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A ideia de racionalidade subjacente ao modelo da interação entre a ciência e os valores: florescimento cognitivo, humano e da vida

The idea of rationality beyond the model of the interaction between science and values: cognitive, human and life flourishing

Resumos

No presente artigo, proponho uma interpretação da epistemologia de Hugh Lacey no que se refere à articulação entre o conceito de racionalidade e os conceitos de florescimento cognitivo, humano e da vida. Sustento que a crítica do autor aos aspectos teóricos e práticos da tecnociência envolve a substituição do progresso pelo florescimento, que é consistente com uma concepção de natureza humana que valoriza seus aspectos singulares e individuais sem comprometer-se com formas teóricas e práticas de indivi dualismo egoísta. Tais posições permitem elaborar uma ética do florescimento contrária à moral do progresso e à atividade científica orientada pelo éthos científico comercial. Tal orientação, segundo minha leitura, compromete a autonomia do cientista individual, da instituição de pesquisa e, no limite, da própria ciência. Discuto ainda a análise dos valores que Lacey realiza tematizando a crença e os desejos como causas da adoção de valores. Proponho que o desejo de saber está associado a certo grau de es pontaneidade (que, segundo o autor, se pode argumentar como sendo um valor em si mesmo) e que, juntamente com a criatividade, são dois valores que integram a ética do florescimento. Em conclusão, caracterizo a racionalidade subjacente ao modelo da interação entre a ciência e os valores como flexível, plural e comprometida com uma concepção de ciência construtivamente voltada para uma existência humana legítima e não dissociada do mundo da vida. Tais atributos também estão ligados à racionalidade como disposição a agir de modo inteligente e responsável a razões, que marca a vida comum e as práticas comunicativas que entrelaçam intencionalidade e racionalidade.

Racionalidade; Modelos de racionalidade; Epistemologia; Espontaneidade; Criatividade; Tecnociência comercial; Ética; Valores; Florescimento humano; Lacey


In this article, I propose an interpretation of Hugh Lacey epistemology in respect to the relationship between the concept of rationality and the concepts of cognitive, human and life flourishing. I argue that the criticism of the author to the theoretical and practical aspects of technoscience involves replacing the concept of progress by the flourishing, which is consistent with a conception of human nature that values their unique and individual aspects, without compromising with theoretical and practical forms of selfish individualism. These positions allow the elaboration of an ethic of flourishing contrary to the moral of progress and the scientific activity driven by the commercial scientific ethos. This approach, according to my reading, compromises the autonomy of the individual scientist, the research institution and, ultimately, of science itself. I also discuss the analysis of the values that Lacey performs taking beliefs and desires as causes of adopting values. I propose that the desire to know is associated with some degree of spontaneity (which, according to the author, it can be argued as being a value in itself) and that, with creativity, are two values that are part of the ethic of flourishing. In conclusion, I characterize the rationality underlying the model of the interaction between science and values as flexible, pluralistic and committed to a conception of science toward a legitimate human existence, not separated from the world of life. Such attributes are also linked to rationality as intelligent responsiveness to reasons, which marks the common life and the communicative practices that intertwine intentionality and rationality.

Rationality; Rationality models; Epistemology; Spontaneity; Creativity; Commercial technoscience; Ethics; Values; Human flourishing; Lacey


Introdução: razão, ética e florescimento humano

A adoção em alto grau de perspectivas individualistas de valores sustenta as práticas tec nocientíficas. Nessa perspectiva, os valores e direitos individuais são centrais e am plamente aceitos, gerando uma série de situações indesejáveis que Lacey analisa e criti ca em muitos aspectos. Podemos aqui destacar como núcleos desses tipos de problemas:

(1) a reivindicação da autonomia do pesquisador em detrimento da autonomia das instituições científicas e da própria ciência (cf. Lacey, 2008a, p. 300-2);

(2) a grande aceitação dos valores associados ao par "privatização-pro priedade", a saber, a propriedade intelectual, a privatização da pesquisa e dos meios de divulgação dos resultados (cf. Lacey, 2008a, p. 315-6),

(3) a criação de ambientes de pesquisas onde a competitividade entre os indivíduos é mais valorizada do que o fortalecimento coletivo e democrático das instituições, situação que chega a gerar condições insalubres de trabalho, tais como stress, conflitos entre a vida profissional e a familiar (em especial nas mulheres), doenças mentais e uso de drogas para melhorar o desempenho cognitivo (cf. Oliveira, 2008, p. 382).

Há duas crenças que sustentam essa perspectiva individualista: a crença no valor intrínseco do progresso científico e tecnológico e a crença na ideia de que apenas a inovação tecnológica (ou suas especializações, como a inovação biotecnológica) resolve os problemas gerados pelas tecnologias de geração anterior (cf. Mariconda & Ramos, 2003Mariconda, P. R.; & Ramos, M. de C Transgênicos e ética: a ameaça à imparcialidade científica. Scientiae Studia, 2, 1, p. 245-61, 2003., p. 49-51). Para mim, a maior dificuldade dessa forte adesão ao individualismo não está em seu caráter teórico ou intelectual, mas prático, no sentido de que essa adesão vem acompanhada da incorporação de "valores em nossa vida concreta" ou em "um mundo da vida" (cf. Lacey, 2005Lacey, H. Is science value free?. New York: Routledge, 2005., p. 52-3; Putnam, 1992Putnam, H. Razão, verdade e história. Lisboa: Don Quixote, 1992., p. 167-90).

