de sangue contendo informações sobre o DNA de milhares de pessoas portadoras dos mais variados tipos de doenças e miopatias pudesse vir a ser utilizado por uma empresa norte-americana como instrumento potencializador de futuros lucros com produtos farmacêuticos derivados do enorme e "valioso" banco de dados do CEPH.

Esta mina de ouro e de polêmica em que se converteu o banco de dados do CEPH ganhou tais proporções, sobretudo porque grande número de pacientes da AFM e outras associações propuseram-se a doar gratuitamente amostras sanguíneas para testes e pesquisas científicas. Daí em diante, a benevolência e a esperança que haviam feito que os pacientes enviassem ao CEPH suas amostras, confrontaram-se com um outro resultado que não a solidariedade enunciada no início da exposição de Rabinow. O resultado foi, antes de tudo, a polêmica pública acerca dos riscos que uma aliança Millenium-CEPH representava para o DNA do povo francês, agora elevado à condição de patrimônio nacional.

  • Agamben, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua Belo Horizonte: UFMG, 2003.
  • Barataud, B. Au nom de nos enfants Paris: Edition 1, 1992.
  • Berman, M. Tudo o que é sólido desmancha no ar São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
  • Fagot-Largeault, A. Respect du patrimoine génétique et respect de la personne. Esprit, 5, 1991.
  • Gerth, H. H. & Mills, C. W. (Org.). From Max Weber: essays in sociology New York: Oxford University Press, 1946.
  • Heller, A. & Fehér, F. Biopolitics Aldeshot: Avebury Publishers, 1994.
  • Rabinow, P. & Rose, N. Biopower today. Biosocieties, 1, p. 195-217, 2006.
  • Weber, M. Religious reflections of the world and their directions. In: Gerth, H. H. & Mills, C. W. (Org.). From Max Weber: essays in sociology New York: Oxford University Press, 1946. p. 323-58.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Mar 2010
  • Data do Fascículo
    Set 2007
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