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A epistemologia de Poincaré à luz de Kant: convenções e o uso regulador da razão

Poincaré's epistemology in the light of Kant: conventions and the regulative use of reason

Resumos

As reflexões metodológicas de Poincaré sobre a modelação mecânica dos fenômenos, as teorias físicas, a hierarquização das leis e a evolução do seu estatuto e sistema são susceptíveis de uma leitura kantiana que exibe a função constitutiva das matemáticas e a função reguladora dos princípios de conveniência e dos princípios da física, correspondendo estes a uma importante etapa na evolução das teorias físicas.

Poincaré; Kant; Filosofia da física; Convenções cômodas; Princípios reguladores; Harmonia; Unidade sistemática


The methodological reflections of Poincaré on the mechanical modeling of phenomena, physical theories, the hierarchy of laws and the evolution of their status and system are illuminated by a Kantian reading that displays the constitutive function of mathematics and the regulative function of principles of convenience and of the principles of physics, these corresponding to an important step in the evolution of physical theories.

Poincaré; Kant; Philosophy of physics; Convenient conventions; Regulative principles; Harmony; Systematic unity


Introdução

O carácter convencional da geometria física, justificado pela intertradutibilidade das geometrias métricas que permitem a livre mobilidade dos corpos sólidos e por um holismo estratificado que permite ajustes entre geometria, óptica e mecânica e a associação entre a noção de verdade e a de comodidade estão entre as contribuições de Poincaré mais decisivas para a epistemologia. É comum assinalar-se como Poincaré se afasta de Kant, a convenção sendo uma alternativa ao empirismo e ao carácter impositivo, único e necessário, do sintético a priori. Poincaré era avesso a definições mas, usando os termos de Schlick, pode-se resumir a concepção afirmando que a posição convencionalista assume que por uma escolha conveniente é sempre possível obter, sob certas condições, uma designação não ambígua do real por meio do conceito (cf. Schlick, 1974 [1918], p. 71; Brenner, 2004Brenner, A. Géométrie et genèse de l'espace selon Poincaré. Philosophiques, 31, 1, p. 115-30, 2004., p. 118). Esta percepção tem uma longa história que remonta aos positivistas lógicos que colocaram Poincaré no seu panteão e anunciaram a morte do a priori, na sequência do sucesso da relatividade geral de Einstein que tornou impossível justificar a prioridade da geometria euclidiana.

O domínio das convenções é o da geometria física, da mecânica e das ciências físicas, insistindo Poincaré na pertinência da noção de sintético a priori na aritmética, na análise e no quadro das geometrias puras. O princípio da recorrência é basilar na aritmética e uma geometria, como mostrou Sophus Lie, deriva de um grupo contínuo de transformações. O princípio de recorrência e a noção de grupo, que traduzem a potência do espírito, são, para Poincaré, da ordem do sintético a priori, sinais claros da inspiração kantiana. Por isso os neokantianos, de Cassirer a Michael Friedman, inscrevem Poincaré no kantismo. Uma perspectiva de epistemologia histórica sugere também a aproximação a Kant. O filósofo de Königsberg inspirou vários sábios e filósofos que pertencem à configuração intelectual dos anos de formação e de maturidade do sábio francês - caso de Hermann von Helmholtz, Charles Renouvier, Jules Lachelier, Émile Boutroux e, depois, os fundadores da Revue de Métaphysique et de Morale, Xavier Léon e Léon Brunschvicg. Se Helmholtz, nos seus estudos dos anos 1860, invalidou a perspectiva atríbuida a Kant de que "os axiomas [da geometria] são princípios sintéticos a priori, na medida em que são imediatamente certos" (Kant, 1997 [1787], p. A732), ao considerá-los como a posteriori, sendo possível uma intuição sensível das três geometrias que permitem a livre mobilidade dos corpos rígidos, ele afirmou também que se pode considerar "transcendental [ou seja independente da experiência] o conceito de construção geométrica rígida do espaço" (Helmholtz, 1883 [1870], p. 30). Quanto aos filósofos franceses referidos, se Renouvier se ateve à prioridade da geometria euclidiana, quer ele quer Lachelier deram particular atenção à dialéctica transcendental da Crítica da razão pura, e Lachelier em particular interessou-se por uma leitura epistemológica da Crítica da faculdade de julgar, territórios onde as hipóteses, o uso regulador das ideias e o princípio teleológico da unidade sistemática adquirem uma importância insuspeita aos olhos daqueles que leem Kant como o estrito epistemólogo da física newtoniana, e limitam-se à estética e à analítica transcendentais, como é o caso da maioria dos positivistas lógicos (cf. Carnap, 1923Carnap, R. Über die Aufgabe der Physik und die Anwendung des Grundsatzes der Einfachstheit. Kant-Studien, 28, p. 90-107, 1923., p. 90). Entre os poucos que contrariam essa tônica conta-se Léon Brunschvicg, figura do neokantismo francês mais próxima de Poincaré, o qual escreveu que "para descrever a crescente riqueza e beleza da ciência, Poincaré fala uma língua que só contradiz as teorias da Crítica da razão pura para melhor voltar à inspiração que ditou a Kant a Crítica da faculdade de julgar" (Brunschvicg, 1958, v. 3, p. 169).

Essas sugestões, obtidas pelo método genético da história das ideias, traduzirse-ão aqui na análise do metanível constituído por princípios reguladores e/ou constitutivos na filosofia de Kant a qual servirá depois para iluminar algumas das reflexões de Poincaré, apresentadas em textos escritos por volta de 1900, sobre a estrutura, objetividade, evolução e método das ciências físicas.1 1 O texto de Brunschvicg foi publicado em 1913, na Revue de Métaphysique et de Morale. Este trecho é citado pelo estudioso kantiano M. Ferrari, sem que dele se extraia o sumo (cf. Ferrari, 2006, p. 142). Sobre as possíveis inspirações filosóficas francesas no pensamento de Poincaré, ver Príncipe (2012a, 2012b).

