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O mecanicismo em questão: o magnetismo na filosofia natural cartesiana

Questioning mechanicism: magnetism in cartesian natural philosophy

Resumos

O objetivo deste artigo é provar que a experiência tem um papel central na ciência cartesiana e que, portanto, Descartes está disposto a abandonar alguns pressupostos teóricos para adequar-se a algumas observações científicas. Meu ponto é que o compromisso de Descartes com as observações científicas é tão forte que, no estudo do magnetismo, ele opta pela inconsistência do seu sistema quando adota uma propriedade do magnetismo que contraria a lei da conservação da quantidade de movimento. Ou seja, mostrarei que Descartes acata uma propriedade do ímã, observada por vários cientistas, especialmente Gilbert, que é contrária à lei da conservação da quantidade de movimento para resguardar uma sintonia com as observações empíricas. Esse compromisso com a experiência reforça a imagem de que Descartes não era indiferente às observações empíricas do seu tempo, mas opera uma ciência que tenta adequar-se a elas.

Descartes; Método; Magnetismo; Leis da natureza; Experiência


This article sets out to prove that experience plays a central role in Cartesian science and, therefore, that Descartes is willing to let go of some theoretical assumptions in order to accommodate scientific observations. My point is that Descartes' commitment to scientific observation is so strong that in the study of magnetism, he chooses not to keep his system not completely consistent when he adopts a magnetic property (a property that was observed by several scientists, especially Gilbert) that contradicts the law of conservation of quantity of motion in order to keep in touch with empirical observations. This commitment to experience further strengthens the notion that Descartes was not indifferent to the empirical observations of his time, and actually engages in scientific work that tries to adapt itself to them.

Descartes; Method; Magnetism; Natural laws; Experience


ARTIGOS

O mecanicismo em questão: o magnetismo na filosofia natural cartesiana

Questioning mechanicism: magnetism in cartesian natural philosophy

Érico Andrade

Departamento de Filosofia Universidade Federal de Pernambuco, Brasil. ericoandrade@hotmail.com

RESUMO

O objetivo deste artigo é provar que a experiência tem um papel central na ciência cartesiana e que, portanto, Descartes está disposto a abandonar alguns pressupostos teóricos para adequar-se a algumas observações científicas. Meu ponto é que o compromisso de Descartes com as observações científicas é tão forte que, no estudo do magnetismo, ele opta pela inconsistência do seu sistema quando adota uma propriedade do magnetismo que contraria a lei da conservação da quantidade de movimento. Ou seja, mostrarei que Descartes acata uma propriedade do ímã, observada por vários cientistas, especialmente Gilbert, que é contrária à lei da conservação da quantidade de movimento para resguardar uma sintonia com as observações empíricas. Esse compromisso com a experiência reforça a imagem de que Descartes não era indiferente às observações empíricas do seu tempo, mas opera uma ciência que tenta adequar-se a elas.

Palavras-chave: Descartes. Método. Magnetismo. Leis da natureza. Experiência.

ABSTRACT

This article sets out to prove that experience plays a central role in Cartesian science and, therefore, that Descartes is willing to let go of some theoretical assumptions in order to accommodate scientific observations. My point is that Descartes' commitment to scientific observation is so strong that in the study of magnetism, he chooses not to keep his system not completely consistent when he adopts a magnetic property (a property that was observed by several scientists, especially Gilbert) that contradicts the law of conservation of quantity of motion in order to keep in touch with empirical observations. This commitment to experience further strengthens the notion that Descartes was not indifferent to the empirical observations of his time, and actually engages in scientific work that tries to adapt itself to them.

Keywords: Descartes. Method. Magnetism. Natural laws. Experience.

INTRODUÇÃO

Tenho escrito sobre os problemas da posição que toma a ciência cartesiana como o espelho de um monobloco de certezas concatenadas na forma do modelo euclidiano. Essa posição governa parte das interpretações clássicas da ciência cartesiana, como a de Tournadre (1982), que defende o método cartesiano como a expressão acabada do modelo dedutivo. Outro exemplo seria Gueroult (1968, 1, p. 92), cuja interpretação consiste, entre outras coisas, na defesa de que o ideal da física cartesiana é tornar-se uma ciência estritamente abstrata ou mesmo uma matemática pura. Outras posições, fortes na década de 1980, ponderam as dificuldades de a ciência cartesiana ser perfeitamente dedutível, diante das contingências recalcitrantes da experiência, mas mantêm a tese de que a ciência cartesiana é essencialmente dedutiva. O uso da experiência seria, portanto, acidental. Essa última posição, com matizes diferentes, é defendida por Mouy (1981, p. 44), mas já encontrava abrigo na interpretação de Allard, para quem a experiência foi um grande obstáculo ao ideal cartesiano: "constatamos que Descartes foi incapaz de realizar completamente o seu ideal científico" (Allard, 1963, p. 190). Mais recentemente, alguns autores apostam no descompasso entre o método e a prática científica cartesiana, colocando o uso da experiência como algo que se opõe, pelo menos, a algumas das formulações do método cartesiano ligadas mais intimamente com a matemática (cf. Fichant, 1998, p. 84; Kobayaschi, 1993, p. 10, 26). Diferentemente dessas interpretações, defendo que a ciência cartesiana contém imprecisões, falhas e é marcada por um forte compromisso com a experiência. Neste artigo, tenciono mostrar que o magnetismo é mais um índice de que a ciência cartesiana não é um sistema completamente ordenado de certezas perfeitamente dedutíveis umas das outras, mas se move no terreno pantanoso das hipóteses e das experiências recalcitrantes.

Meu ponto central consiste na defesa de que, para se adaptar às observações empíricas e, por conseguinte, salvar determinados fenômenos, estabelecidos por observações, a ciência cartesiana é capaz de comportar algumas inconsistências pontuais no seu corpus teórico. Quando assume esse compromisso com as observações, a referida ciência mostra-se profundamente ciosa da experiência. No intuito de defender esse ponto, mostrarei, talvez de forma inédita (pelo menos nunca li um texto que explore essa contradição), que, para a explicação do magnetismo, Descartes reserva-se o direito de ferir uma das leis da natureza para adaptar seu modelo mecanicista a uma das propriedades do ímã. Embora seja uma contradição pontual, ela é suficiente para indicar que o sistema cartesiano não é perfeito. Em outras palavras, para uma compreensão da ciência cartesiana como a expressão do modelo euclidiano, uma contradição é condição necessária e suficiente para colocar em dúvida a tese de que a ciência cartesiana é um sistema fechado e completamente coerente. Pretendo apresentar evidências textuais que demonstram que Descartes é antes de um metafísico austero, comprometido com uma coerência total e irrestrita de seus estudos científicos, um homem de ciência capaz de negociar a universalidade das leis da natureza, próximas de uma espécie de axioma, em nome da construção de uma ciência em sintonia com as evidências empíricas. Tenho consciência da dificuldade de empreender essa análise em face não apenas da visão cristalizada de Descartes como um filósofo cuja preocupação com a metafísica era central, mas, sobretudo, com a tendência dos intérpretes em procurar uma coerência na obra dos filósofos, mesmo quando ela não é evidente ou simplesmente não existe de modo pleno, perfeito. Por isso, gostaria de sublinhar que, uma vez apresentada a contradição e os motivos pelos quais ela ocorre no interior da ciência cartesiana, o leitor deverá conceder que, pelo menos no campo da ciência, em que a reflexão não pode prescindir da experiência, a coerência irrestrita e plena do pensamento cartesiano não existe.

A estrutura deste artigo está dividida em quatro etapas. Primeiramente, farei uma brevíssima abordagem sobre o lugar do magnetismo nos Princípios, no intuito de sublinhar que algumas das dificuldades relativas à redação dessa obra não podem servir como subterfúgio para justificar qualquer inconsistência da ciência cartesiana. Em seguida, discutirei um pouco as principais diretrizes do mecanicismo cartesiano para mostrar seu caráter inovador em relação ao modelo aristotélico. Depois, investigarei o modo pelo qual Descartes pretende estudar os fenômenos magnéticos. Nesse momento, vou investigar a função da experiência na ciência cartesiana, no intuito de esclarecer seu duplo papel: por um lado, ela fornece o material empírico ao qual se volta a análise científica ou, em outras palavras, oferece o valor das variáveis com as quais a ciência opera; por outro lado, ela serve para corroborar as hipóteses científicas quando mostra a sintonia entre a realidade empírica e os modelos de análise científica. Nesse momento, tratarei também dos conceitos de explicação e de dedução. Por fim, apresentarei o magnetismo como um obstáculo epistemológico e ontológico importante para o projeto mecanicista cartesiano, visto que nem todas as leis da natureza podem ser aplicadas ao estudo desses fenômenos.

