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Sobre o crescimento e a nutrição

DOCUMENTOS CIENTÍFICOS

EXCERTOS ANATÔMICOS

[596] Sobre o crescimento e a nutrição1 1 Traduzido do original em latim com base no texto extraído dos Excerpta anatomica, segundo a edição de Charles Adam & Paul Tannery, vol. 11, p. 596-9. A paginação de AT está indicada entre colchetes. As notas são da edição AT.

René Descartes

1637 Nov.

O crescimento é duplo: um é aquele das coisas mortas que não se nutrem, e que se dá pela simples aposição das partes, sem que nelas ocorra alguma mudança, ou ao menos sem grande mudança. Assim crescem os metais nas minas; o mel nas colmeias etc., sem nenhuma mudança nas partes; assim crescem, também, as pedras e coisas similares, sem nenhuma grande mudança nas partes.2 2 O manuscrito acrescenta: ( vel etiam cum magna, nihil vetat), sem que se saiba se este parêntese é uma adição de Leibniz, ou se já se encontrava no texto de Descartes (AT, 11, p. 596). E, ainda, por esse modo de crescimento, ocorre a transformação da madeira ou de outro corpo em pedra, até que as partes da pedra entram nos poros da madeira e ou assimilam as partes precedentes ou as empurram, ou em parte assimilam e em parte empurram.

O outro tipo de crescimento é aquele dos seres vivos ou daqueles que se nutrem, e ocorre sempre com alguma mudança das partes. Na verdade, diferentes partes com figuras variadas encontrando-se, misturam-se, e assim agem umas sobre as outras, até que adquiram certas figuras determinadas. Algumas vezes, aquelas partes mais fluidas escapam, enquanto as menos fluidas são preservadas; estas, arremessadas com ímpeto umas contra as outras, compõem um corpo duro, pelo qual escoam em toda parte vários veios cheios com todas [as partes] ao mesmo tempo misturadas: as partes mais grossas contidas naqueles veios, impelidas pelas mais tênues, colocam-se pouco a pouco no lugar à sua volta, e assim se dá a nutrição; ou também dividem um veio em dois ou [597] em mais, e assim se dá o crescimento. Na verdade, o corpo que cresce dessa maneira é cheio de inúmeros veios dessa natureza, e quando, em virtude do envelhecimento, as partes mais duras estão tão compactadas que os veios que as circundam não podem mais se dilatar, de maneira que de um surjam dois, o crescimento cessa, restando somente a nutrição. Se depois, com o passar do tempo, essas partes mais grossas conectam-se ainda mais, de modo que não possam ser removidas por outras que chegam, cessa a nutrição e também a vida.

Mas esse crescimento ou nutrição é imperfeito ou perfeito. É imperfeito, quando a matéria que preenche esses veios vem de outro lugar já assim misturada ou muito propensa a ser desse modo misturada e formada. Dessa maneira nutrem-se os pêlos, as unhas, os chifres, os cogumelos, os tumores e todas as partes seja dos animais, seja das plantas; e do mesmo modo, plantas que necessitam de uma semente, e, talvez ainda, animais muito imperfeitos, como as ostras que não geram um ser semelhante.

A nutrição ou crescimento perfeito contém, ao mesmo tempo, a geração ou produção da semente, e ocorre quando a matéria que preenche os veios é tal que pode assimilar inteiramente uma outra em crescimento (na verdade, não absolutamente qualquer uma, porquanto isso dificilmente poderia acontecer, mas uma qualquer que não seja muito firme e de natureza diferente).Assim evidentemente que, caso a nutrição consista somente de, por exemplo, partículas de três gêneros: a saber, de prismas muito exíguos, de conóides um pouco maiores e de outras côncavas de certo modo que a essas duas ao mesmo tempo devem ser juntadas convenientemente, de toda a matéria que for misturada com estas, formar-se-ão novamente certos prismas, conóides e partes côncavas aptas a se juntarem ao mesmo tempo a estas. Em verdade, nada impede que apareçam ao mesmo tempo, [598] da mesma matéria, vários outros gêneros de partes, como sempre ou quase sempre acontece; mas, unicamente essas três [partes] existentes compõem a semente. Porém, juntas a outras de modo diverso, ou ainda outras novas3 3 Novæ, palavra colocada na entrelinha, embaixo de aliæ, de leitura duvidosa (AT, 11, p. 598). sem elas próprias, compõem a madeira, a cortiça, as raízes, as folhas, as flores, os frutos etc. nas plantas; do mesmo modo nos animais, as carnes, os ossos, o cérebro, as membranas, o sangue etc.

