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Regimes de produção e difusão de ciência: rumo a uma organização transversaldo conhecimento

Resumos

Este artigo é uma contribuição à perspectiva crítica da sociologia da ciência, introduzida e desenvolvida por Pierre Bourdieu. O artigo propõe uma teoria transversalista da produção e difusão da ciência e da tecnologia. Argumenta-se aqui que a ciência e a tecnologia são constituídas de múltiplos regimes. Cada regime tem sua base histórica, possui sua própria divisão de trabalho, seus próprios modos de produção cognitiva e de artefatos e tem audiências específicas. Os principais regimes incluem o regime disciplinar, o regime utilitário, o regime transitório e o regime de tecnologia de pesquisa. Conceitos, materiais e praticantes circulam entre os regimes. Embora cada regime seja autônomo, eles estão, simultaneamente, intimamente entrelaçados. Na ciência e na tecnologia, a autonomia não é antitética à interdependência e à reciprocidade. Este estudo demonstra, para os quatro regimes de produção e difusão especificados, que a diferenciação não é contrária à integração. Na ciência, diferenciação e integração são duas faces de uma mesma moeda. Esta análise concentra-se no regime de tecnologia de pesquisa, que constitui a principal estrutura de transversalidade que promove a convergência e a complementaridade nos regimes disciplinar, transitório e utilitário, por meio do movimento de travessia de fronteiras de instrumentação genérica cognitiva, material e epistemológica. Essa instrumentação genérica dá origem a uma "lingua franca" na ciência e à "universalidade pragmática".

Regimes de produção e difusão de ciência e tecnologia; Regime disciplinar; Regime utilitário; Regime transitório; Regime de tecnologia de pesquisa; Instrumentação genérica; Travessia de fronteiras; Autonomia; Diferenciação; Integração


This article is a contribution to the critical sociology of science perspective introduced and developed by Pierre Bourdieu. The paper proposes a transversalist theory of science and technology production and diffusion. It is here argued that science and technology is comprised of multiple regimes, where each regime is historically ground, possesses its own division of labour, modes of cognitive and artefact production and has specific audiences. The major regimes include the disciplinary regime, utilitarian regime, transitory regime and research-technology regime. Concepts, materials and practitioners circulate between the regimes. Though each regime is autonomous, they are simultaneously closely interlaced. In science and technology, autonomy is not antithetical to interdependence and reciprocity. This study demonstrates for the four specified regimes of production and diffusion that differentiation is not contrary to integration. In science, differentiation and integration comprise two sides to the same coin. This analysis focuses strongly on the research-technology regime, as it comprises the principal structure of transversality that promote convergence and complementarity on the disciplinary, transitory and utilitarian regimes by dint of the trans-boundary movement of cognitive, material and epistemological generic instrumentation. This generic instrumentation gives rise to a "lingua franca" in science and to "pragmatic universality".

Regimes of science and technology production and diffusion; Disciplinary regime; Utilitarian regime; Transitory regime; Research-technology regime; Generic instrumentation; Boundary-crossing; Autonomy; Differentiation; Integration


ARTIGOS

Regimes de produção e difusão de ciência: rumo a uma organização transversaldo conhecimento

Terry Shinn

Pesquisador do GEMAS (UMR 8598), Maison des Sciences de l'Homme de Paris, França. shinn@msh-paris.fr

RESUMO

Este artigo é uma contribuição à perspectiva crítica da sociologia da ciência, introduzida e desenvolvida por Pierre Bourdieu. O artigo propõe uma teoria transversalista da produção e difusão da ciência e da tecnologia. Argumenta-se aqui que a ciência e a tecnologia são constituídas de múltiplos regimes. Cada regime tem sua base histórica, possui sua própria divisão de trabalho, seus próprios modos de produção cognitiva e de artefatos e tem audiências específicas. Os principais regimes incluem o regime disciplinar, o regime utilitário, o regime transitório e o regime de tecnologia de pesquisa. Conceitos, materiais e praticantes circulam entre os regimes. Embora cada regime seja autônomo, eles estão, simultaneamente, intimamente entrelaçados. Na ciência e na tecnologia, a autonomia não é antitética à interdependência e à reciprocidade. Este estudo demonstra, para os quatro regimes de produção e difusão especificados, que a diferenciação não é contrária à integração. Na ciência, diferenciação e integração são duas faces de uma mesma moeda. Esta análise concentra-se no regime de tecnologia de pesquisa, que constitui a principal estrutura de transversalidade que promove a convergência e a complementaridade nos regimes disciplinar, transitório e utilitário, por meio do movimento de travessia de fronteiras de instrumentação genérica cognitiva, material e epistemológica. Essa instrumentação genérica dá origem a uma "lingua franca" na ciência e à "universalidade pragmática".

Palavras-chave: Regimes de produção e difusão de ciência e tecnologia. Regime disciplinar. Regime utilitário. Regime transitório. Regime de tecnologia de pesquisa. Instrumentação genérica. Travessia de fronteiras. Autonomia. Diferenciação. Integração.

ABSTRACT

This article is a contribution to the critical sociology of science perspective introduced and developed by Pierre Bourdieu. The paper proposes a transversalist theory of science and technology production and diffusion. It is here argued that science and technology is comprised of multiple regimes, where each regime is historically ground, possesses its own division of labour, modes of cognitive and artefact production and has specific audiences. The major regimes include the disciplinary regime, utilitarian regime, transitory regime and research-technology regime. Concepts, materials and practitioners circulate between the regimes. Though each regime is autonomous, they are simultaneously closely interlaced. In science and technology, autonomy is not antithetical to interdependence and reciprocity. This study demonstrates for the four specified regimes of production and diffusion that differentiation is not contrary to integration. In science, differentiation and integration comprise two sides to the same coin. This analysis focuses strongly on the research-technology regime, as it comprises the principal structure of transversality that promote convergence and complementarity on the disciplinary, transitory and utilitarian regimes by dint of the trans-boundary movement of cognitive, material and epistemological generic instrumentation. This generic instrumentation gives rise to a "lingua franca" in science and to "pragmatic universality".

Keywords: Regimes of science and technology production and diffusion. Disciplinary regime. Utilitarian regime. Transitory regime. Research-technology regime. Generic instrumentation. Boundary-crossing. Autonomy. Differentiation. Integration.

INTRODUÇÃO

Ao refletir sobre o "campo científico", principalmente com referência à questão clássica da unidade e desunidade da ciência (cf. Galison & Stump, 1996), pode-se perguntar se o "campo científico" de Bourdieu (cf. 1975, 2001) é melhor entendido como referindo-se à ciência em sua integridade, como um meio de distinguir a ciência de outros domínios da atividade social ou, ao contrário, como uma referência a uma disciplina particular no interior da ciência ou a uma especialidade. Introduz-se, assim, o dilema: a ciência versus as ciências.

A resposta a essa questão é central. Responder que a ciência deve ser apreendida como uma unidade requer uma avaliação reducionista. Nisso reside o imperativo de identificar e defender um princípio que integra a multiplicidade de desiderata históricas e práticas que caem sob o rótulo de ciência com efeito, uma tarefa nada trivial. A desunidade da ciência compreende certamente um cenário mais provável do que a perspectiva da unidade, tendo em vista que os formatos e os modos científicos de fazer e de representar são evidentemente diferentes e, algumas vezes, até mesmo aparentemente divergentes. As várias manifestações científicas, capturadas em termos tais como ciências da vida, ciências físicas, ciências laboratoriais, ciências de campo etc., sugerem o problema inerente a reduzir a ciência a um princípio de unidade ou, pelo menos, a um princípio de unidade fundamentalmente invariante.

Por outro lado, quando se opta por uma percepção pluralista da organização da ciência, torna-se necessário identificar os componentes constitutivos da ciência. Quais são? De onde derivam? Quais suas características? O que distingue as diferentes expressões da ciência entre si? Uma percepção pluralista da ciência força o observador científico a uma posição onde se torna necessário falar não de "ciência", mas exclusivamente das "ciências"? Ou, enunciado de outro modo, o pluralismo exige o abandono de uma apreciação da ciência como um sistema, ainda que um sistema articula-do e auto-referente? Eu acredito que a resposta correta para essa questão é negativa. Então, talvez seja mais importante: o que vincula os componentes para formar nosso sistema de ciência conspicuamente multiforme e pluralista? Na medida em que a estrutura pluralista da ciência permite especificações de seus numerosos desenvolvimentos históricos, modos de produção e mercados de difusão, ela oferece uma oportunidade de explorar os mecanismos que mantêm unidos os subsistemas, que permitem a circulação e a comunicação entre eles e que promovem a inteligibilidade transversal. Com efeito, se a ciência é pluralista, no que está baseada a afirmação da universalidade da ciência? Enquanto este artigo levanta essas questões cruciais e propõe uma série de hipóteses e proposições, o autor está evidentemente consciente de que, em muitas esferas, trata-se apenas do lance inicial e de que o esforço combinado de muitos outros será requerido antes que respostas mais completas e sólidas possam ser produzidas.

Essa concepção da ciência pluralista, multidiversificada, gira em torno de três princípios fundamentais. Em primeiro lugar, as fronteiras são essenciais para distinguir entre a ciência e as outras formas de atividade social. As fronteiras são igualmente necessárias para distinguir entre as expressões locais que constituem a ciência apropriada. Elas identificam diferenças entre grupos, entre o que grupos diferentes produzem e como a produção é empreendida; e as fronteiras distinguem entre formas e operações de organizações, e entre sistemas de difusão de produtos (cf. Abbott, 1995, 2004). Isso é tão válido no interior da ciência quanto fora dela. As várias expressões da ciência, que compõem seu todo, demarcam as especificidades das formas particulares de treinamento e certificação, de designação de tarefas, de modos de trabalho, de critérios de validação, de sistemas de premiação, de trajetórias de carreira, de modalidades de produtos, da forma e da extensão dos mercados, e do vínculo entre a produção e a distribuição. As fronteiras proporcionam uma assinatura, uma marca característica, de cada uma das expressões pluralistas da ciência. Entretanto, a travessia das fronteiras é igualmente central para a visão pluralista da ciência. As fronteiras não isolam entidades; ao contrário, elas compõem uma região necessária de transferência e troca. Na ciência, as idéias, os instrumentos e os homens envolvem-se em uma travessia seletiva de fronteiras. A travessia de fronteiras (boundary-crossing) é equivalente à operação e vitalidade da ciência pluralista. Ela compreende o modo de fertilização por cruzamento, sendo também, por vezes, veículo para a geração de novas configurações. As fronteiras e a travessia de fronteiras não são opostos, mas constituem um todo. Elas são a chave para os dois lados da moeda da diferenciação/integração, que são complementares e não devem ser concebidas como alternativas ou como contraditórias. A historicidade é o terceiro ingrediente essencial. A visão pluralista da ciência sublinha que as expressões da ciência são produtos de circunstâncias históricas. Elas são o fruto de eventos específicos, que ocorrem em um momento particular no tempo, marcado por eventos intelectuais, institucionais e culturais observados. Com o tempo, novas configurações e pressões históricas emergem, e elas requerem a adaptação das expressões pluralistas da ciência. Contudo, as expressões fundamentais retêm sua assinatura histórica original. À medida que se adaptam, elas sustentam um formato e trajetória auto-referentes. Simultaneamente, a história também introduz mudanças sem precedentes que, por sua vez, originaram no passado e continuarão a originar no presente e no futuro, novas expressões adicionais no sistema de referência da ciência pluralista. Enquanto a historicidade modifica as relações entre as expressões existentes, ela pode também enriquecer a topografia do território científico multifacetado. Essa perspectiva permanece, entretanto, uma questão empírica para as futuras gerações de historiadores e sociólogos.

