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O que é função? Debates na filosofia da biologia contemporânea

Resumos

Neste artigo, examinamos duas abordagens bastante influentes sobre a natureza das atribuições/explicações funcionais: a abordagem etiológica selecionista de Wright e a análise funcional de Cummins. A primeira parece capturar de modo adequado o significado de várias explicações na biologia evolutiva, ainda que não dê conta de toda e qualquer explicação evolutiva. A segunda, por sua vez, é mais aplicável a explicações fisiológicas ou de outras áreas científicas que lidam com sistemas complexos. Entendemos as duas teorias como empreitadas distintas, que não devem ser combinadas em uma abordagem única sobre as funções. Isso nos leva a apoiar a rejeição de tal unidade por Godfrey-Smith, na forma de sua tese do consenso dualista. Esta tese pode ser ancorada na distinção entre biologia evolutiva e biologia funcional, esboçada por Mayr e Jacob. Tratamos também da crítica de Cummins às abordagens etiológicas selecionistas, as quais ele denomina "neoteleológicas". Embora consideremos que várias das críticas de Cummins de fato localizam falhas nessas abordagens, buscamos mostrar que sua tentativa de rejeição da neoteleologia como um todo é ilegítima. A partir das críticas de ambos os lados do debate sobre as funções, a compreensão desta noção central da biologia tem sido sobremaneira enriquecida. As críticas reforçam a necessidade de delimitar o escopo e o limite de cada uma das abordagens e, assim, apontam no sentido de um pluralismo no debate sobre atribuições/explicações funcionais na filosofia da biologia.

Função; Teleologia; Análise funcional; Abordagens etiológicas selecionistas; Seleção natural; Wright; Cummins


In this paper, we examine two very influential approaches to the nature of functional explanations/attributions: Wright's selectionist etiological approach and Cummins' functional analysis. The former seems to adequately grasp the meaning of several explanations in evolutionary biology, even though it is not sufficient to account for each and every evolutionary explanation. The latter, in turn, is more applicable to explanations in physiology and in other scientific areas dealing with complex systems. We see these two theories as distinct enterprises, which should not be combined in a single approach to functions. This leads us to support Godfrey-Smith's rejection of such a unity, in the form of his dualist consensus thesis. This thesis can be grounded on the distinction between evolutionary and functional biology, as sketched by Mayr and Jacob. We also address Cummins' critique of selectionist etiological approaches, which he labels as "neo-teleological". Although we consider that several criticisms raised by Cummins do identify flaws in these approaches, we intend to show that his attempt to reject neo-teleology as a whole is illegitimate. Criticisms from both sides of the debates about functions are contributing to enrich the comprehension of this central concept in Biology. These criticisms reinforce the need of delimiting the scope and limits of each approach, and, thus, point in the direction of a pluralism in the debate about functional explanations/attributions in the Philosophy of Biology.

Function; Teleology; Functional analysis; Etiological selecionist approaches; Natural selection; Wright; Cummins


ARTIGOS

O que é função? Debates na filosofia da biologia contemporânea

Nei Freitas Nunes-NetoI; Charbel Niño El-HaniII

IMestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História da Ciência, Universidade Federal da Bahia, Brasil. nunesneto@gmail.com

IIProfessor Doutor do Instituto de Biologia, Universidade Federal da Bahia, Brasil. Pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisa Científica, CNPq, Brasil. charbel@ufba.br

RESUMO

Neste artigo, examinamos duas abordagens bastante influentes sobre a natureza das atribuições/explicações funcionais: a abordagem etiológica selecionista de Wright e a análise funcional de Cummins. A primeira parece capturar de modo adequado o significado de várias explicações na biologia evolutiva, ainda que não dê conta de toda e qualquer explicação evolutiva. A segunda, por sua vez, é mais aplicável a explicações fisiológicas ou de outras áreas científicas que lidam com sistemas complexos. Entendemos as duas teorias como empreitadas distintas, que não devem ser combinadas em uma abordagem única sobre as funções. Isso nos leva a apoiar a rejeição de tal unidade por Godfrey-Smith, na forma de sua tese do consenso dualista. Esta tese pode ser ancorada na distinção entre biologia evolutiva e biologia funcional, esboçada por Mayr e Jacob. Tratamos também da crítica de Cummins às abordagens etiológicas selecionistas, as quais ele denomina "neoteleológicas". Embora consideremos que várias das críticas de Cummins de fato localizam falhas nessas abordagens, buscamos mostrar que sua tentativa de rejeição da neoteleologia como um todo é ilegítima. A partir das críticas de ambos os lados do debate sobre as funções, a compreensão desta noção central da biologia tem sido sobremaneira enriquecida. As críticas reforçam a necessidade de delimitar o escopo e o limite de cada uma das abordagens e, assim, apontam no sentido de um pluralismo no debate sobre atribuições/explicações funcionais na filosofia da biologia.

Palavras-chave: Função. Teleologia. Análise funcional. Abordagens etiológicas selecionistas. Seleção natural. Wright. Cummins.

ABSTRACT

In this paper, we examine two very influential approaches to the nature of functional explanations/attributions: Wright's selectionist etiological approach and Cummins' functional analysis. The former seems to adequately grasp the meaning of several explanations in evolutionary biology, even though it is not sufficient to account for each and every evolutionary explanation. The latter, in turn, is more applicable to explanations in physiology and in other scientific areas dealing with complex systems. We see these two theories as distinct enterprises, which should not be combined in a single approach to functions. This leads us to support Godfrey-Smith's rejection of such a unity, in the form of his dualist consensus thesis. This thesis can be grounded on the distinction between evolutionary and functional biology, as sketched by Mayr and Jacob. We also address Cummins' critique of selectionist etiological approaches, which he labels as "neo-teleological". Although we consider that several criticisms raised by Cummins do identify flaws in these approaches, we intend to show that his attempt to reject neo-teleology as a whole is illegitimate. Criticisms from both sides of the debates about functions are contributing to enrich the comprehension of this central concept in Biology. These criticisms reinforce the need of delimiting the scope and limits of each approach, and, thus, point in the direction of a pluralism in the debate about functional explanations/attributions in the Philosophy of Biology.

Keywords: Function. Teleology. Functional analysis. Etiological selecionist approaches. Natural selection. Wright. Cummins.

Introdução

Em um artigo publicado em Scientiae Studia, Marcelo Alves Ferreira (2003) oferece razões para a permanência da teleologia na biologia contemporânea, desde uma perspectiva realista. As razões defendidas por Ferreira incluem (1) o reduzido poder heurístico da física para explicar os fenômenos biológicos; (2) a questionável legitimidade de usar a teleologia na biologia apenas como metáfora, ao invés de tomá-la em termos realistas; e (3) o problema do escopo da intencionalidade e da consciência.

Apesar de concordarmos com a conclusão geral obtida por Ferreira, não podemos, neste artigo, por motivos de espaço e dos nossos objetivos, deter-nos sobre todas as razões apontadas por ele. Destacaremos apenas um ponto para discussão. Em sua conclusão, Ferreira sugere que "valores utilitaristas" têm um papel na proposta de rejeição do pensamento finalista. Em outras palavras, se não se deseja saber o porquê dos fenômenos, mas apenas como eles ocorrem, então, de acordo com ele, não precisaríamos de teleologia. Ferreira se coloca contra essa perspectiva, como evidencia, por exemplo, outra passagem de seu texto, na qual ele recorre à seleção natural como base para afirmar a legitimidade da teleologia na explicação biológica: "se nos ativermos, contudo, à seleção natural, podemos descrever todo o processo evolutivo sem que a teleologia pareça ameaçar nossa noção de causalidade" (Ferreira, 2003, p. 188).

Mesmo lidando com temas como a teleologia e a seleção natural, Ferreira passa ao largo das abordagens etiológicas da função, propostas pela filosofia da biologia, as quais se valem da seleção natural e oferecem um caminho interessante para salvar a causalidade na ciência biológica. Não obstante, Ferreira assume uma postura que pode ser compreendida, em nossa visão, no âmbito dessas abordagens.

Com este artigo, pretendemos, em parte, abordar a questão colocada por Ferreira, a saber, por que a teleologia permanece sendo um problema a ser discutido na filosofia da biologia? Nossa aproximação do problema se fará através da discussão sobre as atribuições/explicações funcionais na filosofia da biologia, sobretudo a partir de duas teorias influentes sobre o assunto: a abordagem etiológica selecionista de Larry Wright (1998 [1973]) e a análise funcional de Robert Cummins (1998 [1975]). Discutiremos ainda as críticas de Cummins (2002) às explicações teleológicas. Acreditamos que a discussão das ideias desses autores, seja por suas vantagens, seja pelas limitações, é inspiradora e pode conduzir-nos a caminhos interessantes para a compreensão do papel da teleologia e das explicações funcionais na biologia.

O presente artigo está estruturado como segue. Inicialmente, discutimos a questão de se há (e se deve haver) unidade ou pluralismo no debate sobre as funções na filosofia da biologia contemporânea. Apresentamos nossas razões - que serão também reforçadas ao longo do artigo - para uma rejeição da unificação das abordagens sobre função em filosofia da biologia e, em consequência, para o apoio a uma visão pluralista. Na seção seguinte, apresentamos a teoria de Wright, a qual tomamos como o modelo padrão das abordagens etiológicas selecionistas. Examinamos, então, as críticas de Cummins às abordagens etiológicas selecionistas, as quais ele denomina "neoteleológicas". Na quarta seção, discutimos se os argumentos formulados por Cummins são de fato suficientes para uma rejeição da neoteleologia. Na quinta seção, apresentamos a teoria de Cummins sobre a análise funcional e, em seguida, na sexta seção, discutimos as críticas comumente levantadas contra a estratégia de Cummins. Na última seção, fazemos nossas considerações finais.

1 Unidade ou pluralismo?

As abordagens etiológicas da função têm desempenhado um papel de destaque na filosofia da biologia, sobretudo nas discussões sobre a evolução biológica. O trabalho seminal vinculado a esta abordagem é, em nosso entendimento, o artigo "Functions" (Wright, [1998] 1973). Outro trabalho importante e altamente influente no debate sobre função, mas que não se insere na linhagem das abordagens etiológicas, é "Functional analysis", de Cummins, um artigo escrito por ele em 1968, mas publicado, sem alterações, apenas em 1975 (cf. Cummins, 1998 [1975]). Nos anos subsequentes, muitos trabalhos sobre atribuições/explicações funcionais foram publicados, em grande medida devido à influência das análises desses autores (cf. Hull, 2002; Wimsatt, 2002). Isso levou Hull (2002) a afirmar que a literatura produzida sobre o assunto nas últimas décadas constitui um bom exemplo de progresso na filosofia.

Para muitos filósofos da biologia, a teoria etiológica sobre a função, desenvolvida por Wright, e a análise funcional de Cummins continuam a ser os dois principais polos do debate sobre funções na filosofia da biologia recente, em torno dos quais orbitam outras posições. A partir dos trabalhos de Wright e Cummins, outros autores, como Millikan (1998 [1989]), Neander (1998 [1991]) e Bigelow & Pargetter ([1998 [1987]), elaboraram análises que, ao enfrentar diferentes problemas, limitaram ou ampliaram o escopo das abordagens daqueles autores. Seguimos a Godfrey-Smith (1993) e Hull (2002) no argumento de que os desenvolvimentos empreendidos por esses filósofos não são fundamentalmente diferentes das abordagens expostas por Wright ou Cummins. Salmon, por exemplo, considera que Bigelow e Pargetter (1998 [1987]) "oferecem uma teoria das explicações funcionais que pode ser um melhoramento da de Wright, mas [...] ela não é fundamentalmente uma abordagem diferente." (Salmon, 1990, p. 111). De tal perspectiva, as abordagens de Wright e Cummins ainda podem ser consideradas as análises-padrão sobre a atribuição funcional em filosofia da biologia (cf. Salmon, 1990; Godfrey-Smith, 1993; Hull, 2002; Chediak, 2006).

Os trabalhos de Wright e Cummins contribuíram para tornar o conceito de "função" mais importante e até mesmo central no debate sobre as explicações teleológicas, muito embora esses autores concebam a natureza e os objetivos das explicações funcionais de modos bastante divergentes. Contudo, a despeito das diferenças claras entre suas abordagens, alguns filósofos propuseram unificá-las em uma única estrutura teórica. Entre essas propostas, a de Philip Kitcher (1998 [1993]) é a mais conhecida.

Kitcher defende que há uma unidade na concepção de função que pode ser capturada tanto através da análise de atribuições funcionais ao longo da história da biologia, quanto por meio de usos contemporâneos em contextos biológicos e não-biológicos. Esta suposta unidade seria encontrada "na noção de que a função de uma entidade S é o que S é projetada [designed] para fazer" (Kitcher, 1998 [1993], p. 479). A síntese proposta por Kitcher seria realizada pela combinação entre as visões teóricas de Wright e Cummins sobre funções, com o elo de ligação sendo seu conceito de projeto ou design.1 1 Nos tempos atuais, nunca é demais destacar que o conceito de design de Kitcher não apela, como de fato não é necessário que o faça, à existência de algum projetista natural ou sobrenatural. Em suas palavras, "design não deve ser, contudo, entendido em termos de intenções de fundo [background intentions]; uma das descobertas importantes de Darwin é que podemos pensar em design sem um designer" (Kitcher, 1998 [1993], p. 480). Para maiores detalhes sobre a teoria de Kitcher, consultar o original (Kitcher, 1998 [1993]). As ideias de Kitcher também são discutidas por Godfrey-Smith (1993). Para Kitcher, os usos de função devem estar ligados a uma fonte de design, sendo que as duas fontes principais são as intenções humanas e a seleção natural.

A unidade que deseja construir Kitcher é vista por Godfrey-Smith (1993) como uma "falsa unidade". Esse filósofo desenvolve, contra Kitcher, a tese de que existe contemporaneamente na filosofia da biologia "um consenso sem unidade" no debate sobre funções. Esse consenso consiste no reconhecimento de que há duas abordagens centrais sobre o tema, tendo cada uma delas seu próprio domínio exclusivo de aplicação. A ausência de unidade é expressa pelo fato de que essas abordagens não podem (e ipso facto não devem) ser conciliadas em uma visão única, monolítica, que seria supostamente aplicável a todo e qualquer fenômeno biológico. Essa impossibilidade ocorre, de acordo com Godfrey-Smith, por conta de que cada um dos dois referenciais teóricos olha para o mesmo mundo natural de modos diferentes, acentuando-lhe certos aspectos, ao passo que, naturalmente, negligenciam outros.

A tese, que apóia o argumento de Godfrey-Smith, apesar de trivial nos dias de hoje, não é sem importância no presente contexto. Não se pode "ver" algo de lugar nenhum. Sempre que alguém se pronuncia sobre o mundo, o faz de certa perspectiva teórica, apoiado em determinados pressupostos metafísicos, epistemológicos, ideológicos etc. Ao mesmo tempo, não estão sendo assumidos outros pressupostos, que são, então, automaticamente "sustados" (Feyerabend, 1975, p. 347-445). Portanto, misturar ou combinar pressupostos muito distintos (como os assumidos por Wright e Cummins), se não mesmo contraditórios, parece-nos algo pouco consistente e que deve ser evitado.

Enquanto a teoria de Wright enfatiza a natureza histórica do mundo vivo, associando-a à origem dos traços, os quais seriam explicados por suas funções, a abordagem de Cummins enfoca a complexidade e as relações entre capacidades sistêmicas e capacidades das partes do sistema.2 2 Discutiremos as abordagens desses filósofos em maiores detalhes nas próximas seções. Por ora, esta breve caracterização é suficiente. Nas palavras de Godfrey-Smith:

[A]s categorias que nós reconhecemos agora devem ser determinadas, é claro, por nossa própria visão de mundo. As análises de Wright e Cummins situam a atribuição funcional dentro de dois modos explanatórios distintos, os quais são partes legítimas de nossa visão de mundo contemporânea. Seleção natural e artificial existem, e os atributos de várias coisas podem ser explicados em termos de histórias seletivas. Sistemas complexos, organizados, também existem e têm capacidades globais que podem ser explicadas em termos de capacidades das partes componentes. Estes são dois modos explanatórios legítimos dentro das ciências. Crucialmente para nós, estes são dois modos explanatórios

diferentes

dentro da ciência. Não há um projeto explanatório único, distinto de outros, o qual abranja estes dois modos. Eles são dois tipos de compreensão que nós podemos ter de um sistema. Aí está porque eu vejo a proposta de Kitcher como oferecendo uma falsa unidade, uma unidade à qual devemos resistir em favor de manter um entendimento acurado de diferentes estratégias explanatórias nas ciências (Godfrey-Smith, 1993, p. 204).

