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Nos limites de um intermezzo: sobre homens e animais

RESENHAS

Nos limites de um intermezzo: sobre homens e animais

Messias Basques

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de São Carlos, Brasil. messiasjr@usp.br

The open-man and animal

Giorgio Agamben

Stanford University Press

Stanford, 2004, 118 págs.

Hoje, são as ciências da vida que desestabilizam todos os cenários do futuro. Em certos aspectos, são mais preocupantes ainda, pois seus resultados e suas aplicações podem pôr em questão os fundamentos mesmos da individualidade, do contrato social e da interação entre o homem e o seu meio ambiente (Edelman & Hermitte, 1993, p.11).

No final do século XX, os avanços tecnocientíficos que tornaram possível a reprodução artificial de organismos vivos e a onda de pedidos de patentes que os procederam impuseram um questionamento profundo às ciências humanas. Dentre os dilemas daí advindos, um deles causou grande polêmica: um microorganismo vivo, criado pelo homem, poderia ser patenteado? Estabelecida a controvérsia, os juristas foram chamados a refletir sobre as novas criaturas. E o processo de criação passava a ser questionado em seu sentido demiúrgico de conferir ou atribuir existência. Em suma, a aporia, que nos foi legada pelos desdobramentos tecnocientíficos das últimas décadas do século XX, concerne à definição jurídica do conceito de vida. Segundo Edelman (1999), na verdade, pelas vias do patenteamento, os tribunais elaboraram pouco a pouco um modelo jurídico do ser vivo, onde se representa a idéia que nossa sociedade ocidental faz dela mesma e de sua relação com a natureza.

O patenteamento dos organismos vivos colocou o homem indiferenciadamente na natureza, sob a égide de um mecanismo jurídico comum: a passagem de uma concepção filosófica do homem para uma concepção naturalista da espécie humana. O que está em jogo? O patenteamento de algo que se transforma em propriedade industrial, submetido às leis do mercado, da competição e do lucro. Passagem de uma visão sagrada a uma visão industrial da natureza e do vivente. Donde o embaralhamento das distinções tradicionais entre animado e inanimado, humano e não-humano, animal e humano. O ponto culminante dessa controvérsia é o dualismo jurídico do humano, entre os sujeitos de direitos (direitos estes cada vez mais inflacionados) e a matéria biológica. Mas se é esse o caso, outra questão crucial deve ser colocada: o que é o homem?

Vivemos, com efeito, um período de consolidação paulatina do desmembramento da pessoa humana, da dissociação da idéia de pessoa humana de suas partes, agora desmembradas, separadas e transformadas em matéria e experimentos, suscetíveis de serem tornadas bens apropriáveis e comercializáveis. Eis, portanto, uma cisão da pessoa humana em sujeito e seus atributos, fixados como material biológico. Em curso, a gestação da idéia do homem como um modelo, um artefato. A extirpação de toda metafísica termina em uma dessacralização do próprio homem, agora assimilável a um artefato biológico. E é nessa fissura entre a pessoa humana (com seus direitos inalienáveis) e a matéria humana, biológica, que a ciência e a medicina estão reivindicando suas prerrogativas. O que está em pauta: as noções de homem e de humanidade, como aquilo que estabelece o sentido e finalidade de todo direito.

Assistimos ao crescimento vertiginoso de um mercado da natureza (biotecnologias, indústria da transgenia etc.), bem como de um mercado dos homens (bancos de cordões umbilicais e embriões, úteros de aluguel) e a conjunção da ciência e do mercado, da técnica e da indústria, corrobora uma mutação cultural sem precedentes. E poderíamos inferir que é este o contexto que abre, ao mesmo tempo, a possibilidade de utilização dos embriões humanos, considerados não mais como pessoas, mas simplesmente como materiais humanos, biológicos, objetos passíveis de quaisquer intervenções. Trata-se aqui da inversão da noção de humanidade: não mais a técnica a serviço do homem, mas seu oposto, um humano inteiramente finalizado e submetido à técnica. Pois a quem serão atribuídos direitos sobre fetos e nascituros? Donde podemos vislumbrar ao menos um desdobramento: sem outros jogos de referências, as verdades da ciência tornam-se, cada vez mais, instâncias normativas e de legitimidade. Das controvérsias aos fatos, nossa cultura ocidental, sua filosofia e seu direito deparam-se ante um cenário de ausência de parâmetros, ao cabo do que passamos a conferir estatuto de verdade aos postulados científicos de nossa época. E isso começa no momento em que temos que julgar e definir o próprio estatuto da pessoa, delegando à ciência a responsabilidade por esse veredicto.