O que proponho no presente artigo é uma interpretação para alguns aspectos filosóficos da epistemologia de Lacey que explora a articulação entre o conceito de "racionalidade" e os conceitos de "florescimento cognitivo", "florescimento humano" e "florescimento da vida". Entendo que um importante aspecto da crítica de Lacey ao progresso tecnocientífico e aos valores que o sustentam, em especial o valor de controle (cf. Lacey, 2010 _____. Valores e atividade científica 2. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia/Editora 34, 2010., cap. 9), consiste, fundamentalmente, em substituir tal progresso, entendido como um objetivo, pela meta mais adequada do florescimento. Como conceito geral, o "florescimento" pode ser considerado como uma versão de desenvolvimento em sentido amplo que envolve tanto o florescimento humano como o flo rescimento da vida. Além disso, o progresso como valor vem ligado a manifestos aspectos tecnológicos indesejáveis relativamente à degradação do ambiente natural (mo dificações climáticas, destruição dos ecossistemas e extinção de espécies, por exemplo) e humano (várias formas de degradação da vida urbana associadas à poluição e à superpopulação, por exemplo), enquanto o valor do florescimento é plenamente humanista e capaz de responder às exigências contemporâneas globais de preservação e recuperação do ambiente natural.

Associadas ao florescimento estão presentes concepções da natureza humana nas quais a vida singular e individual que mulheres e homens levam devem ser consideradas de modo "constitutivo". Isso nos remete à ideia de "mundo da vida", no qual a vida humana e a dos seres vivos em geral estão em sintonia. Conforme discutirei, creio que, nesses termos, podemos falar concretamente na "individualidade" como expressão da vida humana sem que nos comprometamos necessariamente com concepções teóricas e intelectualistas de individualismo na forma de escolas ou sistemas de pensamento (filosófico, antropológico, sociológico, político etc.).

Franklin Leopoldo e Silva (1999) apresenta o que considero uma articulação muito esclarecedora de valores epistêmicos e éticos que, talvez, possa caracterizar uma base mais propriamente filosófica de um campo da cultura que comporte a noção de florescimento. Partindo de uma interpretação do processo de limitação da razão no iluminismo, o autor diz que

(...) a razão se constitui positivamente ordenando-se negativamente em relação àquilo que não pode alcançar nos parâmetros do que instituiu como ser objetivo. (...) as noções explícitas ou implícitas, de verdade, objetividade, limite, teoria, interesse especulativo, uso da razão, finalidade, sentido do conhecimento etc., e tudo aquilo que a elas se contrapõe, delimitam a intersecção, nunca muito bem determinada, entre conhecimento e valor, ciência e sentido, verdade e finalidade. Pode-se dizer que nunca o conhecimento se institui, nos seus procedimentos e na demarcação dos seus horizontes, sem que se tenha constituído, simultaneamente, embora nem sempre reflexivamente, o quadro axiológico imanente ao desejo de saber. Há, portanto, em princípio, uma indissociabilidade entre razão e ética" (Silva, 1999, p. 351-2).

O que Leopoldo e Silva apresenta como o processo de instituição e de orde na men to do conhecimento positivo a partir de sua negatividade de natureza ética e existencial exige, a meu ver, um quadro axiológico imanente ao desejo de saber e às ações investigativas caracterizáveis por um quadro antropológico ligado a tal desejo. Parece-me que um elemento bem expressivo desse quadro, a velocidade das transformações, tem muito em comum com os problemas tecnocientíficos de nossa época:

A complexidade e a perplexidade parecem ter se tornado constitutivos do éthos do nosso tempo. Se por um lado a velocidade das transformações históricas dissolveu o peso que o éthos da tradição poderia ter enquanto lastro do presente, por outro lado a razão moderna parece ter perdido, no desenvolvimento histórico mais recente, o poder de inventividade que seria necessário para dar conta das implicações éticas da complexidade de nossa civilização (Silva, 1999, p. 352).