1 TEXTO, LEIS E CIÊNCIA: OS OBSTÁCULOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA FILOSOFIA DA NATUREZA

A abordagem mais sistemática do magnetismo encontra-se na quarta parte da obra Princípios da filosofia. Essa obra tinha o propósito de, entre outras coisas, divulgar a filosofia cartesiana junto às escolas na forma de um manual que percorre diversos problemas do conhecimento humano. Essa adaptação foi bastante onerosa no tocante à clareza do texto. Para estar, pelo menos em parte, em sintonia com o público escolástico, Descartes precisou recorrer ao uso de termos medievais e aristotélicos, dificilmente harmonizáveis com os termos consagrados pela sua filosofia. Ideias novas expressas em um vocabulário não tão novo podem gerar confusões e imprecisões. De fato, os Princípios são um bom exemplo disso, especialmente no que concerne aos termos metafísicos (por exemplo, os de substância, modo e atributo) cujo emprego naquela obra ainda suscita debates acalorados entre os seus intérpretes. Como agravante, deve-se ressaltar ainda que a versão francesa do livro, autorizada por Descartes, que em nenhum momento sugere que se trata de uma versão revisada, guarda em vários momentos uma importante diferença no que diz respeito à primeira edição latina. Trechos inteiros são introduzidos no meio dos artigos que compunham a versão original latina. Existe ainda outra classe de problemas relativa à versão francesa, a saber, a introdução de novos exemplos no tratamento das questões da física. Notadamente, são introduzidos, no estudo do choque inelástico e retilíneo entre dois corpos, alguns exemplos que não constam na edição latina, mas que revelam a preocupação de Descartes em continuar tal estudo.

Por conseguinte, existem, pelo menos, três categorias de problemas quanto à obra em que Descartes concentra, de modo sistemático, a análise do magnetismo. A primeira refere-se ao vocabulário, cujo grande número de termos escolásticos pode desviar o leitor do propósito cartesiano de romper com vários enunciados da própria filosofia escolástica. A segunda diz respeito à introdução de trechos ao longo do texto que precisariam ser apresentados como notas explicativas, autorizadas expressamente pelo autor. A terceira classe, por fim, refere-se à introdução de novos exemplos da física no que diz respeito ao problema dos choques que, embora possam, eventualmente, tornar o seu estudo mais fácil, precisariam ser apresentados ao leitor como novos exemplos de um mesmo conjunto de problemas. Em outro nível de dificuldade, não devo me furtar de reconhecer que o contexto da redação da obra é delicado, ainda que para a análise do texto isso não seja necessariamente um empecilho estruturante. No entanto, sabemos que o heliocentrismo, que Descartes defendia no Tratado da luz ou O mundo, não poderia ser assumido. Caso assumisse o heliocentrismo, Descartes correria o risco de não apenas ter o seu livro queimado, como também ele mesmo poderia acabar na fogueira. Acredito que essas particularidades tornam os Princípios da filosofia uma das obras cartesianas de mais difícil compreensão.

Ainda que as referidas adaptações possam singularizar o lugar dos Princípios da filosofia no interior da obra cartesiana, elas não são tratadas em nenhum momento por Descartes como o sintoma de uma mudança estrutural de seu mecanicismo. Nas correspondências, Descartes alerta para a necessidade de revisões de vários problemas, mas não da estrutura da obra. Por isso, ainda que os problemas relativos ao conhecimento da direção de dois corpos após a colisão sejam, naquele momento, de difícil solução - como Descartes reconhece em carta a Cleselier de 17 de fevereiro de 1645, "devo confessar que essas regras guardam dificuldades" (AT, 4, p. 187) -, ele confia que a ciência ensejada na maior parte da obra não é afetada por uma dificuldade pontual, inscrita naqueles problemas. Considerando que a falta de uma compreensão clara do problema do choque não altera a estrutura dos Princípios e nem os demais resultados científicos produzidos nessa obra, Descartes aconselha a rainha a deixar de lado o problema do choque e concentrar-se em outras questões mais relevantes da obra, para as quais ele não guarda nenhuma ressalva, como expressa na carta a Chanut de 26 de fevereiro de 1649, quando escreve: "não é mais necessário parar para examinar as regras do movimento que estão no artigo 46 da segunda parte e as demais regras do movimento que se seguem porque elas não são necessárias para a compreensão do resto da obra" (AT, 5, p. 291).

De fato, a ciência produzida nos Princípios não opera com a idealização dos choques entre os corpos, estudada por Descartes naqueles artigos, mas se constitui numa análise circunscrita essencialmente ao movimento da matéria sutil, cuja composição comporta uma série de micropartículas que entram em choque entre si. O mecanicismo desenvolvido nos Princípios opera com a ideia de que a matéria é um feixe de micropartículas que compõem vários vórtices e não uma soma de objetos isolados uns dos outros. Para a compreensão do comportamento da matéria sutil, o estudo do choque entre dois corpos inelásticos não contribui substancialmente.

Ademais, no que diz respeito ao uso do vocabulário escolástico, é necessário reconhecer que isso torna a obra mais difícil quanto ao propósito de instituir uma nova ciência, mas não altera a análise científica que a obra desenvolve. A estrutura do texto, embora parcialmente escolástica, também não se configura como um problema que possa ameaçar a análise científica presente na obra. De fato, Descartes mostra pouco interesse pelos manuais de filosofia escolástica, como é possível reconhecer nas cartas a Mersenne, que antecedem a redação dos Princípios, de 11 de novembro de 1640 (AT, 3, p. 232) e de 3 de dezembro de 1640 (AT, 3, p. 251). De qualquer modo, a estrutura do texto, na forma de um manual escolástico, não promove uma alteração substancial das leis da natureza ou do procedimento científico retratados nos diversos artigos da obra. Descartes mantém, por exemplo, a tese, diametralmente oposta à visão de mundo do seu público, de que as leis da natureza não conhecem nenhuma restrição espacial. Em outras palavras, uma das teses cartesianas mais contundentes do Tratado da luz ou O mundo, a saber, da indistinção ontológica entre as diversas regiões do universo, não é posta em dúvida. As leis da natureza são válidas para qualquer lugar do universo.

Por fim, ainda que se possa discutir sobre a compatibilidade entre as diferentes definições do movimento nos Princípios - movimento no sentido vulgar ou relativo (cf. (AT, 9, p. 75-6) e movimento no sentido real (cf. AT, 9, p. 76), não se pode deixar de reconhecer que elas cumprem, ao longo da obra, não apenas uma função retórica de evitar um confronto com a doutrina da Igreja, mas desempenham, como mostrei em outra oportunidade (cf. Andrade, 2006b), um papel na explicação científica concernente à tentativa de resolver o problema do movimento relativo (cf. Garber, 1999, p. 254-5, que advoga em favor da tese de que a definição do movimento real nos Princípios, embora não seja aplicada a todos os estudos científicos presentes naquela obra, é importante para dar uma resposta sobre a ontologia do movimento). Deve-se entender que a resolução do problema do movimento relativo não se restringe à letra do texto cartesiano, mas dilata-se nos vários escritos científicos do século XVII. Os filósofos queriam estabelecer uma definição do movimento que não estivesse subordinada ao sabor da contingência do referencial que serve de parâmetro relativo para a identificação do movimento de um determinado corpo.

O núcleo duro da ciência cartesiana (o seu comprometimento ontológico e seu procedimento metodológico) não é alterado. Permanecem as leis da natureza para as quais Descartes não reserva nenhuma restrição quanto à sua universalidade. No que concerne à prática científica, Descartes não desautoriza o uso de hipótese, nem, muito menos, o recurso à experiência. Portanto, a possibilidade de revisar algumas proposições científicas dos Princípios ou mesmo o ajuste de alguns conceitos ao vocabulário escolástico não configuram a priori um abandono das teses seminais que servem de alicerce para o mecanicismo. Nesse sentido, o ônus de provar uma contradição flagrante por conta da adaptação dos Princípios ao público escolástico deveria ser do leitor - talvez opositor - de Descartes, mas não do texto.