Diante desses processos de reconfiguração epistemológica que estão na pauta de nossos dias, o livro de Giorgio Agamben percorrerá justamente alguns momentos-chave da construção dos conceitos de vida, de humanidade e de animalidade na tradição científica e filosófica ocidental. Diferentemente dos seus outros trabalhos, aqui o autor examina e problematiza a origem desses conceitos tendo em vista a crítica dos seus fundamentos e pressupostos, numa exposição que se afasta, ao menos aparentemente, de sua trajetória como pensador dedicado ao estudo das aporias que julga serem constitutivas da modernidade, a saber, o campo de concentração (Agamben, 2001[1996]), o estado de exceção (Agamben, 2003) e a enigmática figura do direito romano arcaico, o homo sacer (Agamben, 2004[1993]).

Agamben argumentará que ainda que o humano sempre tenha sido pensado como uma misteriosa conjunção de um corpo natural vivente e uma dimensão sobrenatural, social ou divina, nós deveríamos começar a (re)problematizar o humano como resultado da separação prática e política entre humanidade e animalidade. Seja em suas variantes antigas ou modernas, a máquina antropológica operaria pela criação de uma diferença absoluta, uma distinção entre homem e animal que, de um lado, eleva o humano em detrimento do animal e do ambiente e, de outro, desloca a animalidade essencialmente para fora daquilo que Martin Heidegger descreveu como as características humanas abertas ao mundo. Em seu inquérito, Agamben busca problematizar essa cisão, o intervalo vazio e indeterminado entre homens e animais. É a partir dessa condição de intermezzo, desse estado de vida nua, dirá Agamben, que nós precisamos começar a vislumbrar meios de paralisar a máquina antropológica e abrir caminhos para que se instaure uma reflexão filosófica e política acerca do que concebemos como vida humana.

Sendo assim, para qualquer um que procure estudar o conceito de vida que permeia a cultura ocidental, uma das primeiras e mais instrutivas observações a serem feitas é que o conceito nunca foi definido, pois a pesquisa genealógica sobre o conceito de vida mostra que se trata de um conceito nunca definido como tal: encontra-se a cada vez articulado e dividido em uma série de oposições e cesuras que o investem de uma função estratégica decisiva em domínios aparentemente distantes entre si, tais como a filosofia, a teologia, a política e, mais recentemente, a medicina e a biologia. Nas suas palavras:

isto quer dizer que tudo se passa, em nossa cultura, como se vida fosse algo que não pode ser definido, ainda que, precisamente por esta razão, tenha que ser incessantemente articulada e dividida (p. 13).

Na história da filosofia ocidental, a articulação estratégica do conceito de vida teria um momento fundador, que pode ser encontrado, segundo Agamben, no De anima de Aristóteles, quando, dentre os vários sentidos do termo viver, Aristóteles isola o mais genérico e passível de separação ante os demais: "é pela vida que aquele que possui alma [l'animale] difere daquele que não a tem [l'inanimato]" (Aristóteles apud Agamben, p. 13).

Segundo Agamben, ainda hoje, nas discussões sobre a definição ex lege dos critérios da morte clínica, trata-se antes da identificação dessa condição de vida nua - destacada de qualquer atividade cerebral e, digamos, de qualquer sujeito - que decide quando certo corpo pode ser considerado vivo ou abandonado às vicissitudes extremas dos transplantes de órgãos. É apenas porque algo com uma vida animal é separada no interior do homem, que essa operação é possível, o que sempre supõe uma medida da distância e da proximidade com o animal. Mas isso também significa que a divisão da vida entre vida vegetal e vida de relações, orgânica e animal, animal e humana, passa então, antes de tudo, pelo interior mesmo do homem vivo, como uma fronteira móbil: sem esta cesura íntima, o simples fato de decidir o que é humano e não-humano seria impossível. Agamben defenderá que, diante disto: "nós temos que aprender a pensar o homem como aquilo que resulta da incongruência desses dois elementos, e investigar não o mistério metafísico da conjunção, mas antes o mistério prático e político da separação" (p. 16).

Ademais, se a vida animal e a vida humana passam a ser perfeitamente sobrepostas, então nem homem nem animal - e, talvez, nem mesmo uma dimensão divina - poderia ser pensada nesses termos. Por esta razão, o surgimento de uma pós-história necessariamente implicaria a reatualização desse patamar pré-histórico no qual nossas fronteiras foram definidas. Mas então é a própria questão do humanismo que terá que ser repensada: em nossa cultura, o homem sempre foi pensado como articulação e conjunção de um corpo e de uma alma, de um vivo e de um logos, um elemento natural e um elemento sobrenatural, social ou divino. Agora, ao contrário disso, teríamos que aprender a pensar o homem como o que resulta da desconexão desses dois elementos e examinar não o mistério metafísico da conjunção, mas o mistério prático e político da separação. Trabalhar sobre essas divisões implica indagar de qual maneira - no homem - o homem foi separado do não-homem e o animal do humano. Deparamo-nos, pois, com a exigência de uma experiência cognitiva renovada.