A posição de Godfrey-Smith, de que as duas análises em questão são dois modos distintos de ver o mundo, está em sintonia com uma observação do próprio Cummins (que discutiremos mais à frente), segundo a qual a abordagem etiológica selecionista e a análise funcional têm diferentes explananda. Desse modo, se o que elas buscam explicar são aspectos diferentes do mundo, temos mais uma razão para sustentar que uma unificação de tais abordagens mostra-se, já de início, algo no mínimo difícil.

Além disso, a tese do pluralismo de Godfrey-Smith pode receber apoio de argumentos propostos independentemente por Ernst Mayr (1988) e François Jacob (1983 [1970]). O argumento de Mayr que temos em vista foi inicialmente desenvolvido em seu artigo "Cause and effect in biology", de 1961, tendo sido discutido posteriormente em uma série de outros trabalhos (cf. Caponi, 2001, p. 24). De acordo com esse argumento, a biologia não é uma ciência uniforme, homogênea, mas divide-se em duas: a biologia evolutiva e a biologia funcional (Mayr, 1988, p. 25-6). Jacob sustenta a mesma tese, ainda que use expressões distintas: biologia tomista ou reducionista, de um lado, e biologia integrista ou evolucionista, de outro (Jacob, 1983 [1970], p. 14). A mesma distinção é retomada por Gustavo Caponi (2002, 2007), que a considera uma distinção chave para o tratamento de questões filosóficas da biologia e de outras ciências, como, por exemplo, aquelas relativas ao reducionismo. O reconhecimento da legitimidade da distinção esboçada por Mayr e Jacob - sugere Caponi (2002) - pode lançar luz, inclusive, sobre o papel da teleologia nas ciências da vida.3 3 Caponi relaciona cada um dos modos de "explicar teleologicamente" a uma regra metodológica subjacente. Assim, as explicações da biologia funcional formuladas em termos teleológicos estariam apoiadas na regra metodológica da adequação autopoiética, ao passo que as explicações da biologia evolutiva, na regra da adequação adaptativa. Quanto às explicações funcionais, ele afirma: "ter ou realizar uma função não poderá ser outra coisa senão possuir ou cumprir um papel causal na realização desta autopoiese" (Caponi, 2002, p. 73). De acordo com Caponi, a regra da adequação autopoiética está subordinada à regra da adequação adaptativa, um argumento similar ao de Mayr (2005), para quem a biologia evolutiva é o ramo da biologia que garante a esta ciência sua autonomia frente às outras ciências naturais.

À distinção entre biologia funcional e evolutiva corresponde também uma distinção entre os tipos de causas que desempenham um papel em um ou em outro campo de investigações, a saber, causas próximas e causas remotas (Mayr, 1988). A biologia funcional ocupa-se das causas próximas dos fenômenos biológicos. As causas próximas são os determinantes dos eventos biológicos que têm lugar na ontogenia, no tempo de vida dos organismos individuais (ou tempo somático), e estão geralmente associadas à fisiologia. A referência às causas próximas responde a questões como, por exemplo, a seguinte: como funciona o sistema circulatório de um mamífero?

Por sua vez, as investigações em biologia evolutiva recorrem às causas remotas dos fenômenos biológicos. Neste ramo da biologia, o organismo é sempre visto da perspectiva de sua integração em sistemas de organização mais inclusivos, como as linhagens e as populações. Assim, as causas às quais se recorre para explicar um evento atual dizem respeito a eventos que tiveram lugar na história evolutiva da linhagem à qual pertence o organismo, na sua filogenia. Mayr esclarece quais são, em sua visão, as questões colocadas pela biologia evolutiva:

O biólogo evolutivo difere em seu método e nos problemas nos quais está interessado. Sua questão básica é "por quê?" Quando nós dizemos [o] "por quê", devemos estar sempre cientes da ambiguidade do termo. Ele pode significar "como surgiu?", mas também pode significar o finalista "para quê?". Quando o evolucionista pergunta "por quê?", ele ou ela tem sempre em mente o "como surgiu?" histórico (Mayr, 1988, p. 25).

A referência às causas remotas responde à modalidade de questões do tipo 'por quê?' Tais questões, é importante ressaltar, solicitam a origem histórica de uma estrutura ou de um comportamento biológico. Isso faz delas explicações etiológicas, como veremos com maior detalhe na próxima seção. Uma pergunta legítima que solicita explicação em tal campo seria, por exemplo, por que os mamíferos têm coração?

A perspectiva desenvolvida por Cummins captura bem os usos de função que têm lugar nas investigações em biologia funcional, na medida em que, através da análise funcional, as causas próximas de capacidades que os sistemas vivos exibem são adequadamente explicadas. A abordagem de Cummins sugere um papel para o conceito de função, segundo o qual, em vez de buscar causas históricas para explicar diacronicamente a existência de algum estado de coisas atual, propõe-se de modo sincrônico explicações das funções dos componentes de um sistema complexo a partir da análise de alguma capacidade, apresentada pelo sistema como um todo. As capacidades sistêmicas são explicadas mediante sua análise em termos de capacidades das partes componentes: as funções de Cummins.

Por sua vez, Wright recorre às causas remotas dos fenômenos biológicos. Ele formula uma análise filosófica do raciocínio a que podemos recorrer para explicar a origem de um traço biológico atual nos organismos ou de certo artefato cultural humano. Assim, é fácil perceber que sua abordagem é potencialmente mais aplicável à evolução biológica,4 4 Wright parece adotar uma postura naturalizada, na qual, a partir de uma teoria biológica, o darwinismo ortodoxo, ele constrói uma abordagem geral sobre a noção de "função" que não é restrita ao mundo vivo, mas poderia ser aplicada a qualquer item, a um artefato qualquer. Assim, ainda que sua teoria derive da análise de explicações da biologia evolutiva, ela não se aplica somente a tal empreitada intelectual. Por derivar da concepção darwinista dominante no período, a teoria de Wright lança mão apenas da seleção natural como mecanismo etiológico, não incorporando outros fatores, tais como as restrições ao desenvolvimento. E nem poderia, na medida em que a importância de considerar-se um pluralismo de processos na biologia evolutiva começou a tornar-se clara muito depois da publicação do artigo de Wright, em 1973. na medida em que oferece explicações de por que determinada estrutura biológica surgiu ou, em outras palavras, relata sua etiologia, através de uma explicação narrativa selecionista. Não obstante as críticas que podem ser dirigidas à abordagem etiológica de Wright, tal como faremos mais adiante, parece-nos claro que o poder explicativo que essa abordagem pode possuir encontra seu contexto mais natural na biologia evolutiva.

Assumindo, com base nos argumentos apresentados, que há duas grandes áreas constituindo a biologia, temos mais facilidade em abandonar o desejo por unidade no que se refere às teorias sobre a função; o que é o ponto central de nosso argumento ao fim da seção. É possível que tal desejo de unificação seja, inclusive, um resquício ou reflexo do positivismo lógico, com sua ênfase na busca por uma ciência unificada.5 5 A busca por uma ciência unificada torna-se evidente quando examinamos, por exemplo, a proposta da Enciclopédia Internacional da Ciência Unificada, de Otto Neurath, Rudolf Carnap e Charles Morris, entre outros filósofos do Círculo de Viena (cf. Carnap; Morris & Neurath, 1955). É importante ressaltar, contudo, que apesar de defendermos, contra Kitcher, uma desunidade no debate sobre as funções, parece-nos importante, em termos mais gerais, manter uma atitude de busca por unidade na ciência. No entanto, vemos a atitude de busca por unidade apenas como um norteador geral da análise metateórica (e do próprio fazer científico) e, portanto, como algo que não pretende aplicar-se de modo estrito a todo e qualquer problema específico da filosofia da ciência. Em outros termos, defendemos uma atitude geral de busca por unidade, porém, a unidade teórica no debate sobre as funções parece-nos um equívoco. Quanto a isso, parece-nos mais interessante seguir a Godfrey-Smith e propor que "ao menos permitamos aos filósofos fazer a coisa certa quando se analisa a caracterização funcional; não permitamos que filósofo algum junte o que a ciência separou" (1993, p. 207).

Nestes termos, pode-se concluir que há (pelo menos) dois modos de explicar funcionalmente, cada qual pertinente a uma das duas áreas da biologia, conforme discriminadas por Mayr e Jacob. Ou, como sugeriu Caponi (2002), há duas teleologias - a da explicação funcional e a da explicação selecionista -, uma para cada biologia, ainda que a dose de finalismo em uma seja menor do que na outra; "a explicação selecionista é teleológica em um sentido mais forte do que a explicação funcional" (Caponi, 2002, p. 82).6 6 A posição de Caponi deriva de ele ter estabelecido uma relação entre a explicação da biologia funcional e o "princípio de adequação autopoiética". Caponi constrói uma interessante linha de argumentação na defesa da legitimidade dessa conexão, porém, uma avaliação detida de suas ideias está fora dos limites da nossa argumentação no presente artigo. Ainda que Cummins (2002) mantenha, quanto a esse ponto, posição diferente da de Caponi,7 7 Cummins (2002) mantém uma distinção mais radical do que Caponi (2002). Para ele, sua análise funcional é um tipo de explicação essencialmente não-teleológica. Em sua visão, a teleologia sobrevive em sua forma atual (a neoteleologia) apenas na biologia evolutiva ou em sua filosofia. Assim, os usos de função na biologia funcional estariam livres de compromissos teleológicos, desde o ponto de vista de Cummins. isso não afeta a legitimidade da dicotomia existente entre os dois campos da biologia e seus respectivos usos, tanto explicativos quanto metodológicos, do conceito de função.

2 A perspectiva de Larry Wright sobre as funções: a teoria padrão das abordagens etiológicas selecionistas

Larry Wright (1998 [1973]) desenvolveu uma abordagem explicitamente causal das funções, em termos do que ele chamou de etiologia da consequência (consequence-etiology). De acordo com ele, as análises anteriores das atribuições funcionais, tais como as realizadas primeiramente por Hempel e depois por Canfield (1964), Sorabji (1964) ou Beckner (1969) (cf. Wright, 1998 [1973]), apresentavam falhas por não contemplarem uma ideia que lhe parecia muito importante, a de que as atribuições funcionais são também explanatórias. Em suas palavras,

Falar que algo, x, tem certa função é simplesmente oferecer um tipo importante de explicação de x. A falha em considerar isso ou, ao menos, em levá-lo a sério é, eu acredito, responsável pela falha sistemática dessas análises em prover uma abordagem acurada das funções (Wright, 1998 [1973], p. 64).

Isso ocorria, segundo ele, por que tais análises não esboçavam qualquer distinção entre função e acidente, a qual é, para Wright, fundamental e, de fato, contribuiu para um melhor entendimento do papel da noção de função na filosofia da biologia. A análise de Wright reflete, em grande medida, a prática científica da biologia evolutiva de sua época. A distinção entre função e acidente, no contexto da teoria filosófica de Wright, corresponde a distinções similares nas obras de biólogos evolutivos, como, por exemplo, aquelas entre efeitos ou benefícios fortuitos e adaptações genuínas, na obra seminal de G. C. Williams (1996 [1966]), e entre exaptação e adaptação, feita por Gould e Vrba (1982).8 8 A obra de Williams (1996 [1966]), ao lado da de Darwin (2002 [1859]), foi, inclusive, uma das inspirações para Gould & Vrba (1982) proporem um novo termo para a biologia evolutiva, "exaptação". Mais adiante, trataremos da análise de Gould e Vrba (cf. também Godfrey-Smith, 1993, p. 198).

Em seu artigo de 1973, Wright faz, de início, duas considerações básicas. Primeiro, assim como as atribuições de objetivo (goal ascriptions), as atribuições de função fornecem explicações. Por exemplo, se dissermos que o cervo está correndo para fugir do predador, explicaremos por que o cervo está correndo. O mesmo vale para os casos funcionais. Se dissermos que o coração bate para fazer o sangue circular, estaremos oferecendo uma explicação de por que o coração bate.

Para sustentar o caráter explanatório das atribuições funcionais, podemos nos valer de uma segunda consideração, que diz respeito à equivalência contextual de diferentes tipos de perguntas, como as seguintes:

(1) Qual a função de x?

(2) Por que Cs têm xs?

(3) Por que xs fazem y? (Wright, 1998 [1973], p. 65).

Todas essas perguntas solicitam, de acordo com Wright, a função de x e podem receber a mesma resposta. Solicitar a função de x, como fazem as questões acima, é - na visão de Wright - solicitar uma explicação para a existência de x. Nesses termos, as atribuições funcionais devem ser tomadas como explicações.

Wright insiste que as atribuições de função precisam explicar em um sentido forte, já que as interpretações mais fracas do significado de função não levam em conta a distinção função-acidente, para ele, fundamental. Por exemplo, a pergunta "para que o fígado é bom?" não pode ser traduzida em "por que animais têm fígados?". Notemos que a segunda pergunta exige uma explicação da existência de certo estado de coisas em um âmbito restrito, particular. Tal explicação deve contar como uma atribuição de função ao fígado, enquanto a primeira pergunta ("para que o fígado é bom?") permite muitas respostas diferentes, as quais não precisam fazer uma distinção entre função e acidente para serem aceitáveis. De uma perspectiva histórica, é um acidente, de fato, que os fígados sejam bons para serem comidos com cebola. No entanto, esta não é uma função do fígado no sentido pretendido, isto é, ela não é a razão que explica por que certos animais o possuem.

Desse ponto de vista, as atribuições/explicações funcionais podem ser ditas "etiológicas", isto é, elas dizem respeito ao cenário causal que originou o fenômeno sob consideração. Wright trata, então, as explicações funcionais como explicações causais em um sentido estendido. Porém, além de reconhecer o caráter causal das explicações funcionais, é necessário mostrar o que as torna diferentes das explicações causais ordinárias. Para isso, Wright lança mão mais uma vez da distinção função-acidente. De acordo com ele, todos os exemplos contrários a uma atribuição funcional que se baseiam em acidentes podem ser evitados "se incluirmos como parte da análise algo sobre como x chegou ali (onde quer que seja): isto é, que ele existe porque ele faz z - com um porquê etiológico." (1998 [1973], p. 66). Assim, ele propõe a seguinte forma para uma atribuição de função:

(1) x existe porque faz z.

Ou

Fazer z é a razão de x existir.

Ou

Que x faz z é o porquê de ele existir (Wright, 1998 [1973], p. 67).

O autor ressalta que a presença do verbo fazer (to do) levanta algumas questões. Em alguns casos, a função de algo não é realizada, mas existe apenas em potência: "em alguns contextos, admitiremos que x faça z embora z nunca ocorra" (p. 67). O que é exigido em tais atribuições funcionais, segundo Wright, é que x seja capaz de fazer z (p. 68). Ressalvas similares foram feitas por Hull (1975), em sua análise de estados preferenciais para sistemas teleológicos:

Atingir ou manter certo estado preferido não é necessário para que um sistema seja teleológico. Em certos casos, um sistema que é claramente teleológico nunca mantém o seu estado preferido, tal como no caso do esquema de controle da temperatura, que oscila em torno desse estado preferido. Em outros casos, o estado preferido nunca é alcançado e muito menos mantido. Pelo contrário, é abordado assintoticamente. Por exemplo, nenhuma espécie está sempre perfeitamente adaptada ao seu meio ambiente, embora algumas se avizinhem mais e com maior frequência desse ideal do que outras espécies. Ocasionalmente, um sistema teleológico atinge a sua meta, mas só uma vez. Finalmente, um sistema teleológico pode ser teleológico sem ser perfeito. Um sistema projetado para atingir uma meta pode deixar constantemente de fazê-lo por causa de uma leve falha em sua organização, situação denominada "omissão de meta". Um torpedo disparado ainda seria um sistema teleológico mesmo que um defeito em seu dispositivo de disparo tivesse como resultado passar sempre ao largo do navio-alvo (Hull, 1975, p. 153-4).

Uma argumentação muito similar é apresentada por Wright, quanto à necessidade das ressalvas, as quais devem ser admitidas para que a condição (1) possa ser tomada como condição necessária para afirmar que z é a função de x. Entretanto, como ele afirma, a fórmula acima não é suficiente como definição de função, porque a distinção causal/funcional é uma distinção entre etiologias, não entre a etiologia e alguma outra coisa (ou seja, a etiologia é algo compartilhado entre explicações causais comuns e funcionais). Logo, precisamos de outra condição, se quisermos diferenciar as etiologias funcionais das etiologias causais comuns e, assim, salvar o poder genuinamente explanatório das atribuições funcionais; o que é defendido por Wright.