Se nos remetermos à concepção de éthos científico de Lacey (2008a _____. Ciência, respeito à natureza e bem-estar humano. Scientiae Studia, v.6, n.3, p. 297-327, 2008a., p. 313-25), encontraremos muitos paralelos entre a situação mais geral apresentada por Leopoldo e Silva e as vicissitudes éticas específicas da investigação científica. A perda da capacidade criativa da razão moderna para enfrentar nossos grandes dilemas atuais corres ponde, a meu ver, à mesma inaptidão da inovação tecnológica em solucionar os graves problemas (sobretudo ambientais, de alimentação e de saúde pública) gerados pela própria tecnologia. Isso é o que Lacey chama de "éthos científico-comercial" que envolve a aceitação de valores que sustentam hábitos e práticas investigativas. É o caso da crença de que

a implementação de inovações tecnocientíficas é, prima facie, considerada legítima, isto é, não possui normalmente (sujeito a refutação) qualquer impedimento ético. Assim, a pesquisa parece ser conduzida à luz de um princípio ético não explicitamente enunciado, que se assume como certo e que afirma algo como o seguinte: "usualmente, a menos que avaliações de risco correntemente disponíveis confirmem que existem riscos sérios, é legítimo implementar - sem demora - aplicações eficazes de conhecimento tecnocientífico objetivamente confirmado e mesmo tolerar uma medida de dissolução social e ambiental por sua causa" (Lacey, 2008a, p. 314).

Creio que podemos compreender pelo menos parte dessa inaceitável tolerância em assumir riscos sociais e ambientais se nos perguntarmos, como faz Leopoldo e Silva, até que ponto ainda somos capazes de compreender "o verdadeiro significado da contingência que atravessa a práxis". Tal como entendo sua posição, o autor parece mostrar-se cético quanto a essa capacidade, uma vez que concebemos a razão como algo que necessariamente se aplica, o que conduziu ao fato de nossa época estar organizada "a partir da supremacia da racionalidade técnica". Além disso, a mesma razão moderna articulou, como já foi expresso em inúmeras fórmulas, razão e poder, fazendo da aplicação a "instância última de sua própria definição" (Silva, 1999Silva, F. L. ; e. Ética e razão. In: Novaes, A. (Org). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 351-65., p. 362). Em suma, a exigência de uma certeza para a práxis, que leva a marca da contingência, faria com que a ação desaparecesse do mundo da prática, ação que "se estrutura a partir da compreensão da contingência na sua singularidade" (Silva, 1999Silva, F. L. ; e. Ética e razão. In: Novaes, A. (Org). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 351-65., p. 363).

Passemos novamente do diagnóstico geral de Leopoldo e Silva para os problemas específicos tratados por Lacey. A "pressa" na aplicação e na implementação de inovações é, para mim, um sinal de que o progresso que a tecnologia nos oferece é, na verdade, um falso progresso, já que ele exige abrir mão da liberdade e da contin gência da ação. No âmbito da pesquisa tecnocientífica, essa pressa apresenta-se cotidianamente, por exemplo, nas agendas e nos projetos de pesquisa, na especialização precoce, bem como na ânsia de alguns jovens pesquisadores de engendrar muito rapidamente uma trajetória ou carreira produtiva e eficaz, mas pouco consciente dos problemas éticos e sociais a ela implícitos. Aqui é o momento para retomar o conceito de florescimento humano, mas, agora, como forma de entendimento que se opõe às prerrogativas do éthos científico-comercial. Como procurarei desenvolver a seguir, é possível encontrar nesse quadro problemático alguns indícios de uma possível recuperação da capacidade inventiva da razão à qual se referiu Leopoldo e Silva.

1 Transformação e aperfeiçoamento do éthos científico: racionalidade, criatividade e expressividade

Proponho conceber e aplicar as linhas gerais de uma ética do florescimento ao éthos científico comercial de modo a criticar o comprometimento que ele produz na articulação entre a autonomia do cientista e a autonomia da instituição de pesquisa (e, no limite, da autonomia da própria ciência).

Lacey & Schwartz chamaram de "individualismo metodológico" a abordagem de pesquisa fundada em uma visão individualista da natureza humana (cf. 1995, p. 113). Os autores são críticos desse individualismo e, dentre seus vários aspectos, podemos destacar a associação que fazem dele com valores tipicamente egoístas que são manifestados por um eu que se quer autodeterminado e autodefinido (p. 114). Essa valorização egoísta produziria efeitos indesejáveis nos cientistas que afirmariam a autonomia de sua pesquisa como direito individual, mesmo que isso signifique sacrificar a autonomia da ciência como um esforço coletivo por produzir conhecimento imparcial e aplicado ao bem-estar humano. Mais concretamente, esse egoísmo estaria presente naquela tendência a que me referi de construir céleres trajetórias de pesquisa que descuidam dos aspectos éticos envolvidos.

Concordo com essas posições críticas de Lacey e Schwartz, mas, já desenvolvendo minha proposta, creio que podemos conceber uma trajetória de pesquisa na qual a explicação e a justificação de decisões e ações (teóricas ou práticas) próprias da investigação científica racional também sejam feitas a partir da vivência pessoal do pesquisador, aquela que retira seu significado do mundo da vida. Nessa noção de "trajetória", a valorização do indivíduo viria articulada aos valores desse mundo da vida que não manifestassem os aspectos indesejáveis do egoísmo acima apresentados, mas que se comprometessem com a ética do florescimento que se opõe ao éthos científico comercial. Vejamos melhor no que consiste essa proposta.