1 Princípios heurísticos, constitutivos e a unidade sistemática da natureza

Na linguagem kantiana, o plano transcendental é constituído por princípios constitutivos e por princípios reguladores. Nos Prolegômenos, Kant observa: "o termo transcendental (...) em mim nunca significa uma relação do nosso conhecimento às coisas, mas apenas à faculdade de conhecimento" (Kant, 1988 [1783], A71, p. 64). Na Analítica transcendental da Crítica da razão pura, que diz respeito às condições a priori universalmente necessárias da experiência possível (em física), condições ao abrigo das quais as coisas podem tornar-se objetos de nosso conhecimento, Kant atribui um significado transcendental às categorias e aos princípios puros do entendimento. Kant distingue entre os princípios matemáticos, que permitem aplicar a matemática aos fenômenos (constituindo a experiência possível através da construção de objetos com caráter matemático) e os princípios dinâmicos ou analogias da experiência:

uma analogia da experiência será pois uma regra segundo a qual... a unidade da experiência deve resultar das percepções, e será aplicada aos objetos (fenômenos) não como um princípio constitutivo, mas como um princípio regulador (Kant, 1997 [1787], p. A 180).

Os primeiros são constitutivos, dando as condições a priori da intuição e sendo absolutamente necessários; um princípio é constitutivo quando funda, condiciona e determina os objetos científicos. Os segundos são reguladores, eles dão ordem ao existente, e, como a existência de objetos da intuição é apenas contingente e não pode ser construída, eles têm um caráter de necessidade a priori de uma forma mediata e indireta.

As regras ou princípios gerais do método associados a essa procura de ordem são designados por Kant princípios de conveniência e definidos como "regras do julgar às quais de bom grado nos submetemos e aderimos como se fossem axiomas, apenas pela razão de que, se nos desviássemos delas, o nosso entendimento não poderia emitir quase nenhum juízo acerca de um objeto dado"; esses princípios

fundam-se em razões subjetivas, não certamente nas leis do conhecimento sensitivo, mas nas do próprio conhecimento intelectual, ou seja, nas condições mediante as quais lhe parece fácil e rápido usar da sua própria perspicácia (Kant, 1985 [1770], §30, II, p. 418).

Essas considerações, presentes no final da Dissertação de 1770, aprofundam-se com a distinção constitutivo/regulador, desenvolvida na primeira e na terceira Críticas (cf. Santos, 2008Santos, L. R. L'apport de Kant au programme de l'ars inveniendi des modernes, conférence dans "Kant and the philosophical tradition - Kant today". Brasilian-Italian-Portuguese Kant Conference 22-23 January 2008 Università degli Sudi di Verona, 2008. Disponível em: <http://ftp.cle.unicamp.br/pub/ kant-e-prints/Vol-3.../Santos-2-3-2-2008.pdf>. Acesso em: 03 set. 2014.
http://ftp.cle.unicamp.br/pub/ kant-e-pr...
, p. 8, 11).2 2 Segundo Santos, Leibniz utilizou frequentemente o nome de princípios de conveniência para "referir-se aos princípios metafísicos que, não correspondendo a uma necessidade de tipo geométrico decorrente da natureza da coisa ou do seu conceito, são o resultado de uma necessidade de natureza arquitetônica e estética da razão" (Kant, 1985 [1770], p. 101, nota 126). Estes princípios foram recolhidos por Kant enquanto máximas da faculdade de julgar.

Na primeira Crítica a distinção constitutivo/regulador aparece na Analítica transcendental e é retomada na Dialética transcendental, especialmente em seu Apêndice. Na Analítica, Kant quer mostrar como se passa da matemática à física, querendo assim explicitar a física em sua possibilidade a priori, a matemática (em si estrangeira ao real) sendo um horizonte de possibilidades que não pode ser justificado na sua necessidade, como método da física, a não ser pela sua exposição aos princípios puros do entendimento que submetem a Estética transcendental à Lógica transcendental. Os princípios kantianos aí apresentados são de dois tipos: os princípios matemáticos, que dizem respeito ao espaço físico, do ponto de vista da quantidade (grandezas extensivas) e da qualidade (grandezas intensivas), e os princípios dinâmicos, que dizem respeito à existência no campo dos fenômenos dados pela intuição. Os princípios matemáticos, que permitem produzir os fenômenos a partir de uma síntese matemática e estabelecer os quadros da experiência possível, são princípios constitutivos, permitindo a construção dos objetos possíveis. A atribuição aos fenômenos de objetos reais resulta dos princípios dinâmicos, onde as categorias de relação e modalidade se combinam com a forma de tempo. As analogias da experiência são princípios sintéticos a priori do entendimento puro, condicionando e permitindo, através da representação de uma conexão necessária das percepções, a experiência. Há três analogias da experiência: a permanência da substância, a existência na natureza de leis fixas de sucessão (causalidade) e o princípio universal da reação recíproca (cf. Eisler, 1994Eisler, R. Kant-Lexikon. Édition établie et augmentée par A.-D. Balmès & P. Osmo, Bibliothèque de Philosophie. Paris: Gallimard, 1994., p. 192; Philonenko, 1993Philonenko, A. L'œuvre de Kant. Paris: Vrin, 1993. t. 1., p. 192-3, 204).3 3 A distinção constitutivo/regulador está na CRP, na seção intitulada "Representação sistemática de todos os princípios do entendimento puro". Walsh observou que, na discussão de Kant sobre as analogias de experiência, "os argumentos têm todos a ver com a postulação de novos existentes com base na ocorrência de algum item na experiência" (1975, p. 123). Sobre a relação entre as analogias de experiência e a física newtoniana, ver Vuillemin (1955, §33).

