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Editorial

Editorial

Este número inicial de 2014 de Scientiæ tudia está dedicado às ciências biológicas. De uma perspectiva histórica, mais preponderantemente epistemológica em alguns casos, e mais sociológica em outros, abordam-se assuntos que estão relacionados ao desenvolvimento da história natural nos séculos xviii e xix, e da biologia molecular no século xx e também aos interesses econômicos que podem estar condicionando o desenvolvimento de algumas polêmicas científicas atuais. De uma perspectiva epistemológica discutem-se temas ligados principalmente às ciências biológicas, tais como a tensão entre unificação teórica e proliferação de subdisciplinas e especialidades que é característica da biologia do século xxi; a explicação evolutiva da sociabilidade; a ubiquidade do discurso funcional nas ciências da vida; as possíveis conexões entre a psicanálise de Freud e a biologia evolucionária. Mas o número contém também trabalhos que se movem nas fronteiras entre a epistemologia e a política, seja porque analisa aspectos de políticas científico-tecnológicas como o Programa de Biologia Experimental da Fundação Rockefeller, seja porque se debruça sobre o uso político do ceticismo, utilizado para gerar descrédito, em contraposição ao uso científico do ceticismo, que é o de exigir provas rigorosas e detalhadas.

Inicia-se o número com o artigo de María Verónica Galfione que se volta para a dificuldade com a qual, no final do século xviii, a história natural começava a tornar-se consciente da possibilidade de uma história da natureza. A autora mostra que Kant, que alcançou entrever a possibilidade e a necessidade dessa interiorização da história na natureza, também chegou a colocar alguns dos problemas epistemológicos envolvidos nesse processo. A análise tem o mérito de situar as colocações de Kant tanto no próprio edifício do idealismo transcendental quanto no contexto da ciência natural de fins do xviii. O artigo pode ser lido, então, em um registro duplo: como um estudo kantiano e como um estudo sobre a evolução da história natural. Além disso, o artigo faz uma contribuição muito valiosa ao estudo da história do conceito de "raça".

No segundo artigo, Gustavo Caponi mostra que, contemporaneamente à articulação da teoria da seleção natural, e no bojo da sua própria filosofia evolucionista, Spencer formulou uma teoria da evolução biológica alternativa à de Darwin. Essa teoria, conforme mostra o autor, sendo de caráter preponderantemente transformacional, e não variacional, deixava à seleção natural um papel claramente secundário. De uma forma paradigmaticamente neolamarckiana, a adaptação evolutiva era explicada nessa teoria como um subproduto da adaptação fisiológica; o que era feito preservando o privilégio da teleologia intraorgânica sublinhada por Cuvier, ou seja, negando a prevalência explicativa das exigências da luta pela vida.

Em seu artigo, que constitui a primeira parte de um trabalho mais extenso sobre as conexões entre a teoria freudiana e a biologia, Richard Theisen Simanke critica a persistência de uma tradição terminológica, compartilhada por várias línguas neolatinas, que leva muitos estudiosos da obra de Freud a traduzirem a palavra alemã "Trieb" como "pulsão", em vez de "instinto". Essa escolha é justificada com base em uma suposta incompatibilidade entre as posições da psicanálise e a interpretação biológica do fenômeno da sexualidade que reduz esta última à função reprodutiva. Mas o autor mostra convincentemente que, apesar de Freud ter considerado, na fase final de seu pensamento, que o conceito de "pulsão ou instinto de morte" é central para o entendimento da sexualidade humana, isso não é um impedimento ao diálogo entre a psicanálise e a biologia, segundo parece ser a intenção originária do próprio Freud.

A seguir, no quarto artigo, Lorenzo Baravalle discute a aplicabilidade a contextos sociais humanos de um modelo de seleção natural em múltiplos níveis, inicialmente proposto pelo filósofo Elliott Sober e pelo biólogo David S. Wilson. Em primeiro lugar, o autor mostra que o modelo, que admite a seleção de grupo como força evolutiva, é mais explicativo, no que concerne à aparição de comportamentos altruístas, que os modelos reducionistas clássicos, respaldados pela metáfora do "gene egoísta". Em segundo lugar, mostra como, em conformidade a esse modelo, o desenvolvimento de certas faculdades cognitivas e comunicativas, no ser humano, pode levar a uma hierarquização dos grupos e a novos conflitos entre os interesses egoístas e altruístas. Finalmente, sugere uma estratégia para interpretar, coerentemente com a discussão anterior, casos de estudo empírico.

