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A avaliação neoliberal na universidade e a responsabilidade social dos pesquisadores

Resumos

Esta comunicação constitui um fragmento de um projeto de estudo mais amplo, desenvolvido a partir da idéia de que a universidade vem sendo submetida a uma reforma neoliberal, cujo sentido é o de promover sua mercantilização. O tópico tratado é o do regime de trabalho dos pesquisadores, visto a partir dos sistemas de avaliação da produtividade que constituem sua peça-chave. Por violar certas intuições, o caráter quantitativo da avaliação neoliberal é posto como algo a ser explicado. São propostas três explicações, das quais emerge a concepção de que o regime de trabalho imposto pela reforma neoliberal aos pesquisadores constitui uma forma de taylorismo. Examinam-se a seguir algumas das conseqüências nefastas do taylorismo na universidade, particularmente a que afeta o exercício da responsabilidade social da ciência.

Neoliberalismo; Mercantilização; Ciência; Universidade; Avaliação; Taylorismo; Responsabilidade social da ciência


This paper is a fragment of a broader project of study developed from the idea that the University is being subjected to a neoliberal reform whose significance is that of promoting its commodification. The topic dealt with is that of the regime of work of the researchers, seen from the point of view of the systems of evaluation of productivity that constitute its key-component. Since it violates certain intuitions, the quantitative nature of neoliberal evaluation is presented as something to be explained. Three explanations are proposed, from which a conception emerges where the work regime imposed by the neoliberal reform on researchers constitutes a form of Taylorism. Some of the deleterious consequences of Taylorism in the University are then examined, in particular the one affecting the exercise of social responsibility in science.

Neoliberalism; Commodification; Science; University; Evaluation; Taylorism; Social responsibility in science


ARTIGOS

A avaliação neoliberal na universidade e a responsabilidade social dos pesquisadores

Marcos Barbosa de Oliveira

Professor Associado da Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo. Pesquisador principal do Projeto Temático Fapesp 07/53867-0, Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, Brasil. mbdolive@usp.br

RESUMO

Esta comunicação constitui um fragmento de um projeto de estudo mais amplo, desenvolvido a partir da idéia de que a universidade vem sendo submetida a uma reforma neoliberal, cujo sentido é o de promover sua mercantilização. O tópico tratado é o do regime de trabalho dos pesquisadores, visto a partir dos sistemas de avaliação da produtividade que constituem sua peça-chave. Por violar certas intuições, o caráter quantitativo da avaliação neoliberal é posto como algo a ser explicado. São propostas três explicações, das quais emerge a concepção de que o regime de trabalho imposto pela reforma neoliberal aos pesquisadores constitui uma forma de taylorismo. Examinam-se a seguir algumas das conseqüências nefastas do taylorismo na universidade, particularmente a que afeta o exercício da responsabilidade social da ciência.

Palavras-chave: Neoliberalismo. Mercantilização. Ciência. Universidade. Avaliação. Taylorismo. Responsabilidade social da ciência.

ABSTRACT

This paper is a fragment of a broader project of study developed from the idea that the University is being subjected to a neoliberal reform whose significance is that of promoting its commodification. The topic dealt with is that of the regime of work of the researchers, seen from the point of view of the systems of evaluation of productivity that constitute its key-component. Since it violates certain intuitions, the quantitative nature of neoliberal evaluation is presented as something to be explained. Three explanations are proposed, from which a conception emerges where the work regime imposed by the neoliberal reform on researchers constitutes a form of Taylorism. Some of the deleterious consequences of Taylorism in the University are then examined, in particular the one affecting the exercise of social responsibility in science.

Keywords: Neoliberalism. Commodification. Science. University. Evaluation. Taylorism. Social responsibility in science.

