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Editorial

Editorial

Scientiæ zudia dedica seu número inaugural de 2008 à reflexão de questões contemporâneas sobre a ciência e a tecnologia. Sua temática segue o fio do desencantamento moderno e pós-moderno do mundo, do domínio da natureza, que lhe é correlato, e das implicações do fazer biotecnológico para a vida e para o humano. A temática é tratada de duas perspectivas diferentes, de modo que os artigos aqui publicados são a expressão de desenvolvimentos atuais de dois modelos, até certo ponto, alternativos de ciência: por um lado, o modelo sociológico descritivo dos regimes sociais de produção e difusão de ciência, que aponta para as possibilidades reais de desenvolvimento da inovação científica e tecnológica, mesmo com a proliferação das fronteiras disciplinares como fruto da autonomia relativa constitutiva das especialidades; por outro lado, o modelo filosófico (epistemológico/ético) da interação entre ciência e valores, que critica a predominância de estratégias descontextualizadas, baseadas preponderantemente nos desenvolvimentos instrumentais e nas aplicações, e chama a atenção para os valores sociais e econômicos, presentes na aplicação tecnológica e científica.

Nos dois primeiros artigos, Terry Shinn aprofunda sua proposta de uma sociologia transversalista da atividade científica, que desenvolve a perspectiva da sociologia crítica de Pierre Bourdieu. No primeiro artigo, partindo do problema da universalidade – ciência ou ciências? –, o autor argumenta que a ciência e a tecnologia são constituídas por múltiplos regimes sociais de produção e difusão, cada qual autônomo e diferenciado dos demais por características próprias (história, divisão de trabalho, modo de produção cognitiva, artefatos, audiências), mas que se integram, entrelaçam e interpenetram. O autor descreve, a seguir, quatro regimes (os mais importantes) de produção e difusão de ciência e de tecnologia: o disciplinar, o utilitário, o transitório e o transversal, detendo-se particularmente neste último, que também chama de regime de tecnologia de pesquisa, para mostrar que ele se constitui na principal estrutura de transversalidade que permite convergência e complementaridade entre os demais regimes. A estrutura transversal assenta no desenvolvimento da instrumentação – de instrumentos genéricos materiais ou conceituais – como constitutiva de uma lingua franca, que garante a comunicabilidade, e de uma universalidade pragmática, que garante a resposta da questão inicial no singular. No segundo artigo, Terry Shinn submete à crítica o diagnóstico de uma diferença radical entre a modernidade e a pós-modernidade e a tese anti-diferenciacionista da ciência e da tecnologia, analisando-os, primeiro, quanto à diferença que produzem na representação da sociedade e da ciência e de como se adaptam à aceleração das mudanças cognitivas, tecnológicas e sociais das últimas décadas; e, segundo, quanto à própria mensagem pós-moderna e suas alegadas conseqüências para a ciência, a tecnologia e a epistemologia. O autor propõe, então, uma abordagem alternativa à abordagem pós-moderna, que retoma o tema da "estrutura transversal" do artigo anterior, aprofundando-o com o desenvolvimento do conceito de "matriz de entrelaçamento" que, à diferença dos conceitos pós-modernos, revela o lugar central ocupado pelo conhecimento e pela epistemologia nos diversos tipos de entrelaçamentos que podem ocorrer entre os diferentes regimes de produção e difusão de ciência e tecnologia.

Em seu artigo, Hugh Lacey analisa dois modelos alternativos de ciência (os de Helen Longino e de Philip Kitcher), que pertencem à mesma família de seu modelo de interação entre ciência e valores, precisando, no curso dessa análise conceitual, a distinção entre a aceitação correta e o endossamento de uma teoria, a qual, assentada em uma separação dos aspectos cognitivos e sociais das práticas científicas, permite separar também as questões de eficácia, que podem ser submetidas a procedimentos imparciais sobre questões fatuais, das questões de legitimidade, que envolvem juízos de valor social e são constituídos pelas relações sociais que se dão nas comunidades em que são produzidos. A distinção conduz nosso autor a extrair da tese de que os valores sociais não devem desempenhar papel algum na apreciação adequada (científica) de teorias e hipóteses a conseqüência de que, embora os valores não sejam constitutivos da aceitação correta de uma teoria, quando uma teoria não é corretamente aceita, os valores sociais tornam-se, em geral, constitutivos do endossamento da teoria. De sua parte, Marcos Barbosa de Oliveira reflete sobre a possibilidade de desenvolvimento do auto-controle como alternativa ao controle ou dominação da natureza no contexto da ecologia; auto-controle dos indivíduos, da sociedade e, por fim, da própria ciência. Partindo de uma análise do componente fatual da tese da neutralidade científica e de sua vinculação com o controle da natureza, o autor mostra que a supervalorização do controle pode ser apontada como a principal causa dos problemas ecológicos, de modo que propõe opor o auto-controle social ao controle (científico) puro e simples da natureza, que, no domínio da ciência, é identificado por ele ao binômio autonomia-neutralidade, o qual considera ter sido posto em questão pela crescente mercantilização da ciência. Ao final, propõe a adoção de outra forma de autonomia que coloque a ciência, não como superior, mas ao lado de outras formas de conhecimento e de instituições.

No artigo final deste número, Anne Marcovitch trata das questões das formas e da morfologia, mostrando como, a partir de sua introdução na bioquímica mediante a noção de especificidade, adquiriram diferentes significações segundo a variedade dos enfoques disciplinares especializados biologia molecular, biologia sistêmica, biologia sintética, nanobiologia. A autora propõe que a análise das maneiras pelas quais as diferentes perspectivas utilizam os conceitos de forma e morfologia no posicionamento diante de distinções básicas, tais como entre vivo e não vivo, entre natureza e artifício, ou ainda, das maneiras pelas quais esses conceitos são substituídos pelos de informação e código pode servir de chave para compreender o fundo epistemológico estável, assentado na invariabilidade de conceitos e de idéias, que servem como uma espécie de princípios orientadores da atividade científica, e a circulação de pesquisadores pelas fornteiras de disciplinas científicas diferentes.

Encerra o número de Scientiæ zudia a entrevista concedida por Terry Shinn, por ocasião de sua estadia entre outubro e novembro de 2007, na qual, como professor visitante da Fapesp, proferiu duas séries de palestras, das quais o presente número publica duas palestras da primeira série. A entrevista versou sobre o pano de fundo constitutivo da perspectiva sociológica transversalista, defendida pelo entrevistado, e também sobre sua trajetória intelectual, influenciada pela história da ciência de Paul Forman e pela sociologia crítica de Pierre Bourdieu.

Pablo Rubén Mariconda

editor responsável

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Abr 2009
  • Data do Fascículo
    Mar 2008
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