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Tão perto, tão distante: William James e a psicologia contemporânea

DOCUMENTOS CIENTÍFICOS

Tão perto, tão distante: William James e a psicologia contemporânea

Renato Rodrigues Kinouchi

Professor Adjunto do Centro de Ciências Naturais e Humanas, Universidade Federal do ABC, Brasil. renato.kinouchi@ufabc.edu.br

INTRODUÇÃO

Apresentamos a seguir a tradução do artigo intitulado "A plea for psychology as a 'natural science'" (James, 1983a [1892]), que se encontra compilado no volume 13 da coleção The works of William James. Esse artigo, originalmente publicado no periódico Philosophical Review, é a resposta de James ao exame crítico feito por George T. Ladd (18421921), professor da Universidade de Yale, ao livro The principles of psychology (Os princípios de psicologia). Com efeito, James responde algumas das objeções feitas por Ladd (1892) e especifica seus pontos de vista sobre a natureza do objeto da psicologia e sobre como os profissionais da área deveriam posicionar-se para torná-la uma ciência natural. Entretanto, antes de examinar os argumentos de James, teceremos algumas considerações preliminares que poderão tornar a leitura mais rica e informativa.

Comecemos por elucidar o lugar de James na história da psicologia. À primeira vista, ele ocupa uma posição de enorme destaque, especialmente nos Estados Unidos, sendo usualmente considerado o "pai" da psicologia norte-americana. Não obstante, se nos indagarmos se alguma vez existiu uma escola de psicologia jamesiana, isto é, um empreendimento coletivo de investigação centrado na obra de James, a resposta dá margem a discussões. Sem sombra de dúvida, houve uma grande difusão e popularização de suas ideias, as quais costumam ser agrupadas sob o grande rótulo do "pragmatismo" - movimento intelectual cuja origem se atribui às discussões realizadas em um pequeno sarau filosófico conhecido como "Metaphysical Club" (cf. Menand, 2001). Não obstante, em outra ocasião já pude mostrar (Kinouchi, 2007) que o pragmatismo envolve, no mínimo, três pensadores bastante heterogêneos - Peirce, James e Dewey - cujas relações teóricas, apesar do ar familiar, engendram contradições evidentes. Em todo caso, esse processo de difusão do pragmatismo acabou não resultando na formação de uma escola de psicologia jamesiana propriamente dita. Para efeito de comparação, consideremos a posteridade de autores tais como, por exemplo, Freud, Piaget ou Skinner. Estes últimos tiveram inúmeros simpatizantes que, com maior ou menor êxito, organizaram projetos coletivos de investigação em torno dos empreendimentos teóricos originais. Assim, conquanto se possa dizer que Freud, Piaget e Skinner foram os "pais" da psicanálise, do construtivismo e da análise do comportamento, respectivamente, no sentido de terem deixado algum tipo de "descendência" intelectual claramente assinalável, não se pode dizer o mesmo de James com relação à psicologia norte-americana.

No que diz respeito à institucionalização da psicologia nos Estados Unidos, a figura que teve provavelmente o papel mais decisivo foi Granville Stanley Hall (18441924), fundador e primeiro presidente da American Psychological Association. Com efeito, Stanley Hall obteve seu doutoramento sob a orientação de James, em Harvard, e logo em seguida estagiou no laboratório de Wundt, em Leipzig. Ao retornar da Alemanha, ajudou a fundar um dos primeiros laboratórios de psicologia dos Estados Unidos, na Universidade John Hopkins (cf. Thorndike, 1925), e anos depois foi convidado para dirigir a Universidade de Clark. Sob seu comando, essa instituição tornou-se o centro mais importante de pesquisa em psicologia nas primeiras décadas do século XX (cf. o artigo de Abib neste número). Apesar da influência de James sobre Stanley Hall, não se deve imaginar que o último fosse, por assim dizer, um verdadeiro discípulo. Na verdade, os interesses e realizações de Stanley Hall fazem dele um pensador autêntico e multifacetado. Por exemplo, era admirador da obra de Freud e foi o responsável pela primeira visita do psicanalista aos Estados Unidos. Para um relato pormenorizado da trajetória intelectual de Stanley Hall, vale consultar sua Biographical memoir, escrito, em 1925, por Edward L. Thorndike (1874-1949) - esse último, cumpre mencionar, outra figura de inestimável importância para o desenvolvimento da psicologia norteamericana, juntamente com James McKeen Cattell (1860-1944), ambos instalados na Universidade de Columbia.