Pode também acontecer que as partes da semente não produzam imediatamente partes que lhes sejam semelhantes, mas produzam outras diferentes que, em seguida, produzem outras, e por fim estas produzam outras totalmente semelhantes a essas da semente; isso parece ocorrer mais nos animais do que nas plantas. E disso compreende-se facilmente por que a maior parte dos animais e das plantas expele uma semente diferente do resto do corpo, e também por que alguns são estéreis e se propagam por outro modo que não pela semente.

São sete os principais gêneros das partículas que formam o corpo humano: partículas acres, amargas, doces, ácidas, salgadas, serosas, aquosas4 4 Aquæ talvez seja uma adição. O texto só se refere a sete gêneros de partículas; e mais adiante, ao retomá-las uma após a outra, acres, amaræ, dulces, acidæ, salsæ, serosæ e pingues, ele omite aquæ (AT, 11, p. 598). e gordurosas. Dentre as partículas acres considero todos os espíritos que saem pela transpiração insensível e aqueles humores sutis, dos quais costuma-se dizer que surgem da bile amarela as pústulas e coisas similares. As amargas, por outro lado, escorrem até a bile e daí quase todas até os intestinos. As partículas doces compõem a carne. As ácidas servem de veículo para outras, do mesmo modo que as salgadas: estas abrem [599] todos os poros com a ponta, aquelas o fazem por cortes. As salgadas,5 5 O manuscrito tem um vírgula entre salsæ e etiam (AT, 11, p. 599). além disso, misturadas com as acres, como a cera, irritam. As serosas, cuidadosamente misturadas com as gordurosas, compõem os humores,6 6 Lê-se, de preferência, tumores. as fluxões frias e o fleuma. Mas as partículas gordurosas, juntas com as acres, compõem o humor melancólico; as serosas, passando através dos caminhos daquelas partículas gordurosas, transformam-se em ácidas.

Traduzido do original em latim

por Marisa Carneiro de Oliveira Franco Donatelli.

Revisão técnica de Roberto Bolzani Filho.

Notas

  • 1
    Traduzido do original em latim com base no texto extraído dos
    Excerpta anatomica, segundo a edição de Charles Adam & Paul Tannery, vol. 11, p. 596-9. A paginação de AT está indicada entre colchetes. As notas são da edição AT.
  • 2
    O manuscrito acrescenta: (
    vel etiam cum magna, nihil vetat), sem que se saiba se este parêntese é uma adição de Leibniz, ou se já se encontrava no texto de Descartes (AT, 11, p. 596).
  • 3
    Novæ, palavra colocada na entrelinha, embaixo de
    aliæ, de leitura duvidosa (AT, 11, p. 598).
  • 4
    Aquæ talvez seja uma adição. O texto só se refere a sete gêneros de partículas; e mais adiante, ao retomá-las uma após a outra,
    acres, amaræ,
    dulces,
    acidæ,
    salsæ,
    serosæ e
    pingues, ele omite
    aquæ (AT, 11, p. 598).
  • 5
    O manuscrito tem um vírgula entre
    salsæ e
    etiam (AT, 11, p. 599).
  • 6
    Lê-se, de preferência,
    tumores.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2008
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