A adaptação ao público escolástico não significou submissão. Por isso, Descartes tenta desarmar o seu leitor para que ele realize uma leitura da obra em que as diferenças ontológicas entre as duas regiões da Terra sejam diluídas. Para essa posição ousada, Descartes reserva a seguinte advertência: "ademais pode-se observar aqui uma verdade que parecerá, talvez, paradoxal para várias pessoas, a saber, que as mesmas propriedades se encontram na matéria do céu, do Sol e dos outros astros" (AT, 9, p. 136). Essa passagem deixa claro que Descartes mantém a tese metafísica e epistemológica de que não há distinção ontológica entre as diferentes regiões do universo, visto que as propriedades dos corpos não variam por causa de sua diferente localização no universo. Ou seja, as diferenças entre os objetos não revelam a existência de propriedades intrínsecas condizentes com o local que esses objetos ocupam no universo, porque as propriedades dos corpos são decorrentes das variações de movimento e tamanho, cuja regulamentação é dada pelas mesmas leis da natureza. Nesse contexto, nenhum estudo científico produzido nos Princípios pode se apresentar como uma exceção no interior da obra. Por isso, os fenômenos magnéticos presentes na quarta parte dos Princípios deveriam estar submetidos ao mesmo tratamento mecânico despendido aos demais fenômenos da natureza.

Descartes é razoavelmente hábil para lidar com um público potencialmente hostil às novidades que a sua obra almeja ensejar. Ele incorpora nos Princípios uma estrutura parcialmente escolástica, usa um vocabulário escolástico e realiza um incremento na definição de movimento, que tenta conciliar heliocentrismo e geocentrismo, mas não concede ao leitor que seus princípios essenciais sejam postos em negociação. Por conseguinte, as mudanças que ocorrem no texto são acidentais, caso se perceba que o núcleo duro da ciência cartesiana permanece intacto. As concessões não foram dadas para destruir o caráter inovador da obra, mas apenas para permitir que ela circulasse numa gama maior de leitores e que pudesse encontrar abrigo no interior dos muros das abadias. Por isso, nenhum estudo realizado nos Princípios pode ser relativizado ao ponto de colocar a validade daquela obra em questão por conta de seu perfil parcialmente escolástico. Caso haja alguma incoerência na obra cartesiana, ela não poderá espelhar apenas uma saída retórica para a encruzilhada inquisitória. Se ela de fato existir, deverá ter a sua raiz em outros problemas.

Nessa perspectiva, tenciono defender que, para explicar e se adequar aos fenômenos ligados ao magnetismo, Descartes foi obrigado a renunciar parcialmente à coerência do seu mecanicismo e a trabalhar também com uma postura pragmática no sentido de "salvar os fenômenos" e adaptar-se, portanto, à experiência. Descartes foi capaz de sacrificar a coerência total e irrestrita do mecanicismo para poder contemplar as observações existentes na época, sobretudo, aquelas relativas ao ímã. Meu objetivo é mostrar que o magnetismo se configurou como o grande empecilho para o mecanicismo cartesiano no que diz respeito à sua coerência. A apresentação dessa dificuldade contribui para desfazer a imagem de Descartes como um idealista austero e insensível diante das evidências empíricas. Entre o fato e a teoria, Descartes opta pelo fato, porque, ao contrário da teoria, este não pode ser modificado, adaptado.

2 O MUNDO DENTRO DE UMA MÁQUINA: AS PEÇAS E OS COMANDOS

Na seção anterior mostrei que a redação dos Princípios tinha uma leve tonalidade escolástica para despojar o seu leitor de qualquer resistência mais radical quanto às suas heterodoxas teses científicas. Nesta seção, tenciono mostrar em que pontos a filosofia da natureza cartesiana guarda profundas divergências com aquela propagada por parte importante da filosofia escolástica, mas especialmente com a sua base aristotélica. Apesar de ser composta por uma complexa rede de posições distintas e nem sempre harmonizáveis entre si, a escolástica retinha, de modo geral, algumas teses aristotélicas contra as quais Descartes não hesitará em se opor.

Para Aristóteles, era possível pensar o movimento dos corpos em função da natureza particular de cada um deles. O seu deslocamento não seria a expressão de um choque contingente entre corpos, mas uma adaptação espontânea que os conduz ao seu lugar natural, como Aristóteles relata de modo exemplar na seguinte passagem do De caelo.

Que existe o leve absoluto e o pesado absoluto é uma coisa evidente pelas seguintes razões. Eu entendo pelo leve absoluto aquilo cuja natureza se dirige invariavelmente para o alto e pelo pesado absoluto aquilo cuja natureza se dirige invariavelmente para baixo com a condição de que nada o impeça (Do céu, 1966, 4, 4, 311b).

1 1 Cf., também, Do céu, 4, 5, 312b. Essa distinção entre leve e duro serve para indicar que os corpos são compostos de diferentes matérias (cf. 312a). Cf., também, "se o corpo é duro, ele é naturalmente transportado para o centro e se é leve para o alto" (Física, 3, 5, 205b25-30). Sobre a diversidade de movimentos de acordo com genus entis, cf. Meteo, 1, 338a20, 339a9.

Para o estudo do movimento, Aristóteles postula como ponto nodal o estudo do lugar para o qual o objeto tende, visto que o lugar e o objeto guardam uma simetria ontológica conforme a qual para cada lugar há um objeto ou uma classe de objetos ontologicamente compatível. Ou ainda, nas palavras de Aristóteles, "todo corpo sensível está no seu lugar" (Física, 3, 5, 205b30-35). Lugar e objeto guardam uma mesma natureza, de sorte que o lugar não pode ser visto como um espaço esvaziado de qualidades ontológicas. Ele, em verdade, expressa uma ordem inexorável do ponto de vista da totalidade do universo, na qual cada corpo ou classe de corpos têm seu lugar natural. O movimento teria a função de realizar a ordem da natureza. Ele seria, nesse sentido, a expressão de uma racionalidade intrínseca às coisas (cf. Da alma, 2, 1, 412b5). Para Aristóteles, os objetos contêm, de algum modo, um princípio inteligente que os governa. O movimento deve ser visto como a realização desse princípio. Neste sentido é racional que cada objeto seja transportado para o seu lugar próprio (cf. Física, 4, 5, 212b30-33; Do céu, 1, 1, 268b). Essa definição de movimento compreende que a natureza dos corpos determina o seu movimento. As qualidades de leveza e dureza são consideradas importantes para definir o modo como eles se deslocam.

A posição cartesiana estrutura-se como oposição à filosofia aristotélica. Por isso, parte do esforço da epistemologia cartesiana consiste em reduzir as variáveis com as quais a ciência deve operar. É como se as diversas categorias aristotélicas fossem reduzidas à única categoria de quantidade, cujo âmbito de compreensão englobaria apenas predicados geométricos expressos na noção de extensão, "o que quer que seja essa matéria primeira dos filósofos, se analisamos todas as formas e qualidades, permanece apenas aquilo que é claramente extenso" (Descartes, 2008, p. 50; AT, 11, p. 33). Certamente, essa visão profundamente deflacionada da matéria, presente em toda obra cartesiana, é problemática, sobretudo no que concerne ao conceito de força, que parece exigir da matéria uma qualidade que não é predicada apenas de sua estrutura geométrica. Contudo, para a presente discussão, não vou me ater a esse problema e sugiro ao leitor o artigo de Eduardo Barra (2003), que classifica e distingue as diferentes posições dos intérpretes cartesianos quanto à natureza da força no mecanicismo cartesiano. O ponto é que, com a introdução do conceito de força, a matéria dificilmente pode ser vista apenas em função de suas propriedades geométricas ou, nas palavras de Hattab, ela não pode ser apenas "pura e indiferenciada extensão" cuja essência se restringe aos predicados estritamente geométricos, pois a compreensão mecânica dos fenômenos físicos exige que a matéria seja entendida como algo dinâmico e, portanto, passível de um tratamento "mecânico e geométrico" (Hattab, 2009, p. 144). A matéria seria uma coisa extensa e, ao mesmo tempo, mecânica. De qualquer modo, basta, para meu propósito, destacar que a visão cartesiana deflacionada da matéria torna o universo homogêneo do ponto de vista da estrutura última que o constitui. Na mecânica cartesiana, as engrenagens têm uma mesma estrutura. Elas variam apenas em grandeza (tamanho), figura e na velocidade que realizam os seus respectivos movimentos.

A uniformidade ontológica da matéria, que condensa toda variação da matéria nos predicados geométricos, é, de fato, uma condição necessária para a unidade ontológica do universo e, por conseguinte, para a unidade da filosofia natural. No entanto, ela não é condição suficiente. As engrenagens de um sistema mecânico funcionam segundo comandos que ordenam as variações dos movimentos realizados na máquina. É preciso que essa matéria se comporte em sintonia com as mesmas leis. A máquina precisa de comandos constantes e que rejam igualmente todas as engrenagens. Uma das vantagens do mecanicismo cartesiano foi projetar, na filosofia da natureza, uma visão em que os comandos são uniformes e constantes sem se restringirem a nenhum local específico da máquina. Assim, a física cartesiana se expressa por leis simples e válidas em qualquer contexto. Elas são universais temporalmente (porque válidas desde a criação do universo) e espacialmente (válidas em qualquer lugar do universo).