INTRODUÇÃO

O que vou apresentar nesta comunicação é parte de um estudo a respeito dos processos de mercantilização da universidade a que venho me dedicando nos últimos tempos.1 1 Resultados parciais desse estudo encontram-se em Oliveira (2002, 2004, 2005). Um dos objetivos do trabalho é mostrar que o conjunto desses processos de mercantilização pode ser caracterizado como a reforma neoliberal da universidade, com base num conceito de neoliberalismo entendido como a fase do capitalismo em que se intensifica a propensão do sistema a transformar todos os tipos de bens em mercadorias.

As duas principais funções da universidade são a pesquisa científica e a educação de nível superior. Entre os processos de mercantilização da universidade, há alguns que afetam separadamente cada uma dessas funções. Mas há também um processo que afeta conjuntamente (mas não identicamente) os dois setores, a saber, o das transformações no regime de trabalho dos produtores diretos, isto é, dos pesquisadores e docentes do ensino superior. No caso paradigmático, pesquisadores e docentes são as mesmas pessoas, são os pesquisadores-docentes da universidade. Daí o fato de que, com relação ao regime de trabalho, a mercantilização afete conjuntamente os dois setores.

Nesta comunicação, vou tomar como ponto de partida uma faceta desse processo referente ao regime de trabalho, a saber, o que diz respeito às práticas de avaliação, e, ao longo do percurso, vou examinar o impacto das mudanças nessas práticas sobre alguns aspectos da produção do conhecimento científico, em particular o exercício da responsabilidade social por parte dos cientistas.

Mas mesmo com esses recortes, o tempo é curto para uma exposição completa; o que me proponho a apresentar é apenas a estrutura lógica de uma das linhas de raciocínio que desenvolvo em meu trabalho, omitindo os vários refinamentos e demonstrações que devem figurar numa versão mais extensa.

1 O SURTO AVALIATÓRIO NEOLIBERAL

Meu ponto de partida é a constatação de que, num período que coincide grosso modo com o da ascensão do neoliberalismo, vem ocorrendo na universidade um surto avaliatório - um movimento em que as práticas de avaliação formais se multiplicam, adquirindo um peso muito maior na vida da instituição. Esse é um fenômeno bem conhecido e, embora vários componentes do processo não sejam novos, é nítida a existência de um ponto de inflexão, um salto num movimento que já vinha ocorrendo antes, porém de forma muito mais lenta.

Uma das características mais controvertidas do surto avaliatório é seu viés quantitativo - a avaliação da produtividade em termos de número de artigos publicados, número de participação em eventos etc. O que alimenta a controvérsia é, no fundo, a intuição - que acaba ficando sufocada - de que há algo de fundamentalmente equivocado na aplicação de critérios quantitativos ao campo das artes, das ciências, enfim, de todas as atividades criativas da mente humana. Para perceber isso, basta considerar, por exemplo, uma afirmação como a de que um país é duas vezes melhor em pintura que outro em virtude de produzir o dobro do número de quadros, sem levar em conta se se trata de obras de um Picasso, ou de um troca-tintas qualquer.

Discordando dessa observação, pode-se alegar que a avaliação em pauta não é puramente quantitativa, uma vez que, no caso de artigos, por exemplo, a publicação depende da apreciação pelos pares, a qual tem um caráter qualitativo, não quantitativo. E, de fato, tem-se aí um elemento qualitativo. Porém, contra-argumentando, vale a alegação de que tal elemento qualitativo é bastante limitado. É limitado porque a apreciação por pares estabelece, na melhor das hipóteses, apenas um nível mínimo de qualidade para que um artigo seja aceito para publicação numa revista, havendo naturalmente grandes variações de qualidade entre os artigos que aparecem em cada revista - ou, mais precisamente, em cada categoria de revista, de acordo com as classificações adotadas.2 2 No caso do Brasil, a classificação elaborada pela CAPES, com as categorias "Internacional A, B, ou C", "Nacional A, B ou C" etc., da qual depende a atribuição de pontos no currículo do pesquisador. Quantos artigos hoje totalmente esquecidos saíram no mesmo número da revista em que Einstein publicou seu primeiro artigo sobre a Teoria da Relatividade? De qualquer forma, o raciocínio a ser desenvolvido a seguir não pressupõe que a avaliação em pauta seja puramente quantitativa: é suficiente que tenha um forte viés quantitativo, o que me parece incontestável.