No Apêndice à Dialética transcendental, Kant considera o uso regulador das ideias da razão pura, e explica o interesse dos princípios de conveniência para a sistematização do conhecimento alcançado pelo entendimento. Este último, usando as categorias, constitui o objeto (dando forma à intuição sensível), mas não fornece a ligação sistemática para organizar a variedade de objetos em uma ciência. Para agrupá-los de forma sistemática, e não de forma rapsódica, é necessária uma ideia que nos guia para formar uma totalidade. Um exemplo: o uso dos conceitos do entendimento mostra nos que a unidade da causalidade de uma substância é o que chamamos de força; encontramos várias forças e procuramos reduzi-las a umas poucas e, finalmente, a uma só. As ideias devem ser tomadas de forma analógica e não como objetos, porque elas não se aplicam a uma intuição (sensível), mas ao entendimento, estruturando o sistema do conhecimento. O seu uso regulador corresponde ao uso hipotético da razão, presente na indução na qual

o geral só é considerado de uma maneira problemática e é uma simples ideia; o particular é certo, mas a generalidade da regra relativa a esta consequência é ainda um problema; então aferem-se pela regra diversos casos particulares, todos eles certos, para saber se se deduzem dela e, se parecer que dela derivam todos os casos particulares que se possam indicar, conclui-se a universalidade da regra e, a partir desta, todos os casos que não forem dados em si mesmos. É o que eu denomino o uso hipotético da razão. O uso hipotético da razão, com fundamento em ideias admitidas como conceitos problemáticos, não é propriamente constitutivo, ou seja, não é de tal natureza que, julgando com todo o rigor, dele se deduza a verdade da regra geral tomada como hipótese; pois, como poderão saber-se todas as consequências possíveis que, derivando do mesmo princípio admitido, provam a sua universalidade? É pois unicamente um uso regulador, isto é, serve, na medida do possível, para conferir unidade aos conhecimentos particulares e aproximar assim a regra da universalidade. O uso hipotético da razão tem, pois, por objeto a unidade sistemática dos conhecimentos do entendimento e esta unidade é a pedra de toque da verdade das regras. Reciprocamente, a unidade sistemática (como simples ideia) é apenas uma unidade projetada, que não se pode considerar dada em si, tão-só como problema, mas que serve para encontrar um princípio para o diverso e para o uso particular do entendimento e desse modo guiar esse uso e colocá-lo em conexão também com os casos que não são dados (Kant, 1997 [1787], p. A646-7).

Kant nos deixou apenas explicações concisas sobre a sua noção de hipótese; a atividade científica começa com a formulação de uma hipótese, um pressuposto para avançar na incerteza; ela é construída de acordo com uma indução, tendo sido verificada em casos particulares; nós a tomamos por verdadeira (fürwahrhalten), porque nos dá a causa ou a razão suficiente dos fenômenos. Se uma hipótese é uma candidata a tornarse uma lei da natureza (que, por definição, tem caráter necessário), a experimentação pode estabelecer a sua plausibilidade, mas sua certeza só pode vir de sua integração em um corpo de leis e princípios e de um acordo entre os estudiosos (intersubjetividade); em sua versão mais rigorosa, fiel ao newtonianismo, temos razões para considerar as regras empíricas como leis necessárias, se elas se podem conectar a princípios metafísicos e transcendentais, como os do nexo de causalidade, a lei da inércia e a lei da ação e reação. A formulação da hipótese é guiada pelo esforço de unidade sistemática que é obtido pelos princípios do uso da razão hipotética:

  • (1) mercê de um princípio da homogeneidade do diverso sob gêneros superiores;

  • (2) por um princípio da variedade do homogêneo sob espécies inferiores; e, para completar a unidade sistemática, acrescenta ainda

  • (3) uma lei da afinidade de todos os conceitos, ou seja, uma lei que ordena uma transição contínua de cada espécie para cada uma das outras por um acréscimo gradual da diversidade (Kant, 1997 [1787], p. A657-8).

Estes princípios são a base da organização sistemática de cognições. Nós os usamos quando formulamos uma hipótese que explica muitos fenômenos, mesmo se não formos capazes de realizar experimentos ou observações para testá-la. Para Kant, se a hipótese oferece a melhor explicação dos fenômenos, devemos aceitá-la, apesar da falta de confirmação experimental ou observação.4 4 O papel sistematizante das ideias é resumido em CRP, p. A298-9. Os critérios kantianos para a construção e avaliação de uma hipótese são o assunto de Vanzo (2012, §7.3).

Esses princípios sugerem que a estrutura do sistema de conexão de conceitos e leis é hierárquica, de modo que a razão ordena a multiplicidade dos conceitos do entendimento hierarquicamente em termos de gêneros de crescente generalidade. Se os dois primeiros são inspirados por Aristóteles e Linnaeus (taxonomia), o terceiro sugere que os grupos naturais (natural kinds), isto é, grupos constituídos por coisas com organização estável e que são descobertos por indução (processo unificador), excedem a lógica classificatória das espécies vivas; a palavra "natural" não deve ser tomada com sentido ontológico, porque essas classificações postulam objetos puros, "limites problemáticos", desprovidos de existência. Isso fica evidente no exemplo ilustrativo dado por Kant:

  • (1) observações empíricas iniciais e imperfeitas sugerem que os planetas se movem em órbitas circulares;

  • (2) subsequentemente, foi descoberto que certas órbitas planetárias não são perfeitamente circulares;

  • (3) as diferenças são atribuídas a uma força (gravitação) capaz de alterar a trajetória circular, que se expressa por uma lei (matemática), que pode representar todos os níveis de aberração; o que implica que todas as trajetórias não circulares têm afinidades com as propriedades das órbitas circulares, uma hipótese que dá a ideia de uma órbita elíptica;

  • (4) em seguida, observa-se que os movimentos dos cometas se distanciam ainda mais da circularidade perfeita, e, pelo mesmo raciocínio utilizado em (3), podese concluir que as trajetórias dos cometas são parabólicas;

  • (5) por fim, raciocina-se para além do que a experiência pode confirmar, calculando que as órbitas dos cometas que deixam completamente o nosso sistema solar são hiperbólicas, e conclui-se que todas as partes separadas do universo distante são mantidas juntas pela mesma força (gravitação) (cf. Kant, 1997 [1787], p. A662-3).

Como observa Robert Butts:

A gravitação é o tipo natural que estabelece afinidades entre os tipos de movimento, proporcionando unificação daquilo que de outro modo seriam movimentos observados e sem relação entre si. O apelo ao princípio da afinidade descobre (...) uma unidade nas formas genéricas das órbitas, e, assim, uma unidade na causa de todas as leis do movimento planetário, ou seja, a gravitação (Butts, 1990, p. 8-9).