Buscando uma definição suficiente de função, ele analisa o caso do oxigênio e da hemoglobina, no qual, em sua visão, atribui-se função a algo indevidamente. Diz-se que o oxigênio combina-se prontamente com a hemoglobina e que esta é a razão etiológica de ele ser encontrado na circulação sanguínea. Mas não é função do oxigênio combinar-se com a hemoglobina. A função do oxigênio é fornecer energia a partir das reações de oxidação. Combinar-se com a hemoglobina é um meio para obter tal fim. Wright (1998 [1973], p. 69), referindo-se ao oxigênio, pretende mostrar de que maneira devemos entender o termo "porque" na sentença "ele existe porque fornece energia". A compreensão do termo nessa sentença deve ser significativamente diferente da compreensão do mesmo termo nesta outra: "ele existe porque ele se combina com a hemoglobina". De acordo com Wright, as duas explicações sugerem diferentes tipos de etiologias. Nós não poderíamos afirmar que o monóxido de carbono (CO), o qual é também capaz de combinar-se com a hemoglobina, estaria no sangue porque é capaz de fornecer energia.

Desse modo, é a própria natureza da etiologia que determina que haja etiologias especificamente funcionais. Quando dizemos que a função de x é fazer z, estamos dizendo que x está ali porque faz z, que x existe porque faz z. Além disso, estamos explicando como x chegou ali, o que qualifica a explicação como etiológica. Porém, apenas certos tipos de explicações etiológicas explicarão funcionalmente.

Torna-se necessário, para completar a definição de função, fazer referência às consequências da presença de x. Obviamente, z, sendo função de x, é também uma consequência de x, já que toda função é uma consequência, muito embora haja consequências que não sejam funções (sendo acidentes ou quaisquer outras coisas). Assim, ao fornecer uma explicação funcional de x apelando a z, z é sempre uma consequência ou um resultado de x existir. Ressalvas semelhantes àquelas feitas sobre o verbo "fazer" na formulação de que x faz z são feitas por Wright para esta segunda cláusula, que pretende completar a sua definição de função. Por exemplo, ao dizer que a fotossíntese é uma consequência da clorofila, deve-se permitir que algumas plantas verdes possam nunca vir a ser expostas à luz, sem que isso invalide a atribuição de função à clorofila nelas encontrada. Em outras palavras, devemos permitir os casos de omissão de meta, entre outros casos especiais.

Assim, mediante a inclusão dessa segunda cláusula, a saber, que "z é uma consequência de x existir", Wright propõe sua definição de função e, por conseguinte, estabelece sua fórmula de atribuição funcional:

A função de x é z significa que:

(a) x existe porque faz z,

(b) z é uma consequência (ou resultado) de x existir (Wright, 1998 [1973], p. 71).

Enquanto a primeira parte da definição, (a), mostra a forma etiológica da atribuição/explicação funcional, a segunda parte, (b), descreve a convolução (convolution) que distingue as etiologias funcionais de outras etiologias. Segundo Wright, questões tais como "por que algo existe?" ou "o que algo faz?" frequentemente desdobram-se em "que consequências ele tem que respondem por ele existir?".

Wright argumenta que sua análise é altamente recomendável pelo fato de que ela elucida o conceito de seleção natural, apesar de não se restringir a esse tipo particular de seleção. A título de ilustração, vejamos um exemplo de explicação biológica no contexto dessa formulação. A observação do comportamento de caça típico de um gato pode levar-nos a perguntar por que os gatos caçam dessa maneira. Uma resposta imediata pode ser que eles caçam assim porque é dessa maneira que conseguem caçar ratos e, em consequência, obtêm comida. Entretanto, não é a obtenção futura de certos ratos particulares que causa esse tipo de comportamento em certo gato, na medida em que um evento no futuro não pode ter eficácia causal sobre um evento que o precede. Não há aqui qualquer inversão misteriosa de causalidade. Simplesmente, o gato pode comportar-se de maneira típica e não alcançar o objetivo, a saber, obter ratos. Logo, não são eventos futuros, mas sim certos eventos passados de captura de ratos que proporcionam aos gatos hoje a capacidade de comportar-se de uma maneira típica, graças à retenção seletiva desse comportamento em populações pretéritas de gatos.

Assim, aplicando a formulação geral de função de Wright a este caso (mantendo todas as ressalvas admitidas acima), podemos dizer que a função do comportamento típico de caça dos gatos, c, é obter alimentos, o, se:

(1) c existe porque ele faz o

(2) o é uma consequência (ou resultado) de c existir.

Logo, o é a consequência da presença prévia de c, que o manteve nas linhagens de gatos. Isso significa que, em determinado momento da história evolutiva dessa linhagem, obter ratos passou a ser uma consequência especial da realização do comportamento c, já que certos organismos, por possuírem o comportamento c, obtinham com maior frequência o objetivo o. Eles apresentavam, assim, uma vantagem seletiva sobre os outros da mesma espécie que não possuíam tal comportamento, ou possuíam um comportamento similar, mas não tão eficiente. A vantagem de obter mais alimentos aumentou, então, as chances de sobrevivência e reprodução de certa variante de gatos no passado. Isso manteve o comportamento c na espécie, que é instanciado hoje por gatos particulares. Portanto, de modo simplificado, a vantagem seletiva de fazer c no passado, ou seja, seu sucesso na obtenção de o, causa a instanciação de c nos gatos atuais.

A análise de Wright oferece-nos uma fórmula curta e elegante para as atribuições funcionais que têm lugar na biologia evolutiva, em contraste com as definições de função apresentadas por filósofos anteriores. Além disso, ela tem um forte apelo, por ser capaz de fornecer uma boa distinção entre função e acidente. A demonstração da necessidade de tal distinção para a análise das explicações na biologia evolutiva representa um avanço na filosofia da biologia que não pode ser negligenciado. Por vezes, as críticas dirigidas - corretamente - a algumas falhas da abordagem de Wright são tão incisivas que perdem de vista a importância da distinção função/acidente. Para notar a importância de tal distinção, basta notar que ela se mantém, por vezes como algo tácito, nas teorias etiológicas selecionistas, desenvolvidas posteriormente por outros filósofos (cf. Millikan, 1998 [1989]; Godfrey-Smith, 1998 [1994]; Griffiths, 1998 [1993]).

Porém, isso não significa que não haja problemas com essa perspectiva teórica. Pode-se legitimamente levantar muitas objeções às abordagens etiológicas de função, das quais a análise de Wright pode ser considerada a pioneira. Na próxima seção, trataremos dessas objeções, sobretudo daquelas levantadas por Cummins, em sua crítica ao que ele chamou de "neoteleologia".

3 A neoteleologia

No seu trabalho mais recente sobre as explicações e as atribuições funcionais na biologia, Cummins sugere que há dois tipos de explicações que recorrem à noção de "função": a explicação teleológica e a análise funcional. Ele propõe que apenas o segundo tipo, uma abordagem defendida por ele, captura realmente os aspectos importantes da prática de investigação biológica, ao passo que o primeiro tipo, as explicações teleológicas, apesar de ainda existirem na biologia, devem ser condenadas à extinção (2002, p. 157). O que Cummins chama de "teleologia" é a ideia de que o apelo à função, ao objetivo ou ao propósito de algum item, digamos x, pode explicar por que x existe ou está presente em um certo sistema. Para Cummins (2002, p. 160), "a teleologia sobrevive contemporaneamente na biologia evolutiva ou, ao menos, em sua filosofia", na forma do que ele denominou "neoteleologia", expressão cunhada pelo próprio autor, a qual indica

a tese substantiva de que, ao menos em alguns tipos importantes de casos, a função de uma coisa - o efeito que identificamos como sua função - é uma pista para sua existência. [...] a neoteleologia deve ser a ideia de que, por exemplo, há olhos porque eles permitem a visão, asas, porque elas permitem o voo, e polegares opositores, porque eles permitem agarrar (Cummins, 2002, p. 161).

Cummins também explica o que entende por neoteleologia através do exemplo clássico da função do coração. Ela apresentaria a tese, composta de duas partes, segundo a qual:

(1) nós temos corações porque os corações são para [algo]; os corações são para a circulação do sangue, não para a produção de um pulso, então, os corações existem - os animais os têm - porque a função deles é circular o sangue, e (2) que (1) é explicado por seleção natural: traços aumentam suas frequências (

spread

) nas populações por causa de suas funções (Cummins, 2002, p. 157).

Assim, em termos gerais, a explicação neoteleológica busca dar conta da presença ou da existência de um traço ou comportamento biológico através de um apelo a sua função. Cummins aponta como representantes da neoteleologia proeminentes filósofos da biologia contemporâneos, como Godfrey-Smith (1998 [1994]), Griffiths (1998 [1993]), Neander (1998 [1991]) e Millikan (1998 [1989]). Embora não seja citada por Cummins como uma abordagem neoteleológica em seu artigo de 2002, a teoria de Wright compartilha os princípios atribuídos por ele à neoteleologia. Mais do que isso, a abordagem de Wright foi a pedra fundadora das abordagens etiológicas selecionistas na filosofia da biologia, tendo exercido grande influência sobre as ideias dos autores citados por Cummins como neoteleologistas (cf. Hull, 2002; Godfrey-Smith, 1993). De acordo com Cummins,

uma defesa de uma abordagem etiológica selecionista das funções é, com efeito, uma defesa da neoteleologia, já que as abordagens selecionistas igualam as atribuições funcionais com o que eu estou chamando de explicações neoteleológicas: dizer que a função do coração é circular o sangue, nessas abordagens, é oferecer uma explicação neoteleológica da presença de corações (Cummins, 2002, p. 162).

Como vimos na seção anterior, esse é precisamente o uso de função no âmbito da abordagem etiológica de Wright. Portanto, é razoável tratar, a partir de argumentos do próprio Cummins, a abordagem de Wright como uma perspectiva essencialmente neoteleológica.

Antes de prosseguir, é preciso considerar o modo como Cummins entende a noção de "teleologia". Ao tratá-la como a ideia de que o apelo à função de um item x pode explicar por que x existe ou está presente, ele torna equivalentes, com efeito, a teleologia e a abordagem etiológica selecionista das funções. Contudo, pode-se argumentar, o termo "teleologia" tem significado mais geral do que tal equivalência permite enxergar. Em um sentido amplo, "teleológico" significa "dirigido a um fim". Assim, em uma explicação teleológica, diz-se que um evento ocorre para um certo fim, com um dado propósito, ou seja, que ele ocorre porque é o tipo de evento que produz aquele fim. O fato de que ele é o evento necessário para que se obtenha, em certo estado de coisas, o fim em questão é considerado, em tal explicação, condição suficiente para a ocorrência do evento (cf. Taylor, 1964). Desse modo, além dos argumentos que dizem respeito à validade da abordagem selecionista empregada pelos filósofos que Cummins qualifica como neoteleologistas, vale a pena considerar o problema filosófico da própria natureza de uma explicação teleológica. Este último ponto é relevante, porque é possível argumentar que a abordagem de função defendida por Cummins, a análise funcional, é ela própria comprometida com um modo teleológico de explicação, ainda que não o seja com a neoteleologia, tal como explicada por ele (ver abaixo). A consequência seria, então, a de que a oposição entre explicação teleológica e análise funcional, sobre a qual repousam os argumentos de Cummins (2002), mostra-se questionável e, por conseguinte, sua tese de que as explicações teleológicas devem ser condenadas à extinção no domínio da biologia também pode ser posta em dúvida.

Segundo Cummins, apesar de gozar, pelo menos aparentemente, de boa reputação na biologia ou em sua filosofia, a neoteleologia mantém laços estreitos com a teleologia clássica. Esta última constitui, para Cummins, um quadro teórico tão natural quanto antigo para pensar sobre os artefatos, como os utensílios de cozinha, as ferramentas de trabalho etc. Tal forma de ver os produtos da cultura humana estende-se facilmente a partes do nosso corpo (os olhos são instrumentos para ver) e, por fim, aos objetos naturais em geral (o objetivo do coração dos vertebrados é fazer o sangue circular; o objetivo das pedras é cair porque o chão é o seu lugar natural). Desse modo, a referência ao objetivo passa a ser entendida como o que explica por que tais coisas existem.

Se ter uma função é o que explica por que algo existe, então, sugere Cummins, "deve haver alguma estória de fundo sobre um mecanismo ou processo que produz os itens em questão, e os produz por causa de suas funções" (Cummins, 2002, p. 159). Cummins chama de 'processo de base' (grounding process) ao mecanismo que gera o item da atribuição funcional, sendo este, segundo ele, o ponto fraco da neoteleologia.

Ao longo da história da ciência, foram propostos diferentes mecanismos como processos de base para as explicações teleológicas. E o requisito de tais processos mostrou-se, para Cummins, o calcanhar de Aquiles da teleologia. As explicações teleológicas do movimento, por exemplo, foram abandonadas porque o apelo à função em uma mecânica teleológica comprometida com a ideia da atratividade seletiva dos lugares naturais mostrou-se supérfluo. Cummins recorre ao exemplo da astronomia ptolomaica para explicar esse ponto:

se uma estrela tem seu movimento aparente porque está ligada a uma esfera rígida em movimento, centrada na Terra, ela traçará uma órbita circular ao redor do centro da esfera independentemente de qual possa ser sua função (Cummins, 2002, p. 159-60).

Em tais casos, a explicação tem um caráter nomológico, e não funcional, isto é, ela deve recorrer às leis físicas pertinentes, juntamente com as condições iniciais, para explicar a ocorrência do evento particular em questão, e não ao seu propósito ou objetivo (cf. Hempel & Oppenheim, 1948; Salmon, 1990).

As explicações teleológicas do crescimento e desenvolvimento que recorriam a forças ocultas, tais como as enteléquias, presentes nos pensamentos de Aristóteles e Hans Driesch, por exemplo, também foram abandonadas, porque não ofereciam a possibilidade de encontrar o processo de base correspondente (cf. Cummins, 2002, p. 159). A própria natureza dessas empreitadas tornava os processos, que engendrariam os itens da atribuição funcional, inacessíveis empiricamente. Além disso, o surgimento e o avanço da genética e da biologia molecular acabaram por eliminar da biologia o pensamento vitalista, na medida em que as explicações vitalistas e moleculares passaram a competir pelo mesmo território. Assim, o vitalismo em declínio acabou por levar consigo as explicações teleológicas do desenvolvimento, que apelavam a fatores extranaturais.

O forte apelo da neoteleologia, defende Cummins, reside no fato de que ela coloca a seleção natural como seu processo de base. Esse mecanismo, que goza de boa reputação entre biólogos e filósofos da biologia, é responsável, para os neoteleologistas, pela origem e pelo aumento de frequência (spread) dos itens da atribuição funcional (como a abordagem de Wright evidencia). A seleção natural acaba por eliminar a necessidade de um criador sobrenatural ou de forças ocultas como as enteléquias, e é exatamente nisso que reside seu poder de atração. Desse modo, como defendem uma estratégia selecionista, os neoteleologistas propõem que os traços nos organismos são selecionados por causa dos efeitos que contam como suas funções e, portanto, existem nos organismos porque têm as funções que realizam.

Para Cummins, o conceito de "função" tem um papel legítimo na prática científica (conforme veremos na seção seguinte), mas a neoteleologia não o captura, com suas explicações selecionistas. Como argumenta Cummins, "traços, mecanismos, órgãos biológicos etc. não existem por causa de suas funções. Eles existem por causa de suas histórias de desenvolvimento" (2002, p. 162). Para ele, os processos que produzem os traços biológicos são insensíveis à função dos traços. Logo, a função não pode ser usada para explicar a existência dos traços biológicos, porque é tão supérfluo apelar à função nesse caso quanto o é no caso dos processos de base da mecânica teleológica, também insensíveis à função.

A neoteleologia careceria de justificação para explicar não somente a origem dos traços, mas também o aumento da frequência destes, uma vez que, de acordo com Cummins, "o problema fundamental com a neoteleologia é que traços não se tornam mais comuns (spread) por causa de (efeitos que contam como) suas funções" (Cummins, 2002, p. 164). Para Cummins, a neoteleologia, quando apela à função para explicar a origem e o aumento de frequência dos traços, transmite uma visão equivocada sobre o mundo vivo e sua evolução. A seguir, analisaremos em maiores detalhes os argumentos oferecidos por Cummins para sustentar essa tese, os quais lançam uma pergunta de difícil resposta para o neoteleologista: "se os processos que produzem os traços são insensíveis às funções dos traços, como podem as funções dar conta de por que um traço está 'ali', isto é, é expresso em alguma população específica?" (p. 163). De acordo com o filósofo, a resposta do neoteleologista é dada nos seguintes termos: ele reconhece, sem problemas, que os processos que produzem os traços são insensíveis a suas funções, na medida em que, naturalmente, traços não têm funções até que sejam produzidos. Mas ele argumenta, então, que os processos que preservam os traços e fazem sua frequência aumentar numa população são, estes sim, sensíveis às funções dos traços. Então, aparentemente, o neoteleologista terá encontrado um processo de base adequado, satisfatório e que não parece carecer de legitimidade. Nessa linha de raciocínio, a elucidação do mecanismo de aumento da frequência do traço dá uma indicação de como ele surgiu. E assim, à primeira vista, os problemas parecem ter sido superados pelo neotelelogista. Mas não o foram, como veremos a seguir.