Nesse sentido, Descartes enuncia nos Princípios três leis da natureza que governam, ou pelo menos deveriam governar, todos os corpos do universo. Essas leis sofrem algumas alterações nos seus enunciados em relação às suas respectivas formulações em O mundo. Não tenciono discutir agora o motivo dessa reformulação (embora tenha feito isso em Andrade, 2008), nem se essas formulações as tornam incompatíveis com as leis propostas em O mundo. As dificuldades para defender que essas leis são incompatíveis são tão notórias que provavelmente são o motivo de nenhum intérprete sustentar tal incompatibilidade. Para meu propósito de análise dos Princípios, essas eventuais alterações não mudam a prerrogativa de que essas leis regem todos os corpos do universo em qualquer momento do tempo e em qualquer lugar do espaço. Assim, permitam-me citar as duas primeiras leis enunciadas nos Princípios e a terceira em O mundo, cuja formulação é mais clara.

L(1) Cada corpo permanece no estado em que se encontra enquanto nada o mude (AT, 9, p. 84).

L(2 Princípios) A segunda lei que destaco na natureza é que cada parte da matéria, no que concerne à sua particularidade, não tende a mover-se segundo a linha curva, mas segundo a linha reta (AT, 9, p. 85).

Como segunda regra, suponho que quando um corpo empurra outro, ele só lhe transmitirá seu movimento caso perca, simultaneamente do seu próprio movimento, assim como não poderá retirar seu movimento senão aumentando o seu próprio movimento (Descartes, 2008, p. 50-60; AT, 11, p. 41).

Essas leis conferem um caráter dinâmico à matéria e subsidiam a explicação referente ao modo pelo qual os corpos se comportam quando se chocam. Elas serão ilustradas nos Princípios com o estudo do choque entre corpos, que se constitui em um dos capítulos mais problemáticos da filosofia natural cartesiana, como mostrei anteriormente. De qualquer modo, apenas gostaria aqui de sublinhar a tese, bastante ortodoxa e aceita em geral por todos os comentadores, de que os comandos do mecanicismo cartesiano operam de modo uniforme porque toda a máquina do mundo tem seu funcionamento circunscrito às variações de comportamento reguladas por essas leis.

A mecânica cartesiana é uma tentativa de enquadrar a realidade em uma "rede" de proposições capazes de se projetarem sobre a natureza como uma malha simples e precisa. Parte da simplicidade da mecânica cartesiana está subordinada à sua economia conceitual: poucas constantes, alguns princípios ontológicos (por exemplo, a inexistência do vazio no universo) e apenas três leis da natureza. Nessa perspectiva, ela encerra, portanto, a pretensão, comum em todas as mecânicas do século XVII, de descrever a realidade total a partir de alguns poucos princípios fundamentais. Portanto, a física cartesiana é uma mecânica cuja linguagem exprime um conjunto de proposições articuladas em uma mesma gramática e simbolizada pelos mesmos códigos. A sua simplicidade está atrelada ao fato de que ela recorre a uma gramática bastante austera que comporta apenas variações quantitativas de movimento, figura e tamanho das partículas reguladas pelas leis da natureza.

Essa simplicidade só tem sentido, contudo, se houver uma harmonia entre as leis da natureza e os fenômenos estudados. Assim, para a viabilidade do mecanicismo, é necessário que nenhuma proposição empírica entre em conflito com as leis da natureza - leis a priori porque instituídas sem qualquer recurso à experiência - pois, se esse conflito ocorrer, é necessário revisar a proposição empírica e não as leis da natureza, que são imutáveis - verdades eternas, como Descartes anunciava já na década de 1630 (cf. Andrade, 2006b). Nesse ponto, é possível afirmar que Descartes abre parcialmente margem para uma subdeterminação empírica, uma vez que não nega a possibilidade de que a explicação de um fenômeno possa ser feita por diferentes modelos, mas nega expressamente que uma experiência possa contradizer os princípios fundamentais da teoria. Ou seja, o núcleo duro da ciência cartesiana não está colocado à prova quando experiências particulares são feitas. Assim, se a filosofia natural de Descartes não conseguir eventualmente deduzir das leis da natureza todas as propriedades do ímã, isso não é por si mesmo suficientemente grave para forçá-lo a introduzir uma contradição na sua filosofia natural, porque ajustes empíricos são perfeitamente possíveis, desde que sejam compatíveis com as leis da natureza. Em suma, as proposições empíricas não podem contrariar ou ferir as leis da natureza. Caso isso ocorra, estaríamos falando de algum grau de incoerência que visa uma adaptação do modelo mecânico às observações empíricas. É precisamente essa incoerência que apresentarei na próxima seção deste artigo. Isto é, em que medida o magnetismo pode compor o quadro do mecanicismo cartesiano sem acarretar uma contradição na sua filosofia natural expressa no fato de que existem fenômenos para os quais alguma lei da natureza não pode ser aplicada?

3 DIFICULDADES PARA UMA TEORIA UNIFICADA DA NATUREZA: ECONOMIA ONTOLÓGICA E EXPERIÊNCIA NO MECANICISMO

O mecanicismo cartesiano depura as qualidades da natureza para reter dos objetos apenas o que pode ser predicado no horizonte da extensão e do movimento. Desse modo, as propriedades do aço, ímã, mercúrios, vidro, fogo, ar, mar, sal, alumínio e todos os elementos que compõem os corpos terrestres serão uniformizadas, compactadas em uma mesma rede conceitual. Essa rede desconsidera a especificidade dos elementos químicos, ou, como diríamos em termos modernos, de moléculas de cada elemento, para homogeneizá-los em uma mesma grandeza extensiva. Essa compreensão estritamente quantitativa interdita qualquer caminho para a análise dos corpos que os aborde segundo as suas qualidades específicas. Ou seja, o mecanicismo cartesiano veda uma análise dos corpos cujo epicentro repousa na combinação entre as qualidades específicas de cada objeto. Apenas as leis da natureza, a grandeza, a figura e o movimento são os elementos necessários e suficientes para compor o melhor modelo explicativo para as propriedades dos fenômenos magnéticos.

Dentre a abordagem de diversas questões referentes a diferentes domínios do conhecimento humano, gostaria de sublinhar a análise cartesiana do magnetismo que envolve parte substancial da quarta parte dos Princípios - do artigo 133 ao artigo 187, exceção feita a algumas conclusões e observações gerais. Essa enorme quantidade de artigos dedicados ao magnetismo acentua o interesse de Descartes em resolver um problema que poderia colocar em xeque alguns dos principais pressupostos ontológicos e epistemológicos da sua filosofia natural. Notadamente, os fenômenos magnéticos sugerem a existência da atração a distância, que era expressamente proibida pela filosofia natural cartesiana. Para Descartes, os objetos não têm vontade própria para se moverem. Eles só podem ser movidos por um choque direto ou indireto com outro objeto. É bom lembrar que a identificação cartesiana do espaço com a extensão (um dos princípios do mecanicismo cartesiano) proibiu qualquer assertiva que se orientasse pela perspectiva da existência do vazio. A atração a distância, rigorosamente falando, não existe para a física cartesiana. No máximo, corpos distantes uns dos outros interagem por meio de outros corpos que estão entre eles de modo contíguo.

Por isso, era necessário apresentar uma explicação do magnetismo que comportasse esse fenômeno dentro da malha conceitual da mecânica. Nesse sentido, será preciso decodificar os fenômenos ligados, sobretudo, ao ímã, por meio de uma rede de proposições que mapeiam a variação da grandeza, da figura e do movimento das partículas que compõem o ímã. Será precisamente essa a postura cartesiana, uma vez que, para Descartes, como pontua muito bem Gaukroger, "a única forma de tratar do magnetismo é por meio do mecanicismo, porque o mecanicismo é a única forma por meio da qual podemos entender qualquer processo material" (Gaukroger, 2002, p. 175). O mecanicismo é o modelo teórico que governa toda a investigação da filosofia natural cartesiana, porque ele é a lente mais adequada para compreender o universo de modo simples, visto que opera com poucos comandos e com engrenagens que possuem a mesma estrutura ontológica. Assim, em sintonia estrita com a ideia de que a figura representa, em alguns casos, de maneira imaginativa os fenômenos por meio de uma nova apresentação da estrutura das partículas, Descartes propõe o seguinte modelo ou imagem que representa a dinâmica e o comportamento das partículas do ímã.