Um outro aspecto da máxima da sistematização é o fato de que ela fornece o critério de verdade e as suas regras: "a tentativa disciplinada para perceber o todo torna a unidade mais coerente. Unidade como coerência, como ajuste lógico, é o teste da verdade das regras da razão" (Butts, 1984, p. 217). Esta máxima dirige nossa atenção para casos desconhecidos. Poincaré dirá: "para obter um resultado que tenha um valor real, não é suficiente colocar as coisas em ordem; não é só a ordem, é a ordem inesperada que vale alguma coisa" (Poincaré, 1999 [1908], p. 27); o exemplo da afinidade produzido pela gravitação será retomado por Poincaré em sua resposta a Le Roy (cf. Rush Junior, 2000Rush junior, F. L. Reason and regulation in Kant. The Review of Metaphysics, 53, 4, p. 837-62, 2000., p. 841).5 5 Eis uma paráfrase das palavras de Poincaré, escrita em 1913: "o que a ciência visa não é a ordem (...), é a ordem inesperada" (Brunschvicg, 1958, v. 3, p. 180).

Kant considera os princípios reguladores como máximas, "princípios subjetivos, que não derivam da natureza do objeto, mas do interesse da razão por uma certa perfeição possível do conhecimento desse objeto" (Kant, 1997 [1787], p. A666-7), e ele nota o pluralismo de atitude dos investigadores. Um princípio de perfeição do conhecimento é para Kant uma máxima da razão, um princípio introduzido para satisfazer um "interesse especulativo" da razão. Os princípios reguladores, enquanto máximas, não podem entrar em conflito porque a razão só tem um interesse natural, a maximização da unidade sistemática, e porque diferentes máximas não são leis constitutivas dos objetos. Há muitas maneiras desse interesse poder ser servido, que Kant designa por diferentes modos de pensamento. A máxima "Aumente o conhecimento da multiplicidade e da variedade" não pode entrar em conflito com a máxima "Tente unificar os conhecimentos empíricos", pois as duas máximas exprimem o interesse superior da razão e não questões de fato. Assim as máximas são compatíveis enquanto diferenças de método. A unidade da natureza não poderia ser confirmada ou refutada pelo conhecimento dos objetos estudados. Para Kant não existe um método único aplicável a todas as ciências (cf. Butts, 1984, p. 222-3).

Na terceira Crítica, a causalidade é entendida a partir de dois pontos de vista. Para o entendimento, ela é uma cadeia progressiva de causas eficientes e seus efeitos (mecanismo); mas ela pode ser também entendida pela razão enquanto fim ou intenção, os efeitos sendo, portanto, causas finais de suas causas na ordem temporal (teleologia); essas duas visões representam dois programas de investigação: o programa das ciências físicas, cujo grande exemplo é a física matemática newtoniana, e o programa das ciências da vida. Mas a centralidade da máxima que afirma que o universo é um todo ordenado (como se tivesse sido obra de um criador) e é compreensível por nós significa que o mecanismo (causalidade entendida como uma série de causas eficientes e seus efeitos) deve ser subordinado à teleologia, pois só a ação intencional humana pode descobrir as leis científicas, esta ação intencional humana sendo dirigida para fins, para a descoberta de leis como estando unificadas em um único sistema; o princípio teleológico impõe ao pensamento a necessidade de olhar para a natureza como uma obra de arte (cf. Kant, 2002 [1789], §61, 81; Philonenko, 1993, §25; Krausser, 1988Krausser, P. On the antinomies and the appendix to the dialectic in Kant's critique and philosophy of sciences. Synthèse, 77, 3, p. 375-401, 1988., §4-6).6 6 Butts nota que "o conceito do uso regulador das ideias da razão é a ponte entre as credenciais bem estabelecidas por Kant do mecanismo e a sua insistência em que a ciência só pode legitimamente prosseguir se forem satisfeitas certas exigências teleológicas. (...) As ideias da razão ordenam as nossas expectativas de que o conhecimento irá formar um mundo organizado e unificado (...) elas dirigem-nos para um fim no qual todas as regras da razão convergem para um ponto central, esse ponto sendo a mera ideia, o focus imaginarius, de um sistema completo em ato" (Butts, 1984, p. 214-5). Para as reflexões sobre a metodologia científica da Crítica da faculdade do juízo, ver Butts (1990); para a lógica da teleologia de Kant, construída sobre a analogia e sobre o raciocínio analógico, consultar Sgarbi (2011, p. 135-8). A tese de Lachelier, de 1871, Du fondement de l'induction, valoriza o significado epistemológico dessas duas visões sobre a causalidade.

É claro que as interpretações do pensamento de Kant continuam se renovando. Para Peter Krausser as ideias heurísticas, mencionadas pelo mestre de Königsberg, formam um conjunto aberto, evoluindo historicamente. Guiando a elaboração teórica, elas clarificam-se, mudam e são revistas; este uso regulador exige que as hipóteses se unam sistematicamente com suas consequências e que sejam sempre unidas com outras hipóteses e sob hipóteses de nível superior. Embora Kant distinga as duas funções, constitutiva e reguladora, ele próprio reconhece que o mesmo princípio pode ser usado de ambas as maneiras. Em primeiro lugar, para o entendimento, a distinção constitutivo/regulador, aplicada aos princípios relativos à construção de objetos e sua existência, não nos faz esqueçer de que todos esses princípios são constitutivos porque nos dão as "regras gramaticais" da experiência possível, eles determinam os objetos do mundo fenomenal. Como assinala Ribeiro dos Santos, um mesmo princípio pode ser julgado regulador do ponto de vista da lógica da descoberta, da ars inveniendi, e pode ser julgado constitutivo do ponto de vista da "legitimação da ciência moderna já constituída e estabelecida" (Santos, 2008, p. 8), da análise estrutural das teorias. A analogia, entendida como uma relação entre quatro termos bastante gerais, o quarto sendo ainda desconhecido, tem um alcance eminentemente regulador, como sugerido pelas analogias da experiência kantianas. O método de analogias de Maxwell tem um valor heurístico que Poincaré reconhecia (cf. Príncipe, 2012b, p. 198-204). Além disso, recorde-se o conceito de a priori relativizado de Hans Reichenbach: a noção de constitutivo pode ser separada da de necessário no sentido de único, isto é, um sistema de princípios é constitutivo em um certo contexto teórico (cf. Butts, 1984, cap. 7, p. 213-4).7 7 É o caso das analogias da experiência que são princípios reguladores da intuição mas que são constitutivos em relação ao entendimento (Kant, 1997 [1787], p. A664). Sobre Maxwell e as analogias, ver Príncipe (2010). Sobre Reichenbach e a sua obra de 1920, Relativitätstheorie und Erkenntnis a priori, ver Friedman (1994), Parrini (1994a) e Ryckman (2005).