3.1 Os dois tipos de neoteleologia

Em busca de representar com maior fidelidade as posições assumidas pelos autores que ele considera neoteleologistas, Cummins faz uma distinção entre duas formas de neoteleologia: a forte e a fraca. A variante forte afirma que qualquer traço biológico que tem uma função foi selecionado positivamente porque desempenhava aquela função. Já a versão fraca sustenta uma tese mais plausível, a de que apenas alguns traços foram selecionados por causa de suas funções. Vejamos com mais detalhes como Cummins analisa essas duas versões da neoteleologia.

A neoteleologia forte dificilmente se sustenta. Como se pronuncia sobre todos os traços biológicos, a apresentação de apenas um contraexemplo é suficiente para justificar sua rejeição. Como coloca Cummins, "a neoteleologia forte é refutada se existem alvos legítimos da caracterização funcional que não são alvos da seleção" (Cummins, 2002, p. 165). E, com base nesta premissa, conclui que "a neoteleologia forte deve ser rejeitada, já que a maioria, se não todas as estruturas complexas, como corações, olhos e asas têm evidentemente funções, mas não foram selecionadas por causa de (do efeito que conta como) suas funções" (Cummins, 2002, p. 165).

Não é difícil perceber, a partir da crítica de Cummins, uma falha crucial das abordagens etiológicas selecionistas (dentre as quais, a de Wright), isto é, a de que elas são muito dependentes de processos de seleção. Desse modo, elas se expõem facilmente a acusações de selecionismo estrito, ou seja, de não considerarem o papel de outros fatores nos processos evolutivos relacionados à origem de traços, como, por exemplo, a deriva gênica e as restrições. Isso porque atribuem à seleção o poder de determinar por que algo existe. Esse quadro teórico não permite responder sempre "por que algum item biológico existe", já que um item pode existir nos organismos graças a processos não seletivos. Podem ser apontados, por exemplo, casos em que a razão de algo existir ou estar presente em um certo lugar não é sua função, mas uma mera casualidade. Como bem ilustrou Cummins, uma depressão em forma de bacia em uma grande pedra pode ter a função de conter água benta, mas não se pode explicar por que ela está ali apelando para sua função, se soubermos que ela foi produzida pela atividade glacial (cf. Cummins, 1998 [1975]). Conter água benta é muito mais uma disposição da depressão do que algo que explica sua origem.

Ideias expressas por Gould e Vrba (1982) também apontam nesta direção. De acordo com eles, nem todas as características que aumentam o fitness ou a aptidão darwiniana (que eles denominam "aptações") são produtos de seleção natural. Grande parte dos caracteres surge e evolui sem nenhuma função ou tendo outras funções no passado, sendo depois 'cooptados' para um papel diferente. Gould e Vrba sugerem que esses caracteres sejam chamados de "exaptações". Segundo eles, as adaptações têm função, enquanto as exaptações têm efeitos que, ao contrário das funções, são consequências fortuitas de sua presença.

Podemos considerar, por exemplo, os casos em que uma estrutura surge inicialmente em uma linhagem com uma função determinada, mas não necessariamente por seleção. Porém, ao longo da história evolutiva, o traço que tinha a função x pode assumir outra função, digamos, y. Assim, Gould e Vrba destacam, como ponto central de seus argumentos, a importância de casos em que os usos original (x) e atual (y) de um traço divergem. Esses são também casos em que as forças seletivas que constroem e mantêm um traço atuam em direções diferentes, o que mostra a pertinência dos argumentos de Cummins contra a identidade estabelecida pelo neoteleologista entre os alvos da seleção e os alvos da atribuição funcional.

Godfrey-Smith (1998 [1994]) também percebeu a divergência entre os usos original e atual dos traços, o que o levou a formular sua "teoria da origem moderna das funções". Ele se propõe a resolver, com sua teoria, uma falha na abordagem de Wright (1998 [1973]), a de que ela não oferece uma indicação de quão longe temos de voltar no passado para reconstruir a etiologia de um traço atual de um organismo, cuja presença ou existência desejamos explicar. Este filósofo da biologia pretendeu resolver o problema limitando a busca da etiologia à história recente do traço.

Tomemos o exemplo das penas, que surgiram nos dinossauros, antes do aparecimento das aves. De acordo com os modelos atualmente mais aceitos, elas foram inicialmente selecionadas para a função de isolamento térmico em dinossauros ancestrais das aves, que não eram capazes de voar. Entretanto, posteriormente, elas foram cooptadas para o voo, o que terminou por resultar na seleção posterior de mudanças em características das próprias penas, bem como em características esqueléticas e padrões neuromotores específicos das aves. Assim, devemos dizer que as penas foram exaptadas para o voo (cf. Ostrom, 1974, 1979; Prum & Brush, 2003; Sepúlveda & El-Hani, 2008; Chiappe, 2009).

Godfrey-Smith (1998 [1994]) argumenta que, para explicar por que as aves atuais têm penas, devemos recorrer apenas à história recente, na qual a razão para a manutenção desses itens está relacionada a suas contribuições para o voo. Estaria excluída da explicação etiológica a narrativa histórica mais antiga, na qual penas surgem e mantêm-se nas populações por conta de seus efeitos termorregulatórios.

Entretanto, Godfrey-Smith não escapa às críticas de Cummins contra a neoteleologia, porque sua abordagem continua a compartilhar com a de Wright (como, de resto, com todos os neoteleologistas) as importantes falhas apontadas por aquele filósofo. A premissa básica do neoteleologista, de fazer uso da noção de função para explicar por que algo existe ou está presente, também é assumida por Godfrey-Smith.

Outra razão para sustentar a mesma crítica é oferecida por Cummins:

Melhores designs de asa não precisam melhorar o voo, mas simplesmente tornálo mais eficiente, ou tornar o desenvolvimento menos propenso a erro, ou tornar a estrutura menos frágil. Consequentemente, mudanças selecionadas no design da asa que se acumulam para produzir o design atual, que nós buscamos explicar, não precisam estar relacionadas à função da asa. De fato, elas podem até mesmo comprometer o voo no interesse de outros fatores (Cummins, 2002, p. 168).

Apesar de não ser evidente de que modo a expressão "torná-lo mais eficiente", usada por Cummins, diferencia-se de "melhorar o voo", há um sentido no qual sua posição geral é apropriada. O equívoco da neoteleologia forte está em estabelecer uma identidade entre o alvo da seleção e o alvo da atribuição funcional. Como há casos em que o que é selecionado não o é por causa de sua função, ou seja, em que o alvo da seleção não é o mesmo da atribuição funcional, a versão forte da neoteleologia deve, em nosso entendimento, ser de fato rejeitada.

Vejamos a razão apontada por Cummins para a rejeição da neoteleologia forte através de uma análise da função do coração. Para que a abordagem da neoteleologia forte fosse legítima, seria necessário haver, em uma população biológica, uma subpopulação cujos indivíduos possuiriam coração, e outra subpopulação de indivíduos que não possuiriam coração. Dessa perspectiva, a subpopulação com coração seria selecionada. E, se somente é possível atribuir função ao que foi selecionado (para o neoteleologista), então, o alvo da seleção coincidiria, em tal caso, com o alvo da atribuição funcional. Cummins, por sua vez, separa - para nós, corretamente - o alvo da atribuição funcional do alvo da seleção. Para ele, na medida em que a seleção opera sobre as variações na eficiência de estruturas biológicas que devem cumprir certa tarefa, a atribuição funcional deve dirigir-se a todos os indivíduos da população, sem exceção. Além disso, nem todos os indivíduos serão favoravelmente selecionados. Apenas serão selecionados aqueles mais eficientes na obtenção de recursos. Logo, o alvo da seleção é um subconjunto do alvo da atribuição funcional.9 9 Cummins (2002) não define de maneira rigorosa o que entende por "alvo da seleção" e "alvo da atribuição funcional". De acordo com nossa interpretação, parece-nos razoável depreender que o alvo da atribuição funcional indica o conjunto de todos os organismos que possuem os itens aos quais atribuímos função (no nosso exemplo específico, o coração). Já o alvo da seleção seria o conjunto dos organismos que têm maior sucesso na obtenção de recursos para sua sobrevivência e reprodução. De qualquer modo, o ponto importante em nosso argumento diz respeito à necessidade de distinguir, do modo como faz Cummins, e diferentemente do neoteleologista, o que é selecionado do que é funcional.

A neoteleologia fraca, por sua vez, pode sobreviver à objeção acima, na medida em que, de acordo com ela, nem todos os traços preservados ao longo da evolução o foram por causa de suas funções. Mais adiante, retornaremos ao que vemos como uma falha da crítica de Cummins a tal versão da neoteleologia. Por ora, continuemos com as críticas pertinentes de Cummins a essa posição filosófica. Para ele, o neoteleologista pode tentar salvar o poder explanatório das funções a partir do estabelecimento de uma identidade entre ter uma função e ser adaptativo (cf. Cummins, 2002, p. 166 ss.). Porém, isso não resolve o problema essencial da neoteleologia forte. Trata-se de uma tentativa de passar ao largo do problema, mas não exatamente de apresentar uma solução consistente para ele. Como corretamente aponta Cummins, ter uma função não é o que impele a seleção, mas sim funcionar melhor do que outras variantes (cf. Sober, 1993; Caponi, 2002). Por exemplo, a melhor e a pior asa têm a mesma função, mas só a primeira tornar-se-á mais comum na população. Em outros termos, são variações na função de algo que interessam para a adaptatividade, e não a ausência ou presença da função. Somos levados por outra via à mesma conclusão: o alvo da caracterização funcional não é o mesmo da seleção.

Outro aspecto, no qual a neoteleologia falha, é apontado por Cummins. Trata-se do modo como ela constrói uma explicação focada apenas no item da atribuição funcional e perde de vista a "economia orgânica", a visão do sistema do qual o item é parte, e sobre o qual agirá, na maioria dos casos, a seleção natural. De acordo com Cummins:

Se estamos tentando entender por que um dado traço ou estrutura é do modo pelo qual nós o encontramos, não podemos simplesmente focar sobre as variações que afetam quão bem aquele traço ou estrutura desempenha sua função. Precisamos, ao invés disso, olhar para a economia complexa da unidade inteira de evolução. Isso é precisamente o que uma análise funcional da unidade inteira facilita, e é negligenciado quando focamos sobre a função ou as funções do traço em questão (Cummins, 2002, p. 168).

Aqui, o argumento de Cummins está de acordo com uma das críticas dirigidas ao adaptacionismo por Gould e Lewontin (1979). Para estes últimos, o adaptacionismo constrói uma história explicativa dos traços organísmicos e assim perde de vista um aspecto importante do processo evolutivo: o de que é o organismo, e não suas partes, que é selecionado e deixa descendentes na próxima geração (cf. também Rosenberg & McShea, 2008, p. 69 ss.).

4 Por que Cummins não pode rejeitar inteiramente a neoteleologia

A partir dos argumentos expostos em seu artigo de 2002, podemos inferir que Cummins apóia sua rejeição da neoteleologia como um todo na suposição, algo implícita, de que apenas mudanças graduais ocorrem no processo evolutivo ou, ao menos, de que esse é o tipo mais frequente e importante de mudança. Na medida em que não deixa espaço para posições alternativas ao gradualismo estrito, Cummins vê como equivocadas ou bastante limitadas quaisquer posições que demandem o surgimento de novidades funcionais. Em sua crítica à neoteleologia fraca, parece-nos que Cummins se equivoca, ao subestimar a importância de eventos que geram novidades funcionais, como revela a seguinte citação:

A neoteleologia fraca torna-se verdadeira apenas por causa dos raros,

embora importantes

, casos nos quais o alvo da seleção é também o portador de uma função que dá conta da seleção daquele traço. Esses serão casos nos quais uma novidade funcional genuína é introduzida; um traço presente em uma subpopulação que não somente é melhor na execução de alguma função que é também executada em subpopulações competidoras (embora não tão bem), mas um traço que executa uma função que não é executada por nenhum mecanismo correlato em subpopulações competidoras.

Isto inquestionavelmente acontece, e a importância de tais eventos seminais não deve ser subestimada

. Mas estruturas complexas, tais como as asas de pardal e os corações humanos, não foram introduzidas desse modo (Cummins, 2002, p. 165; grifos nossos).

É interessante notar que o próprio Cummins subestima os eventos (ao não considerá-los em seus exemplos) que, de acordo com ele, não devem ter sua importância subestimada. Ele considera apenas exemplos que apóiam seu argumento (olhos e asas) e não dá a devida atenção àqueles que poderiam refutá-lo.

Outro problema associado ao argumento de Cummins é que, apesar de reconhecer que são eventos importantes, ele considera raros os casos em que é válida a identidade entre o alvo da seleção e o alvo da atribuição funcional. Contudo, caso a identidade seja válida em algumas instâncias, se nos apoiarmos na definição do próprio Cummins, então a neoteleologia fraca terá um domínio de aplicação legítimo, já que só precisa valer em alguns casos. Não nos parece suficiente a defesa de Cummins de que eventos que geram novidades funcionais sejam raros. As evidências empíricas disponíveis e o estado atual do conhecimento teórico na biologia evolutiva não permitem construir argumentos tão fortes quanto os que Cummins pretende formular. Se estes eventos não forem tão raros quanto Cummins supõe que o sejam, então, eles nos darão um espaço legítimo para aplicar a abordagem neoteleológica, em sua versão fraca.

Cummins afirma que seus argumentos "não são meramente uma defesa do gradualismo" (Cummins, 2002, p. 166). Porém, em seguida, afirma:

Sem dúvida, há casos nos quais uma subpopulação adquire alguma estrutura ou comportamento que o restante da população não possui, um análogo biológico de adicionar um regulador a uma máquina a vapor, ou um escapo a relógios. Mas tais casos devem ser muito raros. [...] Se eles exaurem o domínio apropriado da neoteleologia, então ela é insignificante, na melhor das hipóteses. Ela vem a ser verdadeira como um tipo de acidente, uma coincidência no tipo raro de caso no qual a vantagem seletiva coincide com a introdução de algo com uma função nova (naquele contexto) (Cummins, 2002, p. 166).

Além disso, em nota vinculada à passagem, Cummins afirma que uma

mutação, por exemplo, é muito mais provável de mudar o tamanho, a densidade ou o ângulo de inserção de um osso, do que adicionar um novo osso. O osso alterado terá tipicamente a mesma função que seu competidor (p. 166).

A partir desses argumentos, Cummins infere, então, que a neoteleologia como um todo - ou seja, todas as abordagens etiológicas selecionistas - estão equivocadas. Essa crítica só faz sentido, contudo, se o gradualismo for, de fato, a única posição aceitável na biologia evolutiva e, logo, se forem realmente raras mudanças maiores, nas quais surjam em uma população novas estruturas ou comportamentos que constituem genuínas novidades funcionais. Mas pode-se argumentar de modo consistente que esse não é o caso, como fazem Gould e Eldredge (1977). Cummins não dá suficiente atenção ao papel de mudanças evolutivas que ocorrem a taxas mais rápidas, às vezes denominadas "saltos evolutivos" (embora consideremos esta expressão inadequada). Vejamos, a seguir, como uma concepção que reconhece a existência de possíveis descontinuidades em um processo evolutivo gradual poderia garantir alguma legitimidade à neoteleologia fraca.

Contudo, antes de apresentar nosso argumento central contra Cummins, é necessário tratar, ainda que brevemente, do que podemos e do que não podemos explicar apelando à neoteleologia fraca. Tal versão da neoteleologia não pode apelar à função para explicar por que um traço surgiu, na medida em que, como corretamente apontou Cummins, traços não surgem por causa de suas funções, mas por conta de suas histórias desenvolvimentais (cf. Cummins, 2002, p. 162; para uma citação literal de Cummins, ver seção 3 do presente artigo).10 10 Decerto, ao tratarmos de desenvolvimento, o argumento aqui apresentado está sendo formulado mediante a consideração de organismos multicelulares. Isso porque a atividade exercida pelo item biológico que pode contar como sua função deve ser uma atividade que o item executa ex post facto, ou seja, após o desenvolvimento ter ocorrido. Desse modo, a função não pode explicar em caso algum a origem de um traço biológico, que a precede.

Entretanto, contra Cummins, podemos apelar à função - de uma perspectiva neoteleológica - para explicar o aumento da frequência de um traço em uma população. Afinal, o exercício da função do traço, nesse caso, precede ou é simultâneo ao aumento de sua frequência na população. O apelo à seleção natural como um processo de base não seria, então, espúrio, ao contrário do que afirma Cummins. Em outros termos, a seleção natural ofereceria um mecanismo consistente para explicar por que traços funcionais tornam-se mais comuns na população, ainda que seja um equívoco apelar a ela para explicar a origem de traços funcionais. A seguir, buscaremos mostrar como a neoteleologia fraca pode preservar sua legitimidade como uma abordagem para explicar o aumento da frequência de ao menos certo conjunto de traços em uma população.