Isso posto, pode-se levantar a questão: quais são as forças que animam esse processo em que, contrariando nossas intuições mais profundas, se acentua o viés quantitativo nas práticas de avaliação aplicadas ao trabalho acadêmico?

A partir de agora, vou propor três explicações para esse fenômeno, explicações não mutuamente exclusivas, mas que se articulam de uma forma determinada. A primeira explicação é a que liga de maneira mais direta o surto avaliatório à mercantilização e, assim, ao neoliberalismo.

Mercantilizar um bem é fazer com que ele passe a funcionar como mercadoria no sistema capitalista. A forma mercadoria constitui o cerne do capitalismo e um de seus traços essenciais é sua natureza quantitativa. Cada mercadoria tem um valor quantitativo, uma quantidade, que determina a proporção em que é trocada por outras mercadorias - ou, no caso em que as trocas são mediadas pelo dinheiro, o preço. De maneira geral, para funcionar como mercadoria, um bem precisa ser quantificável. No caso dos bens materiais esse requisito nada tem de problemático, variando apenas, conforme a natureza do bem, as unidades em que se expressam as quantificações: unidades de peso (um quilo de arroz), de volume (barris de petróleo) etc.

Para que o conhecimento científico funcione como mercadoria é necessário, portanto, que sua produção seja quantificada, expressa em números. O que essas considerações sugerem é que as práticas neoliberais de avaliação, com seu viés quantitativo, constituem um dispositivo cuja função é permitir a imposição da forma mercadoria à produção do conhecimento científico. Essa então é a primeira explicação.

A segunda explicação tem uma estrutura análoga, diferindo no que se refere à origem do viés quantitativo. Em vez de na forma mercadoria, essa origem se localiza agora na própria ciência moderna. O caráter matemático-quantitativo da ciência moderna é naturalmente um de seus traços mais marcantes, especialmente no contraste com o sistema aristotélico. Admitindo o pressuposto de que a ciência moderna é a única forma genuína de conhecimento objetivo da realidade, a conclusão a que se chega é a de que só podemos efetivamente conhecer aquilo que podemos medir. Cabe aqui lembrar a famosa passagem onde Lord Kelvin defende essa tese:

Quando podemos medir aquilo de que falamos e expressá-lo em números, sabese algo a seu respeito; quando não podemos expressá-lo em números, nosso conhecimento é pobre e insatisfatório; pode ser o começo do conhecimento, mas em nosso pensamento, mal avançamos em direção ao estágio da

ciência

, seja qual for a questão (Thomson, 1891, p. 73).

Aplicando a tese à própria ciência, segue-se, é claro, que só podemos conhecer efetivamente o avanço da ciência em geral, e a contribuição de cada pesquisador para tal avanço, quando podemos medir esses processos, expressá-los em números. Esse é o princípio fundador da cientometria.

Temos então duas explicações e aparentemente elas são bem distintas, apesar da semelhança estrutural. Mas aí cabe a pergunta: seriam a forma mercadoria e a ciência moderna duas fontes totalmente independentes de quantificação? Neste ponto, indo um pouco além da temática precisa desta comunicação, gostaria de sugerir uma concepção que, salvo engano, não tem sido devidamente explorada nos estudos sobre as relações entre o capitalismo e a ciência moderna. A sugestão é a de que a natureza essencialmente quantitativa compartilhada, de um lado, pela forma mercadoria, de outro, pela ciência moderna é responsável por uma afinidade eletiva (Weber) - ou uma relação mutuamente reforçadora (Lacey) - entre o capitalismo e a ciência moderna.

