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Editorial

Editorial

Este número, que encerra o sexto volume de Scientiæ studia, está dedicado inteiramente a um momento fundador da ciência moderna e, particularmente, da mecânica clássica na primeira metade do século XVII. O número se inicia com o amplo pano de fundo da influência dos atomistas antigos - Demócrito, Epicuro e Lucrécio - na teoria da matéria de Francis Bacon e passa a assuntos ligados especificamente ao desenvolvimento da mecânica, discutindo, primeiramente, as relações entre a mecânica de Roberval e a acústica de Mersenne, apresentando, a seguir, as três principais escolas de estudos da estática desde a Antiguidade até Galileu, procurando, por fim, aproximar o leitor atual formado no paradigma inercial às concepções protoinerciais e fundadoras de Galileu. Nos documentos científicos, Scientiæ studia orgulha-se de publicar, em primeiras versões para o português, As mecânicas de Galileu Galilei, texto fundador da estática moderna, e a Explicação de máquinas... de René Descartes, que juntamente com o anterior funda a perspectiva técnica moderna. O número conclui com uma discussão sobre como a Igreja procura apropriar-se da imagem de Galileu segundo as linhas da nova política de aproximação com a ciência iniciada pelo papa João Paulo II. Em vista da amplitude do número, almeja-se que ele possa contribuir para o ensino historicamente contextualizado de estática no ensino médio e universitário.

Abre este número de Scientiæ studia o artigo de Silvia Manzo que produz uma reavaliação da influência do atomismo antigo nas concepções de matéria de Francis Bacon, mostrando que, quando se toma o atomismo no sentido amplo de teoria corpuscular da matéria, que postula a existência de partículas últimas e indivisíveis, é possível distinguir duas atitudes sucessivas de Bacon com relação ao atomismo, nas quais se percebe, por um lado, a permanência do atomismo como princípio ontológico e, por outro lado, o abandono do atomismo como princípio causal-operativo. Por fim, a autora mostra que Bacon não considerava que o atomismo e o animismo, presentes em sua teoria da matéria, fossem incompatíveis, o que mostra, neste autor, o convívio de concepções animistas, oriundas da alquimia, e materialistas, vindas do atomismo veiculado por Lucrécio. Paulo Tadeu da Silva, em artigo sobre as relações entre a mecânica e a acústica, mostra como Marin Mersenne, que foi o secretário da nascente comunidade científica moderna, obtém da mecânica de Roberval os elementos para compreender a relação entre o movimento de uma corda (e do consequente som que ela produz) e a tensão à qual a corda está submetida, em um capítulo importante do tratamento mecanicista dado à música. Em seu artigo, Daniel Silvio Vaccaro se debruça sobre o conflito entre a estática e a dinâmica na história do desenvolvimento da mecânica; conflito que se origina na constituição precoce, já na Antiguidade, da estática e nas dificuldades conceituais enfrentadas pela dinâmica no estudo do movimento, de modo que essas disciplinas possuem histórias diferentes que se iniciam na Antiguidade e tornam-se convergentes no Renascimento, particularmente em Galileu. O autor apresenta, então, três tradições de pesquisa na estática: primeiro, a tradição do pseudo-Aristóteles das Questões mecânicas, de tratamento mais analítico (menos sistemático) dos problemas mecânicos; depois, a tradição, fundada por Arquimedes em O equilíbrio dos planos, de tratamento estritamente estático e rigorosamente geométrico do equilíbrio dos corpos; e, por fim, a tradição medieval da ciência dos pesos de Jordano Nemorario, na qual nasce o conceito de "momento estático" e a expressão correta do princípio do plano inclinado. O texto mostra como Galileu, inserindo-se na discussão a partir de Nicolau Tartaglia e Guidobaldo del Monte, produz um amálgama das três tradições em seu tratado sobre as máquinas simples, propondo uma nova perspectiva de unificação entre a estática e a dinâmica com sua abordagem dinâmica da estática. Por fim, Júlio Celso Ribeiro de Vasconcelos prepara o leitor contemporâneo, para quem o sistema de referência inercial da física clássica faz parte do conhecimento tácito, para a leitura de As mecânicas de Galileu, texto onde encontramos as primeiras manifestações de concepções relativísticas e inerciais; o autor desfaz, então, as estranhezas de terminologia, explica as provas galileanas mostrando sua elegância e originalidade, trata, enfim, de certas peculiaridades dos conceitos e argumentos do texto galileano, anteriores ao enraizamento na consciência moderna do quadro conceitual da física clássica.

Scientiæstudia publica, neste número, dois documentos. O primeiro, intitulado As mecânicas, é a versão mais acabada de um texto de Galileu Galilei que circulou manuscrito em várias cópias de duas versões diferentes (breve e longa) entre os anos de 1592 e 1602, e que alcançou ampla difusão, sendo publicado em francês por Marin Mersenne em 1634. O segundo, intitulado Explicação de máquinas..., é um anexo da carta de René Descartes a Constantin Huygens de 5 de outubro de 1637, pelo qual o filósofo satisfaz o desejo de Huygens de ter um tratado de máquinas dedicado a seu nome; constitui-se, com efeito, em um dos dois únicos textos que se encontram na correspondência de Descartes, dos anos de 1637 e 1638, dedicados à mecânica. Na introdução de As mecânicas de Galileu, abordo quatro assuntos: a composição e difusão do tratado de Galileu; a recepção - dividida em recepção científica e técnica - do tratado pelos contemporâneos de Galileu, Mersenne e Descartes; finalmente, a estrutura e alcance do tratado sobre as máquinas que funda, ao mesmo tempo, a estática moderna e a perspectiva técnica moderna. De sua parte, Marisa Carneiro de Oliveira Franco Donatelli, em sua introdução ao documento de Descartes, volta-se para dois aspectos de sua mecânica. Primeiro, para a distinção que Descartes faz entre a mecânica, vinculada à física (ao corpo teórico), e as mecânicas, vinculadas às leis da natureza; a autora comenta, depois, a ausência de qualquer referência ao princípio fundamental da mecânica nos textos posteriores ao período 1637 e 1638, o que sinaliza que o Explicação de máquinas... pertence ao programa de pesquisa de Descartes ligado ao Discurso do método e, muito particularmente, à Dióptrica.

Encerra este número de Scientiæ studia a nota crítica de Paulo dos Santos Terra, que comenta o episódio, ocorrido em janeiro de 2008, do cancelamento da conferência a ser proferida pelo papa Bento XVI na Universidade La Sapienza em Roma; cancelamento ocorrido em virtude do pedido de 67 acadêmicos dessa universidade em nome da liberdade da pesquisa científica, que consideram o papa inimigo da ciência por ter citado, enquanto ainda era o car-deal Joseph Ratzinger em 1990, uma passagem de Feyerabend na qual está dito que o processo contra Galileu foi razoável e justo. O autor comenta a estratégia pela qual a Igreja, a partir da revisão do processo inquisitorial contra Galileu, constrói uma imagem de Galileu reconciliado, de modo a tomá-lo como um exemplo da conciliação entre ciência e fé. Galileu é, assim, apresentado como um herói por duas ideologias antagônicas. A filosofia de Feyerabend ajuda a entender essas duas diferentes imagens de Galileu e como elas são usadas por duas agendas políticas que se opõem.

Pablo Rubén Mariconda

editor responsável

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Set 2009
  • Data do Fascículo
    Dez 2008
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