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Editorial

Editorial

Os textos deste número de têm em comum a referência à fenomenologia de Edmund Husserl, mais especificamente às reflexões de Husserl acerca das ciências. Seja enquanto expressões do aparato categorial da razão humana seja enquanto práticas realizadas no interior do mundo concreto, as ciências são tema constante na obra de Husserl, e os autores convidados para participar deste número especial explicitam, de maneira mais ou menos direta, alguns dos aspectos marcantes do pensamento husserliano acerca desse vasto campo.

A motivação geral para a preparação deste número despontou no decorrer de minha participação como pós-doutorando, em 2008-9, no projeto temático "Gênese e significado da tecnociência: das relações entre ciência, tecnologia e sociedade", coordenado pelo Professor Pablo Rubén Mariconda. As atividades no interior do projeto temático consideram uma pluralidade de perspectivas filosóficas para a análise do desenvolvimento histórico das ciências e das principais características de seu exercício atual. De minha parte, ali trabalhei no sentido de explicitar as contribuições que a fenomenologia de Husserl poderiam trazer para a análise proposta. Agora, a organização deste número especial de vem não somente tematizar de que maneira a formação da própria fenomenologia está ligada à reflexão sobre o papel das ciências, mas também confirmar a fecundidade da perspectiva fenomenológica para o debate acerca dos múltiplos sentidos das ciências e da tecnologia no mundo contemporâneo. Essa dupla vertente temática ficará clara, a seguir, com a apresentação dos artigos e demais partes da revista.

Abrindo a seção de artigos, Denis Fisette apresenta um estudo minucioso sobre a gênese do método fenomenológico no descritivismo do físico Ernest Mach, tema que é explorado em referência ao debate sobre a percepção do espaço, que opõe nativistas e empiristas no final do século xix. No segundo artigo, de minha autoria, investiga-se qual o sentido da "fundação das ciências" proposta por Husserl em diversos textos. Trata-se de esclarecer que longe de oferecer algum tipo de fundamento teórico que assegure a certeza de todo saber, Husserl busca explicitar a evidência dos conceitos básicos científicos em correlação com as capacidades noéticas da subjetividade. No terceiro artigo, Álvaro Julio Pelaéz Cedrés parte de uma análise histórica do papel dos diagramas nas demonstrações geométricas e reconhece que se tais demonstrações dependessem dos diagramas sensíveis, então a universalidade e necessidade das provas ali obtidas estariam ameaçadas. A fim de resolver esse problema, Cedrés defende uma intuição de essências, nos moldes estabelecidos por Husserl, que apreenda as propriedades gerais das quais os diagramas seriam somente instâncias empíricas. No quarto artigo, Kenneth Liberman explicita como alguns dos métodos da fenomenologia husserliana ajudaram a desenvolver certas linhas de pesquisa sociológicas. Além disso, ele sugere que os herdeiros contemporâneos das investigações fenomenológicas de Husserl podem se beneficiar, para revitalizar o seu campo de trabalho, de muitas pesquisas realizadas no âmbito da sociologia. No quinto artigo, Nicolas de Warren utiliza alguns recursos da fenomenologia husserliana da imaginação para elaborar uma reflexão filosófica acerca da realidade virtual. A noção de "consciência de imagem", segundo a qual um suporte percebido é modelado como imagem de algo que não está atualmente presente, é tomada como chave para compreender a inserção nos ambientes virtuais.

Como documento científico deste número, publica o texto A ingenuidade da ciência, que Edmund Husserl escreveu em 1934 como parte do processo de preparação de sua última obra lançada em vida, A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental. O texto aqui traduzido foi reunido com muitos outros manuscritos de pesquisa do mesmo período em A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental – textos complementares, publicado somente em 1992 como volume 29 das obras completas (Husserliana). Em A ingenuidade da ciência, Husserl explora alguns dos temas recorrentes de sua obra derradeira, tais como a ausência de uma análise sistemática por parte dos cientistas acerca das operações racionais pressupostas na apreensão dos fenômenos mundanos e acerca da historicidade inerente às práticas científicas. Tal como nota Marcella Marino Medeiros Silva, em sua introdução ao texto A ingenuidade da ciência (por ela traduzido), segundo Husserl os cientistas se voltam, em suas práticas de pesquisa, quase que exclusivamente para os objetos pesquisados, de maneira a deixar de lado as questões acerca das condições subjetivas do sentido dessas próprias práticas. Essa ingenuidade só poderia ser desfeita por meio de uma reflexão radical sobre as atividades da consciência como origem constituidora do sentido de toda experiência, reflexão que somente a fenomenologia poderia levar a cabo.

Neste número de , o entrevistado é Kenneth Liberman, que já contribuiu com um artigo. Liberman é professor de sociologia e utiliza, em muitos de seus trabalhos, o método etnometodológico, que acompanha o desenvolvimento de estratégias concretas, em contextos locais, usadas para a interação social. O tema central da entrevista é a constituição da etnometodologia como um método de pesquisa que assimila importantes tópicos da fenomenologia de Husserl, mas pretende ultrapassar algumas das suas limitações intrínsecas.

Para encerrar este número especial, apresenta, na seção "Notas e críticas", um texto de Hugh Lacey que explora a ideia de crise das ciências, elaborada por Husserl em seus textos finais. Husserl não aplica essa ideia para os métodos ou resultados científicos, cujo sucesso exuberante é incontestável, mas a utiliza para explicitar a ausência de um pensamento sistemático acerca do significado dos avanços científicos em relação à existência humana no mundo concreto. Inspirado por essa reflexão, Lacey investiga o que significa considerar o conhecimento obtido por estratégias descontextualizadas de pesquisa em relação ao contexto sócio-histórico em que tais estratégias são desenvolvidas.

Marcus Sacrini

editor convidado

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Abr 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 2009
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