Em termos gerais, penso que a vida possui uma dimensão investigativa que está presente em todos os sujeitos humanos e, como já foi tantas vezes afirmado, o estímulo dessa dimensão pelas instituições sociais ligadas à educação e à cultura conduziria ao enriquecimento subjetivo que iria na direção oposta à de uma vida alienada e egoísta. Porém, voltando aos temas mais específicos acima tratados, concentrar-me-ei nas pessoas que abraçaram um modo de vida e uma profissão nos quais a pesquisa é proe minente e central. Pensando aqui principalmente no cientista, o conflito entre a construção de trajetórias de pesquisa de grande eficiência e a crítica de Lacey ao individualismo metodológico traduz-se no que designo como o confronto entre a responsabilidade ética e social e a satisfação da curiosidade intelectual.

Uma das posições que sustento é que, dentro desse confronto, se a satisfação da curiosidade for sempre secundária em relação à responsabilidade social, poderá ocorrer um enfraquecimento da realização do importantíssimo valor não cognitivo, bem como dos efeitos no domínio cognitivo dessa realização. Essa responsabilidade pode ser uma expressão da instituição de pesquisa na qual o cientista trabalha e confia, e o valor do progresso tecnológico pode muito bem ser o valor central e sistematizador dos ideais e "missões" dessas instituições. Ora, dentro desse quadro, para agir e se sentir socialmente responsável, o cientista deverá abrir mão da satisfação de sua curiosidade intelectual que, a meu ver, é condição para a liberdade da pesquisa que conduz à inventividade (que pode ter muito pouco a ver com a inovação) na solução dos problemas gerados pela tecnociência. Assim, criatividade, inventividade, curiosidade, satisfação intelectual e outras qualidades análogas podem fazer parte de uma matriz consistente de valores não cognitivos - talvez tão importante quanto aquela que possui a imparcialidade como valor nuclear, como é o caso da epistemologia de Lacey. Nos termos dessa mesma epistemologia, a constituição de tal matriz pode ser identificada à etapa da escolha de estratégias de pesquisa que, nas condições atualmente prevalecentes, está fortemente configurada pelo reforço mútuo entre os valores constitutivos da ciência moderna e os valores do capitalismo, a saber, o progresso econômico e o controle da natureza e dos humanos. Assim, o que proponho é apenas uma possibilidade de escolha de uma estratégia cuja efetivação seria altamente desvalorizada.

Ampliando novamente o tema, um segundo aspecto da mesma questão que considero correto é a possiblidade e a necessidade de inserir o caráter individual do desejo de conhecer em um contexto universal que neutralize certo personalismo que, mesmo não sendo egoísta, pode ameaçar a objetividade da investigação científica. Para tanto, daquela lista de qualidades acima mencionada, tomarei duas, a criatividade e a expressividade, e as associarei à noção de florescimento humano, no sentido que Lacey dá a essa noção (cf. Lacey, 2005Lacey, H. Is science value free?. New York: Routledge, 2005., p. 104-7), juntamente com suas ideias acerca da natureza, da formação e da transformação dos valores (cf. Lacey, 2008b _____. Valores e atividade científica 1. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia/Editora 34, 2008b., cap. 2).

2 Criatividade, expressividade e a teoria dos valores de Lacey

Dentro da multiplicidade de significados que a palavra "valor" pode assumir, Lacey faz uma análise dos valores a partir da qual caracteriza dois tipos básicos, os pessoais e os sociais. Tal análise, que não pretende ser "fria e desapaixonada" (2008, p. 52), considera as crenças e os desejos humanos como causas da adoção de valores, o que envolve parcialmente a questão da explicação e da justificação para essa adoção. Em meu tratamento da questão, considerarei apenas os valores pessoais e, para mim, um ponto particularmente importante é a afirmação do autor de que

(...) quando falo de desejos em consonância com valores, não sugiro ser necessário avaliar os desejos antes da ação (embora possa ser assim algumas vezes); na verdade, pode-se argumentar convincentemente que certo grau de espontaneidade é em si mesmo um valor (Lacey, 2008b, p. 52).

Reconheço tal espontaneidade e seu valor naquela satisfação livre e criativa do desejo de saber por parte do cientista individual que investiga autonomamente. Assim, o que vem a seguir é, como parte de minha proposta geral, uma tentativa de argumentar convincentemente de que essa espontaneidade é em si mesma um valor.