O propósito dessa figura é tornar visível (de forma imaginativa) o que não é dado na percepção. Nesse sentido, a figuração da dinâmica das micropartículas do ímã é tecida através da suposição de que as partículas caneladas dos vórtices em volta da Terra penetram - sem serem submetidas a uma grande resistência - nos canais do ímã graças à compatibilidade de suas medidas com a grandeza das partículas dos vórtices. Com essa compreensão do ímã, Descartes pretende mostrar que a heterogeneidade do ímã em relação aos outros corpos está ancorada unicamente no fato de que esse objeto detém canais específicos em relação aos demais corpos, sobretudo em relação ao ar, por meio dos quais a matéria sutil pode se deslocar, entrando pelo polo sul, representado pelo ponto a, e saindo pelo polo norte, representado pelo ponto b. Esse fluxo de corpúsculos ou micropartículas, que envolve a Terra, interage de forma diferente conforme a resistência do meio pelo qual ele passa. Assim, o resultado dessa interação decorre da força que as partículas exercem umas sobre as outras e o caminho percorrido por elas.

As diferentes resistências sofridas pelas partículas do ímã compõem o núcleo da explicação cartesiana para os fenômenos magnéticos. Assim, a propriedade do ímã de ser bipolar pode ser compreendida quando as resultantes da força a que o ímã é submetido no vórtice são concentradas em dois pontos, a saber, o polo sul a e polo norte b. Por conseguinte, a propriedade específica do ímã de atrair o ferro - inscrita na força que a esfera de atividade do ímã pode exercer sobre um objeto sem necessariamente tocá-lo - será transfigurada pelo modelo teórico dos vórtices para uma série de choques que dispõem de modo muito especial as partículas. Desses choques se seguem as propriedades magnéticas.

A onipresença dos vórtices na explicação científica cartesiana é notável. O recurso ao vórtice é a chave de explicação do fenômeno do magnetismo, entre outras coisas, porque permite compreender a esfera de atividade do ímã no interior da grande quantidade de matéria sutil que circula nos vórtices, provocando choques dos quais decorrem uma série de propriedades físicas. A explicação apresentada nos Princípios é retomada nas correspondências com Huygens. Em uma carta de 1643, Descartes defende o modelo do vórtice como epicentro da explicação do ímã.

Acredito já ter dito que expliquei todas as propriedades do ímã por meio de uma matéria muito sutil e imperceptível, que, saindo continuamente da Terra, não apenas pelo polo, mas também por todos os outros lugares do hemisfério boreal, passa de lá até o hemisfério austral, por todos os lugares em que a matéria sutil entra novamente na Terra. Ademais, outra matéria paralela, que sai da Terra pelo hemisfério austral e entra pelo boreal, visto que as partes dessas duas matérias são de uma tal figura que os poros da Terra ou do ímã ou do ferro acoplado ao ímã, por onde passam aquelas que vêm de um hemisfério, não podem dar passagem àquelas que vêm de outro hemisfério, como acredito ter demonstrado em minha física (AT, 3, p. 670).

O deslocamento da matéria sutil é por toda a Terra - Descartes usa nessa carta uma figura muito próxima da que apresenta nos Princípios, mas em uma versão menor - e explica fenômenos específicos, como a atração do ferro pelo ímã. Nesse sentido, Descartes mantém a coerência metodológica da sua filosofia natural porque, para a explicação do magnetismo, o modelo dos vórtices, mesmo após a publicação dos Princípios, continua governando a investigação científica, cujo epicentro repousa na direção, força e figura das partículas da matéria sutil que formam os vórtices e passam pelos canais do ferro. Esse modelo mecânico aplicado ao magnetismo repete a mesma estrutura de análise dos demais fenômenos que compõem o universo. Com efeito, o desejo de Descartes, expresso em várias passagens do texto, de deduzir os fenômenos das leis da natureza não se materializa na investigação dos fenômenos magnéticos. As propriedades do ímã, que serão anunciadas em sintonia com a explicação fornecida pelo modelo dos vórtices, não são, segundo o próprio Descartes, dedutíveis das leis da natureza. Por isso, Descartes adverte ao seu leitor que a não dedução das propriedades do ímã das leis da natureza não pode invalidar o seu modelo explicativo. Nesse sentido, o anúncio daquelas propriedades é acompanhado da seguinte nota explicativa, que, longe de ter um caráter hipotético, apresenta uma visão plenamente consciente da particularidade das observações relativas ao magnetismo:

As outras coisas seguintes seguem claramente dos princípios, que foram expostos acima e que não deixo de julgar que são tais como acabo de dizer (...); mas espero agora mostrar que todas as propriedades que as mais curiosas experiências dos admiradores do ímã descobriram até o presente podem ser tão facilmente explicadas por meio deles [princípios]. Isso será suficiente para persuadir de que essas propriedades são verdadeiras, ainda que elas não tenham sido deduzidas dos primeiros princípios da natureza (AT, 9, p. 279-80).

Primeiramente, gostaria de tecer alguns comentários sobre a explicação mais geral das 34 propriedades do ímã que Descartes enuncia nesse artigo. A explicação subsequente à apresentação das propriedades é repetida por Descartes nas correspondências com Huygens sem, contudo, a apresentação da referida advertência, uma vez que Descartes evita comentar a décima segunda propriedade do magnetismo que, como veremos, é a mais problemática. Nas correspondências, ele não discute cada uma das 34 propriedades. Com efeito, os avanços no estudo do magnetismo após a publicação, em 1600, do De magnete de Gilbert, praticamente compilado por Descartes nesse artigo, que enumera e descreve as 34 propriedades do ímã, eram ainda modestos. Apesar de as propriedades do magnetismo serem descritas com certa precisão no século XVII, a explicação científica desse fenômeno ainda estava longe de adquirir a consistência contemporânea. Os materiais magnéticos que exercem força entre si, sobre o ferro, o níquel, o cobalto e sobre as diferentes linhagens dos fenômenos denominados ferromagnéticos são explicados em termos estritamente mecânicos e em conformidade com o modelo dos vórtices.

É importante notar ainda que a validade das propriedades do ímã não está subordinada à sua dedução das leis da natureza, isto é, elas são explicadas pelo modelo dos vórtices sem que necessariamente possam ser deduzidas das leis da natureza. O uso do termo "dedução" não pode ser lido nos Princípios unicamente como a transcrição de uma ordem de proposições inferidas rigorosamente umas das outras, como ocorre no modelo matemático. O uso do referido termo não se restringe ao escopo da matemática. Ele se aplica a diferentes ramificações do conhecimento, visto que é empreendido para se referir à cadeia de proposições metafísicas, à relação entre as leis da natureza e Deus, à ciência etc. Alguns comentadores confundem o uso do termo na matemática com o uso do termo no sentido geral. Eles compreendem o termo "dedução" de modo unilateral. De qualquer forma, independentemente das diferentes conotações que pode assumir no interior daquela obra, o termo "dedução" parece indicar, em geral, que Descartes pretende estabelecer um elo entre as diferentes partes da obra e entre as leis da natureza e os fenômenos estudados nos Princípios. A falta de elo ou ligação entre uma das leis da natureza e um fenômeno estudado no mecanicismo não depõe contra a ciência cartesiana, embora deponha contra interpretações clássicas que apostavam nessa estrita ligação. Isso é perfeitamente aceitável no interior de sua filosofia da natureza, caso tenhamos em mente que Descartes não se compromete a apresentar a ciência como um conjunto de proposições perfeitamente concatenadas na forma de um modelo geométrico euclidiano. Em uma carta a Mersenne de 27 de maio de 1638, após a publicação do Discurso, Descartes deixa claro que seu projeto não é a expressão de um modelo dedutivo análogo ao euclidiano e tenta convencer o seu leitor de que não procederá como um geômetra da natureza, mas "exigir de mim demonstrações geométricas em matéria que é de física, é querer que eu faça coisas impossíveis" (AT, 2, p. 142). Assim, no contexto da ciência cartesiana, tomar o termo "dedução" como demonstração geométrica é incorrer no erro de colocar em um mesmo patamar epistêmico a ciência, que tem compromisso empírico, e a matemática, cujas proposições não dependem da experiência. Não se deve exigir da ciência cartesiana o que ela não está disposta a oferecer.