Serão apresentados aqui quatro regimes de produção e distribuição de ciência e tecnologia (cf. Shinn, 1993, 2000a, 2000b) o regime disciplinar, o regime utilitário, o regime transitório e o regime transversal (cf. Joerges & Shinn, 2001; Shinn & Joerges, 2002; Shinn, 2007). A gênese de cada regime corresponde ao ambiente cognitivo, político e econômico de uma época histórica, às dimensões culturais de um dado tempo. Cada regime possui também sua divisão específica de trabalho, sistema organizacional, regras e hierarquia internas, universo de emprego, formas de produzir resultados, clientela e seu sistema particular de circulação entre produção e mercado. É esse conjunto complexo de fatores que estabelece as diferenças entre os regimes e sobre o qual suas respectivas fronteiras são baseadas. Mistura pode ocorrer e ocorre, obviamente. Contudo, isso não viola a persistência e a estabilidade dos regimes. Ela é acomodada por meio da travessia limitada das fronteiras. É também acomodada pela operação de um regime específico que é, ele mesmo, encarnação, formalização e legitimação de uma mistura restrita, controlada, reconhecida, recompensada e confinada. A questão mais crucial a ser tratada aqui é aquela que concerne à convergência, circulação e comunicação entre os regimes, e à emergência de uma forma de universalidade que se estende por todos os regimes. Essa questão corresponde às atividades que ocorrem no regime transversal e a seus resultados e efeitos nos demais regimes. Argumentarei abaixo que os produtos do regime transversal participam na redução das conseqüências, de outro modo fragmentadas, da ciência multidiversificada e pluralista. O regime transversal proporciona um tipo de linguagem comum ao todo da ciência e oferece uma forma de universalidade à guisa de universalidade prática. Não se afirma certamente que isso origina a unidade da ciência. A transversalidade sugere, antes, um sistema federativo de ciência, caracterizado tanto pelas fronteiras, como pela travessia de fronteiras e coberto pela transversalidade. Desse modo, a ciência não pode ser vista como unida, no sentido mais forte de homogeneidade. A "unidade" implica, aqui, a autonomia territorial relativa dos regimes, na qual os regimes são estrutural, funcional e historicamente interconectados, por força da passagem de conceitos, materiais, instrumentação e pessoas.

1 O REGIME DISCIPLINAR

O regime disciplinar tornou-se totalmente estabelecido durante o século xix e continua a expandir-se no século xxi. Novas especialidades disciplinares são intermitentemente adicionadas à lista unitária oficial de disciplinas. A química do estado sólido foi reconhecida oficialmente como uma disciplina em 1972. Contrariamente à afirmação de certos redutos, a era da ciência disciplinar ainda não se encerrou, e parece, com efeito, longe de ter-se encerrado. Apesar da existência de muita retórica acerca da morte das disciplinas e sua substituição pela interdisciplinaridade (cf. Gibbons et al., 1994; Nowotny et al., 2001) e, freqüentemente, de muito discurso sobre política científica e programação a favor da interdisciplinaridade,1 1 Enquanto uma enorme e crescente quantidade de literatura impressa, documentação e artigos políticos lida com a interdisciplinaridade, a quase totalidade desses escritos faz, meramente, a propaganda de seus supostos benefícios, mais do que demonstrar se ela existe, como opera e como se estabelecem suas alegadas vantagens (cf. Weingart & Stehr, 2000). Além disso, a interdisciplinaridade é no presente tão favorecida por aqueles que formulam os programas das agências públicas de pesquisa, dos quais os praticantes da pesquisa dependem para financiar os projetos, que também os cientistas algumas vezes utilizam criticamente a linguagem da interdisciplinaridade ainda assim, para o propósito de obter o financiamento necessário. a substância e a estabilidade das disciplinas não parecem estar em perigo. De fato, elas são muito centrais para a ciência. A especificidade de todos os quatro regimes aqui discutidos tem nas disciplinas seu ponto de referência. Elas parecem ser axiais para os praticantes da ciência, para as instituições científicas, e para os historiadores, filósofos, sociólogos e antropólogos do conhecimento científico (cf. Shinn, 2000a, 2000b, 2007; Heilbron, 2004).

Enquanto Robert Merton (1970) data o nascimento da ciência moderna no final do século xvii, localizando-o na Inglaterra puritana e na Royal Academy of Science londrina, Shapin & Shaffer (1985) demonstram convincentemente que, naquele período histórico, a filosofia natural era ainda embrionária. O conhecimento científico não tinha a forma de uma disciplina. O conflito relevante era, então, entre a metafísica, a especulação e a legitimidade por meio da autoridade, tal como representado por Hobbes, por um lado, versus a observação, a experimentação, a instrumentação, o debate e a expertise, representados por Boyle, por outro lado. A disciplinaridade não está em questão aqui. Na linguagem apta de Shapin e Shaffer, o que estava em questão era o "modo científico de vida" per se. O nascimento da ciência pode, ao contrário, ser identificado com os fatores relevantes da expansão econômica que demandava tecnologia avançada, agindo como um estímulo para o ofício e para formas mais avançadas e formais de ensino, e com a mudança cultural na forma do puritanismo que elevava o status do ensino e promovia sua difusão. Aprender acerca das coisas do mundo natural de Deus torna-se assim identificado com a prática da religião e o culto ao Senhor. Enquanto a explicação do impulso em direção à ciência moderna oferecida por Merton, centrada na Inglaterra do século xvii, pode mostrar-se geograficamente muito local e sua causalidade muito restrita, o fato é que no final do século xvii a investigação científica está se espalhando pela maior parte da Europa, e a disciplinaridade não tinha ainda emergido como o referencial intelectual ou organizacional para o trabalho, a comunidade ou a comunicação.

Datar com alguma precisão as origens das disciplinas na ciência e localizar e fazer a crônica de seu aparecimento enquanto tal mostra-se difícil. Para o presente propósito é suficiente indicar que a mineralogia, a botânica e a zoologia fazem parte do corpo de conhecimento inicial quase-estruturado, organizado e reconhecido. Segue-se a química, assim como a física, e no interior da física, seguiram-se rapidamente especialidades, tais como a óptica, a mecânica e a acústica. No início do século xix, uma porção de disciplinas e subdisciplinas foram reconhecidas como tais. Isso está em contraste marcante com o posicionamento cognitivo da filosofia natural do século xvii, quando Newton era matemático, homem de astronomia, de óptica e que também lidava com questões químicas. No século xix, os praticantes eram identificados a uma disciplina tanto com referência a sua expertise individual quanto pela posição que ocupavam em um sistema cada vez mais institucionalizado e organizado. Um homem como Arago nunca poderia ser visto como zoólogo ou mineralogista. Na ciência do século xix, baseada em novas disciplinas, Fourier não podia ser visto como botânico e químico ao mesmo tempo. As percepções dos praticantes estavam, a partir de agora, ligadas a um regime particular de produção e difusão e, nesse caso, ao regime disciplinar, e suas trajetórias intelectuais e profissionais estavam condicionadas por componentes e restrições disciplinares. Esse disciplinamento não foi exclusivamente a conseqüência de uma necessidade de estreitar a atividade em virtude do crescente volume de conhecimento em cada campo e uma necessidade de habilidades especializadas, estava similarmente conectado com transformações na matriz institucional e ocupacional da própria ciência. As disciplinas são um produto da modernidade, e a modernidade é acompanhada por canais burocratizados de autoridade, hierarquia, trabalho, produção, distribuição e prêmios/sanções.

O modelo alemão da Universidade de Humboldt serve como uma ilustração do regime científico disciplinar de produção e difusão. A universidade dividia-se em faculdades, uma das quais tinha o propósito de treinamento e pesquisa nas ciências. Esses institutos de ciência eram, por sua vez, subdivididos segundo linhas disciplinares matemática, mecânica, óptica, química inorgânica, eletricidade, magnetismo, química orgânica, acústica e, depois, psicologia experimental etc. Freqüentemente, um profundo abismo conceitual, técnico, organizacional e profissional separava essas disciplinas. As mesmas disciplinas aparecem na França, onde rapidamente se documenta a emergência da história e da sociologia na forma disciplinar. Novamente, é importante sublinhar o caráter dual do regime disciplinar reproduzir conhecimento na forma de ensino, o que resulta na obtenção de diplomas pelos estudantes; e produzir conhecimento original na forma de pesquisa, o que toma a forma de publicações.

As universidades são hoje estruturadas segundo linhas disciplinares, com departamentos de física, química, biologia e abrigando uma miríade de especialidades, tais como mecânica dos fluidos, física do estado sólido (cf. Hoddeson et al., 1992), mecânica quântica e subdisciplinas mais recentes, tais como biofísica, bioquímica, biologia molecular (cf. Abir-Am, 1993), biologia celular (cf. Bechtel, 1993), química física (cf. Nye, 1993), ciência cognitiva e a disciplina da ciência computacional.

Cada disciplina, com seu departamento intendente, insiste em sua porção de autonomia. O ponto aqui é que o regime disciplinar de produção e difusão científica está sólida e historicamente baseado na universidade. Isso começa por volta do início do século xix, quando os Estados nacionais orientaram a produção e reprodução do conhecimento para uma nova forma de organização, ao mesmo tempo unida ao Estado e lutando por independência da intervenção política e estatal, e lutando sistematicamente para evitar a vinculação às demandas práticas de curto prazo economicamente orientadas. As disciplinas possuem como seu referente primário e privilegiado a própria disciplina; seu principal propósito era desenvolver seu aprendizado disciplinar endógeno. Em alguns casos, isso estava ligado em paralelo à solução extra-disciplinar de problemas práticos, e o impacto era algumas vezes da maior importância econômica ou social. Contudo, isso não era a função capital nem o mercado do regime disciplinar.