Há, entretanto, entre os dois casos uma diferença, que merece ser apontada. De uma perspectiva realista - e deixando entre parênteses o controvertido tema da física quântica, da influência da medição no fenômeno medido - pode-se dizer que a ciência moderna apenas olha a natureza com os óculos quantificadores da matemática, sem interferir diretamente em seus processos. Já a forma mercadoria, na medida em que se expande ao longo do desenvolvimento do capitalismo, tem um efeito não apenas em nossas idéias, em nossa maneira de ver o mundo, mas na própria realidade social. O capitalismo matematiza a vida social - e assim, numa relação mutuamente reforçadora, favorece e tem seu avanço favorecido pela visão da realidade social inspirada na ciência natural moderna, com seu viés quantitativo.

Passo agora à terceira explicação, que de certa maneira incorpora as outras duas, por envolver simultaneamente a natureza quantitativa da forma mercadoria e da ciência moderna. Essa combinação se dá no taylorismo. O taylorismo se apresenta como a Administração Científica do trabalho (cf. Taylor, 2006), com ênfase no qualificativo "científica", e, embora não em todos os aspectos, mas em muitos, o sistema de fato incorpora princípios da ciência moderna - em particular, o que nos interessa especialmente no presente contexto, o da quantificação. Um dos traços mais marcantes, e mais conhecidos do taylorismo, é na verdade a importância do papel atribuído às medições, como nos famosos estudos de tempo e movimento (cf. Taylor, 2006, cap. 46).

Isso no que se refere à ciência; com relação à forma mercadoria, não é difícil mostrar que o taylorismo pode ser adequadamente interpretado como uma maneira de levar adiante a mercantilização das relações de trabalho, de reduzi-las cada vez mais a uma pura relação mercantil, a um cash nexus.

No taylorismo, portanto, estão associadas, reforçando-se mutuamente, as tendências quantificadoras do capitalismo e da ciência moderna.

2 O TAYLORISMO NA ACADEMIA E A RESPONSABILIDADE SOCIAL DA CIÊNCIA

Essa linha de raciocínio, no estudo que estou desenvolvendo, é parte da demonstração da tese de que, com relação ao regime de trabalho dos pesquisadores-docentes, a reforma neoliberal da universidade pode razoavelmente ser interpretada como a imposição do taylorismo na academia.

Um dos melhores estudos sobre o taylorismo que se encontra na literatura é o clássico de Braverman, Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX (Braverman, 1974). Aproveitando o mote do sub-título, um trabalho mais amplo sobre o tema desta comunicação poderia se chamar "O taylorismo na universidade: a degradação do trabalho acadêmico".

O objetivo primordial do taylorismo é o aumento da produtividade, posto como um valor situado acima de outros valores importantes no contexto - como a satisfação no trabalho, a saúde e o bem-estar dos trabalhadores. Em qualquer vertente do taylorismo, quando uma inovação é proposta visando alguma melhoria para os trabalhadores (como, por exemplo, a adoção de uma pausa para ginástica no meio do expediente), isso não se deve a que o bem-estar do trabalhador seja tomado como um valor em si, mas sim - e esse tipo de justificativa para a proposta é com freqüência explicitamente apresentado - como um meio de aumentar a produtividade. Ou seja, o bemestar do trabalhador é promovido apenas quando pode resultar em aumento da produtividade. Mas como não vivemos no mundo perfeito do Dr. Pangloss, nem sempre existe essa correlação positiva; o mais comum na verdade é que aumentos de produtividade sejam obtidos às custas dos trabalhadores. Tal é, a meu ver, a raiz das conseqüências degradantes do taylorismo para o trabalho que Braverman aponta - e isso vale também para o taylorismo na universidade.

Na universidade, o produtivismo taylorista se manifesta, de um lado, diretamente, nas pressões exercidas pelas instâncias superiores da instituição e pelas agências de fomento - constituindo estas o principal lugar onde se articulam os resultados das avaliações com a distribuição de recursos financeiros, ou seja, o lugar onde as avaliações têm as conseqüências práticas mais importantes no contexto atual. De outro lado, o produtivismo se manifesta na competitividade que prevalece nas relações entre os pesquisadores, aberta e fortemente estimulada pelas instâncias dominantes, bem no espírito neoliberal.