Embora em algumas passagens Descartes pareça sugerir que os objetos da natureza são estritamente matemáticos, como na afirmação de que "toda natureza é objeto da matemática pura" (AT, 7, p. 71),2 2 "(...) entian de omni illa natura corporea, quae est purae matheseos objectum". sua física não é geometria, no sentido estrito, porque a experiência desempenha um papel central que se divide, pelo menos, em duas categorias. Por um lado, a experiência serve para corroborar uma proposição científica, como expresso em diversas passagens em que Descartes enfatiza que seus estudos estão de acordo com a experiência, adequam-se à experiência (por exemplo, sobre a composição dos sais, cf. AT, 6, p. 238; sobre a resistência da água, cf. AT, 6, p. 258; sobre a divisão do mundo, que deve a posteriori estar de acordo com a experiência, cf. AT, 9, p. 124-5; sobre o confronto das hipóteses cartesianas com os dados astronômicos, cf. Mehl, 2009, p. 147). Por outro lado, a experiência orienta a atividade científica porque fornece dados para a aplicação de modelos - não necessariamente geométricos - de análise e compreensão dos fenômenos naturais; por exemplo, para saber a curvatura da luz na água é preciso saber, por meio da experiência, a densidade da água e do ar (cf. AT, 10, p. 393-4, 399); sobre o cálculo do pêndulo, Descartes afirma precisar da experiência, como exposto na carta a Mersenne, de 2 de novembro de 1646 (AT, 4, p. 547, AT, 4, p. 551-2). Na sexta parte do Discurso do método, Descartes não deixa dúvidas quanto ao papel essencial da experiência na construção da ciência. Nessa parte do Discurso, dedicada à ciência mais especificamente, ele alerta sobre o modo pelo qual a experiência é fundamental à ciência.

Percebera também, a respeito das experiências, que elas são tanto mais necessárias quanto mais avançados estivermos no conhecimento. Pois, no início, mais vale servir-se apenas das que se apresentam por si mesmas aos nossos sentidos, e que não poderíamos ignorar, desde que lhes dediquemos o pouco que seja de reflexão, em vez de procurar as mais raras e complicadas: a razão disso é que essas mais raras muitas vezes nos enganam, quando se conhecem ainda as causas das mais comuns, e que as circunstâncias das quais dependem são quase sempre tão específicas e tão pequenas que é muito penoso notá-las (AT, 6, p. 63).

A importância da experiência para a ciência torna inviável uma leitura que investe a ciência cartesiana de uma estrutura geométrica que lhe é estranha. A experiência singular de cada pessoa pode ser enganosa, mas quando a experiência se converte em padrão de observação dos fenômenos ela é seminal para a ciência. Ela corresponde, como defende Marisa Donatelli, "a um nível específico de certeza" com que pelo me-nos parte da ciência, não necessariamente seus princípios, não pode estar em completo desacordo (cf. Donatelli, 2002, p. 257). Em outras palavras, é preciso que, em alguma medida, a ciência esteja em sintonia com a experiência. Ou seja, a experiência, modelada por um processo de observação, reflete uma estrutura metodológica que determina um padrão de investigação dos fenômenos que os ordena em uma cadeia de inferências. A experiência não é a universalização da contingência, da percepção singular de cada indivíduo. Ela é a prova do sucesso de uma análise científica que torna uniforme e padronizado o que aparentemente é desconexo. As causas que são hipostasiadas como a imagem do real, de sua imperceptível trama de relações, precisam da experiência para perderem seu caráter meramente hipotético. Ou seja, a experiência não é uma cópia da percepção, mas uma percepção dirigida por um método para ratificar os modelos científicos. Se fosse a expressão da percepção bruta, sem tratamento metodológico, a experiência apenas universalizaria o engano. Ela pressupõe uma estrutura metodológica que lhe governa, para que possa apresentar à percepção um mundo que não vê a olho nu. A experiência pode corrigir a percepção porque pode ampliá-la para além daquilo que nossos olhos podem ver. Nesse sentido, ela é a expressão da ciência e não um empecilho para o desenvolvimento científico, visto que, graças a ela, podemos entender os mecanismos que regem o comportamento dos corpos, cujos efeitos são sentidos por nós. Por exemplo, quando guiada pelo método, a experiência pode converter a ilusão de ótica, conforme a qual percebemos uma inclinação do bastão que se encontra inserido na água, na medida em que faz que percebamos que aquela inclinação de fato não existe.

Portanto, a experiência na ciência cartesiana não é um acidente. Desde a redação das Regras, passando pelas obras em que Descartes elabora uma filosofia da natureza, ela está presente como a expressão do método, ao invés de ser a sua antítese. Des-cartes nunca pretendeu, pelo menos no âmbito da ciência, eliminar a experiência. Seu objetivo era discipliná-la. Por isso, o recurso a hipóteses muitas vezes é uma forma de eliminar as variações da percepção para estabelecer um padrão que determina uma uniformidade, mesmo que hipoteticamente, nos fenômenos cuja confirmação requer outro patamar de percepção para ser corroborada. Mais precisamente, ela precisa da mediação de instrumentos, fabricados graças ao engenho científico, que possam ampliar a percepção e que permitam ver as verdadeiras causas dos fenômenos, muitas vezes invisíveis para uma percepção que ainda não está depurada por um processo metodológico. Em suma, com a experiência a ciência ganha um poder de explicação maior e estende seus domínios para regiões nas quais a percepção fisiológica, limitada ao olhar humano, só pode servir de padrão de validação quando corrigida por instrumentos fabricados pela razão humana.

Outro detalhe importante se refere ao uso do termo "explicar", que varia ao longo da obra cartesiana e pode se referir, pelo menos, a decisões epistêmicas de reduzir as qualidades dos objetos à quantidade (cf. AT, 11, p. 25-6), bem como pode se referir ao fato de que a explicação guarda uma diferença em relação à dedução e possui um caráter mais geral (AT, 6, p. 83). Explicação não coincide necessariamente com uma prova, como Descartes sublinha em carta a Morin, de 13 de julho de 1638, na qual ele atesta que "há uma grande diferença entre provar e explicar" (AT, 2, p. 198). Assim, é importante observar que explicar não é entendido por Descartes apenas como um processo de dedução de proposições empíricas em função da aplicação das leis da natureza aos fenômenos magnéticos, mas também comporta uma forma de oferecer justificativas para a ocorrência de certos fenômenos em função da aplicação do modelo dos vórtices a esses fenômenos. Por isso, mesmo sem deduzir as propriedades do ímã das leis da natureza (chamadas aqui de princípios), Descartes acredita que as explica. É bem verdade que essa explicação não encerra uma compreensão perfeita dos fenômenos magnéticos e é possível argumentar que algumas das propriedades do ímã não são explicadas de modo suficiente. Contudo, gostaria de sublinhar que a eventual precariedade presente no estudo do magnetismo não está subordinada à falta do modelo dedutivo, que também está ausente em outros domínios da ciência trabalhados nos Princípios, mas à falta de experimentos que possam servir de base para uma melhor explicação do fenômeno magnético.

Em carta a Huygens, de 4 de agosto de 1645, Descartes reconhece que a quarta parte dos Princípios, que incluem o magnetismo e a química, não foram explicadas a contento porque lhe faltava uma maior quantidade de experimentos:

Mas tendo o desejo de escrever o pouco que sabia no tocante a essa matéria, na quarta parte dos

Princípios

, quando tratei da natureza dos minerais, do fogo e de todos os diversos efeitos os quais podem se reportar à química, não posso escrever nada a mais sem me fazer mal compreendido, porque não fiz as experiências que seriam necessárias para que pudesse ter um conhecimento particular de cada coisa (AT, 4, p. 260).

Essa carta só pode ser entendida quando se dilui a imagem da filosofia natural cartesiana como o espelho do modelo euclidiano e evidencia-se o caráter inacabado e experimental daquela filosofia. A experiência não é acidental, mas estruturante para a constituição da investigação na filosofia natural. Nesse sentido, Descartes não subordina a validade da investigação científica do magnetismo e de vários outros fenômenos dificilmente redutíveis à física à estrita observância da dedução das proposições empíricas da aplicação das leis da natureza aos fenômenos magnéticos. Ele se reserva o direito de proceder como um cientista preocupado em explicar os fenômenos mais do que procurar, talvez em vão, por uma unidade metodológica absolutamente perfeita tal qual o modelo euclidiano. A experiência efetivamente ocupa um lugar importante na filosofia natural cartesiana. Entretanto, é crucial perguntar o quanto a ciência cartesiana está disposta a se adaptar às observações feitas em sua época. Defenderei que ela está disposta a tomar atitudes ainda mais radicais.