O regime disciplinar de produção e difusão da ciência está assim baseado em departamentos disciplinares de universidades, cujo objetivo é: (1) reproduzir o conhecimento disciplinar-padrão para os estudantes e (2) conduzir pesquisa original no interior da disciplina. O regime disciplinar é fortemente definido por sua orientação auto-referente. Com relação aos tópicos de pesquisa, eles são retirados do interior da disciplina e relacionam-se tanto com a história e a inércia disciplinares, como com a direção para a qual o futuro da disciplina aponta, segundo a percepção dos praticantes disciplinares. A disciplina também estabelece seus critérios internos para a avaliação de seus resultados de pesquisa. Segundo as mesmas linhas, ela decide o que deve ser aprendido pelos estudantes, e em que extensão, para o estabelecimento da certificação da realização, na forma de diplomas. O regime disciplinar constitui seu próprio mercado. Os praticantes são os consumidores de suas próprias produções. O resultado da pesquisa está dirigido aos pares disciplinares, que avaliam, portanto, a qualidade do resultado e consomem os produtos cognitivos gerados por outros colegas disciplinares. O regime é, em muitos aspectos, circular na lógica. Ele se retroalimenta tanto gerando quanto absorvendo suas produções. A distribuição da produção e a eventual assimilação subseqüente da produção são realizadas por meio de revistas, cujo conteúdo é controlado pela disciplina. Desse modo, a circulação do conhecimento também ocorre no interior dos confins da disciplina. A passagem da função de produção para a função de consumo é direta, sem qualquer mediação de forças exógenas. É correto dizer que o regime disciplinar constitui amplamente, se não inteiramente, uma economia cognitiva fechada. Historicamente, em tempos de crise, tal como em época de guerra, os praticantes disciplinares movem-se para além de seu referente disciplinar e engajam-se em aventuras mais amplas; de modo geral, quando a crise passa, o regime disciplinar torna-se novamente predominante. O fato de que muitas disciplinas, estabelecidas há dois séculos, permaneçam e de que novos corpos de conhecimento lutem para tornar-se oficialmente reconhecidos como disciplinas, conformando-se, desse modo, aos requisitos intelectuais, funcionais e de mercado do regime, sugere a estabilidade e importância desse sistema no ensino moderno. Isso não implica que nada mude no regime disciplinar, mas a quantidade de mudança, tais como as tentativas de introduzir componentes econômicos/empreendedores, empalidece quando comparada à aparente força e autonomia do regime disciplinar, que é, simultaneamente, plástico, quando agarra as oportunidades estatais, militares e industriais, e rápido com relação a sua própria agenda e estrutura auto-referentes (cf. Shinn & Lamy, 2006).

O regime disciplinar implica divisões essenciais de trabalho funcional. É composto de experimentadores, teóricos e de especialistas em instrumentos (cf. Hippel, 1988; Shinn, 1993; Galison, 1997). No interior das disciplinas, os praticantes tornam-se expertos em uma dessas três esferas, e suas questões de pesquisa, produções, grupos de pares, canais de comunicação por periódicos, e muita participação em encontros profissionais corresponde a essa forma de segmentação. A questão da fragmentação/complementaridade e da diferenciação/integração da ação e da organização no interior do regime disciplinar é uma questão fundamental, e sua resposta ilumina as correntes da evolução histórica e do potencial futuro dos regimes.

Desde os anos 1930, podem ser citadas numerosas instâncias adicionais de programas científicos extremamente custosos, de infra-estrutura pesada e complexa, que reúnem e engajam freqüentemente milhares de praticantes de inúmeras especialidades disciplinares, todos voltados para um único produto de pesquisa ou um corpus convergente. Tais programas ou são iniciativas nacionais de larga escala politicamente promovidas ou representam planejamentos, compromissos e engajamentos multinacionais de longo prazo. Os projetos no CERN (Centre Européen pour la Recherche Nucléaire) são emblemáticos dessa forma de ciência prometéica (cf. Shinn & Marcovich, no prelo), que reúne físicos de muitas especialidades (física de partículas, óptica, magnetismo, mecânica, física do estado sólido), especialistas da matemática, de áreas seletivas da química e, algumas vezes, da biologia, de áreas da meteorologia etc., chegando o número de indivíduos assim reunidos aos milhares. A organização do trabalho segue freqüentemente essas linhas disciplinares, nas quais os indivíduos podem efetivamente dirigir sua experiência, linguagem e cultura intelectual e técnica comum para obter o melhor efeito. Será que a concentração de muitas disciplinas convergindo para um único objetivo anuncia o fim da especificidade disciplinar no interior do regime disciplinar com efeito, o desaparecimento da histórica estrutura e lógica disciplinares? A interdisciplinaridade cognitiva e organizacional e a morte do regime disciplinar são uma conseqüência da configuração prometéica? Ela elimina as distinções passadas entre o experimentador, o teórico e o especialista em instrumentos? A resposta é, claramente, não. Configurações prometéicas, tais como os lendários fornos solares franceses (cf. Teissier, 2007) e o CERN, deixaram aparentemente intacta a ordem disciplinar. Contudo, tais configurações prometéicas tiveram um impacto sobre as fronteiras, a travessia das fronteiras e seu contexto. A configuração prometéica do regime disciplinar permite a autonomia disciplinar e a autonomia funcional do experimentador, do especialista em instrumentos e do teórico. Cada categoria concentra-se em seu segmento definido do todo do projeto maior. Algumas vezes não existe contacto, ou muito pouco, entre os grupos, exceto no nível mais elevado onde a coordenação é necessária (cf. Shinn & Marcovich, no prelo). No entanto, as fronteiras disciplinares apagam-se em certos esforços de pesquisa integrada, ou em episódios de mal funcionamento, tais como a introdução de problemas não antecipados ou ocorrências trágicas de grandes acidentes materiais. Praticantes de múltiplas disciplinas e funções atravessam suas respectivas fronteiras, reúnem-se colaborativamente para resolver o problema urgente e, uma vez conseguido, retornam para suas coordenações disciplinares e funcionais mais costumeiras.

Percebe-se aqui, no interior do regime disciplinar, uma forma importante de plasticidade. A configuração prometéica é um formato cognitivo e organizacional que permite a passagem pela fronteira e formas de colaboração imprevistas sob circunstâncias particulares. A rigidez não é inerente ao regime disciplinar apesar de sua economia fechada auto-referente. A configuração prometéica tem estrutura federativa. Todo componente retém suas práticas e lugares disciplinarmente definidos. Opera, entretanto, um princípio de associação e proximidade, onde a circulação (cf. Marcovich, 2001) e a sinergia desenvolvem-se rapidamente em resposta a demandas excepcionais. Com efeito, esse potencial de circulação e sinergia humana, material e conceitual permite soluções para problemas extremamente urgentes e altamente complexos. A organização federativa da configuração prometéica introduz, desse modo, flexibilidade sem pôr em jogo a autonomia. À medida que mais ciência do regime disciplinar tornar-se mega-dimensionada, com programas de pesquisa altamente complexos, pode-se antecipar que o regime disciplinar pode cada vez mais assumir a forma de configurações prometéicas, com seus atributos correspondentes, aqui descritos.

A idéia da "big science" no sistema disciplinar é recente o cíclotron de Berkeley constitui o exemplo inicial (cf. Heilbron & Seidel, 1989).

Existe uma segunda configuração disciplinar relevante a saber, a configuração porosa (cf. Shinn & Marcovich, no prelo). Nesse arranjo do regime disciplinar, as disciplinas mantêm certa distância entre si, o que não significa não-convergência. Enquanto o regime prometéico pode ser visto como federativo na estrutura, preservando cada componente seu lugar na divisão maior de trabalho, a configuração porosa estabelece uma forma confederativa de interação. Grupos disciplinares e equipes de pesquisa associam-se onde e quando conveniente, preservando, por outro lado, os limites de suas coordenadas iniciais. A base de cada grupo é seu centro organizacional ou geográfico/institucional, o que não impede a mobilidade para outros sítios ou associações intermitentes à guisa de planejar propositadamente encontros rotineiros. Logo, um laboratório disciplinarmente baseado pode possuir um laboratório antena em um sítio secundário de modo a realizar experiências particulares. Nesse segundo sítio, há praticantes de disciplinas alternativas que também encontram vantagens no trabalho nesse ambiente. A comunicação é a regra nesses ambientes semi-estabelecidos e quase-formais.

Tais configurações porosas experimentam geralmente uma dificuldade considerável em obter reconhecimento das agências de pesquisa oficiais. Algumas vezes não são completamente reconhecidas, nem legitimadas, por muitos anos. Em outras instâncias, elas recebem algum financiamento e até reconhecimento, mas raramente estão adequadas aos organogramas das agências. Elas tendem a estar fora, ou na periferia, dos planejamentos e objetivos centrais das agências. São marginais ao quadro da big science, aos objetivos e provisões administrativos dominantes. Apesar de que os praticantes confederados são somente semi-oficiais e de que a ciência produzida é marginalmente reconhecida, trata-se de um ponto central de pesquisa. Esse é realmente o caso na configuração porosa de Pierre Gilles de Gennes, associada com a pesquisa em torno do milieu aléatoire (meio aleatório), que começou no anos 1970 e continua hoje um grupo instável, heterogêneo, que mistura pesquisadores seniores com jovens oriundos de disciplinas mistas que exploram as características dinâmicas e estatísticas dos corpos macroscópicos (ou talvez mais precisamente dos mesoscópicos). É também a marca característica do laboratório subterrâneo fundado por George Waysand em 1997, que combina o estudo de material negro, os eventos sísmicos e abriga pêndulos gigantes. Em primeira instância, o fio comum da configuração porosa, que abriga muitas disciplinas, preservando, entretanto, suas identidades disciplinares individuais, é o caráter instável e as propriedades estatísticas da matéria macroscópica (ou, mais apropriadamente expressa, mesoscópica) e, em segunda instância, a configuração porosa confederativa mais comum é a existência de um sítio de ruído, particularmente estável e de fundo, que permite pesquisa altamente sensível ao ruído. A importância de tais regimes porosos é que, em um ambiente, minimamente estruturado, freqüentemente informal e extra-institucional, os praticantes se encontram em seus próprios termos auto-determinados, interagem e comunicam-se. Eles circulam geográfica, temporal e intelectualmente, e com sua bagagem material científica, desimpedida das regras dominantes do jogo da ciência. Isto não quer dizer que não haja fronteiras. As fronteiras claramente persistem, mas estão aqui presentes ótimas condições para a travessia de fronteiras e para a transversalidade. Não seria talvez essa a substância da ciência pós-pós-moderna, e além disso, a base de circulação para um tipo de cultura geral pós-pós-moderna limitada/fragmentada?