O quinto artigo, de María José Ferreira e Guillermo Folguera, trata do ponto de vista epistemológico o reducionismo na biologia, suas dificuldades e propõe uma perspectiva alternativa. A dispersão e a multiplicação subdisciplinar (de especialidades), que talvez se pudesse dizer descontrolada, que caracteriza a biologia contemporânea, parece conspirar contra a unificação e a articulação do conhecimento biológico. O reducionismo acabou impondo-se na pesquisa biológica como a via régia de integração e de rearticulação teóricas do variegado leque de subdisciplinas e especialidades. Os autores, entretanto, põem em evidência as dificuldades dessa alternativa e mostram outros possíveis modos de pensar na preservação da unidade conceitual das ciências da vida; modos de pensar essa unidade que sejam adequados à pluralidade e à diversidade metodológica e teórica desse domínio do conhecimento científico.

A temática do reducionismo retorna no artigo de Francisco Serrano-Bosquet e Gustavo Caponi, que põe o foco na figura do Warren Weaver e em seu papel na articulação da política de apoio ao desenvolvimento da biologia experimental que foi impulsionada pela Fundação Rockefeller. A análise do pensamento epistemológico de Weaver, particularmente de seu reducionismo, serve para pôr em evidência as opções teóricas e políticas que levaram à imposição da biologia molecular como programa de pesquisa central (vetor de progresso) das ciências da vida em geral. O artigo mostra como uma política científica pode entrar em sinergia com uma perspectiva epistemológica particular, e como a análise epistemológica deve e pode aliar-se à análise histórico-sociológica para desentranhar as chaves dessa aliança entre a epistemologia e a política.

Encerram este número de Scientiæ tudia duas resenhas que de modo muito interessante se movem no espectro entre a análise epistemológica mais estrita e a epistemologia ligada ao engano e à política. Assim, na resenha do livro de Gustavo Caponi, Função e desenho na biologia contemporânea, Jerzy Brzozowski revisita a polêmica sobre o conceito de função em biologia. Acompanhando o argumento desenvolvido no livro, Brzozowski mostra as dificuldades da concepção etiológica desse conceito e de que maneira a concepção sistêmica permite dar conta do conceito de "adaptação" e da ideia de "desenho biológico" e ainda legitimar e explicar o uso de noções funcionais em ecologia; deixando claro que o discurso funcional que permeia essa disciplina não pressupõe a ideia de que os processos e sistemas ecológicos estejam desenhados pela seleção natural, ou por qualquer outro agente ao qual se possa conceber como desenhista.

Finalmente, na sua resenha do livro de Naomi Oreskes e Eric Conway, Controvérsias científicas ou negação da ciência? A agnotologia e a ciência do clima, José Correa Leite mostra que o livro é uma excelente introdução ao debate e à investigação sobre o fenômeno da negação da ciência para produzir a dúvida e a ignorância. Focalizando sua atenção sobre as controvérsias relacionadas com a indústria do tabaco, sobre uma investida extemporânea contra Carlson no caso do DDT, e sobre a tática empregada, mais recentemente, no questionamento dos resultados científicos consolidados nos painéis intergovernamentais sobre a mudança climática, Leite evidencia que Oreskes e Conway mostram como alguns cientistas estadunidenses, financiados por distintos grupos de pressão e de interesses econômicos, distraíram, por mais de 50 anos, a opinião pública de pesquisas cientificamente confiáveis, mas de impacto negativo do ponto de vista dos interesses econômicos das grandes companhias de tabaco, químicas e petrolíficas. Mais importante é que, com base na agnotologia, os autores do livro deslindam o mecanismo pelo qual o ceticismo, que é um ideal que garante a aplicação rigorosa do método nos escrutínios científicos, é agora usado para produzir a incerteza dos resultados científicos, isto é, é usado para desacreditar os resultados obtidos segundo esse próprio ideal.

Os editores

Pablo Rubén Mariconda

Gustavo Caponi

Lorenzo Baravalle

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2014
  • Data do Fascículo
    Mar 2014
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