4.1 Salvando a neoteleologia fraca

Para examinar como a neoteleologia fraca pode ser salva das críticas de Cummins, precisamos tratar da relação entre continuidade e descontinuidade no processo evolutivo. Para tanto, consideraremos, de início, como a evolução por seleção natural envolve necessariamente uma relação entre entidades que realizam replicação, produzindo cópias de si mesmas que são transmitidas para gerações futuras de uma população, e entidades que interagem, como um todo, com um ambiente exterior a elas - que pode ser, em parte, construído por elas mesmas ou por outros organismos, como proposto na ideia de construção de nicho (cf. Lewontin, 2002; Odling-Smee, et al., 2003). Tal relação pode ser compreendida em termos da formulação do processo darwinista por Hull (1981, 1988, 2001) de modo a torná-lo aplicável a qualquer forma possível de vida - e mesmo a qualquer estrutura, além do domínio biológico - que possa ser entendida como adaptada ou passível de aumento de sua adaptabilidade (cf. Abrantes & El-Hani, no prelo). A estratégia de Hull consiste em tratar entidades envolvidas no processo de evolução biológica - genes, organismos etc. - em termos mais abstratos, definindo-as com base em suas funções ou papéis causais. Em particular, consideraremos aqui dois dos conceitos trabalhados por Hull, os de "replicadores" e "interagentes". O uso de conceitos funcionais torna possível a realização múltipla dos papéis causais em questão por diferentes entidades em diferentes sistemas ou, até mesmo, em diferentes níveis hierárquicos de um mesmo sistema.

O conceito de replicador é devido a Dawkins (1989 [1976]). Aqui, entendemos um replicador como qualquer estrutura que, no ambiente correto, pode agir como molde para sua própria cópia (cf. Sterelny, 2001). No conhecimento biológico atual, os replicadores não se restringem aos genes; ciclos autocatalíticos encontrados no metabolismo, membranas celulares ou príons, por exemplo, também podem ser tratados como replicadores (cf. Hull, 2001; Gould, 2002; Jablonka, 2002; Jablonka & Lamb, 2005). A evolução por seleção natural envolve tanto replicadores quanto interagentes, que são entidades que têm sucesso diferencial (particularmente, sucesso reprodutivo), dependendo de como interagem com seu ambiente, o que, por sua vez, leva à perpetuação diferencial de cópias dos replicadores. Como escreve Hull, introduzindo também uma terceira categoria, as linhagens,

um processo é um processo de seleção devido à interrelação entre replicação e interação. A estrutura dos replicadores é perpetuada diferencialmente por causa do sucesso relativo dos interagentes dos quais os replicadores são parte. Para realizar as funções que cumprem, tanto replicadores quanto interagentes devem ser indivíduos discretos que vêm a existir e deixam de existir. Nesse processo, eles produzem linhagens que mudam indefinidamente ao longo do tempo (Hull, 1981, p. 41).

Os interagentes incluem os organismos individuais, mas não se limitam a eles (cf. Hull, 2001; Gould, 2002). Gould argumenta que o mundo vivo contém indivíduos que atuam como interagentes em níveis superiores ao organísmico (2002, p. 71, 597-613). Para ele, os organismos não são as únicas entidades biológicas que mostram as propriedades necessárias para o que ele chama de "individualidade darwiniana". Essas propriedades incluem tanto critérios mais gerais, como pontos de nascimento e morte definidos, estabilidade suficiente durante o tempo de vida, a natureza de entidades verdadeiras, com contornos, quanto critérios mais especificamente relacionados ao pensamento evolutivo, como a produção de progênie e a herança de características. Nesses termos, entidades em vários níveis de organização biológica podem ser entendidas como interagentes, incluindo genes (em uma formulação conceitual distinta daquela em que aparecem como replicadores), linhagens celulares, organismos, demes, talvez até mesmo espécies e clados.11 11 Não se deve perder de vista, contudo, que a seleção de espécies e clados ainda é objeto de controvérsia (cf. Sober & Wilson, 1998; Okasha, 2003; Sterelny, 2003; Meyer & El-Hani, 2005). Uma vez compreendidas como interagentes, isso implica que essas entidades podem ser alvos de seleção (cf. Gould, 2002, p. 72), ou seja, nesses termos, a seleção pode ser tratada como um fenômeno hierárquico (cf. Sober & Wilson, 1998).

É importante esclarecer a diferença entre tratar genes como replicadores e como interagentes. Genes são interagentes em situações nas quais eles são o alvo da seleção, ou seja, nas quais eles competem entre si por recursos de uma maneira direta, e não através da mediação de interagentes em níveis hierárquicos acima do gênico. Quando a relação com o ambiente é mediada por interagentes acima do nível gênico, a seleção atua sobre alvos que não são genes. Decerto, isso conduz a um argumento contrário ao selecionismo gênico, como vemos em Gould (2002). Ele toma como base a ideia de que os replicadores no nível genético são as unidades básicas de "registro" (bookkeeping), e não agentes causais. A causalidade, no processo evolutivo, tem fundamentalmente lugar no nível da interação dos sistemas biológicos com o ambiente. Ou seja, os alvos da seleção são interagentes, não replicadores (Gould, 2002, p. 622). A confusão entre registro e causalidade é considerada por Gould o erro lógico fundamental do selecionismo gênico:

Os proponentes do selecionismo gênico confundiram o registro com a causalidade. [...] mudanças registradas no nível genético de fato desempenham um papel fundamental na caracterização da evolução e os registros dessas mudanças têm, com efeito, um papel importante no processo evolutivo. Mas o erro permanece: registro não é causalidade; a seleção natural é um processo causal e as unidades ou os agentes da seleção devem ser definidos como os atores manifestos no mecanismo, não somente como itens preferenciais para a tabulação dos resultados (Gould, 2002, p. 632).

Para fins de nosso argumento, enfocaremos o nível dos organismos individuais. Uma vez que interagentes são os alvos da seleção, são as suas características - no caso, dos organismos - que mediam o sucesso na obtenção de recursos - com a ressalva de que não devemos pensar sobre as características separadamente do organismo como um todo, conforme argumentado acima.

As relações entre os replicadores, os interagentes e os regimes seletivos ao longo do processo evolutivo podem ser tratadas com proveito em termos do estruturalismo hierárquico de Salthe (1985), no qual o autor desenvolve um modo de representar entidades naturais, o "sistema triádico básico", que se mostra, em nossa visão, coerente e heuristicamente poderoso, permitindo modelar regularidades e princípios de restrição na operação dos fenômenos que têm lugar em sistemas complexos (cf. Queiroz & El-Hani, 2006a, 2006b; El-Hani et al., 2006, 2009). De acordo com o sistema triádico básico, para descrever um processo no contexto de uma hierarquia, é preciso considerar

(1) o processo no nível em que o observamos, ou, ainda melhor, no qual tem inteligibilidade a questão de pesquisa que pretendemos perseguir ("nível focal"); (2) as relações entre as partes, em algum nível inferior na hierarquia, que engendram o processo no nível focal; e (3) a imbricação (embeddedness) desse processo com algum nível superior que restringe a sua dinâmica.12 12 A escolha desses três níveis depende das questões de pesquisa que estão sendo perseguidas e é, sem dúvida, influenciada pelo contexto teórico e metodológico em que a investigação é realizada e, assim, pelas práticas epistêmicas de uma determinada comunidade de pesquisadores. Não se trata meramente de descrever "níveis da realidade", mas, antes, de escolher maneiras de modelar a natureza de uma perspectiva heuristicamente orientada e alinhada com tomadas de posição pragmáticas. Como comentam Allen e Hoekstra (1992, p. 20), níveis de organização não são atributos da natureza per se, mas emergem da interação entre as decisões do observador (mediadas pelas práticas epistêmicas da comunidade científica à qual pertence) e a parte do universo que está sendo observada.

Na modelagem hierárquica de fenômenos, a influência dos níveis inferior e superior sobre a dinâmica dos processos no nível focal tem um papel central. No nível focal, temos processos ou padrões regulares, que pretendemos explicar. Como emergem, de acordo com essa abordagem, tais regularidades? Primeiro, a partir de um conjunto de "possibilidades" ou "condições iniciadoras" estabelecidas pelo nível inferior. Os padrões e processos focais devem estar entre aqueles que são tornados possíveis pelos componentes no nível inferior. Fica claro, então, que, assim como o nível inferior estabelece um espectro de possibilidades para os padrões e processos no nível focal, ele traz, ao mesmo tempo, restrições, que têm papel explicativo em relação ao que emerge no último nível. Afinal, de certo conjunto de componentes, não pode emergir qualquer dinâmica, mas apenas um conjunto restrito de dinâmicas possíveis.

No entanto, restrições de nível superior também têm um papel explicativo quanto à dinâmica no nível focal, uma vez que esse nível estabelece condições de contorno para os padrões e processos focais, desempenhando o papel de um ambiente seletivo que restringe ainda mais as possibilidades estabelecidas pelo nível inferior, as quais virão a ser efetivamente realizadas. A ideia, em suma, é a de que os padrões e os processos emergentes no nível focal devem ser explicados como produtos de uma interação de processos que têm lugar em níveis superiores e inferiores, de modo que a regularidade dos padrões e dos processos focais resulta do jogo interativo de restrições descrito acima. Como explica Salthe, os padrões e os processos no nível focal devem estar "entre as possibilidades engendradas por permutações de possíveis condições iniciadoras estabelecidas no [...] nível inferior", mas "o que realmente emergirá será guiado por condições de contorno impostas pelo [...] nível superior" (1985, p. 101).13 13 O conceito de "condições de contorno" foi introduzido por Polanyi (1968) no contexto da biologia. Van Gulick (1993) formula essa ideia em termos de uma ativação seletiva de processos causais de nível inferior por princípios gerais que regem processos de nível superior. Trata-se de restrições que resultam de princípios organizacionais de nível superior que têm um efeito determinativo descendente - top-down - sobre os processos que envolvem entidades num nível inferior (cf. Emmeche et al., 2000; El-Hani & Queiroz, 2005; Vieira & El-Hani, 2008).

Para aplicar este modelo ao caso da evolução biológica, manteremos os organismos no nível focal e consideraremos replicadores no nível genético, que estabelecem condições iniciadoras ou possibilidades para a ocorrência de processos no nível dos organismos, que podem ter ou não consequências para sua capacidade de obter recursos em sua relação com o regime seletivo, no nível superior. Nos três níveis - genético, organísmico e ambiental -, temos a ocorrência de regularidades ou padrões, os quais podem ser explicados em termos do sistema triádico básico. Mas não podemos perder de vista que o nível focal assumido é o organismo, de modo que se trata de entender os processos que terão lugar no organismo, em particular, as mudanças de frequência nas características dos organismos geração após geração, ao longo de uma linhagem. Tais mudanças dependem em parte - e, portanto, são parcialmente explicadas por - das combinações de possibilidades engendradas pelo material genético dos organismos. Temos, então, um primeiro componente explicativo, ascendente (bottom-up), que estabelece - e, ao mesmo tempo, restringe - as possibilidades de desenvolvimento e evolução de características nos organismos. Há também um componente explicativo descendente (top-down), que se manifesta na regulação da expressão gênica por processos que têm lugar em níveis epigenéticos e ambientais, ao longo do desenvolvimento do organismo. A interação desses processos resulta em certo conjunto - restrito - de possíveis características no nível dos organismos, que serão então submetidas a um regime seletivo no ambiente em que os mesmos buscam sobreviver e reproduzir-se. O efeito seletivo desse nível macro constitui, nos termos do sistema triádico básico, uma restrição descendente sobre as mudanças nas características dos organismos no nível focal, constituindo parte fundamental da explicação de tais mudanças, em conformidade com a teoria da seleção natural. Por fim, há também um componente explicativo ascendente, dos organismos para o ambiente, na medida em que os organismos não sobrevivem e reproduzem-se em um ambiente dado, mas em um ambiente sobre o qual eles têm, de acordo com a ideia de construção de nicho (cf. Odling-Smee et al., 2003), uma influência construtiva.

Uma compreensão adequada da evolução biológica depende, em nosso entendimento, de uma modelagem desses três níveis em interação, parecendo-nos, por conseguinte, que a ênfase sobre a continuidade ou a descontinuidade do processo evolutivo, como se fossem dois extremos mutuamente excludentes, resulta de atenção privilegiada a algum desses níveis. Não se trata de enfatizar nem um gradualismo estrito nem um saltacionismo. Ao pensar na evolução, precisamos considerar, por exemplo, tanto o registro de mudanças no nível genético, que estabelece condições iniciadoras ou possibilidades a cada geração de organismos, quanto o que acontece no nível da interação dos organismos com o ambiente, que estabelece o regime seletivo sob o qual a evolução haverá de ter lugar.

Consideremos, então, o fenômeno que William Bateson chamou de "homeose", a origem de um órgão a partir de outro por uma transformação discreta e completa (cf. Bateson, 1992 [1894]). Mesmo no caso de tal transformação discreta, deverá haver uma continuidade ao nível gênico, dada a natureza gradual das mudanças de frequência de variantes alternativas de sequências de dna, sejam codificantes, sejam regulatórias. No entanto, no nível morfológico, temos algo que se assemelha a uma descontinuidade, dada a natureza radical da mudança morfológica, que pode levar a alterações muito significativas na interação do organismo com o ambiente e, por conseguinte, nos processos de seleção aos quais ele está sujeito. Sumariando, podemos falar ao mesmo tempo em continuidade no nível gênico, nas unidades de registro, nos replicadores, e descontinuidade no nível morfológico, nos interagentes, que são os alvos da seleção. Postular a necessidade de optar pela descrição de um processo dessa natureza como contínuo ou discreto corresponde, pois, a comprometer-se com uma falsa dicotomia.

Uma vez que evitemos a dicotomia contínuo-descontínuo, torna-se mais plausível considerar que as novidades funcionais surgem com alguma frequência no processo evolutivo e, por conseguinte, pode-se preservar um papel explicativo para a neoteleologia fraca. Note-se, inclusive, que o que permite detectar a ocorrência de uma novidade nesse caso é uma nova função, e não apenas uma nova estrutura, o que permite contornar o problema potencial de que esta última deve surgir, naturalmente, a partir da modificação de uma estrutura preexistente. Assim, mesmo quando a mudança é tão radical que podemos qualificá-la de homeótica, haverá algum grau de continuidade estrutural que poderemos discernir, mas essa continuidade estrutural não se reflete necessariamente em uma continuidade funcional. No que tange à função, podemos ter uma novidade qualitativa; e é isso que pode levar-nos a pensar em situações nas quais teremos subpopulações em que uma função z é executada por um item biológico x e outras em que não se observa tal função, tornando-se possível, então, explicar o aumento de frequência do item x em uma linhagem com base em sua função.

Para ilustrar esses argumentos com um exemplo concreto, podemos considerar a evolução das inovações morfológicas e fisiológicas que tornaram possível a conquista do ambiente terrestre pelos artrópodes, um dos primeiros grupos de metazoários a viver em tal ambiente (cf. Carroll; Grenier & Weatherbee, 2005; Carroll, 2006). Neste ponto, estamos considerando, portanto, o nível focal por nós escolhido acima, quando tratamos do processo evolutivo à luz do sistema triádico básico de Salthe.

A evolução de novas estruturas levou a radiações adaptativas de linhagens específicas de artrópodes, como podemos ver no caso das asas de insetos, uma das principais inovações relacionadas ao sucesso evolutivo do grupo, que comporta mais de 75% de todas as espécies conhecidas de metazoários. As asas dos insetos são uma das estruturas dos artrópodes que evoluíram a partir de modificações de um membro birramado ancestral, no qual dois ramos principais bifurcam-se a partir de uma base comum, sendo o ramo interno uma pata locomotora articulada, enquanto o ramo externo ou dorsal apresenta uma variedade de funções. Em artrópodes aquáticos, o ramo dorsal contém as brânquias, que tornam possível obter gás oxigênio na água. Na maioria dos artrópodes terrestres, contudo, os membros locomotores não são ramificados, o que já levou, inclusive, à proposição de um grupo polifilético de artrópodes unirramados, que hoje sabemos não possuir um único ancestral comum, incluindo insetos, centípedes, milípedes e onicóforos.14 14 Os onicóforos não são, hoje, sequer classificados entre os artrópodes. Os membros unirramados de artrópodes terrestres constituem características derivadas, decorrentes de redução do membro birramado original, do qual restou somente o ramo interno. Mas o que aconteceu, então, com o membro externo, por exemplo, no clado dos insetos?