2 Comodidade e estrutura das teorias

Em seu discurso no Congresso Internacional de Física de 1900, grande parte do qual considera questões de metodologia, Poincaré afirma que a unidade da física é a obra da física matemática, a qual aumenta o "rendimento da máquina científica", partindo das poucas aquisições da física experimental. Em seguida, considera a relação entre o simples e o complexo, mostrando através de exemplos como o progresso das teorias revela sucessivos níveis de organização, onde o simples oculta o complexo e vice-versa. Afirma então que "nós temos que parar em algum lugar, e para que a ciência seja possível, para-se quando encontramos a simplicidade". Poincaré mostra como a simplicidade, que é para nós uma necessidade, um instinto ou um hábito, vai de par com a unidade, isto é, concorre para o mesmo foco ideal, o que é retrospectivamente confirmado pela história da ciência. Considerando o estado atual da física, conclui Poincaré: "feitas as contas, está-se mais próximo da unidade (...). Definitivamente, ganhou-se bastante terreno" (Poincaré, 1900, §7).8 8 Dado que este texto de 1900 teve, em vida do autor, pelo menos quatro edições em francês (nas Actas do Congrès International de Physique de 1900, p. 1-29; na Revue Générale des Sciences, vol. 11, p. 1163-75; na Revue Scientifique, vol. 14, p. 705-15, e no livro La science et l'hypothèse, cap. 9 e 10, opto por dar a seção de cada citação; eis as seções: §1 -Rôle de l'expérience et de la généralisation; §2 - L'unité de la nature; §3 - Rôle de l'hypothèse; §4 - Origine de la physique mathématique; §5 - Signification des théories physiques; §6 - La physique et le mécanisme; §7 - État actuel de la science.

Poincaré observou muitas vezes que a escolha das convenções é feita por comodidade. Há um sentido mais subjetivo e pessoal de "cômodo", por exemplo, quando o sábio formula imagens mecânicas de fenômenos eletrodinâmicos ou termodinâmicos, que são hipóteses indiferentes, analogias parciais ou modelos heurísticos cuja conveniência diz mais respeito à psicologia do cientista ou a estilos nacionais (como no caso de Duhem sobre a física inglesa). Mas o termo "cômodo" é também empregue com um significado intersubjetivo mais constringente, por exemplo, quando se trata de escolher entre uma atitude verificacionista (empirista) e uma atitude nominalista.

Suponha-se que os astrônomos vêm a descobrir que as estrelas não obedecem exatamente à lei de Newton [gravitação]. Eles terão que escolher entre duas atitudes; eles podem dizer que a gravidade não varia exatamente como o inverso do quadrado da distância, ou podem dizer que a gravitação não é a única força que age (...). No segundo caso, consideramos a lei de Newton como a definição de gravitação. Esta será a atitude nominalista. A escolha entre as duas atitudes continua sendo livre, e faz-se a partir de considerações de comodidade, embora essas considerações sejam na maioria das vezes tão poderosas que praticamente pouco sobra dessa liberdade (Poincaré, 1902, p. 275-6).

De acordo com a segunda atitude, uma lei pode decompor-se em um princípio e em uma lei (diretamente verificável). A escolha de uma geometria compatível com os movimentos dos sólidos indeformáveis serve de ilustração:

A atitude nominalista só se justifica quando é cómoda (...). A experiência nos faz conhecer as relações entre os corpos (...). Essas relações são extremamente complicadas. Em vez de considerar diretamente a relação do corpo A e do corpo B, introduzimos entre eles um intermediário que é o espaço, e consideramos três relações distintas: a do corpo A com a figura A' do espaço; a do corpo B com a figura B' do espaço, e as das duas figuras A' e B' entre si (...). A relação entre A e B era complicada, mas diferia pouco daquela entre A' e B' que é simples (...) devese reconhecer que seria difícil não fazer essa separação (Poincaré, 1902, p. 277).

Essa atitude nominalista é muitas vezes inconsciente; é a crítica que a pode re-velar. Ela é essencial para construir uma física de princípios (que sucede historicamente àquilo que Poincaré designa por física das forças centrais). Com esta nova etapa da história da física atinge-se uma unidade superior; os princípios "são poucos, porque cada um deles como que substitui um grande número de leis. Portanto, não há vantagem em multiplicar os princípios". Este esforço de economia e de sistematização das leis, hierarquizando-as por subsunção (a integração do indivíduo na espécie, ou da espécie no gênero é obtida por via eminentemente matemática), é guiado pela necessidade de unidade, de simplicidade, de ordem e de harmonia. O esforço de parcimônia, ao qual corresponde a máxima segundo a qual "qualquer generalização é uma hipótese (...). É importante não multiplicar as hipóteses indevidamente e só as formular uma após a outra" (Poincaré, 1900, §3; cf. Poincaré, 1902, p. 278; Kant, 1997 [1787], p. A647, A652), satisfaz o sentido arquitetônico de harmonia.

A arquitetura do conhecimento científico é, por vezes, comparada a uma classificação. Em 1900, Poincaré comparou a teoria a um catálogo da biblioteca, sendo as obras adquiridas obtidas pela física experimental. A unidade será, pois, aparentada com uma estrutura taxonômica. Esta ideia apresenta seguramente uma recorrência histórica. Basta pensar sobre a hierarquia dos saberes feita por Auguste Comte, a qual se manteve bem presente na mente dos cientistas franceses e em suas instituições; ou ainda relembrar a ideia de Duhem de uma classificação natural como fim da ciência (cf. Duhem, 1906Duhem, P. La théorie physique: son object - sa structure. Paris: Chevalier et Rivière, 1906., cap. 2). Mas em Poincaré há especificidades: a classificação é uma necessidade intersubjetiva; seu estatuto é da ordem do "cômodo" e do "belo"; seu papel regulador é destacado; sua estrutura dinâmica e móvel é aparentada à de uma lingua-gem com os seus tipos naturais. No final da sua resposta a Édouard Le Roy, ele observa:

Dir-se-á que a ciência é apenas uma classificação e uma classificação não pode ser verdadeira, mas cômoda. Mas é verdade que ela é cômoda, é verdade que ela o é não só para mim, mas para todos os homens; e é verdade que ela permanecerá cômoda para os nossos descendentes (Poincaré, 1902, p. 293).