A exposição de Giorgio Agamben também incidirá no campo da biologia. Examinando os escritos de Carl Von Lineu, o autor demonstrará como foi (e continua a ser) difícil a tarefa de identificar diferenças específicas entre os macacos antropóides e os homens do ponto de vista das ciências naturais. Agamben cita Lineu que promovia provocações ao pensamento cartesiano, dizendo que: "eu preciso me deter no meu ofício e considerar o homem e seu corpo como um naturalista, que quase desconhece uma única marca distintiva sequer que separe o homem dos macacos, exceto pelo fato de que estes têm um espaço vazio entre os caninos e seus outros dentes" (p. 24). Para Lineu, o homem não teria nenhuma outra identidade específica que a de reconhecer a si mesmo. Tal como o historiador Felipe Fernández-Armesto mostrou brilhantemente em seu livro Então você pensa que é humano? Uma breve história da humanidade (2004), Agamben recolhe uma série de documentos e relatos que apontam para o fato de que, no Antigo Regime, as fronteiras da humanidade já eram tão incertas e fluidas quanto aquelas que foram (re)estabelecidas no momento em que alvoreciam (justamente) as ciências humanas. O homo sapiens não é, portanto, nem uma substância nem uma espécie claramente definida: é, sobretudo, uma máquina ou um artifício para produzir o reconhecimento do humano. Daí também a fragilidade interna da máquina antropológica do humanismo em seu (sempre) latente empreendimento para definir a natureza do humano.

Eis, então, o sentido da máquina antropológica (antiga e moderna): produção do humano pela oposição homem/animal, humano e inumano, operando por uma exclusão (que é uma captura) e uma inclusão (que é uma exclusão): um humano já pressuposto de tal forma que o fora é a exclusão de um interior e o interior, por sua vez, é a exclusão de um fora. Ou seja: a definição do humano é produzida nessa zona de indeterminação e é isso, justamente, que é inscrito na máquina antropológica, que permite não apenas, na nossa atualidade, definir o neomorto e o coma dépassé, como também definir um judeu (ou um muçulmano) como o não-homem produzido no homem. A máquina antropológica só poderá funcionar instituindo em seu centro uma zona de indiferença, onde produz a articulação entre o humano e o animal, o homem e o não-homem, o falante e o ser vivo. O verdadeiramente humano, portanto, é sempre o lugar de uma decisão sempre adiada, onde as cesuras e suas articulações são sempre novamente deslocadas. Mas isso significa, a rigor, não a definição da vida animal ou da vida humana: mas tão somente uma vida separada e excluída dela mesma - nada mais do que uma vida nua. Ou seja: a definição do humano e não-humano opera propriamente em um espaço de exceção.

Ao tratar dos estudos de Jacob Von Uexküll, Giorgio Agamben defende a sua contemporaneidade, uma vez que foram distintamente recuperados por Martin Heidegger e Gilles Deleuze. O primeiro poderia ser definido como o filósofo que como nenhum outro tentou separar o homem dos seres vivos, enquanto o segundo procurou pensar o animal em uma direção absolutamente não antropomórfica. Além disso, as teses de Von Uexküll, de que cada ser possui seu meio, parecem ressoar em autores como Friedrich Ratzel que, sabemos, reinterpretou-as em prol da geopolítica nazista. Von Uexküll questionou a noção de um mundo natural único e seus livros contêm, por vezes, ilustrações que visam sugerir como apareceria um fragmento do universo humano considerado do ponto de vista do ouriço, da mosca ou do cão. A experiência é útil pelo efeito de expatriação que produz no leitor, obrigado a olhar com olhos não humanos os lugares que lhes são os mais familiares.

