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Editorial

Editorial

Este número de apresenta uma composição abrangente de expressivas vertentes da filosofia, da história e da sociologia da ciência dialogando em torno de problemas e objetos fundamentais para o pensamento contemporâneo sobre o conhecimento e a racionalidade científica. Sua leitura conduz por caminhos disciplinares que se distinguem entre si por estilos e tradições diferentes, mas que convergem em amplo esforço comum de exploração e ampliação das perspectivas racionalistas de autoentendimento do conhecimento racional e de compreensão/explicação da dinâmica da atividade científica em suas variadas e complexas articulações com as dimensões históricas e sociais da modernidade. Dentro desse vasto conjunto, destacam-se os modos pelos quais a maior parte dos trabalhos aqui reunidos incorpora à construção de seu objeto a organização disciplinar da ciência, explorando, de modos variados, diferentes aspectos da institucionalização de disciplinas específicas, envolvidas, de maneira relevante, com a busca do entendimento do humano, de seu próprio sentido.

O número inicia-se com dois artigos que tratam do desenvolvimento teórico e histórico da psicanálise, explorando abordagens muito diversas em torno de sua constituição como disciplina científica. No primeiro, Sandra Caponi e Ángel Martínez-Hernáez reconstroem a posição de Kraepelin no debate do século XIX acerca dos critérios de classificação das doenças mentais, situando esse esforço taxonômico na perspectiva da medicina positiva e do processo histórico de redução biológica dos fatos sociais. Eles argumentam que a visão kraepeliana da psiquiatria, orientada para a busca de uma explicação universal das doenças mentais, liga-se a uma concepção que reduz à biologia os sintomas, para a qual as narrativas dos pacientes nada podem significar. A redução à biologia das doenças mentais tem como contraparte a desumanização da clínica.

No segundo artigo, Leopoldo Fulgencio discute a fundamentação da psicanálise a partir da utilização de modelos metapsicológicos especulativos. Com efeito, a impossibilidade de submeter a teste tais modelos costuma ser vista como um dos maiores entraves para que a psicanálise possa ser considerada uma ciência segundo o critério de demarcação popperiano. O autor analisa os diversos enfoques sobre esse problema no desenvolvimento da psicanálise após Freud, e distingue os modelos puramente especulativos daqueles que podem encontrar algum referente fenomênico propriamente dito. A partir disso, mostra-se como Donald Winnicott propôs conceitos abstratos que não são especulativos. Essa consideração retroage sobre a questão da fundamentação da psicanálise, abrindo caminho para a construção de uma ciência psicanalítica refundada não sobre uma metapsicologia especulativa, mas sim sobre um arcabouço de conceitos abstratos que, todavia, possuem referentes adequados.

A recente e conturbada história da institucionalização da genética é ilustrada nos dois artigos seguintes. Valdeir del Cont apresenta um panorama do movimento eugenista no fim do século XIX e início do século XX, enfatizando o entrelaçamento entre aspectos teóricos e aspectos institucionais. Dessa perspectiva, o autor mostra como a preocupação com a qualidade genética das populações humanas mobilizou forças na direção de uma reforma social eugenicamente informada. No início, principalmente na Inglaterra, o movimento eugenista apresentava-se como uma espécie de atitude moral que deveria ser voluntariamente endossada por aqueles que se preocupavam com a suposta degenerescência das populações humanas. Mas, num segundo momento, principalmente nos Estados Unidos, o movimento ganha contornos de controle social sobre aquelas populações consideradas eugenicamente inaptas, controle promovido pelo movimento eugenista que passa a ser financiado pela elite econômica estadunidense, preocupada sobremaneira com as consequências hereditárias provocadas pelo fluxo migratório vivido pelo país naquela época.

O estudo da institucionalização da biologia molecular na Argentina por Pablo Ariel Pellegrini analisa a formação disciplinar dos pesquisadores do Instituto Nacional de Tecnología Agropecuaria (INTA) ao longo do tempo, expondo os movimentos provocados pelas disputas por recursos materiais e simbólicos que se instalam entre diferentes disciplinas, no processo de surgimento de um novo campo disciplinar. A análise histórica mostra como a posição dominante conquistada pela biologia molecular deslocou disciplinas tradicionais, como a agronomia, para lugares secundários, em uma competição envolvendo reconhecimento social e assimilação de práticas cognitivas e técnicas novas diferentes, como a substituição do trabalho de campo dos engenheiros agrônomos pelas análises baseadas nas técnicas de laboratório dos biólogos e biotecnólogos.

As relações entre ciência e sociedade são abordadas nos próximos dois artigos, o primeiro no âmbito de um campo disciplinar específico e o segundo no espaço mais amplo das transformações contemporâneas nos modos de conceber, organizar e dirigir a produção científica. Assim, segundo a análise de Federico di Pasquo acerca dos reflexos da crise ambiental sobre a ecologia disciplinar, a proeminência alcançada pelos problemas ambientais alterou o enfoque dos estudos em ecologia. Antes da problemática ambiental, as investigações envolviam dimensões físicas pequenas que eram familiares aos ecólogos por observação. Mas conforme os problemas ambientais foram ganhando proeminência, as investigações mudaram de escala e passaram a enfocar também questões macroscópicas, que envolvem sistemas complexos e simulações computacionais. De fato, houve uma espécie de ruptura na matriz disciplinar sem que isso significasse uma renovação absoluta dessa matriz. O que ocorreu, na realidade, foi a incorporação de novos fenômenos e estratégias metodológicas, por exemplo, nas áreas da ecologia da paisagem e da macroecologia. É em virtude disso que se pode afirmar a existência de uma descontinuidade diacrônica na matriz disciplinar da ecologia, o que, todavia, não impede certo tipo de continuidade sincrônica resultante do caráter global, sistêmico e hierárquico dos fenômenos investigados.