Em seu ensaio introdutório à edição americana de O valor da ciência, Poincaré estabelece, em termos que lembram Lachelier, uma relação entre a busca da simplicidade e a busca da beleza:

O cientista não estuda a natureza porque ela é útil; ele estuda-a, porque ele nisso encontra prazer e ele sente prazer porque ela é bela. Se a natureza não fosse bela, não valeria a pena ser conhecida, e a vida não valeria a pena ser vivida (...). Eu quero falar dessa beleza mais íntima que vem da ordem harmoniosa das partes e que uma inteligência pura pode captar (...). É pois a procura dessa beleza especial, o senso de harmonia do mundo, que nos faz escolher os fatos mais ajustados para contribuir para essa harmonia, como o artista escolhe, entre os traços de seu mode-lo, aqueles que tornam completo um retrato e lhe dão vida (Poincaré, 1907, p. 8).

No livro Ciência e método, Poincaré considera os sistemas teóricos como línguas e usa o termo "palavras" para designar conceitos de alto nível, como "tipos naturais" correspondentes a gêneros ou tipos mais elevados, no quadro de uma taxonomia fluida e imanente, cujo progresso vai no sentido de uma unidade sistemática superior; ele dá como exemplos "energia" para a física, "grupo" e "invariante" para a matemática (cf. Poincaré, 1999 [1908], cap. 2, p. 15-6).

Na terminologia de Kant, podemos dizer que Poincaré atribui um papel regulador aos princípios gerais, como o princípio da menor ação ou o da conservação da energia. Ele nota que este último princípio está relacionado com a ideia de invariante e com a incapacidade de dar uma definição geral de energia:

Quaisquer que sejam as novas noções que futuros experimentos nos darão sobre o mundo, temos a certeza de antemão que haverá qualquer coisa que permanecerá constante e a que poderemos chamar energia (Poincaré, 1900, §5).

Os princípios, embora provenientes da experiência (e, portanto, representando em casos concretos relações reais) têm um poder de extensão que parece indefinido; a experiência não pode contradizê-los diretamente. A sua gênese mostra o seu pertencimento a um metanível entre as leis físicas:

Estes princípios têm um valor muito alto; foram obtidos pesquisando aquilo que havia de comum no enunciado de muitas leis físicas; Eles representam, portanto, como que a quintessência de inúmeras observações (Poincaré, 1900, §5).

O metaestatuto dos dois princípios resulta da sua sutileza (souplesse), uma vez que U = T + V e L = T " V são funções a concretizar para cada domínio de fenômenos (cf. Poincaré, 1892, p. xii). Poincaré ilustra a capacidade de adaptação dos princípios e a incapacidade da experiência de contradizê-los diretamente, com vários exemplos, como o resgate da lei da inércia, imaginariamente ameaçada, por recurso à utilização de entidades ocultas. Os princípios podem ser entendidos como postulados ("Annahmen" escreve Kant), no sentido de pressupostos sobre os quais não podemos dizer se são verdadeiros ou falsos; Rescher, que valoriza o regulador e a linhagem kantiana do pragmatismo, nota que

o papel de um postulado ou assunção não é constitutivo mas regulador (em terminologia kantiana), ou seja não representa informação que é parte do nosso conhecimento respeitante ao modo como as coisas estão no mundo, mas é parte da máquina de trabalho, com caráter instrumental ou funcional, através de cuja operação obtemos o nosso conhecimento (Rescher, 1973, cap. 4, p. 80; cf. p. 86-7).

Poincaré, no entanto, afirma que a fertilidade dos princípios pode extinguir-se quando a sua extensão já não nos permite "prever novos fenômenos sem nos enganarmos" (Poincaré, 1900, §5).

Os princípios reguladores são tomados como regras heurísticas para guiar-nos até um ponto ótimo de sistematização, de controle, de extensão e de unificação do con-junto das leis empíricas. Desse modo, eles acabam tornando-se, de uma forma indireta, condição de possibilidade da experiência. Em uma perspectiva transcendental, os princípios fundamentais da física do final do século xix não estão no mesmo nível hierárquico que o sentido de unidade, de simplicidade, ordem e harmonia. Estes últimos, sendo os grandes princípios de conveniência, são formas mais vastas, mais vagas e mais duráveis. Os princípios da física têm uma função lógica semelhante aos postulados/axiomas da geometria, mas têm uma base empírica que está em movimento e que os pode tornar inúteis ou necessitando de revisão. Além disso, a subsunção de leis físicas sob um sistema de princípios é historicamente mutável como é também a hierarquia interna do seu suposto sistema. Os diversos princípios podem não ter o mesmo grau de generalidade. Em 1904, falando sobre a ameaça à validade dos princípios, Poincaré observa que "o princípio da menor ação permanece intacto, e Larmor parece acreditar que ele vai sobreviver por muito tempo aos outros; na verdade, ele é mais vago e geral" (Poincaré, 1904, p. 318).9 9 Não obstante, Poincaré reconhece que o uso de um princípio de conveniência pode mudar ao longo do tempo. Referindo-se à interpolação para obter as leis experimentais, ele diz que "há 50 anos, os físicos consideravam uma lei simples como mais provável do que uma lei complicada (...). Eles invocavam mesmo este princípio em favor da lei de Mariotte contra as experiências de Regnault. Hoje, eles repudiaram essa crença; mas quantas vezes, no entanto, são eles obrigados a agir como se a tivessem mantido! Seja como for, o que resta desta tendência é a crença na continuidade" (Poincaré, 1889, p. 268).

A mistura das duas funções, constitutiva e reguladora, encontra-se no conceito poincareano de hipóteses naturais. Estas, "às quais dificilmente se pode escapar", são constitutivas e simultaneamente orientam a pesquisa em física matemática:

É difícil não assumir que a influência de corpos muito distantes é bastante insignificante, que pequenos movimentos obedecem a uma lei linear, que o efeito é uma função contínua de sua causa. Eu diria o mesmo das condições de simetria.