As evidências atualmente disponíveis apóiam a hipótese de que o ramo branquial de um ancestral aquático deu origem às asas dos insetos. As asas destes animais evoluíram a partir de estruturas membranosas que apareceram em cada segmento do tronco de larvas aquáticas de insetos, no início do Carbonífero. Essas estruturas cumpriam, possivelmente, uma função na respiração ou osmorregulação das larvas. No início da evolução dos insetos, as asas tornaram-se restritas ao tórax dos adultos. As vantagens iniciais propiciadas por essas estruturas poderiam estar relacionadas, por exemplo, ao fato de auxiliarem os insetos a deslizarem sobre a água, com a capacidade de sustentar o voo tendo evoluído apenas posteriormente. Em ambos os casos, as variantes de insetos que exibissem tais características poderiam escapar de predadores e capturar presas com maior eficiência, ou dispersar com maior facilidade. As vantagens trazidas por tais características catalisaram, então, a radiação das linhagens de insetos.

Evidências relativamente recentes, oriundas de estudos sobre a regulação gênica do desenvolvimento, apóiam a hipótese da origem morfológica das asas a partir do ramo dorsal do membro birramado. Nesse cenário evolutivo, a fusão da base dos dois ramos da estrutura diretamente com a parede do corpo teria levado ao deslocamento, ao longo da evolução, dos ramos que viriam a constituir as asas para longe dos ramos internos, que se mantiveram como pernas. Uma das previsões do modelo é que deve haver similaridades na regulação do desenvolvimento das asas dos insetos e do ramo branquial dos membros birramados de crustáceos. Essa previsão foi apoiada por evidências mostrando que duas proteínas necessárias para a formação de asas nos insetos, Apterous e Nubbin, têm homólogos em crustáceos que se expressam no lóbulo respiratório do ramo externo dos membros desses animais (cf. Averof & Cohen, 1997). A melhor maneira de explicar esse resultado consiste em considerar que o lóbulo respiratório de crustáceos e as asas dos insetos compartilham uma história comum, ou seja, são estruturas homólogas, descendentes de uma mesma estrutura em um ancestral comum. A respeito dessa mudança evolutiva, Carroll comenta:

Mas se, de fato, as asas surgiram a partir das brânquias de [um ancestral comum], isso quer dizer que algum lagostim ou camarão simplesmente começou a andar pela terra ou a voar? Não, de modo algum. Houve muitos passos evolutivos na transição entre animais que possuíam apêndices respiratórios e o surgimento dos insetos alados (Carroll, 2006, p. 162).

O trecho acima ilustra a falsa tensão entre continuidade e descontinuidade, e as dificuldades que dela resultam. De fato, não há qualquer salto mágico de artrópodes aquáticos a insetos alados, sendo necessário compreender processos graduais de transformação que tiveram lugar na história da linhagem que deu origem aos insetos atuais. Mas não há, em tal caso, uma transformação homeótica em jogo, na qual um órgão - a asa - se origina de outro - o lóbulo respiratório - por uma transformação discreta e completa? Quando a asa surge, não temos uma genuína novidade funcional, ainda que a asa resulte da modificação de uma estrutura preexistente? E isso não corresponde a um processo distinto de modificação gradual de um órgão em outro? Parece-nos que a melhor maneira de entender esse processo consiste em destacar que ele envolve tanto mudanças contínuas, graduais, como aquelas que tiveram lugar no nível do genoma, quanto mudanças de maior magnitude no nível da morfologia, as quais resultam em estruturas com novas funções.

A transição de lóbulo respiratório a asas de insetos depende, certamente, de mudanças na regulação do desenvolvimento do membro externo do apêndice birramado ancestral. Sem entrar em detalhes, basta considerarmos que a evolução da regulação gênica pode explicar as diferenças morfológicas e funcionais entre os lóbulos respiratórios de crustáceos e as asas dos insetos. Essa evolução decorre, tipicamente, da adição e deleção de sítios reconhecidos por proteínas regulatórias, que interagem com regiões do dna, as quais regulam a expressão de genes codificadores de proteínas com papéis importantes no desenvolvimento. Assim, no nível genético, devemos ter uma história contínua de mudanças em sequências de nucleotídeos, na qual alterações de nucleotídeos resultam no surgimento ou na eliminação de sítios reconhecidos por proteínas regulatórias. Nesse caso, estamos tratando do nível inferior na modelagem em três níveis que esboçamos acima, no qual condições de possibilidade para diferentes morfologias são engendradas no genoma.

Mas, retornando ao nível focal de nossa análise, à morfologia dos organismos, o que podemos observar? As asas dos adultos terrestres surgiram, mais provavelmente, em animais que também tinham brânquias em seus estágios larvais, como é o caso nos grupos mais antigos de insetos voadores, que ainda têm representantes atuais, como as efeméridas e as libélulas, que se desenvolvem a partir de ninfas aquáticas com brânquias no abdômen. Ao longo de seu desenvolvimento, esses animais possuem estágios distintos, um deles com brânquias funcionais, que tornam possível a vida em ambiente aquático, outro com asas, que permitem a exploração dos recursos disponíveis no ambiente aéreo. Mas o mais importante, para o nosso argumento, é que, no próprio desenvolvimento de tais organismos, ocorre uma mudança homeótica, na qual brânquias dão origem a asas e, decerto, quando as asas completam sua formação, temos uma estrutura que cumpre uma nova função, uma novidade funcional.15 15 A quantidade e diversidade de inovações morfológicas que resultaram da evolução do ramo dorsal dos membros birramados de artrópodes é impressionante (cf. Carroll et al., 2005; Carroll, 2006). Essa estrutura foi repetidamente modificada ao longo da história desse grupo de organismos, dando origem a estruturas com morfologias e funções altamente divergentes - asas nos insetos, brânquias folhosas nos límulos, pulmões folhosos, traquéias e fiandeiras nas aranhas etc. Em todos esses casos, as modificações do ramo dorsal ancestral resultam da evolução da regulação de processos de desenvolvimento. Temos aqui uma narrativa histórica que mostra como o surgimento de genuínas novidades funcionais pode ser comum na evolução dos organismos.

No caso de tais alterações homeóticas, podemos construir um argumento a favor de algum valor explicativo para a neoteleologia fraca, ainda que seja para dar conta de apenas parte do explanandum tipicamente assumido pelos neoteleologistas (ou seja, apenas o aumento da frequência de um traço). As asas em insetos adultos constituem uma novidade funcional, de modo que o aumento da frequência das asas nessa linhagem foi decorrente da seleção de uma subpopulação de insetos alados, em comparação com outra subpopulação de insetos sem asas, em uma condição ambiental que corresponde ao nível superior em nossa modelagem de três níveis esboçada acima. É claro que não podemos apelar à função das asas para explicar sua origem. As asas são decorrentes de mudanças que ocorreram no desenvolvimento do ramo externo do apêndice birramado ancestral, não da seleção natural. Entretanto, podemos apelar à função de modo legítimo para explicar por que os insetos com asas aumentaram seu número, em determinadas linhagens de insetos, geração após geração.

Como vimos anteriormente, a neoteleologia forte sustenta a tese de que todos os traços surgiram ou aumentaram sua frequência por causa de suas funções. Na medida em que identifica equivocadamente o alvo da atribuição funcional ao alvo da seleção, a neoteleologia forte deve ser completamente rejeitada, como propôs Cummins. Por sua vez, o exame dos processos evolutivos feito acima conduziu-nos à conclusão de que a neoteleologia fraca resiste a suas críticas, ainda que não inteiramente. Ela não pode ser usada para explicar a origem dos traços, porém, podemos lançar mão desta versão da neoteleologia, contra Cummins, para explicar um fenômeno muito relevante, o aumento da frequência de traços que constituem novidades funcionais ao longo da história de uma linhagem. Ademais, temos razões para acreditar, com base em evidências e argumentos oriundos da biologia evolutiva do desenvolvimento, que eventos nos quais novidades funcionais surgem por meio de alterações homeóticas, como as discutidas acima, são importantes e não são tão raros quanto supõe Cummins.

5 A análise funcional de Cummins

Passamos agora a examinar o modelo proposto por Cummins, a análise funcional.16 16 A análise funcional de Cummins tem recebido diferentes nomes na literatura: "análise do papel intrassistêmico" (Johansson, 2006, p. 35), "teoria do papel causal" (Wouters, 1999, p. 19), "abordagem do papel causal" (Rosenberg & McShea, 2008, p. 90) e "abordagem sistêmica" (Wouters, 2005, p. 125). Aqui, utilizamos simplesmente a expressão do próprio Cummins, "análise funcional", compreendendo, ao mesmo tempo, que ela se enquadra em uma visão sistêmica sobre os fenômenos do mundo natural. O modelo foi apresentado por ele em artigo de 1975 e nos dois primeiros capítulos de seu livro de 1983. Em primeiro lugar, devemos notar que - contra Wright - Cummins considera que as explicações funcionais podem ser realizadas, na biologia, de maneira independente de considerações evolutivas: "uma capacidade complexa de um organismo [...] pode ser explicada mediante apelo a uma análise funcional, independentemente de como essa capacidade está relacionada à capacidade do organismo de manter a espécie" (1998 [1975], p. 182). Ele reitera o mesmo ponto, ao afirmar que a "análise funcional é anterior a, e independente de, avaliações de adaptatividade" (Cummins, 2002, p. 167) ou, ainda, que, "se algo tem ou não uma função, e qual é a função que acontece de ser, é inteiramente independente de se ela foi selecionada e aumentou de frequência" (p. 166).

Para Cummins, como já apontamos acima, as abordagens sobre as funções que antecederam a sua própria teriam sido mal orientadas, devido à insistência em considerar a função como algo que explica a existência ou presença do item orgânico sob consideração. Em suas palavras, tal apelo à noção de função "é um ato de desespero nascido do pensamento de que não há outro uso explicativo para a caracterização funcional na ciência" (Cummins,1998 [1975], p. 175).

Assim, ele busca abordar o assunto de uma perspectiva diferente das abordagens etiológicas selecionistas, a saber, em termos de disposições e capacidades complexas, enquadrando sua teoria em uma perspectiva sistêmica do mundo. Por exemplo, para Cummins (1998 [1975]), se algo funciona como uma bomba em um sistema s, ou se a função de algo em um sistema s é bombear, então ele deve ser capaz de bombear em s. Desse modo, enunciados atribuidores de função implicam enunciados disposicionais; ou seja, atribuir uma função a algo é, ao menos em parte, atribuir-lhe uma disposição. Dessa perspectiva, atribuir uma disposição d a um objeto a é afirmar que o comportamento de a está sujeito a certa regularidade legiforme. Dizer que a tem d é dizer que a manifestaria d (por exemplo, dissolver-se, dilatar-se, elevar-se), caso ocorressem as condições suficientes para tal. Assim, a comporta-se de modo a apresentar d, sempre que colocado sob certas condições. Associada à disposição, há uma regularidade disposicional legiforme (law-like dispositional regularity). Essas regularidades são observadas no comportamento de um tipo de objeto em virtude de alguns fatos especiais a seu respeito. Por exemplo, nem tudo é solúvel em água. As coisas que o são, porém, comportam-se de uma determinada maneira em virtude de uma característica especial, típica das coisas solúveis em água. Para Cummins, o que deve ser explicado é exatamente essa regularidade disposicional. Logo, explicar uma regularidade disposicional é explicar como manifestações da disposição são causadas, dadas as condições necessárias precipitantes. Cummins descreve duas estratégias para realizar essa explicação:

(1) a estratégia da instanciação17 17 "Estratégia da instanciação" é a expressão usada por Cummins na edição que consultamos, virtualmente o mesmo texto do artigo original, publicado no The Journal of Philosophy. Contudo, no texto original, ele usa a expressão "estratégia de subsunção", a qual é bastante apropriada conforme veremos a seguir.

e

(2) a estratégia analítica.

A estratégia da instanciação consiste na subsunção de um caso particular, no qual um objeto manifesta certa disposição, a uma regularidade disposicional legiforme. Por exemplo, podemos explicar dessa forma a disposição de uma barra de ferro de dilatarse mediante o aumento da temperatura. Nesse caso, a explicação é obtida por meio da aplicação de uma regularidade legiforme relativa à dilatação (digamos, a lei da dilatação linear dos corpos), associada a informações sobre o objeto particular em questão, como seu coeficiente de dilatação linear, a variação de temperatura a que o objeto foi submetido, a variação de seu comprimento etc. Em outras palavras, a regularidade legiforme subsume o caso particular em questão e, em associação com as condições iniciais particulares, explica a manifestação da disposição no objeto.18 18 Esta formulação corresponde ao modelo dedutivo-nomológico da explicação científica de Hempel e Oppenheim (1948) e, assim, está sujeita às mesmas críticas e aos mesmos limites (cf. Salmon, 1990).

Não é difícil perceber que essa estratégia aplica-se bem a campos da ciência, tais como a física e a química. Entretanto, sua aplicação à biologia não é algo trivial. Ela dificilmente poderia ser aplicada a todos os campos dessa ciência com a mesma força. Na biologia, há mais espaço para a aplicação dessa estratégia nas áreas mais próximas à física e à química, no caso, na biologia funcional, com a ressalva de que as explicações em biologia funcional também demandam, frequentemente, a estratégia analítica. Contudo, em certas áreas da biologia funcional, como a biofísica e a bioquímica, a estratégia da instanciação encontra um domínio de aplicação apropriado. Na biologia evolutiva, por sua vez, explicações que recorrem à estratégia de instanciação, mesmo que não careçam de justificação lógica, não parecem satisfazer intelectualmente os cientistas envolvidos. A estratégia parece artificial quando aplicada a esse campo da biologia, porque normalmente a explicação evolutiva corresponde, em boa medida, à narrativa de uma história particular.

A estratégia analítica procede de um modo diferente da estratégia anterior. Em vez de derivar uma regularidade disposicional que especifica d (em a) a partir dos fatos da instanciação de d (em a), no âmbito da estratégia analítica, procedemos a uma análise da disposição de d presente em a em uma série de disposições d1, d2, ..., dn apresentadas por componentes de a, de modo que a manifestação dos di resulta na, ou leva à, manifestação de d. Cummins pretende que as duas estratégias por ele propostas juntem-se em uma abordagem unificada, caso as disposições analisadoras (d1, d2, ..., d n) possam ser explicadas por meio da estratégia de instanciação.

Após a apresentação da estratégia analítica, Cummins propõe uma mudança de terminologia: "quando a estratégia analítica está em perspectiva, se está apto a falar de capacidades (ou habilidades) mais do que de disposições" (Cummins, 1998 [1975], p. 187). Isso porque, de acordo com ele, frequentemente explicamos uma capacidade por meio de sua análise. Ele oferece como exemplo uma linha de montagem, que ilustra bem como a estratégia analítica pode capturar um uso adequado do termo "função" em diversas ciências. A produção em uma linha de montagem é dividida em várias tarefas distintas. A capacidade da linha de produzir o produto deve-se à capacidade de cada ponto ou componente da linha de realizar certas tarefas, as quais, quando realizadas de modo organizado, o resultado é o produto final. Assim, para Cummins, explicamos a capacidade da linha de montagem de produzir o produto apelando às capacidades dos componentes da linha de realizar suas tarefas específicas. O exercício, por certo componente, de sua capacidade específica é sua função na linha. Ou seja, a função de um componente da linha, para Cummins, é o que quer seja que ele faça ao qual fazemos apelo, para explicar a capacidade da linha como um todo.

A proposta de Cummins pode ser melhor compreendida se for colocada em contraste com a visão neoteleológica. Em primeiro lugar, devemos notar, conforme aponta Cummins, que

enquanto a teleologia busca responder à questão por-que-ele-existe [

why-is-itthere

] respondendo à questão anterior o-que-ele-é-para [

what-is-it-for

], a análise funcional não se dirige de modo algum à questão por-que-ele-existe, mas à questão como-ele-funciona [

how-does-it-work

] (Cummins, 2002, p. 158).

19 19 Esta avaliação de Cummins reforça o argumento em prol do pluralismo de modelos sobre funções que apresentamos na seção 1 deste artigo.

Em segundo lugar, diferentemente do que ocorre na estratégia de Wright (como, de resto, em todos os neoteleologistas), na qual os alvos da atribuição funcional e da explicação funcional são os mesmos - ou seja, atribuir função a algo é explicá-lo funcionalmente -, em Cummins, a explicação e a atribuição funcional não coincidem, porque não se dirigem aos mesmos alvos. Para este autor, enquanto atribuímos função a um componente do sistema, o alvo da explicação é uma capacidade desse sistema continente.

Isso nos leva a perceber a mudança de foco que propõe Cummins em sua análise funcional, com relação às abordagens etiológicas de função. Para ele, o que deve ser explicado - o explanandum - não é a existência ou presença de certo item (como propõe Wright), mas sim uma capacidade (que desejamos compreender) de um sistema complexo. Em suma, a função é algo de que fazemos uso para explicar a capacidade de um sistema continente, não para explicar por que algum item existe em tal sistema.20 20 Logo, mesmo os efeitos das partes do sistema que, na visão de Wright, seriam acidentes podem ser usados na análise funcional de Cummins para explicar a realização de uma capacidade complexa do sistema do qual o componente é parte. Tudo o que é exigido, da perspectiva analítica de Cummins, é que a capacidade da parte contribua para a realização da capacidade sistêmica, seja ela função ou acidente, nos termos de Wright ou de outros autores neoteleologistas.