Em seu artigo, Verusca Moss Simões dos Reis e Antonio Augusto Passos Videira descrevem as principais teses de John Ziman acerca da natureza coletiva e cooperativa da atividade científica, mostrando como sua posição se constitui em diálogo com as normas sociais do éthos científico, tal como definido por Robert Merton. Reconstruindo as concepções do físico e epistemólogo em vasto conjunto de obras, os autores abordam os temas envolvidos no entendimento das transformações na organização e nas práticas de pesquisa, a partir da constituição da big science, na época da Segunda Guerra Mundial. Esclarecendo os movimentos argumentativos pelos quais Ziman formula sua interpretação de uma "ciência pós-acadêmica", os autores enfatizam seu diagnóstico das implicações cognitivas indesejáveis dos arranjos promovidos pela mais recente valorização da utilidade social da ciência.

Fecham essa seção de Scientiae Studia dois artigos propriamente filosóficos que tratam de problemas relativos à consistência interna da razão científica em geral e, especificamente, dos fundamentos epistemológicos das ciências humanas. Abordando o problema do desacordo racional nas controvérsias científicas, Alexandre Luis Junges argumenta, contra as atuais interpretações agnósticas, que há desacordos que repousam em razões epistêmicas. O artigo é exemplar da retomada filosófica do tema marcadamente sociológico da controvérsia na ciência, por meio de um enfoque dinâmico, sensível às dimensões históricas sociais da atividade científica. O estudo de caso da controvérsia da deriva continental permite elucidar a possibilidade do significado epistêmico do desacordo, identificando as condições pelas quais manter uma posição em um tema controverso não é expressão de dogmatismo ou irracionalidade.

Luiz Henrique Dutra encerra a seção de artigos com uma reflexão sobre o caráter emergente dos fenômenos psicológicos e sociais a partir do realismo perspectivista. De acordo com sua análise, é possível endossar um pluralismo ontológico emergentista sem que tenhamos que abandonar um monismo metafísico fisicalista. Em outras palavras, dizer que o estofo do mundo é material não impede que consideremos os fenômenos psíquicos e sociais como pertencentes a uma realidade própria do ponto de vista humano. A partir do exame de autores tais como Émile Durkheim, com relação aos fenômenos sociais, e Samuel Alexander e Lloyd Morgan, com relação aos fenômenos psíquicos, Dutra retraça o desenvolvimento histórico das teses emergentistas tão em voga na atualidade. No entender do autor, conceitos tais como "sistemas hierárquicos" e "causação descendente" podem ser satisfatoriamente acomodados pelo realismo perspectivista proposto por Ronald Giere, desde que tal realismo seja expandido de modo a abarcar todas as realidade abstratas e culturais resultantes das interações humanas.

Este número de Scientiae Studia conta ainda com quatro resenhas. As duas primeiras examinam duas referências clássicas muito importantes para os diálogos contemporâneos entre a filosofia e a sociologia. Começando pelo século XIX, Tonatiuh Useche Sandoval comenta o lançamento da tradução espanhola das lições de sociologia do Curso de filosofia positiva de Augusto Comte. No entender de Sandoval, tal livro possibilita que os sociólogos recuperem parte da história de sua disciplina e, ao mesmo tempo, fornece variadas reflexões de natureza filosófica propriamente dita. Na segunda resenha, Maurício Vieira Martins avança para o início do século XX e discorre sobre o primeiro volume da obra Para uma ontologia do ser social I de György Lukács, cuja tradução brasileira foi recentemente lançada pela Boitempo Editorial. Com efeito, Martins faz um exame dessa derradeira obra do filósofo húngaro, na qual ele expõe suas ideias em contraste com as de Hartmann, Hegel e Marx. O texto ressalta, amiúde, a maneira como Lukács propõe uma ontologia social emergente, o que, com efeito, é o mesmo assunto do último artigo deste número. Seguem-se duas resenhas que tratam de assuntos ligados à história da ciência e da tecnologia no Brasil. A resenha de Stelio Marras do livro de Alessandro Zir sobre os encontros entre portugueses e ameríndios no século XVI, na qual, situando a abordagem e os resultados de Zir, Marras discute as possibilidades e os desafios epistemológicos e históricos dos estudos sociais da ciência, que abrem espaços de entendimento para além do anacronismo da ortodoxia moderna e da impossibilidade de comunicação do relativismo. Finalmente, fechando o conjunto, a resenha bibliográfica das biografias históricas de Santos Dumont, de 1935 a nossos dias. Waldir Ramalho identifica os trabalhos mais consistentes, concentrados, com notáveis exceções, no século XXI, e mapeia os limites de volumosa literatura marcada por estreito ufanismo, na qual a louvação patriótica encobre grandes lacunas documentais, seja sobre a vida do aviador, seja acerca de seus projetos e técnicas de construção de aparelhos aéreos.

Editores adjuntos

Renato Rodrigues Kinuchi

Sylvia Gemignani Garcia

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Dez 2013
  • Data do Fascículo
    2013
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