2 O REGIME UTILITÁRIO

As principais tarefas do regime utilitário são em número de três construir, reparar e destruir (cf. Pickstone, 2000). Diferentemente do regime disciplinar, o principal objetivo não é a produção de conhecimento. Enquanto o regime utilitário concentra-se nos artefatos, o regime disciplinar, ao contrário, trata principalmente com o conhecimento proposicional. A utilidade é o objetivo do regime utilitário, tal como indicado por seu próprio nome. O entendimento constitui o objetivo do regime disciplinar.

O regime utilitário possui seu modo específico de produção e de mercado. O canal que liga a produção e a difusão contrasta similarmente com aquele do regime disciplinar (cf. Auger, 2004). A base institucional do regime utilitário reside em sua maior parte nas escolas de engenharia. As primeiras escolas de engenharia, especializadas exclusivamente em construir, concertar e destruir, foram estabelecidas na França no início do século xviii, com a École navale, e o número expandiu-se por todo o século xviii com a École des ponts-et-chausées, a École de génie militaire, a École des mines e a École polytechnique (cf. Shinn, 1980). A França liderou essa formalização do conhecimento utilitário; contudo, esforços paralelos também se originaram nos países vizinhos, pela introdução de escolas técnicas estruturadas nos estados alemães e na Inglaterra. No início e em meados do século xix, as escolas técnicas foram reforçadas e transformadas em Mittelhochschulen industrialmente importantes, constituindo uma impressionante rede (cf. König, 1993). Novamente na Alemanha, as escolas de engenharia tecnologicamente mais avançadas, as Technikhochschulen, foram introduzidas perto do final do século xix, em resposta à expansão da Alemanha e do crescimento industrial, que demandava um aporte crescente da tecnologia. Por volta de 1900, essas novas instituições tinham se tornado tão centrais e influentes que elas, tal como a velha universidade humboldtiana, recebiam a autoridade, por parte do ministério governamental, de conferir o grau de doutor aos graduados avançados. Nos Estados Unidos, o regime utilitário estava institucionalmente baseado no interior das universidades, mas apartado do regime disciplinar. A maioria das grandes universidades americanas desenvolveu escolas de engenharia a partir do final dos anos 1890. Essas escolas tornaram-se intimamente conectadas à estrutura industrial do país, conduzindo na passagem do século ao estabelecimento de um conglomerado indústria/educação excepcionalmente influente The Society for the Promotion of Engineering Education. Seus objetivos consistiam na autoridade empreendedora sobre a orientação e o conteúdo curricular das escolas de engenharia, e em alguns casos treinamento taylorista para firmas específicas ou setores industriais (cf. Noble, 1977). Em um artigo abrangente de amplo espectro, J. F. Auger escreveu extensamente sobre a emergência da Montreal Polytechnique como emblemática do regime utilitário de produção e difusão da ciência e da tecnologia. Ele demonstra a extensão em que o ensino acaba servindo a objetivos industriais freqüentemente estreitos, como o corpo docente da escola veicula os mesmos propósitos, indica os passos das carreiras seguidas pelos graduados, as formas de trabalho empreendidas pelos graduados e sugere a natureza da transmissão entre a produção do estudante e o aprendizado utilitário no interior das escolas de engenharia e sua assimilação pelas empresas ou organizações utilitárias relacionadas (cf. Auger, 2006).

Durante as últimas quatro décadas, ocorreram tentativas de fazer a convergência com os departamentos disciplinares da universidade. Essas tentativas resultam de três fatores. Primeiro, à medida que os artefatos tecnológicos acabam incorporando cada vez mais conhecimento, divisas/instrumentos e componentes de base disciplinar, cresce a pressão para um movimento de aproximação ao regime científico pelas escolas de engenharia. Segundo, o conhecimento de engenharia é cada vez mais formalizado e matematizado, e essas são as marcas características da prática e do aprendizado disciplinar. Por fim, durante muitos anos, o status profissional da ciência era superior àquele dos engenheiros. Em uma tentativa de elevar seu prestígio, os praticantes do regime utilitário adotaram estratégias para alinhá-lo, quando possível, com alguns elementos disciplinares. Entre eles, a publicação foi incentivada. Tornou-se uma estratégia extremamente importante para os membros dos regime utilitário circular seus resultados em periódicos profissionais, em boletins internos, em relatórios públicos e coisas semelhantes.

O ponto focal dessa convergência disciplinar/utilitária deve ser visto na instalação, no interior da universidade, de um novo tipo de unidade de conhecimento/profissão a ciência material (cf. Bensaude, 2001). Esses departamentos são centrais para o que é conhecido na França, no interior do Centre National de la Recherche Scientifique, como "a ciência do engenheiro". A ciência do engenheiro, ou "ciência da engenharia" é, algumas vezes, ligada com o novo e fortemente emergente domínio do design e da síntese de materiais, não precedentemente concebidos e manufaturados pelo homem. Isso é algumas vezes empreendido em íntima conexão com o regime científico, como no caso da nanociência (cf. Shinn, 2007). Em outros momentos, é conduzido em um espírito puramente utilitário e de desenvolvimento projetivo, como no caso da nanotecnologia (cf. Johnson, 2007).

Pode-se dizer que o regime utilitário ocupa um lugar legítimo na paisagem sociocognitiva da ciência e da tecnologia, com início por volta da metade do século xix. Foi durante a segunda metade do século xix que o número de instituições relevantes cresceu rapidamente em número, adquiriu os direitos de atribuir diplomas e ocupou uma posição legítima no ensino, na economia, nas profissões e na sociedade como um todo. Esse processo ampliou-se no século xx. Não foi antes da metade do século xix que começaram a aparecer os periódicos especializados de engenharia profissional sendo o primeiro publicado na França. Mesmo tão tardiamente quanto 1920, na Alemanha, existia um interesse tão profundo pelo que era percebido como um déficit de tecnologia/engenharia, que foram criados novos periódicos que tratavam especificamente de questões do regime utilitário de produção e difusão de ciência e tecnologia (cf. Hoffman, 1987). Assim, a introdução do regime utilitário ligou-se a um conjunto particular de condições históricas e políticas, ele se originou e começou a florescer mais de meio século depois do nascimento do regime disciplinar, e sua maturidade ocorreu um século depois do que a disciplinaridade.

Os fins e as epistemologias do regime de pesquisa e difusão da ciência e do regime utilitário contrastam significativamente. Enquanto o regime da ciência busca por proposições de uma ordem (universal) que transcendam tempo, espaço, cultura e particularismos de todos os tipos, as produções do regime utilitário estão enraizadas no local e no prático. Seu parâmetro é a solução de problemas específicos e de curto prazo. O trabalho é guiado por um conjunto bem definido de requisitos. Os produtos freqüentemente correspondem às demandas da clientela, possuindo um caráter bastante específico. A construção de represas, pontes, prédios etc. está sujeita à topografia local, à legislação e outras restrições exógenas. O cronograma de trabalho é imposto. Precisão e validade são medidas em termos de durabilidade e de medidas ergonômicas. A consideração econômica é dominante. Se os resultados do regime utilitário são tecnologicamente excepcionais, mas excedem o lucro compensatório potencial, os resultados tornam-se inaceitáveis. De todos os regimes de produção e difusão científica e tecnológica, o regime utilitário parece ser o de base mais contingente e relativista. A performance é dependente do espaço, do tempo, das vicissitudes e demanda dos clientes e de fatores econômicos.

Diferentemente dos praticantes disciplinares, os praticantes do regime utilitário não estão dirigidos para si próprios esta não é uma comunidade auto-referente. Seus membros não constituem o mercado do regime. Ao contrário, o escopo profissional do regime utilitário é vasto. Em geral, eles trabalham como técnicos e engenheiros. Entretanto, eles podem também freqüentemente localizar-se em posições administrativas. Eles ocupam uma multiplicidade de nichos profissionais. O regime utilitário serve à industria, ao setor de serviços da economia: está freqüentemente associado com o trabalho técnico no serviço público. Aqui os praticantes empreendem tarefas estritamente técnicas, coordenam os esforços dos outros, ou administram. São típicos o envolvimento em hospitais e outras esferas do serviço de saúde e nas agências de monitoramento ambiental. O regime utilitário está igualmente presente na atividade militar. Expertise e consultoria tornaram-se hoje um mercado em expansão para a difusão do ensino e da competência técnica do regime utilitário.

O mecanismo de transferência que conecta o regime de produção à difusão está marcado por incerteza e instabilidades. Enquanto o regime disciplinar forma uma "economia fechada", o regime utilitário constitui uma economia amplamente aberta, definida, por um lado, por determinados critérios e um conjunto de instituições e, por outro lado, pela demanda imponderável por artefatos ou habilidades freqüentemente apreendidos imperfeitamente. Existe aqui alguma medida de improvisação e a ocasião para a fusão entre a função de produção e a função de difusão do regime.

A epistemologia do regime utilitário de produção e difusão de ciência e tecnologia mostra-se específica. Como indicado acima, o objetivo é a produção de um artefato tecnicamente válido, útil, prático e vendável. As considerações giram, assim, em torno de sistemas técnicos que exibem uma solidez técnico-física. Os artefatos exibem, portanto, um caráter fenomenológico/físico. A realização pode requerer experimentação; entretanto, esta não é necessariamente a experimentação do regime disciplinar. O trabalho experimental do praticante utilitário é guiado pela capacidade performativa de seu artefato em realizar precisamente e sem erro a tarefa pretendida. A simulação figura de modo crescente nessa atividade. Entretanto, novamente, a orientação não é a aquisição do modo como um sistema funciona, mas antes a designação dos componentes apropriados e de sua combinação apropriada para assegurar a performance. Além disso, a performance não é atingida com referência à precisão. O guia é, mais uma vez, o cliente e o mercado potenciais.

