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Editorial

EDITORIAL

Neste ano, completam-se 50 anos de publicação de A estrutura das revoluções científicas, ensaio que provocou uma enorme mudança na imagem de ciência que há muito tempo era predominante. Como de costume, desde o ano de 1962, em praticamente todo o mundo, não faltarão artigos e livros comemorativos sobre a principal obra de Thomas Kuhn, destacando a influência que ela exerceu nos mais diversos campos do conhecimento - da história e filosofia da ciência à educação, passando pela antropologia e sociologia. A despeito de nosso reconhecimento da marca indelével deixada em diversas disciplinas, este número especial de Scientiæ sudia sobre o meio século desde a primeira edição da referida obra não deve ser compreendido como uma mera ocasião de render loas ao seu autor. Trata-se, na verdade, de pensar sobre o legado do filósofo norte-americano, levando-se em consideração seus aspectos positivos e negativos, ao mesmo tempo em que se reconhece a fecundidade de suas contribuições para a investigação de temas contemporâneos ligados à ciência.

O presente número de Scientiæ sudia procura respeitar simultaneamente a enorme complexidade interna da obra de Kuhn e a sua imensa capacidade de inspirar novas e, muitas vezes, mais acertadas, análises sobre a ciência e o seu desenvolvimento. Os sete artigos, acompanhados de uma nota crítica, que constituem este número podem ser entendidos como respeitando grosseiramente a seguinte classificação: artigos teóricos, polêmicos e aplicados. Com efeito, apenas essa pluralidade de temas e de pontos de vista aqui publicados seria suficiente para mostrar a atualidade das ideias kuhnianas.

Como não poderia talvez deixar de acontecer, os três primeiros artigos deste número especial interessam-se sobremaneira pela noção de incomensurabilidade, um dos temas abordados por Kuhn e que mais provocou rejeições ao seu livro. Abrindo essa série de textos, temos o artigo de Hugh Lacey a respeito do modo pelo qual a noção de incomensurabilidade pode ajudar-nos a perceber os mecanismos que aproximam, sem reduzi-los ou unificá-los, os conhecimentos científico e tradicional. O segundo artigo, escrito por Valter Alnis Bezerra, também discute a noção de incomensurabilidade a partir de suas relações com os valores. A análise da relação entre a incomensurabilidade e os valores é feita a partir das ideias - certamente distintas entre si - defendidas, de um lado, por Laudan, e, de outro, por Moulines, Sneed e Balzer. Segundo Bezerra, quando vistas com as correções introduzidas por esses autores, as ideias de Kuhn saem fortalecidas. O terceiro artigo a discutir a noção de incomensurabilidade é o de Claudemir Roque Tossato, que tem o objetivo de mostrar que Kuhn não é um relativista, como lhe tem sido incessantemente imputado durante mais de duas décadas. Para corroborar a sua interpretação, Tossato recorre a um episódio da história da astronomia, seguindo, de certo modo, o mesmo caminho de Kuhn.

Os três artigos seguintes inscrevem-se, como já foi dito, em uma perspectiva potencialmente polêmica. O quarto artigo, de autoria da filósofa polonesa Barbara Tuchanska, analisa, tomando como ponto de partida a célebre, e até certo ponto popular, noção de paradigma, a influência exercida por Kuhn sobre uma gama de autores majoritariamente radicados no continente europeu. Tuchanska se interessa em analisar as transformações que esta noção sofreu nas mãos de Friedman, Laudan e Lakatos, entre outros. Vale a pena chamar a atenção, dado o pouco que ele nos é conhecido, para o nome de Amsterdamski, utilizado para introduzir as modificações necessárias para fortalecer as teses do nosso homenageado.

Por outro lado, em seu artigo dedicado aos críticos de Kuhn, André Luís de Oliveira Mendonça analisa de que modo Kuhn, ainda que sem ter deliberadamente essa pretensão, produziu um aumento das tensões nas relações entre a ciência e a sociedade no contexto da segunda metade do século passado. Revisitar as ideias de Kuhn sobre esse tema, bem como as polêmicas originadas por essas ideias são tarefas importantes, tendo em vista o lugar que a ciência ocupa nas sociedades contemporâneas. Nas conclusões de seu texto, Mendonça avança algumas considerações com este propósito.

Em seu artigo, Alberto Oliva retoma o tema polêmico do relativismo, outro assunto muito comum em se tratando de Kuhn. Oliva questiona a autoimagem de Kuhn, que não se considerava relativista, mostrando que essa imputação é derivada da adoção de um conjunto específico de posições ontológica, epistemológica e linguística, que configuraram a posição relativista contemporânea.

O último textos é uma aplicação de ideias de Kuhn ao domínio da paleontologia. Charles Morphy Dias Santos e Bruna Klassa interessam-se pela questão de saber até que ponto a sistemática filogenética pode ser considerada como um novo paradigma, constituindo, assim, uma revolução científica genuína. Os autores mostram que essa interpretação não é correta e que é mais acertado compreender a sistemática filogenética a partir do pensamento de Karl Popper como o desenvolvimento de um novo tipo de interpretação associada ao darwinismo.

Finalmente, e fechando este número de Scientiæ sudia em homenagem a um dos mais influentes livros de filosofia jamais escrito, encontra-se a nota crítica redigida por Antonio Augusto Passos Videira. De forma deliberadamente esquemática, Videira discute se as concepções de Kuhn a respeito de comunidade e progresso científicos podem auxiliar no entendimento do desenvolvimento da comunidade de físicos em nosso país. A conclusão a que chega é que sim, desde que não se entenda a comunidade como um elemento capaz de assegurar a qualidade da ciência praticada.

Não constitui exagero afirmar que, após o aparecimento de A estrutura das revoluções científicas, não se pôde mais discutir e refletir sobre a ciência sem levar em consideração as teses aventadas por Kuhn. As principais vertentes contemporâneas (filosofia local da ciência, programa forte de sociologia da ciência, science studies, epistemologia social, hermenêutica das ciências naturais, entre outras) são unânimes em prestar-lhe, de um modo ou de outro, tributos. Kuhn, em grande medida, contribuiu para a organização da agenda dos estudos sobre ciência na segunda metade do século XX, na medida em que questionou velhos temas sob uma nova perspectiva, ou seja, pôs em nova chave particularmente temas como o da relação entre a história e a filosofia da ciência, o da relação entre as ciências naturais e as humanidades, o da dicotomia entre descrições e normas, o da relação entre relativismo e realismo. Sua atitude parece ter sido sempre a de buscar uma perspectiva conciliatória, no sentido de ter visado à superação de fronteiras. Sendo assim, nós esperamos que as discussões contidas neste volume possam inspirar novas pesquisas sobre Kuhn, de modo a nos tornarmos cada vez mais capazes de construir pontes ligando tanto os saberes quanto as práticas.

Os editores

Pablo Rubén Mariconda

Antonio Augusto Passos Videira

André Luís De Oliveira Mendonça

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Nov 2012
  • Data do Fascículo
    2012
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