Para Lacey, uma das principais propriedades dos valores pessoais é que "eles são dialeticamente tanto produtos quanto os pontos de referência de processos com os quais nós refletimos e avaliamos nossos desejos" (Lacey, 2008b _____. Valores e atividade científica 1. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia/Editora 34, 2008b., p. 53). Isso significa, mais pre cisamente, que a sustentação de valores envolve o que o autor chama de "desejos de segunda ordem", que são "desejos acerca de desejos de primeira ordem que desem penham e desempenharão um papel causal em nossas vidas" (p. 53). No meu entender, o caráter dialético dos valores pessoais está nesse trânsito entre diferentes ordens de valores determinado por diferentes "ordens de desejo". Contudo, penso também que tal ordenamento não pode transformar-se em (ou ser compreendido como) um es que ma hierárquico, pois, com isso, ele perderia suas qualidades dialéticas dinâmicas. Em certo momento do processo de reflexão e avaliação dos desejos, alguns valores pessoais de primeira ordem poderiam cristalizar-se e negar legitimidade a certas "perspectivas de desejo". Isso poderá ocorrer com certas formas de expressão do desejo de conhecer que o cientista possui e vive em seu trabalho cotidiano de pesquisa nas ins ti tuições. Assim, para que a proposta de interpretação dos valores de Lacey seja vanta josamente aplicada, os processos de avaliação de desejos devem possuir um caráter dia leticamente "orgânico" que impeça que certos valores assumam o topo de uma hierarquia linear.

Lacey afirmou que os desejos de segunda ordem possuem um papel causal em nossas vidas e, pensando mais especificamente na vida daqueles que se dedicam aos vários ramos da pesquisa científica (das ciências naturais e sociais e, também, da própria filosofia), é preciso considerar certas particularidades da noção de causalidade. Para o autor,

A explicação de ações em termos de crenças e desejos de um agente pressupõe um amplo contexto no qual a ação em questão está relacionada com outras ações (incluindo atos de avaliação) através do desenvolvimento de redes de crenças e desejos, as quais eventualmente fazem contato com os objetivos e desejos fundamentais do agente, ou seja, os valores do agente. Por meio de tais explicações, o papel causal dos valores no comportamento torna-se aparente. Explicações intencionais ordinárias da ação pressupõem, assim, que os valores desempenham um papel causal no comportamento (Lacey, 2008b, p. 53).

Almejar uma explicação causal para a conexão entre desejos-crenças e valores fora do esquema comportamentalista cria compromissos fortes com a conexão entre intencionalidade e causalidade. Se na esfera das intenções ordinárias e do conhecimento comum esses compromissos não aparecem, para além delas é teoricamente possível evocar a objeção ontológica tradicional de que desejos e ações de primeira ordem são "não causados". Isso evidentemente coloca problemas para a explicação causal das relações entre desejos e valores, mas uma saída interessante seria abdicar dessa explicação.1 É claro que a explicação comportamentalista também é uma alternativa racional, mas a posição dialética de Lacey parece-me muito mais adequada, especialmente quando o âmbito dos valores é a vida concreta dos indivíduos. Penso que, assumindo tal posição, evita-se ao mesmo tempo a regressão ao infinito da causa primeira, a hie rar qui zação dos valores acima mencionada e a valorização do individualismo e da com pe ti ti vidade associados ao behaviorismo.

Deixadas de lado as interrogações ontológicas (de certo tipo), essa interação entre desejo e valor que poderíamos chamar de psicocognitivas está filosoficamente bem fundada em algumas das ideias sobre a relação entre fato e valor de Hilary Putnam (1992, p. 165-90).2 Elas foram utilizadas por Lacey em sua obra seminal (cf. 2005, p. 52-3; p. 104-6; p. 241-2) para estabelecer aspectos de sua epistemologia que considero essenciais para o tema que aqui desenvolvo. Sendo assim, utilizarei as mesmas ideias para sustentar que a expressividade e a criatividade são valores que devem efetivamente orientar a prática individual do cientista.

Putnam associa, ou talvez mesmo sintetize, duas espécies de "prosperidade" ou florescimento, o cognitivo e o humano. Ambas participariam de um gênero maior de prosperidade que o autor associa fortemente à atividade científica e ao conhecimento seguro (não necessariamente verdadeiro) que ela proporciona, bem como ao conhecimento que circula entre as pessoas comuns. Uma parte importante de seu argumento nessa direção é:

(...) se considerarmos o ideal de aceitabilidade racional que é revelado ao olharmos para as teorias que os cientistas e as pessoas vulgares consideram racional aceitar, então vemos que aquilo que estamos a tentar fazer em ciência é cons truir uma representação do mundo que tenha as características de ser instrumentalmen te eficaz, coerente, abrangente e funcionalmente simples (Putnam, 1992, p. 174).

O que retiro desse argumento é, primeiramente, que há valores compartilhados por mulheres e homens comuns (mas racionais ou, eu diria, pessoas que ao menos possuem uma sincera disposição para serem racionais ou agirem racionalmente) e pelos cientistas (primordialmente os das chamadas ciências naturais, mas poderiam ser de qualquer área do conhecimento) que participariam coerentemente de uma "esfera" de valores a que Putnam dá esse nome geral de "ideal de aceitabilidade racional". Em segundo lugar, acredito que é de tal esfera que "o que estamos tentando fazer em ciência" obtém parte significativa dos sistemas mais robustos, sistemáticos e mesmo formais de valores. Não precisamos, pelo menos na presente formulação do problema, aplicar a distinção entre valores cognitivos e não cognitivos, já que a própria racionalidade teria certa função "híbrida" nesse sentido (sem que isso afete a clara separação que Lacey faz desses dois tipos de valores em sua epistemologia). É, então, nesses dois pontos que vejo os dois tipos de florescimento acima aludidos, o cognitivo e o humano. O que Putnam acrescenta logo a seguir em seu argumento parece-me dar apoio a isso. Referindo-se principalmente ao conjunto de valores que ele cita (eficácia, coerência, abrangência etc.), diz que "esse tipo de sistema de representação faz parte da nossa ideia de prosperidade cognitiva humana, e, por isso, parte de nossa ideia de prosperidade humana total, de eudemonia" (Putnam, 1992Putnam, H. Razão, verdade e história. Lisboa: Don Quixote, 1992., p. 174).

