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Editorial

ARTIGOS

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O terceiro número deste ano de Scientiæ studia reúne artigos que percorrem um amplo arco temático que se estende da filosofia, biologia e psicologia aos estudos sociais da ciência. Inclui, por um lado, análises histórico-conceituais sobre autores tais como Friedrich Nietzche, Sigmund Freud e Burrhus Skinner e, por outro lado, artigos envolvendo instigantes questões pertinentes à filosofia da tecnologia. Completam o número, primeiro, a entrevista concedida por Alison Wylie a uma equipe de jovens doutorandas sobre a pesquisa de gênero na arqueologia e a crítica feminista da ciência e, em seguida, três resenhas sobre livros recentemente lançados nas áreas de epistemologia e filosofia da ciência e da tecnologia.

No primeiro artigo Irene Audisio apresenta uma análise sobre o insuspeito elo existente entre a citologia de fins do século xix e a filosofia nietzcheana. O argumento parte da crítica ao conceito de indivíduo encetada por Rudolf Virchow no âmbito da biologia celular, a qual acabou por ser transposta do plano puramente orgânico para o psicológico por Hippolyte Taine e Theódule Ribot. A autora mostra então que em repetidas oportunidades Nietzche se refere ao indivíduo como uma multiplicidade de células, na esteira do pensamento daqueles teóricos franceses. Ao considerar o papel desempenhado pela biologia celular e pela psicologia de Taine e Ribot no pensamento nietzcheno, Audisio reconhece um traço naturalista no filósofo alemão que não costuma ser de todo explorado pelos comentadores. Em função disso, o artigo motiva novos enfoques sobre conceitos basilares tais como os de "vontade de poder" e de "super-homem" (Übermensch) por meio de um exame detalhado da multiplicidade constitutiva daquilo a que chamamos de indivíduo.

O mesmo tipo de reavaliação da importância do naturalismo pode ser encontrado no segundo artigo de Richard Theisen Simanke, no qual, dando prosseguimento ao seu exame sobre o conceito de instinto em Freud, ele se debruça sobre a questão da base instintual da agressividade e da autodestrutividade. O autor discute o quanto o sentido biológico do termo Trieb vai se tornando marginal na psicanálise, ocorrendo uma verdadeira rejeição da filiação epistemológica inicial. A interpretação proposta por Simanke deixa o caminho aberto para um proveitoso diálogo entre a psicanálise e a biologia, o que, aliás, era enfaticamente defendido por Freud. Para além dos esclarecimentos historiográficos e conceituais fornecidos detalhadamente pelo autor, discute-se também o caráter paradoxal do "instinto de morte", que se encontra na origem da agressividade e da autodestrutividade. Como justificar biologicamente a agressividade e, principalmente, a autodestrutividade dado que elas parecem ser tendências internas para a autoaniquilição?

O artigo de Robson Nascimento da Cruz examina a carreira de outro psicólogo com inclinações epistemológicas naturalistas, o behaviorista estadunidense Burrhus Frederic Skinner. O autor detalha o percurso inicial da carreira acadêmica de Skinner na Universidade de Harvard, salientando que o psicólogo, graduado em literatura, interessava-se por questões ligadas à fisiologia e pouco se identificava com a psicologia experimental propriamente dita. Esse "desconhecimento" da psicologia experimental, associado a certo distanciamento com relação ao Departamento de Psicologia em Harvard, permitiram a Skinner desfrutar de grande liberdade de pesquisa, sob a orientação e proteção do fisiologista William Crozier. As condições materiais e o ambiente intelectual do Departamento de Fisiologia - segundo o próprio Skinner muito superiores em relação àqueles do Departamento de Psicologia - precisam ser levados em consideração para um relato apurado da trajetória científica desse autor. Com efeito, em sua autobiografia, Skinner relata diversas vezes o quanto esse "desconhecimento" e distanciamento da psicologia experimental praticada em Harvard asseguraram-lhe a liberdade intelectual necessária para propor sua "nova" ciência do comportamento.

O quarto artigo, de Pedro Xavier Mendonça, inicia as discussões mais voltadas para a filosofia da tecnologia e os estudos sociais da ciência. O autor descreve e analisa o sistema global de posicionamento (GPS) e os dispositivos de navegação por intermédio de abordagens semióticas. Tendo como ponto de partida a semiótica tradicional, Mendonça avança em direção a uma semiótica material que propõe a incorporação da materialidade e funcionalidade dos artefatos tecnológicos. O que pretende é destacar que, para além dos aspectos puramente simbólicos, sua materialidade e funcionalidade dão ensejo a uma concepção não reducionista dos artefatos. O resultado dessa proposta é uma compreensão mais profunda do modo pelo qual o GPS e os dispositivos de navegação comerciais envolvem uma intrincada relação entre os estados nacionais, as empresas e os diversos usuários de tais sistemas tecnológicos.

