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Editorial

Editorial

O quarto número de Scientiæ Studia deste ano contém um conjunto de artigos, documentos científicos e resenhas diretamente relacionado com a filosofia e a história da ciência. Os textos aqui publicados - com exceção da resenha que fecha o número e que trata da física quântica - dizem respeito a autores e temas do período antigo e moderno, tratando de aspectos da filosofia natural desenvolvida durante esse amplo período histórico. Do ponto de vista da cronologia histórica, o número contém, como documento científico, a primeira tradução para o português do tratado de óptica atribuído a Euclides de Alexandria (século III a.C.) e a introdução que situa a questão da visão no meio clássico aristotélico; segue-se o artigo dedicado ao cânone musical de Ptolomeu (século II d.C.) que se lança em busca dos instrumentos e das práticas musicais gregas nesse arco de cinco séculos de Antiguidade. O artigo sobre a noção de "horizonte" no período entre 1440 e 1624 faz uma discussão situada no limiar da revolução científica que dá passagem da Antiguidade/Idade Média ao período moderno, no qual se inscrevem as discussões sobre as dificuldades da concepção mecanicista cartesiana quando aplicada ao magnetismo e da hipótese newtoniana da gravitação universal, bem como a apresentação da imbricação entre filosofia e medicina na obra de La Mettrie. O número se encerra com três resenhas que tratam sucessivamente de uma nova edição portuguesa do celebrado Sidereus nuncius de Galileu, de uma coletânea que reúne trabalhos sobre aspectos da relação entre a filosofia de Kant e as ciências e, fechando o número, de um livro de entrevistas com cientistas, as quais espelham a diversidade de posições sobre a física quântica.

Os dois primeiros artigos deste número tratam, então, de questões que se vinculam à Antiguidade. No primeiro artigo, Cynthia Gusmão apresenta um panorama geral sobre os saberes e conhecimentos musicais na Antiguidade, tendo como limite a Harmônica de Claudio Ptolomeu (século ii), onde é compilada uma grande parte dos saberes e práticas da harmônica antiga. Deslocando o foco de sua análise da ciência para a técnica, a autora concentra sua atenção nos aspectos técnicos da música antiga, com especial atenção ao papel desempenhado pelos instrumentos musicais para o desenvolvimento das investigações acústicas, seja enquanto dispositivos experimentais que permitem o estudo e o desenvolvimento das escalas sonoras, seja enquanto instrumentos que dão corpo ao som, permitindo a expressão musical. Desse modo, a autora consegue mostrar como a investigação musical de Ptolomeu se move entre a concepção pitagórica, puramente aritmética, e a concepção aristoxeniana, mais "psicológica", explorando métodos empíricos de investigação que combinam a geometria e os afetos auditivos. Em seu artigo, Leonardo Levinas e Aníbal Szapiro dedicam-se ao exame das transformações do conceito de "horizonte" em obras astronômicas escritas entre 1440 e 1624, tendo como centro da reflexão o argumento de Ptolomeu de que o comportamento do horizonte provava a posição central da Terra. Em virtude das vinculações do conceito de "horizonte" com outros conceitos fundamentais que caracterizam os sistemas astronômicos e de seu caráter constitutivo da realidade e da observação astronômicas, esse conceito adquire um lugar central no debate entre geocentristas e heliocentristas, de modo que a história de suas mudanças conceituais permite, segundo os autores, uma nova via de acesso à revolução científica do século XVII.