Um dos resultados dessas pressões é o stress que caracteriza o estilo de vida da grande maioria dos pesquisadores - especialmente nos setores mais dinâmicos, onde a competitividade atinge seus níveis mais elevados - e que afeta mais fortemente as mulheres, pelo conflito que cria entre a dedicação ao trabalho e as exigências da vida familiar. São cada vez mais freqüentes as evidências que vêm à tona, como facetas dessa deterioração das condições de trabalho, que chega muitas vezes a afetar a saúde mental dos pesquisadores (cf. Meis et al., 2003). Vou me limitar a citar uma das mais recentes, uma sondagem feita na Internet pela revista Nature, a respeito do consumo, por cientistas, de drogas psicotrópicas com o objetivo de melhorar o desempenho cognitivo. Dentre os 1.400 cientistas que responderam à sondagem, cerca de 20% relataram adotar essa prática, para "estimular o foco, concentração ou memória" (Maher, 2008, p. 674), sendo a Ritalina a droga mais usada (cf. Sahakian & Morein-Zamir, 2007).

Além desse impacto negativo na vida dos pesquisadores, o taylorismo na universidade tem outras conseqüências nefastas, sendo uma delas a que diz respeito à responsabilidade social do cientista.

O tema da responsabilidade social da ciência se impôs fortemente na esteira do lançamento da bomba atômica em Hiroshima, para depois perder a força nas décadas posteriores, em particular com a ascensão do neoliberalismo. As indicações são as de que ele está agora retornando, como uma resposta positiva, a meu ver, aos impasses do mundo em que vivemos, em que a ciência e a tecnologia desempenham um papel tão determinante. O próprio mote deste IV Encontro de História e Filosofia da Ciência do Cone Sul, é bom lembrar, diz: "pensar la ciencia, la tecnología y la innovación con responsabilidad social".

O exercício da responsabilidade social na ciência implica naturalmente uma reflexão sobre as práticas científicas; no caso de cada pesquisador, uma reflexão sobre o significado, as conseqüências sociais de seu próprio trabalho. Uma reflexão séria dessa natureza só pode se realizar como um empreendimento coletivo, um grande debate sobre o papel da ciência e da tecnologia no mundo de hoje, um debate que possa ter conseqüências concretas e influir efetivamente na determinação dos rumos da pesquisa. Mas para isso é preciso que cada pesquisador individualmente tenha condições, tenha disponibilidade de tempo e energia para a reflexão e um espaço institucional adequado para o debate. Ora, não é difícil constatar que, nas atuais circunstâncias, essas condições não existem. Reflexões sobre a própria prática, mesmo que resultem em publicações, não são em geral artigos publicáveis em revistas especializadas, como contribuições para o avanço do conhecimento científico. Sendo assim, não contam pontos no currículo do pesquisador, segundo as normas da avaliação neoliberal. O tempo e a energia gastos em tal tipo de reflexão aparecem portanto, nessa perspectiva, como tempo e energia roubados do trabalho realmente produtivo. E, assim, o sistema de avaliação neoliberal impossibilita o exercício da responsabilidade social pelos cientistas. A conclusão, talvez não muito animadora, mas que deve ser enfrentada por aqueles que estão empenhados no fomento da responsabilidade social na ciência, é a de que, sem uma inversão de sentido nas tendências do sistema, em outras palavras, sem uma des-taylorização do trabalho acadêmico, não se conseguirá avançar significativamente nesse empreendimento.