Todos estas hipóteses são (...) o terreno comum de todas as teorias da física matemática. Estas são as últimas a abandonar (Poincaré, 1900, §4).

Considerando a modelação mecânica dos fenômenos, Poincaré identifica "as condições que permitiram o desenvolvimento da física matemática" com base em equações diferenciais. Estas condições são divididas em dois níveis, o primeiro sistematiza os modos de decompor um fenômeno complexo em um grande número de fenômenos elementares, o segundo concerne ao fundamento dessa decomposição. Os métodos de decomposição são descritos como hipóteses que, se não resistirem ao teste, devem dar lugar a outras hipóteses. Sobre a física dos meios contínuos, Poincaré desenvolve considerações afins às de Joseph Boussinesq (cf. 1879Boussinesq, J. Étude sur divers points de la philosophie des sciences. Paris: Gauthier-Villars, 1879., p. 28, 33; Príncipe, 2008, p. 139; Darrigol, 2002Darrigol, O. Between hydrodynamics and elasticity theory: the first five births of the Navier-Stokes equation. Archive for the History of Exact Sciences, 56, p. 95-150, 2002., p. 131): a simplicidade das leis está relacionada com o fato de "que observamos efeitos médios onde discrepâncias individuais desaparecem e se neutralizam em virtude da lei dos grandes números". Outro exemplo é o princípio da superposição no qual a ação simultânea de vários corpos sobre um dado corpo se decompõe porque essas ações são independentes. Considerando a decomposição em relação ao tempo, a lei de Newton é obtida observando que o estado atual depende apenas do passado mais próximo: "em vez de estudar diretamente toda a sucessão dos fenômenos, precisamos apenas escrever a equação diferencial; substituímos as leis de Kepler pela de Newton" (Poincaré, 1900, § 4).

O conhecimento do fato elementar permite escrever a equação e o complexo é derivado por combinação. As condições transcendentais, constitutivas, que permitem que a generalização tome a forma matemática, são identificadas no final da seção: a homogeneidade, a independência relativa de partes remotas e a simplicidade do fato elementar. Poincaré observa que o princípio da superposição é aplicável quando "o fenômeno observável é devido à sobreposição de um grande número de fenômenos elementares todos semelhantes uns aos outros", e conclui: "então, naturalmente se introduzem as equações diferenciais". Os fatos elementares são simples e todos obedecem à mesma lei. Sua combinação envolve a repetição de operações que só a indução torna possível.

As matemáticas nos ensinam a combinar o semelhante com o semelhante (...). Se tivermos que repetir a mesma operação várias vezes, elas nos permitem evitar a repetição ao nos fazerem conhecer de antemão o resultado por algo da mesma ordem que a indução (Poincaré, 1900, §4).

Poincaré procurou destacar os pressupostos da obra criadora do espírito do cientista (relativos à utilização do entendimento, da imaginação, da razão), o que pode ser chamado de heurística transcendental (cf. Santos, 2008, p. 8). Outra ideia central dessa heurística é a busca de analogias que permitam a extensão e a comparação de teorias. Isso está relacionado com o engajamento pluralista que promove a proliferação de "linguagens" e que nos obriga "a ver as coisas sob diferentes aspectos" (Poincaré, 1900, §1). É assim que podemos descobrir a harmonia que está oculta:

Acontece o mesmo com os símbolos matemáticos e com as realidades físicas; é através da comparação dos diferentes aspectos das coisas que podemos compreender a harmonia íntima, a única que é bela e digna de nossos esforços (Poincaré, 1897b, §III, p. 859).

Esse engajamento pluralista pode ser entendido quer como uma máxima reguladora, quer como uma tese pragmática, uma vez que a busca dos diferentes aspectos das coisas resulta da natureza intencional da atividade científica, que produz perspectivas parciais, ligadas aos nossos fins, interesses, práticas e capacidades. Se a busca de vários aspectos destaca o caráter analógico e parcial do conhecimento científico, as reflexões de Poincaré não podem ser inscritas sob a ideia de um realismo moderado no sentido de Giere, uma vez que a investigação dos vários aspectos surge sujeita à máxima teleológica da harmonia e da unidade (cf. Giere, 2006Giere, R. N. Scientific perspectivism. Chicago: The University of Chicago Press, 2006.; Brown, 2009Brown, M. J. Models and perspectives on stage: remarks on Giere's scientific perspectivism. Studies in the History and Philosophy of Science, 40, 2, p. 213-20, 2009.). A física matemática desempenha aqui um papel fundamental na geração de uma estrutura comum, permitindo a comparação das várias abordagens e aspectos.10 10 Sobre as diferenças entre o perspectivismo leibniziano e a ideia kantiana de um "horizonte verdadeiro e universal", limite de um processo ascencional o qual tem como ponto de partida os horizontes diferentes que são intersubjetivamente partilhados, ver Butts (1984, p. 218).

3 Progresso, unidade e objetividade

Para Poincaré, a longa história da física não é uma acumulação de ruínas sobre ruínas, uma vez que alguns elementos, ancorados no solo da experiência, sobrevivem à mudança das teorias (cf. Poincaré, 1900, §5, 7; 1902, p. 292). Estes resíduos são fundamentais porque expressam relações verdadeiras (rapports vrais):

Aquilo que sucumbe são as teorias propriamente ditas, aquelas que pretendem ensinar-nos o que as coisas são. Mas há algo nelas que geralmente sobrevive. Se uma delas deu a conhecer uma relação verdadeira, essa relação é definitivamente adquirida e será integrada com uma nova roupagem nas outras teorias que virão a reinar em seu lugar (Poincaré, 1902, p. 292).

As reflexões de Poincaré certamente sugerem uma estabilização estrutural da tela de fundo, uma vez as teorias físicas pressupõem o contínuo, o quadro espaço-temporal, uma geometria cômoda e, desde Newton, a análise matemática. Além disso, Poincaré admite uma noção de progresso. Em 1897, considerando o sistema dos dois princípios, da energia e da menor ação (sistema energético), Poincaré observa que ele representa um avanço em relação ao sistema clássico, o das leis de Newton, baseado nos conceitos de massa, força e aceleração (cf. Poincaré, 1897a, p. 738). Em 1902, ele nota que "o progresso é lento, mas contínuo" e que "as sínteses científicas (...) tendem a absorver nelas as sínteses parciais (cf. Poincaré, 1902, p. 265, 293).