Apesar de não haver sido o fundador de uma escola, ou talvez por causa disso, as ideias de James acabaram amplamente difundidas, sendo possível dizer que, a despeito das marcadas diferenças com relação a outras teorias psicológicas, o espírito da psicologia de James acabou prevalecendo, ou até mesmo se impondo. O que realmente impressiona no Apelo para que a psicologia seja uma "ciência natural" é ver o quanto há de atualidade em uma peça escrita há quase 120 anos. Como se costuma dizer: a filosofia de um século é o senso comum do próximo. Observada retrospectivamente, a psicologia de James inclui teses largamente examinadas que hoje soam quase triviais: por exemplo, que a psicologia deveria desenvolver autonomia em relação à metafísica, que deveria aproximar-se da biologia e da teoria da evolução, e que o estudo das estruturas cerebrais e dos fenômenos cognitivos, volitivos e perceptivos deveria fornecer resultados práticos e aplicações terapêuticas. São declarações que atualmente não causam qualquer escândalo e, na verdade, talvez pertençam ao patrimônio comum da grande maioria das teorias psicológicas contemporâneas.

1 Os leitores de James

A obra Os princípios de psicologia (James, 1952 [1890]) talvez seja a maior fonte de epígrafes de toda a psicologia do século XX. Por um lado, quando algum autor procura contrastar suas ideias com a "visão recebida" da psicologia, é bastante comum ele ir buscar em James alguma passagem que sirva aos seus propósitos críticos. Por outro, quando alguém pretende dar autoridade ao seu modo de pensar, também pode buscar em James algo que lhe sirva de lastro teórico. O trabalho fica facilitado, vale mencionar, pela fraseologia do autor norte-americano - eloquente mas despretensiosa, permeada por certos slogans, frases de efeito, comparações e analogias. Se comparado a outras obras do gênero, muitas delas insondáveis para o leitor comum, Os princípios é uma obra relativamente fácil e literariamente saborosa.

É a partir desse aspecto que podemos melhor avaliar a fortuna crítica de James. A primeira coisa a ser notada é que Os princípios foi concebido para ser um livro-texto. De fato, ao longo dos doze anos de sua confecção, a obra ganhou a extensão de um verdadeiro tratado de psicologia, com seus vinte e oito capítulos distribuídos em dois volumes. Aliás, não deixa de ser divertido ver, no texto aqui publicado, James chamar Os princípios de "livro fatigante" e recusar-se a discutir o que está, ou não está, escrito nele. Embora extraordinariamente rico, Os princípios não foi um livro bem sucedido naquilo que seu autor almejara, pois era por demais extenso e, quem sabe, intimidador. Para reparar esse inconveniente, dois anos mais tarde James (1984 [1892]) lançou uma versão abreviada, intitulada Psychology: the briefer course (Psicologia: curso breve), a qual foi logo apelidada pelos estudantes como Jimmy. Foi esse segundo livro que, à época, fez de James um autor conhecido por inúmeros estudantes e professores de psicologia.

Tal preocupação em divulgar a psicologia para o grande público não costuma ser avaliada em toda sua extensão. Para compreendermos a importância disso, precisamos considerar que James engajou-se, a partir de 1894, em uma série de palestras itinerantes em escolas, associações cívicas e igrejas, no mais das vezes bastante modestas, tendo como audiência professores, profissionais de saúde e religiosos (cf. Simon, 1998). Em virtude dessa atividade, James (1983b [1899]) publicou seu Talk to teachers on psychology: and to students on some life's ideals (Conversa com os professores sobre psicologia: e com os estudantes sobre alguns ideais de vida), que é uma espécie de sumário de suas ideias, voltado especificamente para o público não-acadêmico. Em síntese, se observarmos a trajetória da obra psicológica de James, notamos sua preocupação em divulgar a psicologia científica então nascente. Nesse aspecto, pode-se assegurar que encontrou êxito, para bem ou para mal. Por um lado, James se distanciou da tradição filosófica e o vocabulário empregado não era tão filosoficamente carregado. Por outro lado, a obra de James atingiu um público que extrapolava as fronteiras acadêmicas, fazendo com que a psicologia se popularizasse nos Estados Unidos.

Sem encontrar uma melhor analogia para descrever a situação, pode-se dizer que James funcionou como uma espécie de porta-voz das realizações da primeira geração de psicólogos americanos. A questão é que, ainda hoje, sua influência se faz sentir, inclusive pela popularidade de sua obra, reeditada e reimpressa inúmeras vezes. Todavia, são os comentadores e os autores de manuais de psicologia que entronizam James e fazem dele uma espécie de primus inter pares da psicologia científica - assim como, inversamente, oferecem um tratamento caricatural da obra de Wilhelm Wundt (cf. o artigo de Araujo neste número). Em nosso entender, o verdadeiro sucesso de James foi o de haver conseguido coligir e expressar, em um programa coerente, hipóteses que mostraram uma longevidade e fecundidade notáveis. É dentro desse contexto que podemos melhor avaliar seu Apelo, publicado a seguir.