4 CONTRADIÇÕES E ADAPTAÇÕES: A DETERMINAÇÃO DA CIÊNCIA CARTESIANA EM SALVAR OS FENÔMENOS

Casos que confirmam um paradigma - entendo paradigma como o núcleo duro das ciências, as suas proposições essenciais - não podem ser tratados como a prova de que ele está certo. Eles podem reforçar a nossa crença, mas não são provas definitivas. No entanto, casos que infirmam um paradigma têm outro estatuto epistêmico, pois podem colocar em dúvida a crença no paradigma. Esses casos são ainda mais graves quando contrariam princípios essenciais do paradigma. Mas, seja qual for o paradigma, ele não pode negligenciar as observações empíricas. Mostrarei que a ciência cartesiana segue essa regra e prefere se adaptar às observações a manter uma coerência estrita entre as proposições empíricas e os princípios gerais da teoria. Para explicar uma das propriedades do ímã, Descartes concebe, com total ciência, uma contradição na sua filosofia natural que parece ter passado despercebida, talvez por conta do recurso a argumentos ad hoc cujo uso pode disfarçar a alegada contradição ou ainda pela pouca atenção dos comentadores à investigação cartesiana do magnetismo, visto que esse fenômeno seria um dos mais "intratáveis para os advogados de uma filosofia natural mecânica" (Gaukroger, 2002, p.173). O ponto é que, para explicar uma das propriedades do ímã, mais precisamente a décima segunda propriedade, Descartes considera que a lei da conservação não se aplica ao magnetismo.

A impossibilidade de deduzir todas as propriedades do magnetismo da aplicação das leis da natureza ao estudo do ímã pode ser considerada um desvio metodológico absolutamente aceitável e importante para ilustrar que o modelo cartesiano não é a transposição do modelo euclidiano para a filosofia natural. O fato de uma das propriedades do ímã ferir uma das leis da natureza revela algo bem mais grave e radical. Nessa perspectiva, proponho a leitura da seguinte passagem dos Princípios em que é possível encontrar um dos momentos mais delicados da filosofia natural cartesiana, enfatizado por mim, talvez de modo inédito.

161. Que o ímã nada perde de sua força quando a comunica ao ferro É fácil de responder aos que perguntam por que o ímã nada perde de sua força, ainda que a comunique em grande quantidade ao ferro. Pois, não acontece nenhuma mudança no ímã no que diz respeito às partes caneladas que saem dos seus poros, entrando no ferro mais do que em qualquer outro corpo, salvo quando passando mais facilmente pelo ferro do que por outros corpos isso faz com que elas passem também mais livremente e em uma maior quantidade para o ímã quando há ferro em torno delas do que quando não há. Assim, no lugar de diminuir a sua virtude, ele [ímã] a aumenta comunicando ao ferro (AT, 9, p. 293).

A passagem se inicia e termina com a afirmação heterodoxa de que o ímã comunica força ao ferro sem perdê-la. Essa propriedade do ímã é expressa em um enunciado cujo conteúdo consiste na afirmação contrária à lei da natureza relativa à conservação da força ou da quantidade de movimento. Se existem leis que Descartes mantém em sua obra, a lei da conservação está entre elas. Não apenas nas suas obras, mas igualmente nas correspondências, Descartes não deixa dúvidas quanto à importância da lei da conservação. Em um hiato de quase dez anos, que compreende a publicação dos Princípios, Descartes responde a interlocutores diferentes que a lei da conservação tem um estatuto de regular, em toda a natureza, a transferência de movimento entre os corpos, cuja principal característica é a simetria. A redação da resposta é impressionantemente similar.

Primeiramente, sustento que há certa quantidade de movimento em toda matéria criada que nunca aumenta, nem diminui, e quando um corpo movimenta outro, ele perde na mesma proporção o movimento que lhe comunica (AT, 2, p. 543, carta a Beaune de 30 de abril de 1639).

Primeiramente, então, eu vos diria que há certa quantidade de movimento em toda matéria criada que nunca aumenta, nem diminui, e quando um corpo movimenta outro, ele perde na mesma proporção o movimento que lhe comunica (AT, 5, p. 135, carta ao Marquês de Newcastle, de março ou abril de 1648).

Os textos de Descartes guardam uma forte coerência. No máximo, as mudanças que ocorrem na redação do princípio, sobretudo entre as versões de O mundo e dos Princípios, servem para ratificar, como argumenta Garber (1999, p. 314) - e também Williams (2005, p. 155), que faz a mesma observação - a de que ele se aplica à quantidade de movimento total de todo universo, bem como à quantidade de movimento presente no choque entre dois corpos particulares. Ou seja, a lei não conhece exceções, nem pode ser, por assim dizer, suspensa para a análise de um fenômeno particular. Aliás, um dos pontos coerentes do estudo das regras do choque é a aplicação do princípio da conservação a todos os casos; como demonstrei em outra oportunidade (Andrade, 2006c), a quantidade de movimento total depois do choque é a mesma de antes do choque. O esforço de Descartes, continua Garber, consiste em mostrar, com pequenos ajustes no princípio da conservação, que Deus conserva não apenas a quantidade de movimento do universo como um todo, mas a quantidade de movimento de cada choque em particular.

É notável que, em nenhum momento, Descartes se mostra reticente quanto à validade da lei da conservação. No entanto, uma propriedade do ímã é a expressão contrária da lei da conservação. Certamente, esse fato coloca o estudo do ímã em um patamar especial e, portanto, diferente em relação aos demais estudos mais ciosos em não apresentar incompatibilidades entre as leis da natureza e as propriedades particulares dos objetos. É perfeitamente compreensível que o ímã tenha especificidades que o tornem singular em face de outros fenômenos, desde que essas especificidades não contradigam a base conceitual da filosofia natural cartesiana. Descartes tem o direito de arrolar qualquer hipótese ad hoc e certamente não precisa subordinar a validade do modelo mecânico ao modelo de dedução matemático. É perfeitamente compreensível e coerente com o modelo dos vórtices que as partículas do ímã passem mais rápido pelo ferro. É igualmente compreensível que a disposição espacial das partículas do ímã em relação à disposição das partículas do ferro que lhe cercam seja um fator determinante para a explicação do magnetismo. Esses dois pontos estão, de fato, no cerne da explicação cartesiana.

Contudo, o modelo dos vórtices não pode oferecer uma explicação que contradiga uma lei da natureza, a menos que se tenha claro que o propósito maior de Descartes na ciência é explicar ou se adequar às observações, mesmo que isso custe a coerência parcial da sua filosofia natural. Entre uma propriedade claramente observável e a estrita observância à terceira lei da natureza, Descartes, na passagem supracitada, opta pela décima segunda propriedade do ímã, ou seja, em nenhum momento ele se mostra disposto a negá-la, o que implica, no presente caso, reconhecer uma contradição, de modo plenamente consciente, no interior da filosofia natural.

Poder-se-ia argumentar que essa contradição é uma hipótese. Entretanto, a concessão que Descartes pede aos seus leitores no parágrafo 154 em nenhum momento sugere que ele está pretendendo acatar indiscriminadamente contradições no seu sistema. Aliás, se nos Princípios é possível recuperar um caráter hipotético da ciência, explorado por mim em outro artigo (Andrade, 2006a), ele não autoriza que o aspecto hipotético da ciência possa justificar contradições no interior da filosofia natural no que diz respeito, pelo menos, à incompatibilidade entre uma propriedade empírica e uma lei da natureza. As hipóteses não estão presentes, segundo as palavras de Schouls, "sem justificação" (Schouls, 2000, p. 80). Elas pertencem a um planejamento metodológico que pretende ampliar o poder explicativo das teorias científicas por meio da introdução de causas, ainda segundo Schouls, "que ainda não foram provadas" (p. 80), mas a sua validade está subordinada aos efeitos que delas podem ser extraídos e, posteriormente, corroborados pela observação. De fato, a hipótese muitas vezes cumpre a função de oferecer uma ordem para fenômenos que aparentemente não guardam relação entre si. A hipótese dos astrônomos é um bom exemplo: "é isso o que exponho expressamente aqui, pois embora fale de suposições, contudo não suponho nenhuma cuja falsidade, ainda que conhecida, possa dar possibilidade à dúvida sobre a verdade das conclusões extraídas" (AT, 9, p. 126). Ela serve, por conseguinte, para estabelecer uma rede de proposições interconectadas, cuja melhor transcrição seria por meio de uma cadeia de deduções. Elas não podem, como pondera Descartes nos Princípios, "dar possibilidade à dúvida das conclusões extraídas" (AT, 9, p. 126). Assim, se acompanhamos o raciocínio de Mehl, "de que as hipóteses devem ser consideradas segundo o critério da utilidade vital" (Mehl, 2009, p. 139), isto é, pelos efeitos sensíveis que podem ser constatados a partir dela, não faz sentido tomar a décima segunda propriedade do ímã como uma hipótese, porque essa propriedade é o resultado da aplicação do modelo mecânico. Ou seja, ela revela os efeitos sensíveis observados pelos estudiosos do ímã. Ela é um resultado, e não meio para atingir um determinado resultado científico.

