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Ontologia social e emergência na obra do último Lukács

Social ontology and emergence in the work of late Lukács

RESENHAS

Ontologia social e emergência na obra do último Lukács

Social ontology and emergence in the work of late Lukács

Maurício Vieira Martins

Departamento de Sociologia, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil. mauriciovieira9@gmail.com

Para uma ontologia do ser social I

György Lukács

Apresentação: José Paulo Netto

Tradução: C. N. Coutinho; M. Duayer e N. Schneider

Boitempo

São Paulo, 2012, 431 págs.

O recente lançamento da tradução brasileira do primeiro volume da derradeira obra do filósofo húngaro György Lukács, Para uma ontologia do ser social I,1 1 Obra que doravante será referida simplesmente como Ontologia. permite que um público mais amplo tenha acesso ao texto que é considerado uma espécie de testamento filosófico do autor. Apesar de escrita durante o final de sua vida, Lukács concebia sua Ontologia como um novo recomeço. Segundo o relato de Nicolas Tertulian, Lukács dizia em tom autoirônico que "é privilégio de alguns gênios da filosofia, como Aristóteles ou Marx, esclarecer muito precocemente, aos vinte anos, o essencial de seu pensamento inovador; para os outros, para o comum dos mortais, pode acontecer (...) que somente aos 80 anos consigam clarear o núcleo de sua filosofia" (Tertulian, 1986, p. 52). Por mais desconcertante que essa declaração possa parecer, vale lembrar que a Ontologia lukacsiana foi concebida não só como o resgate de uma perspectiva filosófica, mas também como um esforço para o renascimento do marxismo, empobrecido por décadas de interpretações simplificadoras, que encontraram no stalinismo sua face mais brutal.

Mas em que sentido deve ser entendida, afinal, a ontologia proposta por Lukács? Se é verdade que cada filósofo imprime um sentido próprio às categorias herdadas da tradição filosófica, também Lukács não foge a essa regra. Em resumo de um longo trajeto, diríamos que, na pena do filósofo húngaro, uma ontologia se define pelo esforço em afirmar o ser como mundo, distinto, num primeiro momento, do sujeito que sobre ele se debruça, e que por isso demanda um saber que o formule em suas características singulares. Nesse esforço, serão imprescindíveis uma atualização e uma retificação do antigo conceito de substância, inclusive porque a consideração crítica de tal conceito não nos deve levar a desistir de sua objetividade, "mas tão somente de sua sic absolutidade [caráter absoluto]" (Lukács, 2012, p. 146). Em termos mais específicos, notemos que quando Copérnico e Galileu sustentaram, contra uma tradição milenar, que a Terra não é o centro do sistema solar, ou quando Darwin evidenciou que o homem é o resultado de um longo processo de evolução das espécies, tais afirmações resultavam de posições ontológicas que abalaram profundamente a imagem do mundo até então vigente. Trata-se de surpreender as diferentes estratificações da matéria (Lukács, 2012, p. 156), tomando-se o cuidado de respeitar as diferenças peculiares que emergem em cada grande período temporal. Dentro desses pressupostos, o intuito mais geral da visada ontológica é também elaborar uma visão de mundo abrangente que reúna e articule as diferentes contribuições das ciências particulares. Contra a fragmentação dos saberes predominante no âmbito universitário, a Ontologia lukacsiana tem um explícito anseio totalizante.

A hipótese sustentada pelo texto é a de que a filosofia do século XX progressivamente negligenciou a preocupação ontológica presente em filósofos como Aristóteles, Espinosa e Hegel, findando por gerar um inchaço desmedido da perspectiva gnosiológica mais afeta à teoria do conhecimento. É nesse sentido que deve ser lido o capítulo inicial da obra, onde se encontra uma áspera polêmica com um dos líderes do Círculo de Viena, Rudolf Carnap, positivista lógico que acalantava a "pretensão de criar um meio filosófico que extraditasse do campo do conhecimento toda visão de mundo, toda ontologia" (Lukács, 2012, p. 54, grifos meus). Assim, ao invés do esforço rumo ao conhecimento abrangente do mundo objetivo, passou a vigorar o apelo às dimensões mais tópicas, fenomênicas do real, que serão logo em seguida objeto de uma manipulação no circuito da sociedade mercantil. Segundo Lukács, o neopositivismo procede a uma atualização involuntária no mundo contemporâneo das argutas palavras de Hegel na Fenomenologia do espírito, pois "da mesma forma que há uma extensão vazia, há também uma profundidade vazia" (2012, p. 45).

A vacuidade do projeto neopositivista – ao afirmar taxativamente que qualquer perspectiva ontológica está ultrapassada – abre caminho, de um lado, para um subjetivismo filosófico exacerbado e, por outro, graças ao cancelamento tácito de qualquer critério de verdade, para a própria validação dos diferentes discursos religiosos. Mas é preciso recordar que Lukács certamente não está propondo o retorno a qualquer tipo de empirismo; até pelas características de sua formação filosófica, ele conhece bem o papel incontornável do sujeito na formação de qualquer conhecimento. Isso fica particularmente claro quando o filósofo nos lembra que "é indubitável que a participação do sujeito cognoscente no espelhamento do universal no pensamento é considerável" (Lukács, 2012, p. 60). Lukács protesta na verdade contra a ênfase desmedida contemporânea a respeito da subjetividade do conhecimento, que iguala o valor de verdade de todos os discursos. (Registremos aqui lateralmente que, em tempos mais recentes, o relativismo acentuado de um Feyerabend municiou, por exemplo, a equiparação do darwinismo ao criacionismo nas escolas dos EUA, sob o argumento enganoso de que seria preciso acolher democraticamente os diferentes discursos).