"Eudemonia" é um conceito grego antigo que expressa uma forma de felicidade aliada ao conhecimento racional da natureza. Como tal, permite que concebamos valores imbricados na relação entre a satisfação pessoal e subjetiva gerada pela investigação científica e a fruição universal e objetiva dos processos ligados à vida humana e à dos demais seres vivos. Podemos reconhecer tais valores em alguns elementos das concepções aristotélica e estoica de eudemonia. Na Ética a Nicômaco, a felicidade é o grande bem prático para todos os humanos, escolhido por si mesmo como absolutamente final, e, dada sua qualidade de autossuficiência, nunca aparece como meio para atingir outros bens (EtNicAristóteles. The nicomachean ethics of Aristotle. London: Dent & Sons, 1937. (EtNic), p. 9-10). Por tais propriedades, a verdadeira felicidade opõe-se aos contentamentos e entretenimentos do homem ordinário, já que opera como um bem em si mesmo apenas nas atividades ou obras seriamente realizadas com vista à excelência. Tais atividades são aquelas realizadas por meio do melhor de nossos princípios internos, que é o intelecto. Daí que a eudemonia seja a felicidade experimentada na investigação científica e o caminho que conduz à ciência nos proporciona um prazer admirável por sua pureza e constância (cf. EtNicAristóteles. The nicomachean ethics of Aristotle. London: Dent & Sons, 1937. (EtNic), p. 249-50). A associação da atividade racional a uma felicidade como forma mais perfeita de satisfação, prazer ou deleite também aparece nos estoicos, com a particularidade de que, para os seres racio nais, viver naturalmente é viver corretamente sob o comando da razão. Viver de acordo ou em harmonia com a natureza implica viver virtuosamente, já que a virtude é o objetivo para o qual a natureza nos conduz. Mais especificamente, uma vez que nossa natureza individual é parte da natureza do conjunto do universo, a vida virtuosa do homem orientada pela razão compreende uma experiência no interior do curso real da natureza (Diógenes Laércio, 1925Diógenes, Laércio. Lives of eminent philosophers. London: William Heinemann, 1925 2v. ., p. 193-5). Assim, a eudemonia está ligada a uma forma de participação no fluir ou florescer geral da vida que podemos encontrar na ideia de que, para os estoicos, o prazer, tal como percebido pelos animais em sua busca por autopre servação, não pode ser o objetivo final da natureza, já que as plantas conseguem manter sua constituição na ausência desse tipo de prazer. A satisfação eticamente sig ni ficativa é vitalmente mais elementar e o prazer animal dela é apenas um subproduto. Tal como o vigor observado em uma segunda florada anual, a virtude que mantém a integridade da existência individual dos seres naturais, que não faz distinção entre plantas e animais, é comparável à "proliferação dos animais e às plantas em plena germinação" (Diógenes Laércio, 1925Diógenes, Laércio. Lives of eminent philosophers. London: William Heinemann, 1925 2v. ., p. 195). A ideia de ser conduzido, na vida prática, por uma razão que é guiada por essa virtude proliferativa natural significa conceber o progresso cognitivo humano em termos de uma felicidade geral que floresce em harmonia, no sentido estoico, com a natureza. Vejo nessas formas de expressão da eudemonia antiga, bem como no uso que Putnam dela faz, um modo pelo qual as tensões experimentadas individualmente pelas pessoas envolvidas no processo de investigação cien tífica possam ser compreendidas objetivamente em sua conexão a processos de desenvolvimento naturais, que não são necessariamente de caráter psicológico nem social.

Outra parte do amplo e intricado argumento de Putnam que também é fundamental para o que proponho pode ser apresentada em termos semelhantes aos ante riores. Esse conjunto de valores, agora explicitamente ditos "cognitivos", são, reclama o autor, "arbitrariamente considerados como tudo menos parte de uma concepção ho lís tica da prosperidade humana" (Putnam, 1992Putnam, H. Razão, verdade e história. Lisboa: Don Quixote, 1992., p. 178). De fato, já não se pode negar que há nas ideias de Putnam um gênero amplo de florescimento com as espécies ou formas racional-cognitiva e humana engendrando uma forte unidade, sobretudo se salientarmos seu distanciamento de certas posições abertamente metafísicas.