Pode-se argumentar que, embora certamente distinta da neoteleologia, que busca explicar por que algum item está presente em um dado organismo, a análise funcional preserva, ainda assim, um caráter teleológico. Isso pode ser denunciado por formulações como a de que explicamos funcionalmente quando identificamos qual é a contribuição que uma parte de um sistema faz para certa capacidade de um sistema continente. Desse modo, podemos ver a análise funcional de Cummins como uma sistematização da "teleologia intraorgânica", a que aludia Claude Bernard (cf. Caponi, 2003). Temos, portanto, uma perspectiva sob a qual podemos qualificar a abordagem de Cummins como teleológica, ainda que ele não deseje o rótulo.

Porém, para além de rótulos, as considerações acima apresentadas permitem a percepção de que, com a perspectiva de Cummins, estamos diante de outro quadro teórico, que captura bem o significado de muitas explicações nas ciências biológicas. Por exemplo, as capacidades biologicamente significativas de um organismo são corriqueiramente explicadas pelos biólogos através da análise do organismo em vários subsistemas (sistema circulatório, respiratório etc.). Cada um desses sistemas tem suas capacidades características, as quais são, por sua vez, analisadas em capacidades dos órgãos que os compõem. O procedimento analítico continua até que as capacidades analisadoras possam ser explicadas pela estratégia da instanciação. A estratégia da instanciação começa onde não faz mais sentido aplicar a estratégia analítica. Assim é como Cummins propõe que a estratégia analítica e a estratégia da instanciação podem estar conectadas, integrando-se em uma abordagem explanatória unificada.

Cummins formaliza sua abordagem analítica (que, de fato, já se encontra implícita na própria prática científica) do seguinte modo:

[...] x funciona como

em s (ou: a função de x em s é

) relativamente a uma abordagem analítica A da capacidade de s de

, apenas caso x seja capaz de fazer F em s e A dê conta, apropriada e adequadamente, da capacidade de s para

em parte mediante um recurso à capacidade de x para em

s (Cummins, 1998 [1975], p. 190).

Para Cummins, o interesse explanatório de uma estratégia analítica é proporcional a:

(1) o grau em que as capacidades analisadoras são menos sofisticadas do que as capacidades analisadas;

(2) o grau em que as capacidades analisadoras são de tipo diferente das capacidades analisadas; e

(3) a relativa complexidade de organização das partes/processos componentes do sistema.

Essas considerações conduzem ao seguinte ponto: quanto maior a diferença de sofisticação e tipo entre as capacidades analisadoras e as capacidades analisadas, mais sofisticado precisará ser o programa de funcionamento do sistema, para que essa lacuna seja preenchida. Nos casos em que essa diferença é pequena, a estratégia da instanciação parece mais adequada e, nesses casos, falar em função parece não ter muito sentido. De fato, a noção de programa é importante no contexto da estratégia analítica, tal como formulada por Cummins:

À medida que o programa absorve mais e mais do peso explanatório, os fatos físicos subjacentes às capacidades analisadoras tornam-se cada vez menos especiais para o sistema analisado. Esta é a razão pela qual é possível supor que a capacidade de uma pessoa e de uma máquina para resolver certo problema poderia ter em grande medida a mesma explicação, enquanto não é plausível supor que as capacidades de fazer sons similares de um sintetizador e de um sino tenham explicações substancialmente similares. Não há trabalho a ser feito por uma hipótese sofisticada sobre a organização das várias capacidades no caso do sino [...] (Cummins, 1998 [1975], p. 192).

21 21 A citação acima, ao atribuir a capacidade a homens e máquinas de agir de acordo com um programa está em pleno acordo com a postura cognitivista que tem sido assumida por Cummins em filosofia da psicologia, sobretudo nos últimos anos. A noção de programa em Cummins aparece também em seu livro de 1983, onde ele afirma: "a manifestação programada das capacidades analisadoras resulta na manifestação da capacidade analisada. Por 'programado', eu simplesmente quero aqui indicar organizado de certo modo que possa ser especificado em um programa ou fluxograma. A produção em uma linha de montagem oferece uma ilustração transparente." (Cummins, 1983, p. 28). Por recorrer à noção de programa, parece-nos interessante investigar se seria possível uma conciliação entre a análise funcional de Cummins e a perspectiva teleonômica desenvolvida por Mayr (1988, 2005), o que poderia ter consequências importantes para os próprios argumentos construídos neste artigo. Entretanto, não pretendemos aprofundar o uso da noção de programa por Cummins, nem a possível relação da análise funcional com a perspectiva teleonômica, na medida em que não são os objetivos do artigo.

É importante perceber, ainda, outro aspecto da estratégia analítica de Cummins, o de que atribuições funcionais mostram-se apropriadas em diferentes graus:

Deve-se admitir, entretanto, que não há aqui qualquer distinção entre preto e branco, mas um caso de mais ou menos. À medida que o papel da organização torna-se menos e menos significativo, a estratégia analítica torna-se menos e menos apropriada, e falar de função tem cada vez menos sentido. Isso pode ser filosoficamente desapontador, mas não há saída para isso (Cummins, 1998 [1975], p. 192).

De fato, sua conclusão, pelo menos à primeira vista, parece convincente, porque quando olhamos para os objetos naturais e artificiais, vemos neles graus variados de funcionalidade, tanto dentro do mesmo sistema, quanto entre sistemas distintos. Em outros termos, a estratégia analítica mostra-se apropriada em diferentes graus, quando comparamos

(1) diferentes níveis hierárquicos de um mesmo sistema e

(2) diferentes tipos de sistemas no mundo.

Por sua vez, a perspectiva desenvolvida por Wright não faz quaisquer distinções quanto aos graus em que se mostram apropriados os enunciados funcionais, exatamente porque não se dirige aos aspectos do mundo natural enfocados pela teoria de Cummins. Para Wright, há um corte claro entre o que é funcional e o que não o é, de modo que se algo não é função, então é acidente. Por exemplo, se utilizamos um dicionário para apoiar o monitor de um computador, com o objetivo de ajustar sua altura, esta não é a função do dicionário, da perspectiva de Wright, mas apenas um acidente. Para Wright, servir de suporte a um monitor não é a função do dicionário, não é a razão pela qual ele existe ou está presente naquele lugar, mesmo que seu uso especial seja satisfatório naquele momento. A abordagem de Cummins, contudo, permite dizer sem problemas que ajustar a altura do monitor pode ser a função do dicionário neste caso, já que a capacidade do dicionário de ajuste da altura contribui para uma capacidade do todo, a saber, o uso eficiente do computador no sistema usuário/computador/dicionário.

Assim, a partir da constatação das diferenças entre os dois autores, podemos formular a seguinte questão: a ausência de distinção clara entre função e não-função por Cummins não seria devida a uma ausência em sua teoria de uma distinção entre função e acidente, como aquela esboçada por Wright? É possível que sim e, na seção seguinte, exploraremos melhor este ponto.

6 Críticas comumente levantadas contra a análise funcional de Cummins

Apresentamos agora duas objeções à análise funcional proposta por Cummins, as quais podem ser comumente encontradas na literatura especializada sobre o assunto (cf. Millikan, 1998 [1989]; Kitcher, 1998 [1993]).

6.1 A objeção do excesso de liberalidade

Uma objeção comum à análise funcional de Cummins é a de que este referencial é excessivamente liberal (conhecida na literatura como "too liberal objection"). Por suas características, a teoria de Cummins permitiria - dizem os críticos - tratar como funções efeitos que não são intuitivamente entendidos dessa maneira ou atribuir funções a partes de sistemas que nós não pensamos intuitivamente como partes que tenham funções (cf. Wouters, 2003). Millikan (1998 [1989]), por exemplo, aponta como uma suposta consequência absurda da aplicação da teoria de Cummins que se possa considerar, de sua perspectiva, que, no ciclo da água, a função das nuvens seja produzir chuva. Kitcher também apresenta outros supostos contraexemplos:

Sem que se reconheça o papel subjacente das fontes de

design

, uma explicação como a de Cummins torna-se demasiadamente liberal. Qualquer sistema complexo pode ser submetido à análise funcional. Assim, podemos identificar a função que um arranjo particular de rochas toma ao contribuir para a ampliação do delta de um rio algumas milhas abaixo, ou as funções de sequências mutantes de dna na formação de tumores - mas aqui não há quaisquer funções genuínas, e nenhuma análise funcional. A análise causal da formação do delta não se liga de modo algum com uma fonte de

design

; a abordagem das causas dos tumores revela

disfunções

, não funções (Kitcher, 1998 [1993], p. 494, ênfases no original).

Assim, supostamente por contrariar nossas intuições (ou respectivas visões sobre o mundo), a teoria de Cummins estaria equivocada. Em um dos exemplos de Kitcher, a aplicação da análise funcional seria ilegítima porque, de acordo com ele, "a formação do delta não está ligada de modo algum a uma fonte de design". Mas esta exigência de Kitcher pode ser considerada supérflua. O que ele está pedindo é que a análise funcional esteja de acordo com sua própria visão teórica (que se apóia no conceito de design e busca uma unificação entre a análise funcional e as abordagens etiológicas selecionistas). O mesmo ponto vale também para Millikan (1998 [1989]). Da mesma forma que Kitcher, a filósofa, como salienta Griffiths (1998 [1993], p. 435), pensa que "a análise de Cummins não contribui para o entendimento das 'funções apropriadas' (proper functions) dos itens biológicos e dos artefatos humanos". O argumento central de Millikan é que muitas "funções de Cummins" não são "funções apropriadas". Tudo o que as críticas de Kitcher e Millikan revelam, em suma, é que a abordagem de Cummins não se mostra adequada às suas respectivas teorias sobre as funções. Não são, portanto, realmente objeções à teoria de Cummins mas, sim, demonstrações da diferença nítida entre suas abordagens e a de Cummins. Além disso, o que Kitcher conclui ser uma consequência absurda da análise funcional, isto é, seu suposto excesso de liberalidade, pode ser vista como não mais do que uma característica inerente a ela.

Podemos indagar, ainda, se os supostos contraexemplos de fato evidenciam uma ausência de legitimidade da análise funcional. Como apontamos acima, Cummins não pretende que haja uma distinção do tipo tudo-ou-nada quanto à funcionalidade (cf. Cummins, 1998 [1975], p. 192), que é, para ele, antes uma questão de grau. Assim, podemos perguntar se não seria exatamente esta suposta "falha" que permite que a estratégia analítica seja amplamente utilizada em diversas ciências, como a fisiologia, a psicologia e a ecologia? Não seria essa característica aquilo que permite que seja aplicada tão bem a fenômenos tão diversos, estudados por variadas ciências? Suspeitamos que sim. Nesse sentido, Kitcher não nos apresenta propriamente uma reductio ad absurdum da teoria de Cummins, quando diz que "qualquer sistema complexo pode ser submetido à análise funcional". A análise de Cummins pretende explicar exatamente isso, o comportamento de sistemas complexos, quaisquer que sejam.

Por tudo isso, temos a suspeita de que Cummins não tem sido bem interpretado nesse ponto. Os críticos dizem que sua abordagem é muito liberal. Mas eles cometem um engano ao tomar a liberalidade como um defeito, como bem aponta Caponi (2002, p. 66-7). Kitcher, por exemplo, confunde duas abordagens ao dizer, conforme a citação acima, que "não há funções genuínas aqui". De fato, não há funções genuínas, se tomarmos função no sentido etiológico selecionista. A nossa impressão é que o problema com a crítica desses autores à abordagem de Cummins está no fato de que eles apresentam exemplos nos quais pretendem aplicar a análise funcional, mas compreendem "função" em um sentido diferente daquele de Cummins, muitas vezes, no sentido etiológico selecionista. Ou seja, mesmo no contexto de uma aplicação da análise funcional, eles manteriam a concepção de função como aquilo que explica por que algo existe. Contudo, como vimos acima, explicar por que algo existe simplesmente não é o uso que Cummins pretende fazer da noção de função.

O erro em questão corresponde a confundir duas abordagens sobre função, que devem ser mantidas em separado, como argumentamos no início deste artigo. Se quisermos avaliar a análise funcional de Cummins, temos de compreendê-la em seus próprios termos, dentro do escopo e do limite estabelecidos por seu autor. Em particular, consideramos que a liberalidade da análise funcional pode não ser vista como um defeito, mas sim como uma característica inerente a ela mesma.

Como um ponto adicional, devemos perceber que os "contraexemplos" oferecidos são de fenômenos ecológicos, relacionados ao ciclo da água, à formação de nuvens, à estrutura de rios, ou mesmo casos nos quais tradicionalmente os itens em questão não surgiram devido à seleção natural. Ao mesmo tempo, se tivermos em vista que Kitcher busca combinar as visões de Wright e Cummins, poderemos notar também que as abordagens etiológicas selecionistas aplicam-se de modo mais apropriado aos exemplos de biologia evolutiva. Nesses casos, o que se busca explicar tradicionalmente são as características de organismos individuais, os quais estão sujeitos à ação da seleção natural. Mas não é geralmente aceito que a seleção natural opere no nível de sistemas ecológicos.22 22 Há autores que defendem, contudo, que a seleção pode operar no nível de sistemas ecológicos (cf. Sober & Wilson, 1998). A discussão deste tópico foge, contudo, ao escopo do presente artigo. Sendo assim, o exemplo levantado por Kitcher não é um caso a que os biólogos evolutivos e os filósofos interessados nas explicações funcionais normalmente recorreriam (ainda que seja possível e até interessante fazê-lo. Cf. Nunes-Neto, 2008; El-Hani & Nunes-Neto, no prelo). Em consequência, a crítica de Kitcher não é, em nosso entendimento, assim tão significativa.

6.2 A ausência de distinção entre função e acidente

Outro problema apontado na literatura é o de que a análise funcional não dá conta da distinção entre função e acidente. Temos, aqui também, mais propriamente uma característica da abordagem de Cummins do que uma objeção a ela. É interessante notar que, ao considerarmos da perspectiva da análise funcional os casos de "disfunções" (cf. crítica de Kitcher 1998 [1993], apresentada acima), percebemos (como já apontamos antes) que ela não oferece uma distinção entre função e acidente. Em nosso entendimento, trata-se de fato de uma limitação dessa abordagem, que decorre, contudo, de sua própria natureza. Suspeitamos que uma abordagem sistêmica, tal como a que Cummins formulou, que não leva em consideração o caráter histórico dos sistemas sob estudo, não pode realmente trazer em si tal distinção.

A referida distinção parece, antes, caber melhor no seio de uma formulação histórica, tal como a proposta por Wright e outros neoteleologistas. Quando consideramos os sistemas biológicos como sistemas que devem sua existência a uma longa história prévia, estamos considerando sua construção, em termos de suas estruturas morfológicas, planos corporais, comportamentos complexos, ou quaisquer outros itens. Consequentemente, desejamos explicar por que as partes sob consideração existem e, entre os eventos que determinaram causalmente a construção do sistema, estão o que os proponentes de abordagens etiológicas chamam de função e de acidente. Note-se, ainda, que acidentes podem adquirir, ao longo das gerações, um caráter funcional, se forem efeitos fortuitos benéficos para os possuidores do traço que realizou o acidente (ou seja, se contribuírem suficientemente para a sobrevivência e a reprodução dos envolvidos e se o traço em questão for herdável). Isso torna-se claro na distinção entre adaptação e exaptação, conforme proposta por Gould e Vrba (1982). Contudo, mesmo em tais casos, busca-se manter a distinção entre as funções, atribuídas a adaptações, e os acidentes, já que se considera que as exaptações têm efeitos fortuitos.

Embora seja importante no contexto de uma abordagem evolutiva dos fenômenos biológicos, a distinção entre função e acidente pode ser dispensável no âmbito da análise funcional de Cummins. Para ele, a função é uma capacidade qualquer de um item ao qual apelamos para explicar alguma capacidade do sistema que o contém. Logo, o que se mostra um acidente, do ponto de vista etiológico selecionista, pode qualificar-se como função para Cummins. Não obstante, permanece a questão de que a incapacidade de produzir uma distinção entre função e acidente pode ser vista como uma limitação (importante) da análise funcional.

Conclusão

Neste artigo, tratamos de duas abordagens centrais sobre as funções na filosofia da biologia: a abordagem etiológica selecionista de Wright (1998 [1973]) e a análise funcional de Cummins (1998 [1975]). Como pretendemos ter mostrado, essas abordagens dirigem-se a aspectos diferentes do mundo vivo: a abordagem etiológica selecionista enfatiza o caráter histórico dos sistemas biológicos, enquanto a abordagem analítica de Cummins foca-se sobre a complexidade e as relações entre as propriedades das partes e do todo, em um sistema complexo.