Cliente e mercado são da maior importância na epistemologia do regime utilitário. A própria seleção do objeto de trabalho não é uma entidade auto-referente, mas, ao contrário, um artefato para o qual existe um suposto cliente e onde as condições de mercado permitirão ao cliente adquirir o produto. O design é central aqui. O design fenomenológico garante a performance material. Ele envolve considerações não apenas de eficácia, mas deve também assegurar considerações de segurança, normas e padrões. O conjunto mental do praticante do regime utilitário precisa incorporar propriedades "para além do design" para estabelecer a robustez e para garantir a segurança. Isso obriga a reflexão sobre o contexto de uso as condições, ordinárias e extraordinárias, da implantação ou utilização dos artefatos. Dessa forma, a introdução de sobre-dimensionamento é uma característica freqüente de grande parte da engenharia americana.

O design também entra na epistemologia utilitária com referência à utilização do produto. Os engenheiros geram artefatos que correspondem a seu uso em termos de sua aplicação funcional, do ambiente de aplicação e, implicitamente, de uso. A estética do design tem um papel cada vez mais central. Esses elementos têm impacto poderoso na ciência e tecnologia do regime, pois os praticantes devem dimensionar e localizar os componentes técnicos no interior do quadro estético, e isso é freqüentemente uma tarefa difícil assim como o ajuste fino entre componentes eletrônicos ou/e magnéticos freqüentemente afeta a performance, a confiabilidade e a robustez.

A negociação está no coração do regime utilitário, e deve ser considerada como parte e parcela de sua composição epistemológica. Negociação sobre o cronograma, sobre as dimensões, sobre o que representa confiança, sobre seguro e segurança no uso do artefato, sobre o custo etc. O regime utilitário combina elementos humanos e materiais de uma maneira totalmente ausente do regime disciplinar. Enquanto o regime disciplinar emerge relativamente autônomo em virtude de suas auto-referências e constitui seu próprio mercado, o contrário é verdadeiro para o regime utilitário, que exibe uma economia de produção e difusão amplamente baseada em fatores exógenos versus disciplinas amplamente enraizadas em considerações endógenas.

A epistemologia do regime utilitário também difere daquela das disciplinas, por causa de sua forte dependência da construção histórica precedente. Os engenheiros tendem a avançar segundo uma base incremental, onde as melhorias compreendem extensões de sucessos anteriores. A metodologia é freqüentemente de ensaio e erro, onde as margens de erro sempre aparecem em primeiro lugar e os problemas de precisão e fracasso emergem post facto após a observação de mal funcionamento ou catástrofe. A teoria é imprestável no regime utilitário e enquanto a modelagem pode ser tão corrente neste regime quanto no regime disciplinar, aqui, os modelos não são, normalmente, objetos de investigação em si mesmos e fontes de entendimento, mas, ao invés disso, fórmulas fáceis para soluções funcionais.

3 O REGIME TRANSITÓRIO

Nos períodos anteriores à introdução no século xix do regime disciplinar de produção e difusão da ciência, muitos praticantes se ocupavam com a classificação dos objetos e com a descrição e análise de fenômenos também envolvidos na produção dos artefatos materiais. Era uma época bem descrita como a do erudito/inventor. Enquanto muitos dos artefatos contribuíram para um entendimento do mundo natural na forma de instrumentos científicos, isso estava longe de ser a regra. Outros artefatos possuíam um caráter dual, fazendo avançar a pesquisa e servindo a um propósito prático. O telescópio representou um grande passo em direção à instrumentação para o estudo dos céus. Ele também contribuiu para avanços na óptica. Essa divisa também se mostrou crucial para a prática militar. E não menos o conhecimento óptico derivado do telescópio foi incorporado em grande medida por outros aparelhos. O estudo abrangente de M. Crossland da Academia de Ciências de Paris mostra claramente que particularmente antes do século xix, mas também depois, grande parte das competições e premiações da Academia estava associada à solução de problemas aplicados, bastante práticos, pelos principais investigadores da França. Em muitos casos, o limite entre a realização em apreender o mundo natural e a realização na invenção estava apagado ou era inexistente. A divisão de trabalho era mínima ou ausente.

Isto está ligado a duas considerações. A quantidade de conhecimento ligada a um assunto ainda não era vasta, altamente complexa e completamente separada dos outros domínios. A pesquisa efetiva não requeria ainda uma dedicação em tempo integral, como será o caso posteriormente. Além disso, a escala da comunidade de estudiosos permanecia bastante circunscrita. Ocorreu um crescimento considerável no número de estudiosos ao longo do século xix e isso aconteceu em muitas esferas de investigação. Logo emergiu um mercado adequado para a produção de conhecimento. As condições de possibilidade de praticantes dirigidos disciplinarmente não mais proporcionavam uma margem de tempo, de energia nem a sedução de um sistema de recompensa para além da própria pesquisa disciplinar. A divisão do trabalho, a especialização, a produção dos pares e o mercado dos pares passaram a constituir a topografia da época histórica.

Entretanto, isso certamente não sugere que alguns indivíduos não continuassem a operar em um nível muito alto e prestigioso nos domínios da produção disciplinar e da inovação de artefatos. Aqueles que fizeram isso transferiram-se de uma disciplina para a empresa e a engenharia, e então voltaram para o contexto disciplinar. A esse respeito, o caso de William Thomson, Lord Kelvin, é emblemático.

Dois elementos apóiam esse regime transitório de produção e difusão de ciência e tecnologia. Primeiro, o movimento entre as fronteiras é geralmente circunscrito. Ele tende a ser um componente importante, ainda que infreqüente, da trajetória profissional dos praticantes. Muitos indivíduos cruzam a fronteira disciplinar em direção à empresa e depois de volta para sua disciplina de origem, uma ou duas vezes. Não há circulação e travessia de fronteiras repetidas e regulares. A transversalidade estrutural não faz parte desse regime. O referente primário permanece o regime disciplinar. Enquanto é bem sucedido na indústria, o acadêmico é freqüentemente contestado, apesar das contribuições tecnológicas efetivas e freqüentes que conduzem ao sucesso comercial. Segundo, apesar desse sucesso, a legitimidade do indivíduo e seu lugar principal na crônica histórica estão limitados pela disciplina. O praticante se identifica com sua disciplina e busca estrategicamente estar a ela vinculado. A tecnologia é importante, mas é o regime disciplinar que constitui o padrão-chave.

Existem duas razões para isso. O regime disciplinar está no ápice cultural e profissional por oposição à indústria. Isto continua a acontecer, apesar do discurso político, jornalístico e empresarial em contrário. Quando é dada uma escolha entre a academia e a indústria para indivíduos que por várias razões optaram pela empresa, muitos lastimam sua passagem pela fronteira do regime disciplinar em direção à empresa (cf. Shinn & Lamy, 2006). Eles consideram a empresa como um passo menor, mesmo face às representações de que a globalização dirigida para a inovação é um horizonte cultural inevitável e desejável. A outra consideração é estrutural. O regime disciplinar de produção e difusão da ciência caracteriza-se pelo auto-recrutamento, pela auto-seleção das questões de pesquisa, da metodologia, pela autodeterminação dos critérios de qualidade e esse regime constrói, por meio da citação de pares e de atribuições internas de prêmios e outros reconhecimentos, seu próprio sistema de compensação. Com efeito, ele forma uma economia fechada relativamente autônoma.

A trajetória cognitiva e profissional de William Thomson pode ser tomada como emblemática do regime transitório de ciência e tecnologia (cf. Smith & Wise, 1989). William Thomson (1824-1907) foi professor de física por mais de 50 anos, a maioria dos quais na Universidade de Cambridge. Ele é algumas vezes considerado como um dos físicos mais brilhantes do século xix. Durante uma parte de sua longa carreira, Kelvin também trabalhou em proximidade com a indústria atravessando a fronteira disciplinar-empresarial tanto no contexto do estabelecimento de tecnologia para o telégrafo transoceânico, como fazendo instrumentos. Em conexão com o primeiro, ele fez uma ponte na fronteira entre a disciplina e a empresa envolvendo-se no estabelecimento de metrologias, embora isto não seja geralmente reconhecido como o centro dos seus esforços.

No modo disciplinar, Kelvin contribuiu crucialmente para o estudo da termodinâmica. Ele era ao mesmo tempo um físico-matemático e um experimentalista. Diferentemente de muitos estudiosos britânicos da metade do século xix, ele adotou a matemática de J. Fourier e muito cedo demonstrou que, usando as séries de Fourier, é possível resolver as equações diferenciais parciais que descrevem a condução do calor. O trabalho de Kelvin também se concentrou no problema de Faraday da relação entre a eletricidade e a indução magnética. Kelvin demonstrou que a relação ocorre por meio de um efeito dielétrico e não por algum mecanismo incompreensível. Mas, talvez, sua contribuição mais importante para a física seja o desenvolvimento da escala Kelvin para o zero absoluto a menor temperatura atingível independentemente do material envolvido na mensuração. Esta é talvez sua mais duradoura adição para o corpo da ciência. Kelvin também explorou a conexão entre a luz e o magnetismo. Fazendo uma ponte entre seus esforços disciplinares e de engenharia, Thomson também trabalhou na área de metrologia. Aqui, participou decisivamente na determinação da unidade-padrão de corrente, o ampere. No curso de sua longa carreira, Kelvin publicou mais de 650 artigos, e durante muito de sua vida foi reconhecido, dentro e fora da Inglaterra, como um dos físicos mais completos e de mais ampla visão do mundo.

Lord Kelvin atravessou a fronteira do regime disciplinar de produção e difusão de ciência em duas ocasiões principais, dirigindo-se ao regime utilitário. Em 1856, Kelvin foi contratado pela Trans-Atlantic Telegraph Company. Enquanto permanecia no regime disciplinar, ele sustentou uma conexão com esta firma até 1864, com a instalação bem sucedida do cabo transatlântico que ligou a Irlanda à Newfoundland. Na expedição de 1857, o cabo rompeu-se após apenas 350 milhas de imersão. Kelvin estudou o esforço exercido em colocar um cabo sobre a superfície do fundo oceânico e sugeriu mudanças na dinâmica de desenrolar o cabo. Kelvin estava em constante conflito com o engenheiro-chefe da companhia e com parte do corpo de diretores, em incontáveis assuntos tecnológicos. Primeiro, o engenheiro-chefe, Whiteside, acreditava que a potência elétrica transmitida por distâncias imensas era dependente de uma voltagem sempre maior. Kelvin demonstrou que a potência do sinal era inversamente proporcional ao quadrado da distância do comprimento do cabo. A solução não estava em aumentar a voltagem, mas antes em aumentar a seção do cabo e incrementar o isolamento. Além disso, ele insistia na necessidade de melhorar a qualidade do cobre usado no cabo, melhorando desse modo a eficácia.