2 Psicologia, uma ciência natural?

O primeiro ponto a ser destacado é próprio título do texto, que é apenas um apelo para que a psicologia seja uma ciência natural. James não se enreda em uma disputa, tampouco oferece algum manifesto - tal como fez, por exemplo, Watson (1913) ao lançar seu "Psychology as the behaviorist views it" (A psicologia tal como vista por um behaviorista). Aliás, em seu texto, James discorre muito pouco sobre suas próprias realizações e, no mais das vezes, o que faz é procurar apaziguar os ânimos e estimular um exame justo do momento histórico vivido pela psicologia da época. Para ele, embora não se pudesse dizer que a psicologia já era uma ciência natural, pelo menos havia material de pesquisa suficiente para alimentar boas expectativas. Com efeito, James abre sua argumentação admitindo que, no momento, não se podia categoricamente afirmar que a psicologia era uma ciência natural definitivamente estabelecida, todavia ela dava sinais de que em breve se tornaria uma.

Em segundo lugar, devemos perceber que James era contrário à ideia de que a psicologia deveria visar exclusivamente a aquisição de conhecimento - em outras palavras, James não achava que a psicologia deveria pretender ser uma ciência desinteressada. Muito pelo contrário, para ele a psicologia era um assunto com profundas implicações sociais que não podiam ser desprezadas. Educadores e profissionais de saúde, por exemplo, pouco se beneficiavam com as sutilezas teóricas de uma ciência psicológica ensimesmada, pois o que desejavam era um conhecimento que pudesse ser aplicado nas situações adversas com as quais se defrontavam. O objetivo da psicologia deveria ser o de fornecer regras de ação que pudessem auxiliar na consecução dos fins da vida prática das pessoas em geral. No decorrer de sua argumentação, James percebe que esse tipo de preocupação poderia ofender a sensibilidade de filósofos puristas. Com efeito, caso estivéssemos falando de uma ciência puramente abstrata que não envolvesse interesses humanos, essa espécie de utilitarismo poderia soar despropositada. Mas no que diz respeito à psicologia, podem os pesquisadores dar de ombros aos fenômenos psicopatológicos? Ou ainda, movidos por escrúpulos teóricos, podem eximir-se de fornecer material de pesquisa capaz de orientar a prática clínica?

Cumpre assinalar, entretanto, que não se trata de negar o valor da filosofia, tão somente de reconhecer que as investigações sobre o funcionamento cerebral começavam a produzir informações preciosas para a psicologia. Assim sendo, a psicologia deveria transigir tanto com a filosofia como com a biologia. James reconhece, nesse ínterim, a existência de dois tipos de mentalidade entre os pesquisadores: uns mais preocupados com aspectos práticos e outros com interesses mais filosóficos. Para ele, a disputa entre essas duas maneiras de entender a psicologia acabava emperrando seu desenvolvimento. No fundo, o Apelo é uma espécie de tomada de decisão em favor de uma trégua entre essas duas maneiras de pensar a psicologia.

A propósito, se a metapsicologia freudiana apresenta-se como modelo para a superação da dualidade entre ciências naturais e ciências humanas (cf. o artigo de Simanke neste número), então o mesmo pode ser dito de James, pois, no fundo, ambos procuravam por um naturalismo integral e qualificado. Para James, as pesquisas mais promissoras vinham da biologia, mais do que dos tratados de metafísica. Dentre os trabalhos que cumpriam essa função, James destaca a "moderna doutrina da afasia", área de pesquisa que se consolidava na época. Com efeito, o assunto das afasias foi objeto de investigação de Freud no início de sua carreira. Embora entre Freud e James haja afinidades e divergências que merecem exame pormenorizado (cf. Taylor, 1999), ambos admitiam como dado fundamental algum tipo de correlação entre estados mentais e estados cerebrais (cf. o artigo de Caropreso neste número).