Giorgio Agamben acolhe uma formulação de Heidegger sobre a polis grega vista como o lugar onde teria sido forjado o conflito entre "o encoberto e o descoberto, entre a animalitas e a humanitas do homem" (p. 75). As questões que daí decorrem seriam, também, diferentes e mais profundas nesse plano, uma vez que entraria em cena a administração da existência de pessoas, ou seja, em última análise, de suas vidas nuas. Vistos por esse ângulo, os totalitarismos do século XX constituiriam verdadeiramente a outra face da idéia, ilustrada tanto por G. W. F. Hegel quanto por Alexandre Kojève, acerca do fim da história. O homem alcançou seu telos histórico, para uma humanidade que ora se resume à animalidade, e não resta nada além da despolitização das sociedades humanas através do predomínio incondicional da economia, bem como da aparição da vida biológica como questão política (ou apolítica) suprema. Em face desse eclipse, seriam essas as questões a administrar: a administração da vida biológica, a animalidade dos homens. O genoma, a economia global e a ideologia humanitária seriam, pois, três faces desse processo pós-histórico, no qual a humanidade assumiria sua própria fisiologia como um mandamento (a)político. Noutros termos, equivaleria a dizer que a total humanização do animal coincide com a total animalização do homem (p. 77).

Walter Benjamin surge como referência alternativa, já que procurou pensar uma imagem inteiramente diferente da relação entre o homem e a natureza e entre a natureza e a história: uma imagem na qual a máquina antropológica parece ter sido completamente deslocada. Em carta de nove de dezembro de 1923, Benjamin discutia a natureza, como o mundo do encerramento e da noite, em oposição à história, como a esfera da revelação. Mas, mesmo ao tratar da esfera fechada da natureza, Benjamin (surpreendentemente) também a relaciona às idéias, como obras de arte. Assim, parecia querer sublinhar a relação do homem com a natureza, tendo em vista as antigas relações do homem com o cosmo, que teriam lugar no transe extático. Para o homem moderno, o lugar apropriado dessa relação é a tecnologia. Porém, há que ressaltar, uma tecnologia concebida como o domínio do homem sobre a natureza (p. 82). Isto posto, o que é decisivo aqui é somente o entre, o intervalo ou, deveríamos dizer, a relação entre dois termos, sua situação imediata de não-coincidência. A máquina antropológica não mais articularia homem e natureza para produzir um pensamento humano da suspensão e captura do inumano. A máquina estaria, por assim dizer, paralisada. Nesse estado e, em face da recíproca suspensão dos dois termos, algo - que talvez não tenhamos ainda condição de nomear e que não se resume nem ao animal nem ao humano - ocuparia a posição entre a humanidade e a natureza, tornando-se o centro da relação.

Neste livro, Agamben procurou mostrar que a cultura ocidental fez do homem o resultado da simultânea divisão e articulação entre o animal e o humano, na qual um dos termos sempre esteve em posição latente de risco e englobamento. Para tornar inoperante a máquina que governa nossa concepção daquilo que entendemos por homem deveríamos questionar suas articulações, para mostrar seu vazio constitutivo - no interior do homem - que separa e contrasta homens e animais. E se, tal como nas palavras de Michel Foucault (1999, 2004), a figura na areia que erigiu as ciências humanas finalmente se for com as ondas do mar, o que surgiria em seu lugar certamente não mais disporia da inspiração de um Santo Sudário, mas quiçá de um esboço daquilo que se forjaria nas tramas da humanidade e da animalidade. Talvez, diz Agamben, haja um modo no qual os seres viventes possam ser concebidos sem que a máquina antropológica seja novamente acionada; "novamente, a solução do mysterium coniunctionis [cf. Jung, 1985] por meio do qual o humano é produzido remete a um inquérito sem precedentes no interior do mistério prático-político da separação" (p. 92). Como bem disse François Ost (2005), vive-se numa época na qual os dualismos foram levados ao seu paroxismo, ante a perda das ligações com a natureza e a ilimitação do homem. Reina a desmedida; (o que, para os gregos, é o reino da tragédia).

  • AGAMBEN, G. Medios sin fin: notas sobre la política Valencia: Pre-Textos, 2001 [1996]
  • _____. Stato di eccezione Italia: Bollati Boringhieri, 2003.
  • _____. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004 [1993]
  • FERNÁNDEZ-ARMESTO, F. Então você pensa que é humano? Uma breve história da humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
  • EDELMAN, B. La personne en danger Paris: PUF, 1999.
  • EDELMAN, B. & HERMITTE, M. A. L'homme, la nature et le droit Paris: Bourgois, 1993.
  • FOUCAULT, M. As palavras e as coisas São Paulo: Martins Fontes, 1999.
  • _____. Naissance de la biopolitique Paris: Gallimard, 2004.
  • JUNG, C. G. Mysterium coniunctionis: pesquisas sobre a separação e a composição dos opostos psíquicos na alquimia Petrópolis: Vozes, 1985.
  • OST, F. La nature hors la loi Paris: La Découverte, 2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2009
  • Data do Fascículo
    Jun 2008
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