A referida propriedade do ímã também não remete à hipótese tomada como uma fábula do mundo por meio da qual Descartes tenta desarmar os espíritos escolásticos para introduzir a sua ciência (Descartes, 2008, p. 48; AT, 11, p. 31; carta a Mesland, de maio de 1645, AT, 4, p. 216). Essa propriedade do ímã não representa uma ameaça particularmente importante para a escolástica que precisa ser matizada por um artifício retórico. Ademais, a referida propriedade também não está em um conjunto de hipóteses cosmológicas que só podem ser testadas indiretamente, pelos efeitos que se observam no universo (cf. AT, 9, p. 146) e precisariam, por conseguinte, de mais testes para averiguar a sua plausibilidade, o seu poder de explicação dos fenômenos magnéticos. A décima segunda propriedade é real. Ela retrata uma série de observações bem estabelecidas naquele momento.

Mesmo que toda ciência produzida, sobretudo nas terceira e quarta partes do livro, seja hipotética (em qualquer sentido do uso do termo "hipótese") ou se apoie em suposições equivocadas, Descartes acredita que provou "pelo menos as mais gerais que concernem à fábrica do céu e da Terra" (AT, 9, p. 325). Ou seja, ainda que Descartes sugira ao seu leitor que ele está livre para tomar as duas últimas partes do livro como "uma pura hipótese" (carta a Mesland, de maio de 1645, AT, 4, p. 216), isso não autoriza que uma das propriedades empíricas do ímã possa estar em contradição com a terceira lei da natureza. Ou, ainda, seja qual for a certeza (provisória ou moral), ela não pode gabaritar uma propriedade empírica que contradiz uma lei da natureza. Repito que Descartes, em nenhum momento, toma essa propriedade como uma hipótese. Não faz sentido lançar mão de uma hipótese que está em contradição com uma lei da natureza. Por conseguinte, não vejo como se pode argumentar que a décima segunda propriedade do ímã - apenas ela - seja meramente uma hipótese.

É verdade que o argumento de Descartes para explicar a décima segunda propriedade do ímã permanece no âmbito estritamente quantitativo quando invoca a velocidade das partículas do ímã como a principal razão para que elas não percam o movimento que transferem para o ferro. Contudo, esse argumento não livra a filosofia natural cartesiana de aceitar uma flagrante contradição relativa à incompatibilidade da referida propriedade do ímã com a lei da conservação ou terceira lei da natureza. Descartes inicia e termina a explicação da décima segunda propriedade com a determinação de que ela é contrária ao que fora prescrito pela lei da conservação. Mesmo que as partículas do ímã passem mais facilmente pelo ferro do que por outros corpos, isso não justifica que elas possam ferir a lei da conservação por meio de uma transferência de movimento que não é acompanhada por uma perda simultânea e simétrica. A lei da conservação é clara quando determina que, seja qual for o corpo, ele não pode transferir movimento sem simultaneamente perder a mesma quantidade que transfere. Isto é, mesmo que as partículas do ímã possam passar mais rapidamente pelos canais do ferro, o corpo ímã, formado pelas referidas partículas, não deveria passar força ao ferro sem simultaneamente perder a mesma força proporcionalmente. Assim, o fato de as partículas do ímã passarem mais pelo ferro do que por outros corpos não justifica que o ferro ofereça uma resistência capaz de imunizá-lo quanto à transferência de movimento que as partículas do ímã lhe imprimem.

O que se percebe aqui é que a lei da natureza da transferência do movimento é gravemente violada com a alegação de que a interação entre o ferro e o ímã estaria submetida às estruturas materiais particulares desses dois corpos, inscrita nos seus poros e seus canais. Ou seja, ainda que se possa admitir que a resistência de materiais, como a do ferro, seja única na natureza, por conta do tamanho dos seus poros e canais, isso não autoriza que a sua estrutura material possa funcionar em conflito com a lei da conservação.

Muito provavelmente, Descartes tinha consciência da particularidade da décima segunda propriedade do ímã, o que é um dos raros momentos - talvez o único - em que ele admite uma contradição na sua filosofia natural para "salvar um fenômeno". Essa contradição é inaceitável para a filosofia natural cartesiana quando a pensamos como o espelho dos Elementos de Euclides. Com efeito, Descartes tem consciência da dificuldade de orientar o estudo do magnetismo em um caminho simétrico em relação ao caminho que ele percorre para explicar os demais fenômenos da natureza. Ele deliberadamente abre mão de uma lei da natureza para adaptar a sua filosofia natural às observações e experiências da sua época. Essa atitude mostra um profundo respeito de Descartes pela experiência, à medida que indica que a sua filosofia natural está disposta a quase tudo para se adequar à experiência. Todavia, essa disposição de negar a universalidade das leis da natureza, ou ao menos de uma delas, é mais um argumento para mostrar que a filosofia natural cartesiana não é um conjunto de proposições coerentes e concatenadas no mesmo compasso do modelo euclidiano. Essa abordagem do magnetismo indica que ela abdica da sua coerência para adotar uma postura mais pragmática. Certamente isso não é fácil para Descartes, mas mostra muito bem que ele não é um idealista austero ou um metafísico completamente apartado da experiência científica.

Assim, o caminho escolhido por Descartes para lidar com esse imbróglio é afastar o magnetismo do núcleo do seu mecanicismo. Esse afastamento sugere que ele tem um regime próprio de explicação e, por isso, pode ser estudado sem que se leve em consideração a sua obediência e subordinação às leis da natureza. A dissonância entre a terceira lei da natureza e a décima segunda propriedade do ímã expressa uma dupla dificuldade da física cartesiana: por um lado, a dificuldade em conciliar, em um mesmo modelo teórico, os fenômenos terrestres e celestes que, embora possam estar submetidos às mesmas leis, detêm, em alguns casos, variáveis distintas conforme a estrutura material dos seus elementos. Por outro lado, essa dissonância põe em evidência a dificuldade em associar os fenômenos terrestres ao comportamento dos corpos celestes. Essa dificuldade está expressa nos argumentos ad hoc - porque visam mais uma adequação dos efeitos à causa do que uma explicação das causas pelos efeitos - que visam harmonizar as observações referentes ao magnetismo ao movimento da matéria sutil, cuja ação impulsione, por exemplo, alguns corpos terrestres a passarem por dentro dos canais do ímã sem submetê-los à lei da transferência da quantidade de movimento ou terceira lei da natureza (cf. AT, 9, p. 214).

Para a explicação do magnetismo, Descartes termina aumentando a sua ontologia sem aumentar seu esquema teórico, ou seja, o magnetismo amplia a visão e comprometimento ontológico da filosofia natural cartesiana sem, contudo, apresentar uma teoria radicalmente nova do magnetismo. O que Descartes faz é tentar salvar os fenômenos por meio de hipóteses que se opõem às leis da natureza, ainda que não estejam necessariamente em oposição às prerrogativas do método cartesiano (sobre o método cartesiano, cf. Andrade, 2006a). Certamente o modelo dos vórtices é mantido e se coloca como o arcabouço teórico privilegiado para a análise do fenômeno do magnetismo e de outros fenômenos ligados à química. Mesmo sendo insuficiente para explicar todos os fenômenos naturais, o modelo dos vórtices é mantido como principal vetor de compreensão da natureza.

CONCLUSÃO

Mostrei neste breve artigo que o mecanicismo cartesiano não encerra um conjunto axiomático de proposições dedutíveis umas das outras. Meu argumento central consistiu em mostrar, talvez de forma inédita, uma incoerência no mecanicismo cartesiano que, longe de constrangê-lo, serve como subterfúgio para afirmar que ele está radicalmente disposto a se adequar à experiência, independente da manutenção da plena e irrestrita consistência do sistema. A incoerência apresentada versa sobre a incompatibilidade entre a décima segunda propriedade do ímã e a lei da conservação. Com a análise do fenômeno do magnetismo, acredito ter dado mais um passo adiante na minha tentativa de apresentar um Descartes com convicções pragmáticas próprias de um cientista que não governa as suas atividades apenas por leis fundamentais, mas que está sempre atento às evidências empíricas.

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  • 1
    Cf., também, Do céu, 4, 5, 312b. Essa distinção entre leve e duro serve para indicar que os corpos são compostos de diferentes matérias (cf. 312a). Cf., também, "se o corpo é duro, ele é naturalmente transportado para o centro e se é leve para o alto" (Física, 3, 5, 205b25-30). Sobre a diversidade de movimentos de acordo com
    genus entis, cf. Meteo, 1, 338a20, 339a9.
  • 2
    "(...)
    entian de omni illa natura corporea, quae est purae matheseos objectum".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Mar 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013
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