Despojados da velha ideia realista de verdade como "correspondência" e da ideia positivista da justificação como fixada por "critérios" públicos, somos deixados com a necessidade de ver a nossa procura de melhores concepções de racio na lidade como uma atividade humana intencional, que, como toda atividade que se eleva acima do hábito e do mero seguir da inclinação ou obsessão, é guiada pela nossa ideia do bem (Putnam, 1992, p. 177).

Perceba-se que esse aspecto intencional valorizado por Putnam está, na minha opinião, conceitualmente próximo da racionalidade que emerge da interação entre crenças, desejos e valores de Lacey. Os dois autores parecem compartilhar uma teoria dos valores na qual comparece a crença em um bem como valor maior capaz de guiar a ação humana rumo a um florescimento geral, estando ele estreitamente relacionado à atividade cognitiva, investigativa e científica. Sendo assim, proponho reinterpretar em termos de "valores vitais" o que Lacey define como uma das formas de "criar espaços para (maior) manifestação de valores mais dignos e para uma vida onde esses valores sejam arraigados" (Lacey & Schwartz, 1995Lacey, H.; & Schwartz, B. A formação e a transformação dos valores. Psicologia Revista, 1, 1, p. 91-124, 1995., p. 91). Ou seja, o valor de uma vida realizada, "boa, repleta de significado, bem vivida" (p. 93-4) traduz-se como valores vitais que inscrevem os valores sociais e humanísticos no quadro de um florescimento da vida ou florescimento vital. Temos, então, o cognitivo, o humano e, agora, o vital como três modalidades entrelaçadas de florescimento ou prosperidade que julgo muito mais adequadas para operarem como horizontes da investigação científica do que o núcleo valorativo do progresso. A partir daqui, desenvolvo o que são esses valores vitais gerais como diferenciados dos valores ligados à vida especificamente humana e, na sequência, apresento, então, algumas conclusões gerais do presente estudo.

Conclusão: racionalidade flexível, florescimento humano e florescimento da vida

Lacey (2009) desenvolve um argumento que, sustentado em aspectos mais recentes de sua epistemologia, denuncia de modo preciso a ameaça ao pluralismo metodológico na ciência. Segundo o autor, a ciência contemporânea encontra-se em um estado de crise que abala sua própria racionalidade ou, no mínimo, a capacidade que seus atores possuem de compreender racionalmente aquilo que fazem:

À ciência unida às metodologias descontextualizadas faltam as categorias necessárias para entender sua própria racionalidade e os limites tanto de sua aplicabi lidade quanto aqueles necessários para articular seu caráter moral, o que a deixa passível de ser dominada de modo a estar predominantemente a serviço de interesses (corporativos e governamentais) poderosos (Lacey, 2009, p. 699).3

Lacey introduz seu argumento recorrendo ao que Edmund Husserl disse sobre a perda de significado da ciência para uma existência humana legítima, fruto da dis so ciação entre as ciências e o mundo da vida. A prosperidade promovida pelas ciências positivas teria afetado negativamente o sentido de vidas humanas individuais (cientistas, pesquisadores ou as pessoas em geral) e a visão total de mundo do homem moderno. Visto sob a perspectiva mais contemporânea de Lacey, o conhecimento cien tífico vem sendo usado para inovações tecnológicas e biotecnológicas que, moldadas por forças sociais e econômicas, modificaram de forma fundamental as possibilidades abertas para o mundo. Isso afeta nossa visão ampla de mundo, os aspectos práticos ime diatos da vida cotidiana, bem como nossas concepções sobre a natureza e a racio nalidade (cf. Lacey, 2009 _____. O lugar da ciência no mundo dos valores e da experiência humana. Scientiae Studia, 7, 4, p. 681-701, 2009., p. 683).

Quanto a este último conceito, Lacey apresenta a racionalidade como responsabilidade inteligente frente a razões, que marca a vida comum e as práticas comunica tivas onde há uma interação entre intenção e racionalidade (cf. Lacey, 2009 _____. O lugar da ciência no mundo dos valores e da experiência humana. Scientiae Studia, 7, 4, p. 681-701, 2009., p. 686). Tal noção, a meu juízo, está intimamente ligada à teoria geral dos valores laceyana da qual faz parte a seguinte tese:

práticas científicas, aquelas em que o conhecimento científico é proposto, confirmado e tem alguma parte aplicada, são práticas sócio-históricas que ocorrem no mundo dos valores e da experiência humana, realizadas por agentes humanos, cujas ações são explicáveis em termos de suas crenças, percepções, deliberações, desejos e valores (e outros intencionais) (Lacey, 2009, p. 688).