O uso de baixa voltagem exigia naturalmente sistemas de detecção mais sensíveis. Kelvin calculou que, em vista da tecnologia contemporânea, a taxa máxima de emissão de dados era de 1 sinal a cada 3.5 segundos. Ele acabou inventando uma série de aparelhos capazes de detectar sinais de baixa intensidade. Um deles foi o espelho galvanômetro. Essa divisa foi, por muito tempo, rejeitada pelos membros da diretoria e pelo engenheiro da Trans-Atlantic Telegraph Company. Finalmente, entretanto, Kelvin os convenceu de que ela era a técnica mais precisa para a detecção de sinal, uma técnica que empregava o mínimo de voltagem e de corrente, ambas capazes de afetar ou destruir a integridade do frágil cabo marinho. Em combinação com o espelho galvanômetro, Thomson também inventou um sifão registrador, que traduzia fragmentos de dados em informação inteligível, utilizável. Este aparelho também sofreu resistência antes de ganhar aceitação. Discerne-se claramente aqui que a lógica do regime disciplinar desafiava continuamente as atividades industriais de Kelvin. A lógica e as regras profissionais, o equilíbrio do poder, o apelo da economia, as considerações pragmáticas sobre a satisfação do consumidor e os motivos capitalistas são todos preponderantes considerações amplamente ausentes do regime disciplinar.

A segunda transgressão operada por Lord Kelvin ao cruzar a fronteira do regime disciplinar está no domínio do estreito nicho da invenção de instrumentação, e transparece um pouco depois em sua carreira. Em 1884, ele criou uma firma de instrumentos, a Kelvin and James White Lmtd. Entre as inovações de Kelvin, pode-se citar uma divisa que usa o diferencial de pressão para determinar a profundidade de água. As leituras anteriores feitas por meio de cabo mostraram-se imprecisas. O sistema de Kelvin dependia do processamento matemático do diferencial de pressão da água um enorme avanço. Ele desenvolveu similarmente uma máquina altamente precisa para detecção do nível e período das marés. Ele inventou um sistema para neutralizar o desvio magnético gerado pelo ferro amplamente usado na construção de navios e, com isso, produziu melhoramento no compasso de navegação. Mais geralmente, ele introduziu formas melhoradas de amperímetros, incluindo o quadrante amperímetro e a balança de Kelvin. Apesar de todas as inovações não serem bem sucedidas economicamente, elas constituem uma faceta importante de seus esforços e representam um segundo exemplo de distanciamento do regime disciplinar de produção e difusão de ciência. Em tais empreendimentos, a audiência e o mercado não eram os pares disciplinares. As questões levantadas, a metodologia e os critérios de validação não emanavam do referente disciplinar, mas antes de critérios utilitários e do potencial do mercado capitalista, tão afastados da agenda e da lógica da difusão disciplinar. Mas uma coisa é certa, Kelvin insistia em sua identidade primária enquanto físico, enquanto membro do regime disciplinar. Embora ele tivesse orgulho de suas realizações em engenharia, e através dela tivesse se tornado um homem rico e famoso, sua devoção estava na academia e na pesquisa física fundamental. Durante as décadas finais de sua vida, suas principais atividades e discursos públicos concentravam-se exclusivamente em assuntos disciplinares, e não em eventos conectados com seus importantes episódios, embora temporários, de cruzamento das fronteiras extradisciplinares em direção à empresa e à engenharia. Ele tinha clara percepção das realizações da física do século xix e igualmente percebia com clareza os muitos domínios deficientes, nos quais pesquisa fundamental adicional era necessária e urgente. Por oposição, quase não existem comentários sobre indústria e engenharia, episódios tão importantes, mas secundários, em sua trajetória.

Segundo algumas pesquisas sociológicas, pronunciamentos jornalísticos e iniciativas de políticas públicas de pesquisa recentes, é acima de tudo o regime transitório de produção de ciência e tecnologia que se tornará nos próximos anos dominante, principalmente às expensas do regime disciplinar, que alguns observadores percebem como declinante ou até mesmo em agonia mortal (cf. Etzkowitz & Leydesdorff, 1997; Gibbons et al., 1994; Nowotny, 2001). Os dados e as observações acerca do regime transitório são complicados e contraditórios. A posição, o crescimento e a força desse regime podem de fato ser dependentes das nações. Por exemplo, embora freqüentemente esteja baseado em evidência seletiva, parecem existir mais instâncias do regime transitório nos Estados Unidos do que na França; e, na França, as modalidades do regime tendem a ocorrer na tecnologia da informação, na ciência dos materiais e na biotecnologia e não na maioria das outras disciplinas ou setores (cf. Shinn & Lamy, 2006; Lamy & Shinn, 2006). Novas variantes do regime transitório de ciência e tecnologia estão emergindo, embora elas também se adéqüem nitidamente aos quatro regimes de produção e difusão de ciência e tecnologia propostos aqui.

Um estudo empreendido na França entre 1999 e 2004 sobre cientistas acadêmicos, que permanecem em seus laboratórios universitários ao mesmo tempo que estabelecem empresas, ilumina a dinâmica do que pode ser uma expressão contemporânea do regime transitório de produção e difusão de ciência e tecnologia. Enquanto a significação desses cientistas-empresários é calorosamente debatida entre os sociólogos, os jornalistas, os industriais e os especialistas em políticas públicas de pesquisa, existe alguma evidência de que em certas nações, tais como os Estados Unidos, o movimento para uma ciência empreendedora está em alta (cf. Etzkowitz & Leydesdorff, 1997; Gibbons et al., 1994; Nowotny et al., 2001; Owen-Smith, 2003). Na França, existe menos entusiasmo; entretanto, disciplinas e setores específicos parecem favorecer a emergência de algo aparentado ao regime transitório acima de tudo, na tecnologia da informação, na ciência dos materiais e na biotecnologia (cf. Lamy & Shinn, 2006).

Um exame dos cientistas do CNRS e da universidade francesa revela a existência de três categorias principais: (1) cientistas que criam companhias, mas cujo referente principal permanece sendo sua disciplina e seu laboratório de pesquisa fundamental os "acadêmicos"; (2) praticantes que trabalham em seus laboratórios na universidade, mas cuja principal afiliação é sua empresa os "pioneiros"; (3) uma categoria rotulada "Janus", cuja identidade depende de sua disciplina e que se movem de lá para cá entre seu laboratório disciplinar e sua firma. É esta última categoria que pode constituir uma expressão contemporânea do regime transitório de ciência e tecnologia, e que pode constituir um suporte tanto para a pesquisa fundamental, quanto para o crescimento econômico (cf. Shinn & Lamy, 2006).

Os acadêmicos constituem firmas de modo a reforçar seu potencial disciplinar. Os materiais físicos, a instrumentação da firma e o pessoal adicional conectado à companhia são caracteristicamente redirigidos para os objetivos do laboratório disciplinar. Isto freqüentemente resulta em um aumento da publicação de pesquisa científica fundamental e até mesmo da publicação de orientação aplicada. De modo que, neste caso, a firma está subordinada aos objetivos do regime disciplinar.

Acontece o contrário com os pioneiros, que rapidamente aderem ao conceito de que a ciência deve estar a serviço da economia e da sociedade: a ciência compreende uma fonte de melhoria social e meios de empregar os jovens. O contato com o seu laboratório universitário não desaparece, mas o vínculo é muito enfraquecido. A maior parte do esforço é investida na firma. Os pioneiros, entretanto, não são empreendedores autênticos. Eles se comportam como capitalistas até certo ponto, mas falta-lhes o treinamento, a experiência e talvez o instinto empreendedor. Na linguagem de Pierre Bourdieu, falta-lhes o habitus apropriado. Como resultado, eles nunca se tornam empreendedores autênticos, legitimados por sua genuína comunhão empresarial. Eles também perdem a confiança de seus colegas de laboratório. Entrevistas realizadas mostram que, após vários anos, os pioneiros franceses, muitos dos americanos e a maioria dos latino-americanos arrependem-se de sua decisão, mas não podem encontrar o caminho de volta para o cenário acadêmico. Sua produção de pesquisa fundamental cai e, freqüentemente, a pesquisa em tecnologia acaba estagnando. Enquanto a firma luta para sobreviver ou até mesmo quando prospera, ela não constitui uma base completamente satisfatória para a realização. O passo para o regime utilitário não é suficientemente realizado, resultando em insatisfação e até mesmo alienação, entre a maioria dos pioneiros.

Os praticantes Janus têm muito em comum com o regime transitório. Eles se identificam primariamente com sua disciplina e laboratório acadêmico e tendem a ser pesquisadores seniores realizados. Publicam abundantemente em domínios fundamentais da pesquisa e é a partir desses projetos que derivam idéias para uma aplicação; o que conduz à criação de uma empresa. O vínculo entre a produção de pesquisa, sua aplicação e sua difusão no mercado econômico constitui geralmente uma cadeia de continuidade. Na medida em que Janus se engaja em múltiplas travessias das fronteiras, o escopo da travessia é circunscrito. Ela se define por um movimento periódico entre o laboratório disciplinar e a companhia específica, e envolve uma audiência econômica restrita, estritamente tecnológica. Essa qualidade altamente restrita da travessia da fronteira é essencial, pois, como mostrarei a seguir, ela distingue o regime transitório do regime transversal de produção e difusão da ciência e da tecnologia. A lógica que subjaz ao trabalho e mobilidade do praticante Janus é "seqüencial". Eles não procuram ser "cientistas-empresários". Como eles próprios afirmam: "existem apenas 24 horas em um dia. Deve-se ser ou um praticante de tendência disciplinar ou um empresário". Assim, eles se movem de lá para cá entre a disciplina e a firma. O praticante Janus tende a publicar mais abundantemente com o estabelecimento de uma firma; e isso acontece para a pesquisa fundamental, para a pesquisa aplicada e também para a tecnologia.

Atualmente, alguns sociólogos elogiam a gênese e a expansão da hibridação, que é representada como não sendo nem ciência nem economia. Alega-se, na fraseologia da pós-modernidade, que ela constitui uma forma organizacional sem precedentes históricos, mas, nos praticantes Janus e no regime transitório de produção e difusão de ciência e tecnologia, não existe absolutamente nada que sirva de auxílio aos advogados da hibridação cognitiva e organizacional. As divisões de trabalho, as fronteiras e uma travessia de fronteira altamente controlada constituem o fundamento desse sistema de ciência. O praticante Janus parece constituir uma adaptação ao regime transitório; o que não significa minimizar sua importância presente e futura e possível significação para a mudança econômica e cultural. Em certos países, em especialidades específicas, Janus e o regime transitório podem perfeitamente fornecer novas fontes de originalidade intelectual e de renovação organizacional (cf. Shinn & Lamy, 2006; Shinn, 2007).