Dentre aqueles poucos autores que procederam a uma defesa da perspectiva ontológica no século XX, Lukács destaca as investigações de Nicolai Hartmann, hoje em dia injustamente esquecido. Foi ele que, antes de Heidegger, teve a coragem de se opor ao neokantismo então predominante, defendendo com firmeza a autonomia e a integridade próprias do mundo real. Segundo Hartmann, ao prolongar a intentio recta presente no conhecimento humano, a perspectiva ontológica expressa "o estar direcionado para aquilo que vem ao encontro do sujeito, para aquilo que ocorre, que se oferece, em suma, o estar voltado para o mundo em que o sujeito vive e do qual é parte" (Hartmann apud Lukács, 2012, p. 134, grifo meu). Ao invés disso, a perspectiva epistemológica hoje predominante promove uma espécie de torção da consciência sobre si mesma; torção que produzirá, dentre outros efeitos, o já mencionado inchaço das preocupações referentes à subjetividade e à linguagem, chegando, no limite, diríamos nós, à formulação extremada de que toda filosofia é crítica da linguagem.

Ainda com relação a Hartmann, Lukács subscreve, mas com algumas divergências importantes, sua teoria dos níveis do ser (os strata) e com isso modifica bastante o panorama do debate clássico sobre a ontologia. Agora, trata-se de apontar para as sucessivas modificações sofridas pelo ser natural até chegar ao ser social, propriamente humano, que demanda categorias peculiares de análise irredutíveis àquelas vigentes em seus primórdios. Essa indicação hartmanniana será retomada por Lukács em momentos posteriores de sua própria Ontologia, quando o filósofo húngaro nos mostrará os equívocos da vertente naturalista das ciências sociais. Com efeito, tal vertente transpõe categorias próprias dos fenômenos da natureza orgânica (como tendências de comportamento observáveis em alguns primatas) para o âmbito do ser social, desconhecendo a emergência de uma causalidade própria nas relações humanas. A afirmação de tal emergência, aliás, é talvez um dos aspectos mais fecundos dessa derradeira obra de Lukács. Apontando para a descontinuidade que o trabalho humano consciente – profundamente modificador do perfil da natureza originária – acarreta no ser social em face às determinações biológicas, Lukács afirma que "este [ser social] se mostra na própria realidade como emergência ainda mais incisiva do novo e, sobretudo, como nascimento de antíteses e contradições que, nesse sentido, excedem tanto o nível da vida quanto este último excede o nível do ser inorgânico" (Lukács, 2012, p. 274).

Em uma interpretação um pouco mais livre do texto lukacsiano, poderíamos dizer que ele evoca, mesmo que de forma indireta, o debate ainda em curso entre biólogos e físicos acerca da legitimidade do recurso explicativo a um princípio de redução. Como se sabe, os primeiros protestam contra as operações realizadas por nomes ilustres da física que, em sua defesa de um princípio supostamente mais elegante de explanação científica, findam por desconsiderar que a biologia investiga fenômenos que, mesmo não violando as regularidades enunciadas pelas ciências naturais, transcorrem em um patamar distinto de causalidade. Assim, quando um paleontólogo como Stephen Jay Gould foi convidado a se pronunciar, por ocasião dos 50 anos de publicação de O que é vida? de Erwin Schrödinger, ele não hesitou em afirmar: "não aceito o reducionismo subjacente à procura de leis gerais de abstração máxima" (Gould, 1997, p. 38). Trazendo esse raciocínio para o tema em foco, diríamos que da mesma maneira que biólogos contemporâneos recusaram a redução de seu campo do saber a um mero subcampo da física, também uma ontologia social deve ser enfática ao recusar as tentativas contemporâneas – e elas são inúmeras – de eleger algum tipo de sociobiologia como parâmetro a ser seguido.

Retornando à Ontologia de Lukács, após o debate com Hartmann, o autor prossegue com um denso ajuste de contas com Hegel, virtualmente impossível de ser resumido. Ainda assim, vale destacar que é mérito incontestável do filósofo de Jena ter esvaziado a antiga oposição entre ser e devir, pois o primeiro é visualizado também como um tornar-se que a rigor não admite nenhum tipo de cristalização. Daí Lukács apreciar a emblemática formulação hegeliana que afirma, em termos quase plásticos, que o "resultado nu é o cadáver que deixou atrás de si a tendência" (Lukács, 2012, p. 199), pois só mesmo o desconhecimento da gênese de uma tendência pode levar, erroneamente, a uma fixação unilateral em seu resultado que oblitera seu trajeto constitutivo. Além disso, merece atenção particular o aprofundamento que Lukács faz do tema hegeliano das determinações de reflexão. Tratam-se de pares de categorias (como essência e fenômeno, conteúdo e forma, necessidade e casualidade etc.) que eram formuladas de modo dicotômico pela tradição filosófica há literalmente séculos. Em contrapartida, Hegel nos mostra que tais categorias só podem ser corretamente visualizadas em sua interação reflexionante, onde não cabe pretender isolar qualquer de seus momentos constitutivos. Nas palavras de síntese de Lukács, "essência, fenômeno e aparência convertem-se ininterruptamente um no outro, as determinações de reflexão revelam, nesta nova concepção, um caráter primariamente ontológico" (2012, p. 253).