Os três artigos seguintes dedicam-se a aspectos vinculados ao desenvolvimento da ciência moderna. Em seu trabalho, Érico Andrade dedica-se à defesa de uma tese interpretativa heterodoxa sobre a ciência cartesiana, segundo a qual a experiência tem nela um papel fundamental, a tal ponto que em certas ocasiões, como no caso exemplar do magnetismo, Descartes abandona a exigência sistemática estrita (da metafísica mecanicista) diante das observações e dos experimentos. Tomando, então, o problema do magnetismo e da explicação cartesiana sobre as propriedades do ímã como caso típico, o autor pretende mostrar que a adoção, nos Princípios da filosofia, de uma propriedade magnética contrária à lei de conservação da quantidade de movimento prova o compromisso de Descartes com a experiência. O artigo de Silvio Seno Chibeni é dedicado à análise do estatuto epistemológico de hipóteses científicas que transcendem a experiência imediata, como é o caso da hipótese newtoniana da força de gravitação universal. Ainda que apresente as posições de Newton sobre como a força gravitacional pode ser tomada como causa na explicação de muitos fenômenos do movimento e ainda que exponha as dificuldades de Newton em encontrar uma causa que permitisse a explicação dessa mesma força gravitacional, o autor não se dedica a aprofundar a análise histórica das declarações de Newton sobre a natureza da força de gravidade, mas antes a discutir como a natureza dessa força foi avaliada de duas perspectivas empiristas opostas, seja da perspectiva realista, como a de Locke, segundo a qual a força gravitacional deve ser entendida como uma tentativa de descrever aspectos inobserváveis da realidade, seja da perspectiva instrumentalista, sustentada por Berkeley, segundo a qual as forças em geral, incluindo a gravitacional, devem ser entendidas como meros artifícios teóricos e matemáticos sem alcance real. Finalmente, encerrando o conjunto de artigos, Marisa Carneiro de Oliveira Franco Donatelli apresenta um estudo da imbricação entre filosofia e medicina na obra de La Mettrie, mostrando como sua concepção de que o estudo da natureza começa com a investigação do homem e com a comparação de sua estrutura com aquela dos animais (o que é uma decorrência de ambos estarem sujeitos às mesmas leis universais) preside a construção da célebre imagem mecanicista do homem-máquina. A discussão da proximidade entre filosofia e medicina permite também apresentar as consequências das teses lamettrianas no plano moral enquanto plano vinculado às ações médicas.

Scientiæ Studia tem a satisfação de publicar como documento científico deste número a primeira tradução para o português da Óptica de Euclides. Nesse tratado, escrito na primeira metade do século III a.C., o célebre matemático alexandrino expõe o que se considera como a primeira elaboração conhecida da óptica geométrica. Em sua introdução, Guilherme Rodrigues Neto faz uma investigação arqueológica em torno da óptica euclidiana, tomando o cuidado de trata-la como "uma ciência fóssil" (no sentido de não implicar algum aporte para nosso entendimento atual do fenômeno da visão). O autor situa o tratado de Euclides no contexto das teorias da visão elaboradas pelos filósofos antigos e mostra uma certa aproximação da teoria geométrica da visão elaborada por Euclides com a teoria aristotélica da sensação visual. Resulta desse esforço de compreensão a defesa da tese segundo a qual a óptica euclidiana é uma "ciência da aparência dos sensíveis comuns".

Concluem este número de Scientiæ Studia três resenhas. Na primeira, Paulo Tadeu da Silva aborda a tradução portuguesa do Sidereus nuncius. Essa tradução do original latino apresenta também um estudo introdutório e um aparato crítico que possibilitam uma boa compreensão dos aspectos envolvidos na elaboração desse texto de Galileu, tratando diretamente do impacto causado pela publicação do livro e pelas descobertas galileanas no pensamento científico da época, especialmente em Portugal, no Colégio de Santo Antão. Apesar do reconhecido valor do trabalho de tradução dessa obra, o autor adverte que o estudo introdutório deixa de utilizar uma parte importante do trabalho de crítica e tradução da obra galileana produzido no Brasil, de modo que não se pode dizer que seja atualizado. Na segunda resenha, Eduardo Salles de Oliveira Barra analisa criticamente uma coletânea de artigos sobre o estatuto das ciências na filosofia de Kant. Além da falta de um tratamento mais profundo dos Princípios metafísicos da ciência da natureza, uma das obras mestras de Kant para a compreensão da relação entre sua filosofia e a ciência, a coletânea apresenta também o viés de favorecer a abordagem genéticohistórica em detrimento de uma abordagem analítico-conceitual. Finalmente, na resenha de Olival Freire Júnior que encerra este número, encontramos uma avaliação do livro composto por uma série de entrevistas sobre física quântica com físicos e filósofos preocupados com o tema, colocando-nos diante de uma diversidade de opiniões entre pesquisadores de fundamentos da física quântica, resultado de gerações e formações bastante distintas de pesquisa. Para Freire, embora o livro tenha tratado da dimensão filosófica do debate sobre os fundamentos da física quântica, ele não oferece contribuições mais profundas provenientes da filosofia da ciência.

Os editores

Pablo Rubén Mariconda

Claudemir Roque Tossato

Marisa Carneiro de Oliveira Franco Donatelli

Paulo Tadeu da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2014
  • Data do Fascículo
    Dez 2013
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