4 O REGIME TRANSVERSAL

Cada regime é o produto de suas circunstâncias históricas particulares, e esse fato fundamental emerge com força revigorada no caso do regime transversal de produção e difusão de ciência e tecnologia. Ele originou-se na Alemanha durante o último terço do século xix, em uma conjunção de forças militares, governamentais, industriais, de produtores de instrumentos e, em menor grau, acadêmicas. A afirmação das ambições e da grandeza prussianas; o explosivo crescimento da indústria alemã e sua extensão aos novos domínios da química, eletricidade, naval e infra-estrutura; a aceleração do progresso na pesquisa científica; a determinação do governo de introduzir e de impor normas e padrões exigentes para os produtos industriais e o interesse associado de parcela dos produtores de instrumentos de competir internacionalmente com os franceses e os ingleses e transformar a lógica fundamental de seu ofício combinaram-se para forjar um novo regime de produção e difusão de ciência (cf. Joerges & Shinn, 2001; Shinn & Joerges, 2002; Shinn & Ragouet, 2005; Shinn, 2007). A cultura alemã torna-se assim o nexo para a origem do regime transversal.

A concepção fundamental, pelo menos entre alguns pensadores governamentais, figuras militares, capitães de indústria e, acima de todos, os produtores berlinenses de instrumentos, era a geração de uma forma absolutamente nova de tecnologia, capaz de enfrentar uma diversidade de aplicações, em um amplo âmbito de domínios acadêmicos e industriais. O objetivo era, de fato, estabelecer uma matriz epistemológica original. Ao invés de deliberar acerca das leis da natureza, o novo regime propunha explorar as leis da instrumentação. O domínio das leis da instrumentação podia, por sua vez, conduzir ao desenvolvimento de divisas genéricas, que expressariam princípios fundamentais da instrumentação que podiam subseqüentemente ser integrados a funções e tarefas tecnológicas específicas, por meio de adaptação apropriada. Segundo um amplo grupo de produtores berlinenses de instrumentos que já estavam fundando firmas, inclusive em outras cidades alemãs, um instrumento genérico incorporaria conceitos instrumentais básicos e muito gerais, que permitiriam uma flexibilidade aberta e uma multifuncionalidade. O princípio genérico permitiria que certos aspectos do instrumento fossem efetivamente redesenhados para aplicação no nicho local, sem desorganizar a lógica tecnológica e a divisão de trabalho na variedade de ambientes nos quais ele opera. A adoção por adaptação, por reinserção das leis do instrumento genérico, constitui a lógica subjacente.

Um grupo de pequenas companhias berlinenses comprometeu-se com esse projeto nos anos 1870, 1880 e 1890, sendo mais ativa a Hench Company. A política governamental insistia em sua institucionalização e expansão. Um enorme compêndio escrito por L. Loevenhertz, publicado em 1878, abria espaço para a necessidade de gerar divisas genéricas, que poderiam subseqüentemente estar no centro da convergência entre muitas tecnologias e vários domínios da pesquisa científica. Essa nova esfera, chamada de "tecnologia de pesquisa", começa a ser percebida como um mecanismo transversal para expandir o trabalho técnico e científico e para introduzir ordem naquilo que era cada vez mais visto como uma arena fragmentada de conhecimento, habilidades e tecnologia. Algo devia ser feito para introduzir a convergência; e os artefatos instrumentais genéricos da tecnologia de pesquisa foram vistos como um desses mecanismos centrais (cf. Shinn, 1993, 2000a, 2000b). Com efeito, a tecnologia de pesquisa continha um antídoto contra a excessiva segmentação mental e material.

Exemplos de instrumentos genéricos do final do século xix e por todo o século xx incluem, por exemplo, o estereoscópio de R. Pulfrich. Essa divisa incorporava três arranjos ópticos tridimensionais. A óptica tridimensional genérica foi rapidamente adaptada para usuários dedicados ao desenvolvimento de armamentos navais, ao diagnóstico preciso de problemas arquiteturais, ao estudo de esculturas históricas, ao trabalho topográfico e infra-estrutural, à construção de ferrovias e estradas. Outro exemplo toma a forma da chave automática genérica, cujos princípios e artefatos foram usados na pesquisa astronômica, na indústria química e na regulação da potência elétrica. Exemplos mais recentes incluem o desenvolvimento, por P. Jacquinot, J. Connes e P. Felgett, do espectroscópio de transformada de Fourier, o rumbatron por W. Henson, o osciloscópio e o laser. Na tecnologia de pesquisa, o caráter genérico algumas vezes ultrapassa os artefatos puramente materiais e pode aplicar-se igualmente a aparatos tecnológicos não materiais, puramente mentais. A simulação representa uma divisa mental genérica contemporânea, assim como o algoritmo matemático de Cooley-Tukey, que é hoje usado em, literalmente, centenas de aplicações, que vão da pesquisa acadêmica em física e astronomia à informática, aviação, finanças etc. (cf. Shinn, 2007). A cibernética também é considerada por alguns como um instrumento conceitual genérico.

O exemplo concreto do modo como os produtores de instrumentos alemães organizaram seu aparato ajuda a ilustrar a lógica subjacente a sua filosofia genérica. Na organização material das exibições tradicionais de instrumentos, os produtores de instrumentos alemães, como os de outros países, exibiam suas inovações lado a lado, sem consideração de sua lógica subjacente. Divisas elétricas eram arranjadas juntamente a outros aparatos elétricos, e o mesmo valia para os instrumentos e divisas ópticas, mecânicas etc. Isso repentinamente mudou entre os especialistas berlinenses de instrumentos nos anos 1880, quando pela primeira vez princípios genéricos constituíram a prática de exposição. Uma lei instrumental genérica que tivesse expressão na óptica, no magnetismo e na eletricidade agrupava sistematicamente todos os tipos de produtos relevantes para a lei instrumental subjacente. Desse modo, a atenção era imediatamente dirigida para o princípio subjacente e para a miríade de adaptações que podia expressar. Ao fazer isso, a tecnologia de pesquisa enfatizava o caráter transversal comum (commonality) daquilo que, de modo superficial, aparecia como formas fragmentadas e diferenciadas de conhecimento e de tecnologia. Por meio dessa redistribuição de divisas, o caráter federativo ou, pelo menos, confederativo, da ciência e da tecnologia torna-se visível. Essa lógica transversal era particularmente notável na Saint Louis Universal Exhibition de 1904, onde muitos observadores tomaram conhecimento da nova lógica que era subjacente à organização dos artefatos e, desse modo, subjacente à ciência e à tecnologia (cf. Joerges & Shinn, 2001).

Dois eventos adicionais que ocorreram nos anos 1880 revelam a dinâmica específica da tecnologia de pesquisa. A Alemanha imperial possuía a maior organização mundial de ciência, tecnologia e profissional relacionada à medicina, chegando a 5.000 membros a Versammlung der Deutschen Naturforcher und Ärztet era composta de 42 seções, cada uma representando uma disciplina, uma profissão ou uma especialidade científica ou técnica particular por exemplo, astronomia, zoologia, botânica, mecânica, óptica, acústica, geologia, geografia, vários campos da engenharia, áreas médicas e veterinárias etc. As várias seções eram claramente definidas e o pertencimento dependia do treino, dos domínios cognitivos e da profissão. Os grupos eram distintos e zelosos de sua separação e autonomia. A Versammlung, de fato, atuava como uma associação, não tendo ambições confederativas ou federativas. A partir de meados dos anos 1880, os tecnólogos de pesquisa montaram uma vigorosa campanha para tornar-se parte da associação. O esforço teve a princípio uma forte resistência. A crítica da oposição dirigia-se contra o plano dos tecnólogos de pesquisa de introduzir uma seção transversal. A intenção era que a instrumentação genérica favorecesse as particularidades dos outros grupos reputados da Versammlung. Isso foi a princípio percebido como uma ameaça à autonomia tradicional das seções históricas. No entanto, por volta de 1892, pelo menos os produtores de instrumentos genéricos conseguiram ser admitidos como uma espécie de seção renegada, semi-reconhecida, que nunca conseguiu chegar a membro completo, devido a sua insistência em um tema e uma estratégia transversalista uma abordagem da ciência e da tecnologia que pretendia constituir uma ponte entre os subgrupos e promover uma circulação sistemática de idéias, materiais e pessoas através de todos os regimes de produção e difusão de ciência e tecnologia.

A tecnologia de pesquisa também figurou no desenvolvimento da Physikalische-Technische Reichanstalt estabelecida em 1887, a qual continha duas seções, uma para a ciência e a outra para esforços relacionados com a tecnologia. Enquanto a seção científica, dirigida por Helmholtz, estava dedicada à pesquisa fundamental, a orientação do corpo tecnológico permanecia mal definida. Uma possibilidade envolveria a introdução e implementação de padrões e normas industriais. Uma segunda opção concentrava-se na engenharia e, mais especificamente, na pesquisa associada à educação de engenheiros. Esse caminho era defendido pelo poderoso lobby da engenharia alemã. A tecnologia de pesquisa compreendia uma terceira área, na qual o objetivo seria pesquisar divisas genéricas, testando-as e disseminando-as. O já mencionado campeão da tecnologia de pesquisa, Loewenhertz, era o principal advogado dessa linha de ação. Para surpresa de muitos, foi a pesquisa instrumental genérica que prevaleceu. Loewenhertz tornou-se o líder das seções de tecnologia da Physikalisch-Technische Reichanstaldt por um curto período, após o qual a pesquisa tecnológica da instituição tendeu a tornar-se menos clara quanto à direção e, até mesmo, a declinar. Apesar disso, por um curto período de tempo a trajetória transversal defendida e praticada pelos praticantes da instrumentação genérica manteve a circulação e demonstrou sua força.

Como será mostrado agora, quando tomados conjuntamente, a trajetória, as formas de circulação e sinergia, a arena intersticial e o formato da travessia de fronteiras constituem as assinaturas dos praticantes da tecnologia de pesquisa, que compõem o regime transversal de produção e difusão de ciência e tecnologia, e essa assinatura contrasta singularmente com as características dos três outros regimes previamente descritos. A produção de artefatos genéricos, abertos, multifuncionais, com múltiplos propósitos e altamente flexíveis requer que se opere em uma arena intersticial. Os tecnólogos de pesquisa trabalham nos espaços abertos e desocupados entre as instituições e organizações dominantes a universidade, a indústria, as forças armadas, os serviços estatais de metrologia e assim por diante. Em várias injunções de carreira, eles desenvolvem algumas vezes conexões com uma organização particular, ainda que subseqüentemente se movam de volta para a arena intersticial. Essa arena proporciona várias características centrais da tecnologia de pesquisa. Primeiro, ela os protege das demandas de curto prazo de clientes que querem divisas específicas para resolver problemas particulares bem definidos. Enunciado de modo diferente, o tecnólogo de pesquisa usufrui de um espaço temporal relativamente livre de restrições exógenas imediatas, onde pode concentrar-se nos princípios subjacentes da instrumentação, por oposição ao simples desenho ou construção de um aparato que é adequado para uma necessidade restrita. Aquele que trabalha para todos não é servo de ninguém.