Desse modo, parece-nos importante manter as abordagens etiológicas de função e a análise funcional devidamente separadas, em vez de tentar integrá-las em uma abordagem sintética, que pretensamente dê conta de todo e qualquer uso de função nas ciências biológicas. Essa ideia de desunidade apóia a tese do consenso dualista defendida por Godfrey-Smith (1993), a qual por sua vez pode receber apoio, com proveito, da distinção entre biologia evolutiva e biologia funcional, esboçada por Mayr (1988) e Jacob (1983 [1970]). Além disso, outros argumentos desenvolvidos ao longo do artigo também reforçam a necessidade de aceitar-se um pluralismo no que concerne às teorias sobre a função. Por exemplo, algumas críticas levantadas por Kitcher e Millikan contra Cummins parecem-nos ser devidas à falta de atenção a esse ponto, tal como discutido acima. Assim, quando reconhecemos a legitimidade do pluralismo sobre as funções, podemos inclusive abordar com mais clareza as críticas dirigidas seja contra a neoteleologia, seja contra a análise funcional de Cummins. Estaremos em melhor posição, então, para perceber quais dessas críticas aplicam-se e quais são, de fato, inadequadas.

A crítica de Cummins à neoteleologia traz à tona certas fragilidades das abordagens etiológicas selecionistas. Uma fragilidade subjacente a essas abordagens reside, por exemplo, em seu viés estritamente selecionista. Quando reconhecemos outros fatores, como deriva ou restrições físicas e desenvolvimentais, que também desempenham papel importante na evolução biológica, podemos perceber uma falha importante da neoteleologia. Neste ponto, Cummins localiza muito bem sua crítica a essa abordagem, quando afirma que não a critica por ser uma análise conceitual defeituosa, mas por oferecer uma explicação evolutiva ruim (cf. Cummins, 2002, p. 165). Na medida em que a seleção natural não é o único processo produtor de novidades evolutivas, não se pode pretender que ela tenha lugar exclusivo em todas as explicações evolutivas. Tal exigência do neoteleologista consiste em inflacionar a seleção natural, atribuindolhe poderes causais que não lhe cabem. A seleção natural é tomada, então, como a única força impulsionadora da evolução, perdendo-se de vista outros fatores que podem desempenhar papéis importantes na evolução lado a lado com a seleção natural.

Em nossa visão - e aqui nos apoiamos também na crítica ao adaptacionismo (cf. Gould & Lewontin, 1979) -, as explicações da biologia evolutiva devem de fato buscar a etiologia do fenômeno que se busca explicar, porém, não devem recorrer exclusivamente, em todos os casos, à seleção natural, visto que nem sempre esse mecanismo é o principal responsável pelo fato de algum item estar presente em um certo organismo. Na medida em que a seleção não é o único fator que deve desempenhar algum papel na explicação dos processos evolutivos, nossas conclusões apontam para a importância da construção de uma agenda mais ampla nas investigações filosóficas sobre as explicações na biologia evolutiva. Trata-se de investir esforços em abordagens etiológicas plurais, que incorporem em suas explicações não apenas a seleção natural, mas também a deriva, a construção de nicho (Odling-Smee et. al., 2003), as restrições físicas, as restrições, contingências e impulsos (drives) de desenvolvimento (cf. Gould, 2002; Arthur, 2002) e, até mesmo, o papel das restrições impostas pelo sistema Terra a um de seus subsistemas, os organismos vivos (cf. Volk, 1998).

Em alguns pontos, a crítica de Cummins à neoteleologia parece-nos excessiva, não sendo adequadamente justificada. Enquanto sua crítica dirige-se corretamente à versão forte, ela não se mostra tão adequada quando dirigida à versão fraca. Ele oferece argumentos de fato convincentes contra a neoteleologia forte, mas, para rejeitar a neoteleologia fraca, apóia-se na premissa falsa de que o processo evolutivo é caracterizado apenas ou principalmente por mudanças graduais.

Cummins dá um passo que não é devidamente justificado, cometendo um non sequitur: ele apóia sua rejeição da neoteleologia como um todo apenas na rejeição da versão forte. Mas uma rejeição bem justificada da versão forte não implica a inteira rejeição da neoteleologia. É possível manter ainda a versão fraca. Assim, como consequência de nossa análise, pensamos que a crítica de Cummins é importante para traçar limites à aplicação da abordagem neoteleológica. Porém, tal crítica não é suficiente para levar-nos a abandonar completamente tal abordagem, como deseja o próprio Cummins. Acreditamos que, assim como há um uso legítimo do conceito de função no âmbito da análise funcional, há um uso legítimo do conceito de função nas abordagens etiológicas selecionistas - desde que feitas delimitações adicionais nas intenções explanatórias de tais abordagens, na medida em que não permitem explicar a origem dos traços por meio de sua função e somente explicam o aumento da frequência dos traços, quando estamos tratando de genuínas novidades funcionais. A aceitação dessa tese é tanto mais facilitada quanto mais compreendemos a importância do pluralismo no debate sobre função na filosofia da biologia.

A nossa defesa de um pluralismo pode ser vista também como uma defesa da importância dos aspectos pragmáticos da explicação na biologia. Nesse sentido, a consideração do contexto nos quais as explicações são solicitadas e oferecidas é de grande relevância. Esse ponto foi bem colocado por Margarita Ponce:

A relação entre os fins e as entidades funcionais deve fundar-se em necessidades de conhecimento e de inteligibilidade; assim, "fim" e "entidade funcional" designarão não uma propriedade ontológica dos fenômenos, mas o papel que (suas descrições)

desempenham em virtude de sua posição dentro de um argumento explicativo

(Ponce, 1987, p. 232-3).

Dessa perspectiva, não há funções independentemente de nossas concepções sobre o mundo. São os nossos interesses e concepções sobre os fenômenos naturais que orientam a nossa própria maneira de explicá-los. As abordagens da função de Wright e Cummins, aqui discutidas, têm lugar dentro de argumentos próprios, que lhes conferem um contexto de aplicação legítimo.

AGRADECIMENTOS

Nei Freitas Nunes-Neto agradece ao CNPq pela bolsa de mestrado concedida durante a realização deste trabalho e à FAPESB, pelo financiamento de projeto de pesquisa. Charbel Niño El-Hani agradece ao CNPq por bolsas de produtividade em pesquisa e à FAPESB e ao CNPQ, por financiamentos de projetos de pesquisa. Os autores agradecem, ainda, a Gustavo Caponi e a Diogo Meyer pelas críticas e sugestões valiosas para o desenvolvimento de alguns argumentos aqui apresentados.

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  • 1
    Nos tempos atuais, nunca é demais destacar que o conceito de design de Kitcher não apela, como de fato não é necessário que o faça, à existência de algum projetista natural ou sobrenatural. Em suas palavras, "design não deve ser, contudo, entendido em termos de intenções de fundo [background intentions]; uma das descobertas importantes de Darwin é que podemos pensar em design sem um designer" (Kitcher, 1998 [1993], p. 480). Para maiores detalhes sobre a teoria de Kitcher, consultar o original (Kitcher, 1998 [1993]). As ideias de Kitcher também são discutidas por Godfrey-Smith (1993).
  • 2
    Discutiremos as abordagens desses filósofos em maiores detalhes nas próximas seções. Por ora, esta breve caracterização é suficiente.
  • 3
    Caponi relaciona cada um dos modos de "explicar teleologicamente" a uma regra metodológica subjacente. Assim, as explicações da biologia funcional formuladas em termos teleológicos estariam apoiadas na regra metodológica da adequação autopoiética, ao passo que as explicações da biologia evolutiva, na regra da adequação adaptativa. Quanto às explicações funcionais, ele afirma: "ter ou realizar uma função não poderá ser outra coisa senão possuir ou cumprir um papel causal na realização desta autopoiese" (Caponi, 2002, p. 73). De acordo com Caponi, a regra da adequação autopoiética está subordinada à regra da adequação adaptativa, um argumento similar ao de Mayr (2005), para quem a biologia evolutiva é o ramo da biologia que garante a esta ciência sua autonomia frente às outras ciências naturais.
  • 4
    Wright parece adotar uma postura naturalizada, na qual, a partir de uma teoria biológica, o darwinismo ortodoxo, ele constrói uma abordagem geral sobre a noção de "função" que não é restrita ao mundo vivo, mas poderia ser aplicada a qualquer item, a um artefato qualquer. Assim, ainda que sua teoria derive da análise de explicações da biologia evolutiva, ela não se aplica somente a tal empreitada intelectual. Por derivar da concepção darwinista dominante no período, a teoria de Wright lança mão apenas da seleção natural como mecanismo etiológico, não incorporando outros fatores, tais como as restrições ao desenvolvimento. E nem poderia, na medida em que a importância de considerar-se um pluralismo de processos na biologia evolutiva começou a tornar-se clara muito depois da publicação do artigo de Wright, em 1973.
  • 5
    A busca por uma ciência unificada torna-se evidente quando examinamos, por exemplo, a proposta da Enciclopédia Internacional da Ciência Unificada, de Otto Neurath, Rudolf Carnap e Charles Morris, entre outros filósofos do Círculo de Viena (cf. Carnap; Morris & Neurath, 1955). É importante ressaltar, contudo, que apesar de defendermos, contra Kitcher, uma desunidade no debate sobre as funções, parece-nos importante, em termos mais gerais, manter uma atitude de busca por unidade na ciência. No entanto, vemos a atitude de busca por unidade apenas como um norteador geral da análise metateórica (e do próprio fazer científico) e, portanto, como algo que não pretende aplicar-se de modo estrito a todo e qualquer problema específico da filosofia da ciência. Em outros termos, defendemos uma atitude geral de busca por unidade, porém, a unidade teórica no debate sobre as funções parece-nos um equívoco.
  • 6
    A posição de Caponi deriva de ele ter estabelecido uma relação entre a explicação da biologia funcional e o "princípio de adequação autopoiética". Caponi constrói uma interessante linha de argumentação na defesa da legitimidade dessa conexão, porém, uma avaliação detida de suas ideias está fora dos limites da nossa argumentação no presente artigo.
  • 7
    Cummins (2002) mantém uma distinção mais radical do que Caponi (2002). Para ele, sua análise funcional é um tipo de explicação essencialmente não-teleológica. Em sua visão, a teleologia sobrevive em sua forma atual (a neoteleologia) apenas na biologia evolutiva ou em sua filosofia. Assim, os usos de função na biologia funcional estariam livres de compromissos teleológicos, desde o ponto de vista de Cummins.
  • 8
    A obra de Williams (1996 [1966]), ao lado da de Darwin (2002 [1859]), foi, inclusive, uma das inspirações para Gould & Vrba (1982) proporem um novo termo para a biologia evolutiva, "exaptação". Mais adiante, trataremos da análise de Gould e Vrba (cf. também Godfrey-Smith, 1993, p. 198).
  • 9
    Cummins (2002) não define de maneira rigorosa o que entende por "alvo da seleção" e "alvo da atribuição funcional". De acordo com nossa interpretação, parece-nos razoável depreender que o alvo da atribuição funcional indica o conjunto de todos os organismos que possuem os itens aos quais atribuímos função (no nosso exemplo específico, o coração). Já o alvo da seleção seria o conjunto dos organismos que têm maior sucesso na obtenção de recursos para sua sobrevivência e reprodução. De qualquer modo, o ponto importante em nosso argumento diz respeito à necessidade de distinguir, do modo como faz Cummins, e diferentemente do neoteleologista, o que é selecionado do que é funcional.
  • 10
    Decerto, ao tratarmos de desenvolvimento, o argumento aqui apresentado está sendo formulado mediante a consideração de organismos multicelulares.
  • 11
    Não se deve perder de vista, contudo, que a seleção de espécies e clados ainda é objeto de controvérsia (cf. Sober & Wilson, 1998; Okasha, 2003; Sterelny, 2003; Meyer & El-Hani, 2005).
  • 12
    A escolha desses três níveis depende das questões de pesquisa que estão sendo perseguidas e é, sem dúvida, influenciada pelo contexto teórico e metodológico em que a investigação é realizada e, assim, pelas práticas epistêmicas de uma determinada comunidade de pesquisadores. Não se trata meramente de descrever "níveis da realidade", mas, antes, de escolher maneiras de modelar a natureza de uma perspectiva heuristicamente orientada e alinhada com tomadas de posição pragmáticas. Como comentam Allen e Hoekstra (1992, p. 20), níveis de organização não são atributos da natureza per se, mas emergem da interação entre as decisões do observador (mediadas pelas práticas epistêmicas da comunidade científica à qual pertence) e a parte do universo que está sendo observada.
  • 13
    O conceito de "condições de contorno" foi introduzido por Polanyi (1968) no contexto da biologia. Van Gulick (1993) formula essa ideia em termos de uma ativação seletiva de processos causais de nível inferior por princípios gerais que regem processos de nível superior. Trata-se de restrições que resultam de princípios organizacionais de nível superior que têm um efeito determinativo descendente -
    top-down - sobre os processos que envolvem entidades num nível inferior (cf. Emmeche et al., 2000; El-Hani & Queiroz, 2005; Vieira & El-Hani, 2008).
  • 14
    Os onicóforos não são, hoje, sequer classificados entre os artrópodes.
  • 15
    A quantidade e diversidade de inovações morfológicas que resultaram da evolução do ramo dorsal dos membros birramados de artrópodes é impressionante (cf. Carroll
    et al., 2005; Carroll, 2006). Essa estrutura foi repetidamente modificada ao longo da história desse grupo de organismos, dando origem a estruturas com morfologias e funções altamente divergentes - asas nos insetos, brânquias folhosas nos límulos, pulmões folhosos, traquéias e fiandeiras nas aranhas etc. Em todos esses casos, as modificações do ramo dorsal ancestral resultam da evolução da regulação de processos de desenvolvimento. Temos aqui uma narrativa histórica que mostra como o surgimento de genuínas novidades funcionais pode ser comum na evolução dos organismos.
  • 16
    A análise funcional de Cummins tem recebido diferentes nomes na literatura: "análise do papel intrassistêmico" (Johansson, 2006, p. 35), "teoria do papel causal" (Wouters, 1999, p. 19), "abordagem do papel causal" (Rosenberg & McShea, 2008, p. 90) e "abordagem sistêmica" (Wouters, 2005, p. 125). Aqui, utilizamos simplesmente a expressão do próprio Cummins, "análise funcional", compreendendo, ao mesmo tempo, que ela se enquadra em uma visão sistêmica sobre os fenômenos do mundo natural.
  • 17
    "Estratégia da instanciação" é a expressão usada por Cummins na edição que consultamos, virtualmente o mesmo texto do artigo original, publicado no
    The Journal of Philosophy. Contudo, no texto original, ele usa a expressão "estratégia de subsunção", a qual é bastante apropriada conforme veremos a seguir.
  • 18
    Esta formulação corresponde ao modelo dedutivo-nomológico da explicação científica de Hempel e Oppenheim (1948) e, assim, está sujeita às mesmas críticas e aos mesmos limites (cf. Salmon, 1990).
  • 19
    Esta avaliação de Cummins reforça o argumento em prol do pluralismo de modelos sobre funções que apresentamos na seção 1 deste artigo.
  • 20
    Logo, mesmo os efeitos das partes do sistema que, na visão de Wright, seriam acidentes podem ser usados na análise funcional de Cummins para explicar a realização de uma capacidade complexa do sistema do qual o componente é parte. Tudo o que é exigido, da perspectiva analítica de Cummins, é que a capacidade da parte contribua para a realização da capacidade sistêmica, seja ela função ou acidente, nos termos de Wright ou de outros autores neoteleologistas.
  • 21
    A citação acima, ao atribuir a capacidade a homens e máquinas de agir de acordo com um programa está em pleno acordo com a postura cognitivista que tem sido assumida por Cummins em filosofia da psicologia, sobretudo nos últimos anos. A noção de programa em Cummins aparece também em seu livro de 1983, onde ele afirma: "a manifestação programada das capacidades analisadoras resulta na manifestação da capacidade analisada. Por 'programado', eu simplesmente quero aqui indicar organizado de certo modo que possa ser especificado em um programa ou fluxograma. A produção em uma linha de montagem oferece uma ilustração transparente." (Cummins, 1983, p. 28). Por recorrer à noção de programa, parece-nos interessante investigar se seria possível uma conciliação entre a análise funcional de Cummins e a perspectiva teleonômica desenvolvida por Mayr (1988, 2005), o que poderia ter consequências importantes para os próprios argumentos construídos neste artigo. Entretanto, não pretendemos aprofundar o uso da noção de programa por Cummins, nem a possível relação da análise funcional com a perspectiva teleonômica, na medida em que não são os objetivos do artigo.
  • 22
    Há autores que defendem, contudo, que a seleção pode operar no nível de sistemas ecológicos (cf. Sober & Wilson, 1998). A discussão deste tópico foge, contudo, ao escopo do presente artigo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Mar 2010
    • Data do Fascículo
      2009
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