Ao mesmo tempo que Lukács recupera a vertente hegeliana mais produtiva, ele não se exime de apontar com firmeza para alguns equívocos graves do autor de A ciência da lógica. Além do conhecido idealismo exacerbado do filósofo alemão, Lukács nos chama a atenção para o primado que a lógica exerce sobre a ontologia em seus textos, onde "os fatos ontológicos são deformados em sua essência ao serem enquadrados à força em formas lógicas" (Lukács, 2012, p. 214). Esse é o logicismo não só de Hegel, mas de tantos intelectuais contemporâneos quando supõem que a cadeia de deduções lógicas pode substituir a necessária investigação acerca do decurso real dos fenômenos – que comporta uma heterogeneidade própria -, equívoco que a história viva dos homens não se cansa de ilustrar.

Após esse percurso, o primeiro volume da Ontologia chega finalmente ao pensamento de Marx. É nesse momento que salta aos olhos que o marxismo não deve ser visto apenas como uma teoria econômica que combate a exploração humana – o que por si só já seria uma enorme contribuição –, mas se constitui precisamente como uma ontologia que visa o espelhamento dialético possível de certa configuração do real. Lukács esclarece ainda o sentido preciso da determinação que a atividade econômica exerce sobre as demais atividades humanas (um aspecto cronicamente mal interpretado do pensamento de Marx), e sustenta que não se trata de uma apreciação valorativa, pois, para podermos viver, precisamos ter diariamente nossas necessidades básicas satisfeitas, prioridade incontornável de nossa existência cotidiana. Do mesmo modo, também na relação entre as categorias do ser e as da consciência verificamos que: "quando atribuímos uma prioridade ontológica a determinada categoria com relação a outra, entendemos simplesmente o seguinte: a primeira pode existir sem a segunda, enquanto o inverso é ontologicamente impossível" (Lukács, 2012, p. 307).

Lukács combate também a simplificação excessiva do pensamento de Marx, que pode ser ilustrada com clareza já no explícito distanciamento assumido pelo próprio fundador do materialismo histórico frente à vulgarização de sua obra. Contra um articulista russo que pretendia transformar suas teses acerca da origem do capitalismo na Europa Ocidental num postulado anti-histórico "ao qual todos os povos estariam fatalmente sujeitos" (Marx apud Lukács, 2012, p. 371), Marx se pronuncia de modo severo: "Mas eu lhe peço desculpas. Isso significa, ao mesmo tempo, honrar-me em demasia e insultar-me excessivamente" (Marx apud Lukács, 2012, p. 371). Essa enfática recusa de uma filosofia da história apriorística fornece a Lukács a oportunidade de, mais uma vez, apontar quão à frente de Hegel situou-se Marx, fato que vem sendo desconsiderado em nosso século.

Como se vê, para aqueles leitores que consideram que uma perspectiva ontológica é um projeto datado e por demais comprometido com uma perspectiva essencialista, a leitura de Para uma ontologia do ser social fornece abundantes elementos para um fértil debate. Pois se nos primórdios da história do pensamento a afirmação do ser veio de fato entrelaçada com a de uma imobilidade (como no poema clássico de Parmênides), já as ontologias contemporâneas apontam para o dinamismo que é intrínseco a qualquer momento histórico. György Lukács demonstra de forma eloquente nessa sua última obra como a espécie humana instaura – pela via do trabalho e da linguagem – um simultâneo desdobramento e descontinuidade face à physis originária.

Por fim, vale registrar que os diferentes capítulos foram traduzidos de forma extremamente cuidadosa para o português por Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider, e que o primeiro volume dessa obra seminal contou ainda com uma Apresentação, particularmente instrutiva, de José Paulo Netto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Gould, S. J. "O que é vida" como um problema histórico. In: Murphy, M. & O'Neill, L. (Ed.). "O que é vida?" 50 anos depois. São Paulo: Editora Unesp, 1997. p. 35-51.

Lukács, G. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo, 2012.

Tertulian, N. Lukács: la rinascita dell'ontologia. Roma: Editori Riuniti, 1986.

  • Lukács, G. Para uma ontologia do ser social I São Paulo: Boitempo, 2012.
  • Tertulian, N. Lukács: la rinascita dell'ontologia Roma: Editori Riuniti, 1986.
  • 1
    Obra que doravante será referida simplesmente como
    Ontologia.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Dez 2013
    • Data do Fascículo
      2013
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