Para encerrar, preciso sinceramente colocar o leitor a par de uma perplexidade que se instalou em mim ao escrever esta introdução. Com efeito, tive a oportunidade de examinar preliminarmente todos os outros artigos deste número temático de Scientiae Studia. Assim, pude ter uma visão do grau de proximidade da psicologia jamesiana com as demais teorias. Eu já esperava encontrar afinidades com o conceito de comportamento molar de Tolman (cf. o artigo de Lopes neste número), com a noção de que o comportamento é regido por processos de variação e seleção de tipo darwinista (cf. o artigo de Laurenti neste número), assim como com a noção de modularidade (cf. o artigo de Ades neste número), que é textualmente mencionada por James no Apelo. Entretanto, o que me surpreendeu foi perceber o quanto pode haver de interlocução entre William James e Sigmund Freud. A título de curiosidade, há rumores inclusive de que, pouco antes de morrer, o primeiro tenha ido se consultar com o segundo em Viena (cf. Taylor, 1999). Comprovadamente, James e Freud encontraram-se na Universidade de Clark, em 1909, e de acordo com o biógrafo Ernest Jones (1955) - naquela ocasião um jovem recém-admitido no círculo psicanalítico - os trabalhos do grupo de Freud foram muito bem recebidos. Além disso, segundo o testemunho de Jones, William James teria dito que "o futuro da psicologia pertence ao seu trabalho" (Jones apud Reisman, 1991, p. 54). A aproximação com a psicanálise faz ainda mais sentido quando levamos em consideração a preocupação de James no tocante aos mecanismos subliminares de percepção e hipnose, aos estados alterados de consciência, ao fenômeno das múltiplas personalidades etc. No entender de Taylor:

Embora James e Freud sustentem modelos de personalidade e de consciência radicalmente diferentes e tenham vindo de visões de mundo completamente diferentes (...) ambos eram médicos especializados em tópicos neurológicos e psicológicos, tinham apenas quatorze anos de diferença de idade e seus círculos profissionais estavam muito mais entrelaçados do que a maioria dos psicólogos compreende (Taylor, 1999, p. 466).

Nesse sentido, encerro com um reparo sobre a avaliação de James daquele belo encontro dos psicanalistas europeus com os psicólogos norte-americanos na Universidade de Clark, patrocinado por Stanley Hall. Acredito que James, ao invés de dizer que o futuro da psicologia pertence ao "seu" trabalho, deveria dizer, para todos os participantes, que o futuro da psicologia pertence aos "nossos" trabalhos. Foi aquela geração, com suas naturais divergências e eventuais afinidades, que inaugurou os vários caminhos que podem ser percorridos pelos psicólogos da atualidade.

  • Burkhardt, F. H.; Bowers, F.; Skrupskelis, I. K. (Ed.). Essays in psychology Cambridge, MA: Harvard University Press, 1983. (The Works of William James, 13).
  • James, W. The principles of psychology Chicago: Encyclopedia Britannica, Inc., 1952 [1890]. (Great Books of Western World, 53).
  • ______. A plea for psychology as a "natural science". In: Burkhardt, F.; Bowers, F.; Skrupskelis, I. K. (Ed.). Essays in psychology. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1983a [1892]. p. 270-7. (The Works of William James, 13).
  • ______. Talks to teachers on psychology: and to students on some life's ideals Cambridge, MA: Harvard University Press, 1983b [1899]. (The Works of William James, 12).
  • ______. Psychology: briefer course Cambridge, MA: Harvard University Press, 1984 [1892]. (The Works of William James, 14)
  • Jones, E. Sigmund Freud: life and work. London: Hogarth Press, 1955. v.2: The years of maturity, 1901-1919.
  • Kinouchi, R. R. Notas introdutórias ao pragmatismo clássico. Scientiae Studia, 5, 2, p. 215-26, 2007.
  • Ladd, G. T. Psychology as a so-called "natural science". Philosphical Review, 1, p. 24-53, 1892.
  • Menand, L. The metaphysical club: a story of ideas in America New York: Farrar, Straus & Giroux, 2001.
  • Reisman, J. A history of clinical psychology 2. ed. New York: Hemisphere Publishing Corp., 1991.
  • Simon, L. Genuine reality: a life of William James New York: Harcourt Brace, 1998.
  • Taylor, E. William James and Sigmund Freud: "the future of psychology belongs to your work". Psychological Science, 10, 6, p. 465-9, 1999.
  • Thorndike, E. L. Biographical memoir of Granville Stanley Hall. National Academy of Sciences, 12, 1925. Disponível em: <http://books.nap.edu/html/biomems/ghall.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2009.
  • Watson, J. B. Psychology as the behaviorist views it. Psychological Review, 20, p. 158-77, 1913. Disponível em: <http://psychclassics.yorku.ca/Watson/views.htm>. Acesso em: 15 ago. 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2009
  • Data do Fascículo
    Jun 2009
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