Em segundo lugar, a arena intersticial facilita as oportunidades de abundante travessia de fronteiras. Os tecnólogos de pesquisa atravessam as fronteiras na medida em que passam, temporariamente, pelos domínios de nichos locais, onde coletam informação técnica ou procuram por categorias de problemas que poderiam ser úteis na geração de uma divisa genérica. Eles igualmente atravessam fronteiras quando prestam assistência, algumas vezes, a usuários locais para adaptar um aparato genérico, ou auxiliam na extração de componentes particulares apropriados, no complexo processo de adoção de um instrumento genérico. A travessia de fronteiras no sentido inverso também ocorre quando os próprios usuários do nicho local movem-se para fora de seu espaço organizacional, industrial, acadêmico habitual, transferindo-se temporariamente para a arena intersticial no decurso da contribuição para o potencial de um aparelho genérico existente, fazendo, desse modo, com que seja ainda mais multi-propósito e multifuncional. Por meio dessas incontáveis travessias de fronteiras, a tecnologia de pesquisa é, com freqüência, altamente sinergética. A circulação é da maior importância nesse regime.

Neste ponto, é importante distinguir entre os regimes transitório e transversal. Como já vimos, os praticantes do regime transitório estão também envolvidos na travessia de fronteiras. Eles se movem entre o referente disciplinar e o referente utilitário. Essa travessia de fronteiras, entretanto, ocorre com pouca freqüência no caso do regime transitório, na medida em que usualmente os cientistas apenas a empreendem duas ou três vezes ao longo de suas carreiras. Isso contrasta com os tecnólogos de pesquisa que rotineiramente movem-se pelas fronteiras, fazendo isso inúmeras vezes. Assim, em um caso, a travessia de fronteiras permanece uma atividade excepcional, enquanto, no outro caso, é normativa e abundante. Outra diferença fundamental é que os praticantes do regime transitório estão casados com suas disciplinas, que constituem o centro a partir do qual eles operam. Ela proporciona identidade e legitimidade. Entre os tecnólogos de pesquisa, a identidade e referente primários são, o tempo todo, os esforços de instrumentação e os relacionados ao instrumento. O caráter genérico e os princípios da instrumentação constituem seu padrão de realização, antes que as leis da natureza e as distinções disciplinares.

O regime transversal de ciência e tecnologia é singular na medida em que alimenta a circulação dos praticantes, dos materiais e das idéias através das fronteiras no interior da ciência e entre a ciência e as outras formas de ação social. Por meio da instrumentação genérica, ocorre a comunicação no interior da academia, e entre a ciência, a indústria, os serviços estatais, o complexo militar etc. A tecnologia de pesquisa gera uma espécie de lingua franca. Vocabulários específicos, metrologias e imagens estão imbricados em uma divisa genérica. À medida que um instrumento genérico torna-se reincorporado em um nicho de usuário local, parte desse conjunto particular de representações é transferida para o ambiente local e torna-se parte do hábito do usuário. Os operadores de instrumentos de uma multiplicidade de domínios diferentes apropriam-se, assim, por integração da linguagem do vetor genérico, de uma linguagem mínima compartilhada. A linguagem comum permite que atores de diferentes horizontes comuniquem-se e ajam efetivamente, de modo independente de suas origens e cenário. Desse modo, a tecnologia de pesquisa funciona como um mecanismo que promove a convergência. A tecnologia de pesquisa neutraliza, parcialmente, a fragmentação em geral associada à multiplicação de subgrupos e subfunções e à avançada divisão social do trabalho contemporâneas. Essa língua franca é fundamental para a capacidade de ligação que torna esse regime conscientemente transversal. O regime sustenta as eficiências comensuráveis com a diferenciação e, ao mesmo tempo, gera forte associação. Percebe-se aqui que a diferenciação e a integração não são necessariamente contraditórias. A tecnologia de pesquisa enfatiza e estrutura a complementaridade entre a diferenciação e as formas de integração. Servindo como uma encruzilhada, ela gera e amplia a sinergia entre os domínios.

O regime transversal proporciona um elemento adicional de coesão, baseado nas práticas da operação instrumental. Na medida em que um grande número de aparelhos baseados em divisas genéricas é usado com sucesso por diferentes grupos de cientistas, de engenheiros, de técnicos e de outros operadores em ambientes amplamente diferentes, para a realização de funções contrastantes para propósitos alternativos, desenvolve-se e reforça-se a confiança nos resultados obtidos por seus aparelhos. O único aspecto em comum entre as várias expressões das diferentes divisas são seus componentes e princípios genéricos. A confiança compartilhada conduz à crença compartilhada, que se baseia na regularidade e confiabilidade do resultado do instrumento, o qual é independente do usuário, do uso, da função, da geografia e da cultura. O sistema de base genérica produz uma espécie de robustez no interior da ciência. Por meio da experiência compartilhada da operação de divisas e da obtenção de resultados comparáveis, os praticantes percebem seu aparato como conduzindo a resultados "válidos". Essa validação assume a forma da "universalidade". Entretanto, a universalidade que nasce da tecnologia de pesquisa não é uma matéria da epistemologia ela não é universalidade epistemológica. A universalidade prática da instrumentação genérica da tecnologia de pesquisa tem, ao contrário, um caráter social, com raízes na experiência social compartilhada por grupos heterogêneos. A universalidade prática é, portanto, sociológica. Ela contém elementos de comunicação, de dinâmica coletiva e de interações. Ela implica também um componente material, uma vez que a robustez da universalidade prática requer produtos instrumentais confiáveis, comparáveis e padronizados. Esse triângulo entre a confiabilidade, a comparabilidade e a padronização é produto do caráter genérico do instrumento.

5 UNIDADE E DESUNIDADE NA CIÊNCIA: A PERSPECTIVA TRANSVERSALISTA

Se o critério que se possui para a "unidade da ciência" é um todo homogêneo sem defeito, uma teoria unitária da ciência é inconcebível, tanto em bases epistemológicas quanto sociais. A análise feita acima da emergência e dinâmica dos regimes disciplinar, utilitário, transitório e transversal de produção e difusão de ciência e tecnologia demonstra os aspectos pluralistas da ciência. Com base na estrutura, nos resultados e na história, somos forçados a pensar a ciência em termos das "ciências". Cada expressão da ciência opera no interior de um território específico, que possui sua forma particular de capital simbólico e material, suas formas particulares de conflito, suas regras específicas para julgar o que conta como resultado válido ou inaceitável, e caracteriza-se por um mercado altamente definido para suas produções. Existem, portanto, múltiplas formas de ciência, nas quais a circulação e a dinâmica de circulação funcionam diferentemente. Cada expressão da ciência ocupa seu próprio território particular.

Permanece, entretanto, a questão de se é razoável falar em termos da "ciência". Se é possível falar da "ciência", no singular, o que legitima essa representação? O sociólogo Andrew Abbott (1995) sublinha que as fronteiras servem principalmente para identificar diferenças entre entidades. A operação social da fronteira não é defender ou proteger, mas, ao contrário, demarcar diferenciações. É totalmente justificável pensar aqui em termos de uma ciência unificada que se demarca de todas as outras esferas da atividade social a arte, a empresa, o direito, o governo e assim por diante. A ciência poderia ser melhor assemelhada à estrutura cristalina. O reticulado atômico cristalino é periodicamente alinhado, e o cristal implica suas regularidades e características internas, que o distinguem de outros cristais e de outras formas da matéria. Os cristais também possuem, freqüentemente, defeitos locais que alteram sua geometria local. O cristal permanece uma entidade diferenciada que, no entanto, exibe variações locais específicas. A relação entre a ciência unitária e as ciências apresenta paralelos com a composição complexa/paradoxal da lógica e das geometrias dos cristais.

Uma forma de unidade da ciência, apesar de suas características pluralistas, pode ser mantida em um segundo registro. O regime transversal proporciona o aparato que introduz convergência e coerência entre os outros regimes da ciência. O aparato genérico, como a matemática, oferece dados, resultados, um modo de ver e inteligibilidade que atravessam as fronteiras (cf. Shinn, 2000c; Bourdieu, 2001). O aparato genérico também promove a circulação dos praticantes entre os vários territórios que compreendem a ciência. Se a "unidade da ciência" implica a percepção da ciência como totalmente homogênea, então a ciência não pode fazer nenhuma reivindicação de unidade. Entretanto, se a ciência é vista como composta de territórios, divisas genéricas permitem a federação desses vastos territórios, provendo-os com uma linguagem comum à guisa da língua franca instrumentalmente baseada, e proporcionando, por meio das expectativas, experiências e resultados dos praticantes, até mesmo uma forma de universalidade prática. A robustez histórica, material, experimental e psicológica do fator genérico unifica os materiais, os conceitos, a capacidade preditiva e a solidez da ciência. O próprio aspecto unitário da ciência é uma de suas forças salientes, na medida em que existe certa complementaridade entre suas várias partes. Os territórios unitários da ciência são visíveis na crescente circulação entre seus componentes na forma de movimento entre as disciplinas. O lado unitário da ciência torna-se também cada vez mais evidente no crescimento do número e significância das imagens de ciência; imagens que são crescentemente geradoras da inteligibilidade física da base do regime (cf. Galison & Daston, 2007), e que também funcionam como parte da língua franca necessária para a comunicação através dos vários territórios da ciência.

Pode-se predizer com grande medida de confiança que esse perfil federativo, unificador, da ciência desenvolver-se-á a seguir pela aceleração da circulação de materiais, de conceitos e de instrumentação, que é muito evidente hoje em dia na nanociência e na nanotecnologia e nos territórios relacionados da pesquisa biológica (na forma de materiais, de vetores de transporte eletrônicos/químicos, de cálculos e de conceitos) e da biomedicina.

Traduzido do original em inglês por Pablo Rubén Mariconda & Sylvia Gemignani Garcia

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Abr 2009
    • Data do Fascículo
      Mar 2008
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