Segue-se a análise de Horácio Correa Lucero sobre a questão do engajamento político nos estudos sociais da ciência. Tendo como perspectiva a teoria crítica da tecnologia de Andrew Feenberg, o autor procura compatibilizar a visão construtivista da tecnologia com elementos estruturais provenientes da tradição marxista, tais como os de classe social e de lógica do capital. Desta perspectiva, é o sistema capitalista, entendido como uma totalidade, que determina os próprios limites do desenvolvimento tecnológico. Em razão disso, Lucero defende a necessidade de uma "virada participativa" nos estudos sociais da ciência que, adotando a concepção de que a tecnologia é socialmente construída, não deixe de reconhecer a influência de fatores estruturais, tais como o capital e o mercado, no desenvolvimento tecnológico.

Encerrando o conjunto de artigos deste número, Alain Létourneau aborda a questão da expertise técnica nos assuntos relativos à governança ambiental. De maneira clara e sucinta, o autor discute o que se entende por expertise, expondo o protagonismo teórico e prático (político) exercido pelos especialistas na sociedade contemporânea e seus efeitos sobre a governança ambiental. Létourneau sustenta que a participação dos cidadãos requer um modelo informado por preocupações partilhadas, ao invés do puro e simples gerenciamento técnico por parte dos especialistas. Nesse sentido, reconhece os limites a que está sujeita a participação dos cidadãos e dos especialistas nas questões ambientais.

Na seção seguinte, Kelly Koide, Mariana Toledo Ferreira e Marisol Marini entrevistam Alison Wylie, abordando sua trajetória intelectual entre a arqueologia, a filosofia da ciência e o feminismo e discutindo questões fundamentais acerca da crítica feminista da ciência. Wylie traça um histórico dos principais trabalhos que contribuíram para o surgimento de uma arqueologia de gênero e das principais contribuições da perspectiva feminista para a teoria e a metodologia científicas. Discutindo diferentes visões acerca da natureza e do alcance da crítica da ciência, ela propõe uma contextualização rigorosa dos ideais de objetividade científica para a produção de um "conhecimento situado estrutural", capaz de apreender tanto o conhecimento gerado pelos grupos sociais subdominantes como os efeitos epistêmicos de condicionantes sociais nas práticas da pesquisa científica.

Concluem este número de Scientiæ studia três resenhas de livros recentemente publicados. Na primeira delas, Evaldo Sampaio da Silva examina o livro Lévi-Strauss e as Américas: análise estrutural dos mitos de Ivan Domingues. Fornecendo interessantes informações biográficas e situando o livro recente em relação às obras anteriores do autor, a resenha de Sampaio especifica o caminho percorrido por Domingues ao examinar o papel epistemológico do estruturalismo para a fundamentação das ciências humanas. Na sequência, Cristiano Cordeiro Cruz resenha o livro Filosofia da tecnologia: um convite, de Alberto Cupani. Segundo Cruz, o livro incursiona por área ainda relativamente carente de títulos em língua portuguesa, apresentando ampla revisão da literatura, discutindo as contribuições clássicas de Ortega y Gasset, Heidegger, Gehlen e Simondon à filosofia da tecnologia; a visão historicista de Mumford; a posição lógico-epistemológica de Bunge; as posições fenomenológicas de Ihde, Dreyfus e Borgmann; as posições mais políticas de Winner e Feenberg. Nesse percurso, permite a percepção da complexidade da tecnologia e trata de assuntos centrais como o da autonomia ou determinismo tecnológico. Por fim, José Correa Leite resenha o livro A vast machine: computer models, climate data, and the politics of global warming, de Paul Edwards, apresentando de maneira completa e informativa essa obra que versa sobre as multifacetadas relações entre o desenvolvimento dos computadores e as ciências do clima. De fato, os avanços na informática foram fundamentais para a formulação de modelos meteorológicos cada vez mais sofisticados, capazes de fazer previsões do tempo sequer imagináveis há algumas décadas atrás. Essa "vasta máquina", entretanto, não é neutra, tal como não são neutras outras poderosas aplicações tecnológicas hoje disponíveis.

Os editores

Sylvia Gemignani Garcia

Renato Rodrigues Kinouchi

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2014
  • Data do Fascículo
    Set 2014
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