Termino com uma citação e um comentário. A citação vem de um livro de Derek Bok, alguém que fala com conhecimento de causa, tendo sido durante vinte anos reitor (president) da Universidade de Harvard (de 1971 a 1991).3 3 Depois de um intervalo de 15 anos, Bok voltou a conduzir interinamente a Universidade, por um ano, como saída para a crise criada com a renúncia de Lawrence Summers, em 2006. O livro tem por título Universities in the market place: the commercialization of higher education (As universidades no mercado: a comercialização da educação superior), e na conclusão do último capítulo lê-se:

Aos poucos, portanto, a mercantilização ameaça mudar o caráter da universidade de maneiras que restringem sua liberdade, debilitam sua eficiência e rebaixam seu

status

na sociedade. [...] Os problemas vão chegando tão gradual e silenciosamente que seu vínculo com a mercantilização pode nem ser percebido. Como indivíduos que experimentam drogas, os administradores acreditam que podem proceder sem riscos sérios (Bok, 2003, p. 207).

O comentário diz respeito ao tema da droga, pensado não apenas em relação aos administradores, mas a toda a comunidade científica. Um dos efeitos de uma droga - neste sentido de uma substância que tem efeitos colaterais negativos e cria dependência - na verdade, um dos efeitos responsáveis pela criação da dependência - é a alteração que a droga provoca nas faculdades cognitivas do usuário, que o impede de reconhecer os males a que está se expondo com seu uso. No caso da universidade, vê-se claramente como o processo de mercantilização no que se refere ao regime de trabalho, em que a avaliação desempenha um papel central, ao impedir a reflexão dos cientistas sobre suas práticas, impede também que eles se dêem conta das outras conseqüências deletérias da submissão da ciência ao mercado. O mercado é uma droga e a universidade está viciada em mercado.

Comunicação apresentada no VI Encontro de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul, realizado em Montevidéu, de 27 a 30 de maio de 2008.

  • BOK, D. Universities in the market place: the commercialization of higher education Princeton: Princeton University Press, 2003.
  • BRAVERMAN, H. Trabalho e capital monopolista Rio de Janeiro: Zahar, 1974.
  • LOUREIRO, I. & DEL-MASSO, M. C. (Org.). Tempos de greve na universidade pública Marília: Unesp Marília Publicações, 2002.
  • MAHER, B. Poll results: look who's doping. Nature, 452, p. 674-5. Apr. 10 2008.
  • MEIS, L. de et al. The growing competition in Brazilian science: rites of passage, stress and burnout. Brazilian Journal of Medical and Biological Research, 36, p. 1135-41, 2003.
  • OLIVEIRA, M. B. A ciência que queremos e a mercantilização da universidade. In: LOUREIRO, I. & DEL-MASSO, M. C. (Org.). Tempos de greve na universidade pública Marília: Unesp Marília Publicações, 2002. p. 17-41.
  • ______. Desmercantilizar a tecnociência. In: Santos, B. de S. (Org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: "Um discurso sobre as ciências" revisitado São Paulo: Cortez, 2004. p. 241-66.
  • ______. Ciência: força produtiva ou mercadoria? Crítica Marxista, 21, p. 77-96, 2005.
  • SAHAKIAN, B. & MOREIN-ZAMIR, S. Professor little helper. Nature, 450, p. 1157-59. Dec. 20-27 2007.
  • SANTOS, B. de S. (Org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: "Um discurso sobre as ciências" revisitado São Paulo: Cortez, 2004.
  • TAYLOR, F. W. Princípios de administração científica São Paulo: Atlas, 2006.
  • THOMSON, W. (Lord Kelvin). Popular lectures and addresses London: Macmillan, 1891. v. 1.
  • 1
    Resultados parciais desse estudo encontram-se em Oliveira (2002, 2004, 2005).
  • 2
    No caso do Brasil, a classificação elaborada pela CAPES, com as categorias "Internacional A, B, ou C", "Nacional A, B ou C" etc., da qual depende a atribuição de pontos no currículo do pesquisador.
  • 3
    Depois de um intervalo de 15 anos, Bok voltou a conduzir interinamente a Universidade, por um ano, como saída para a crise criada com a renúncia de Lawrence Summers, em 2006.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Set 2009
    • Data do Fascículo
      Set 2008
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