Tenho a firme convicção de que o desejo de conhecer, a satisfação intelectual que a pesquisa promove e outros elementos análogos estão no cerne de tais ações e não podem ficar fora de nenhuma análise que procure entender como os valores afetam a experiência investigativa humana. Penso que Lacey concordaria comigo nesse ponto, pois, logo após apresentar a tese anterior, diz que "a textura do mundo da experiência vivida tem sido profundamente transformada pelas aplicações do conhecimento cientí fico" (Lacey, 2009 _____. O lugar da ciência no mundo dos valores e da experiência humana. Scientiae Studia, 7, 4, p. 681-701, 2009., p. 688). A criatividade e a expressividade fazem parte dessa tex tura e, a partir daqui, começo a articular a proposta de um tipo de florescimento vital diferente do florescimento humano, sendo o primeiro uma "matriz" para os valores vitais.

O argumento de Lacey é complexo e dirige-se para muitos outros aspectos desse problema, mas, para meus propósitos, voltarei à questão da explicação e da justificação das metodologias, aqui associada especificamente à relação entre explicar e justificar racionalmente a adoção hegemônica das estratégias descontextualizadas. Posta de modo sintético, a posição de Lacey, com a qual concordo plenamente, é a de que justificar tal proeminência não conta como uma razão para mantê-la (cf. Lacey, 2009 _____. O lugar da ciência no mundo dos valores e da experiência humana. Scientiae Studia, 7, 4, p. 681-701, 2009., p. 695). Lacey adota uma concepção de racionalidade como resposta responsável inteligente de seres comunicantes sempre abertos ao diálogo e entende que é dessa perspectiva racional que surgem as "boas razões", ou seja, aquelas que são entendidas "em relação ao horizonte geral de contribuir para o crescimento do bem-estar de todas as pessoas e de todos os lugares" (Lacey, 2009 _____. O lugar da ciência no mundo dos valores e da experiência humana. Scientiae Studia, 7, 4, p. 681-701, 2009., p. 695). Ora, parece-me claro que uma tão ampla preocupação com o bem estar humano sustenta-se na crença em um bem como valor essencial condutor da atividade científica e tecnológica - também presente em Putnam como eudemonia, como vimos anteriormente. Esse bem moral também se traduz cognitivamente como uma boa razão. Por fim, a prática dessa ética é, em suma, estar sempre aberto aos diálogos em que as boas razões contam mais do que os interesses pessoais - e mesmo os institucionais e sociais que se pautam pelos valores do progresso tecnocientífico.

Para mim, o campo de validade ética desse bem, mesmo quando ligado às es pecificidades da atividade científica, é amplo o suficiente para que possamos sair da esfera humana de modo a conceber racionalmente um bem ligado à própria vida em geral - ou seja, uma ética na qual a vida (em geral e a de outros seres vivos não humanos)4 possui um valor em si mesma. Para tanto, a racionalidade como resposta responsável a razões deve ser flexibilizada e aparecer, ela própria, dentro de um pluralismo de éticas. Isso significa, entre outras coisas, aceitar a existência, pelo menos como possibilidade conceitual, de um diálogo construtivo e criativo dos humanos com a natureza e a vida que a ela está ligada.

Reconheço que há aqui algum perigo de envolver a ética e a epistemologia que lhe acompanha em alguma forma de irracionalismo. Porém, se isso significa, como desenvolvi anteriormente, abdicar de tentar explicar ou mesmo justificar nossas perspectivas de desejo, o irracionalismo pode ser aceito, desde que delimitado pelos objetivos éticos aplicados ao âmbito da investigação e da pesquisa. Nesse esquema ético-cognitivo, avaliação e justificação separam-se, o que implica certa perda da racionalidade envolvida no ato de justificar. Isso para mim é aceitável, desde que haja manutenção ou ganho de significado ou sentido no ato de avaliar nossas escolhas, desejos e crenças. De qualquer modo, não tenho dúvida de que esse irracionalismo ético (ou bioético, em um sentido filosófico mais profundo) é de longe muito mais admissível do que aquele presente na adoção hegemônica das estratégias descontextualizadas de pesquisa. Por fim, acredito que tudo isso pode ser afirmado sem necessariamente assumir qualquer perspectiva vitalista, espiritualista ou mesmo religiosa (embora possa ser o caso), já que a operacionalidade da ética dos valores vitais independe de assumir posições metafísicas, ontológicas ou teológicas como as que apresentei acima ao tratar da causa primeira da ação.

Essa expansão que proponho das ideias de Lacey é possível porque leio sua proposta como sendo muito mais uma epistemologia geral, ética e politicamente engajada, do que uma metodologia. As questões metodológicas e analíticas de Lacey são apenas parte de uma filosofia maior que articula de modo profundo a racionalidade às questões da ciência, da técnica, do bem-estar e do florescimento humano.

Agradecimentos. Pela colaboração com ideias e críticas às propostas presentes neste artigo, sou grato aos profes sores Pablo Rubén Mariconda, Gustavo Caponi, Regina Andrés Rebollo, Lorenzo Baravale, Helena Mateus Jeróni mo, Sylvia Gemignani Garcia, bem como a todos os que participaram das discussões sobre o tema junto ao Instituto de Estudos Avançados da USP, promovidas pelo Grupo de Pesquisa em Filosofia, História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2014
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