Essa ideia de progresso é consistente com o esboço, feito em 1904, da evolução geral das teorias físicas até à física dos princípios.

A lei para nós (...) é uma relação constante entre o fenômeno de hoje e o de amanhã; em uma palavra, é uma equação diferencial. Esta é a forma ideal de lei física; bem, foi a lei de Newton que a revestiu primeiro (...). No entanto, veio um dia em que a concepção das forças centrais já não pareceu suficiente (...). O que foi feito então? Abandonou-se a pretensão de penetrar no detalhe da estrutura do universo, para isolar as partes desse vasto mecanismo (...) e contentamo-nos em tomar por guia certos princípios gerais que nos poupam precisamente desse estudo minucioso (Poincaré, 1904, p. 304).

Esse desenvolvimento é um grande passo na direção da unidade, porque

Estes princípios são o resultado de experimentos altamente generalizados; e a sua generalidade parece lhes dar mesmo um grau eminente de certeza. Além dis-so, quanto maior é a sua generalidade (...) mais oportunidades há de os controlar e as verificações, tendo as mais variadas e inesperadas formas, acabam não deixando qualquer margem para dúvidas (Poincaré, 1904, p. 306).

O progresso é aqui julgado em termos sistemáticos. Na linguagem de Rescher, os nossos compromissos sistemáticos funcionam através da fronteira de uma grande variedade de áreas de aplicação e de uma proliferação literalmente incontável de casos específicos (cf. Rescher, 1980, p. 62). É inconcebível que um sucesso tão amplo possa ser gratuito. A consciência histórica da continuidade da evolução das teorias também faz parte das garantias que asseguram o progresso rumo à unidade sistemática. Na introdução a O valor da ciência, Poincaré compara o progresso científico "à evolução contínua dos tipos zoológicos que se desenvolvem sem cessar (...), onde um olho treinado ainda encontra vestígios da obra dos séculos passados". Um exemplo ilustrativo é a transição da física das forças centrais para a física dos princípios: "você acha que a segunda fase poderia existir sem a primeira? A hipótese de forças centrais continha todos os princípios (...) o enunciado de então tinha um não sei quê de mais preciso e de menos geral do que na sua forma atual (Poincaré, 1970 [1905], p. 23).

Voltemos às relações verdadeiras. Elas começam por ser um tipo de hipótese: "as hipóteses da terceira categoria são as verdadeiras generalizações. São elas que a experiência deve provar ou refutar. Verificadas ou condenadas, sempre serão frutíferas" (Poincaré, 1900, §3).11 11 Das hipóteses naturais já se falou atrás; há ainda as hipóteses indiferentes, típicas da física das forças centrais (programa de investigação laplaciano); estas postulam identidades ou relações não observáveis e ilustram o teorema de Maxwell sobre a pluralidade de representações mecânicas (cf. Poincaré, 1890, p. iv, viii; 1900, §3; Príncipe, 2012b, §1). A física dos princípios parece desprovida de tais hipóteses, o que representa um progresso na direção da economia e da unidade. Poincaré não define o que é uma relação verdadeira, mas dá vários exemplos; ele nota tratar-se de uma relação entre as coisas, negando o acesso à coisa em si. Um exemplo será o das leis que permitem prever os fenômenos de um determinado domínio; é o caso de algumas equações diferenciais da teoria óptica de Fresnel que permanecem válidas no contexto da teoria de Maxwell; o trabalho de Fresnel não foi em vão,

pois o objetivo de Fresnel não era saber se realmente existe um éter, se é ou não feito de átomos (...); era o de prever os fenômenos ópticos. Mas isso, a teoria de Fresnel ainda o permite (...). As equações diferenciais são sempre verdadeiras; podemos sempre integrá-las pelos mesmos métodos e os resultados desta integração ainda mantêm o seu valor.

E não se diga que assim se reduz as teorias físicas a meras receitas práticas; estas equações expressam relações, e se as equações permanecem verdadeiras é porque essas relações conservam a sua realidade. (...). As verdadeiras relações entre esses objetos reais são a única realidade que podemos alcançar, e a única condição é que haja a mesma relação entre esses objetos que entre as imagens que somos obrigados a colocar no seu lugar (Poincaré, 1900, §5).

O significado mais básico de "relação verdadeira" é o de uma lei empírica que traduz a regularidade de uma classe de fenômenos; ela é formulada matematicamente, sendo o caso paradigmático o de uma equação diferencial. Mas Poincaré está bem consciente de que uma relação verdadeira não pode ser uma relação matemática com validade absoluta, porque as leis são apenas aproximadas. Dependendo da precisão dos meios de observação, as verificações limitam-se a aumentar a verossimilhança (probabilidade subjetiva) de uma lei. Além disso, a validade de uma "generalização verdadeira" não pode ser assegurada exclusivamente por via experimental, dado o problema da indução e a análise da determinação experimental de uma lei (necessidade de interpolação, erros associados às medidas).

Poincaré, ao introduzir a noção de fatos de grande rendimento, mostra como os fatos são importantes para a busca da unidade sistemática do conhecimento, o que se manifesta na questão dos critérios para a seleção dos fatos.12 12 Esta questão antiga e central para o problema da indução foi expressa por John Stuart Mill em sua Logic: "por que uma única instância, em alguns casos, é suficiente para a indução completa, enquanto em outros casos miríades de instâncias concorrentes, sem uma única exceção conhecida ou presumida, avançam muito pouco no estabelecimento de uma proposição universal? Quem puder responder a esta questão (...) terá resolvido o problema da indução" (Mill apud Butts, 1994, p. 283). Um fato isolado é irrelevante; um fato merece ser observado, se isso ajudar a prever outros ou, tendo sido previsto, se ele serve para confirmar uma lei. Em Ciência e método, Poincaré nota que "os cientistas acreditam que existe uma hierarquia de fatos" e que a escolha dos fatos é guiada por princípios de simplicidade, por máximas, tais como "deve-se preferir fatos que parecem simples àqueles em que o nosso olhar grosseiro discerne elementos disemelhantes". Deve-se começar por fatos regulares; mas quando se estabeleceu bem a sua regra, "os fatos que são totalmente consistentes com ela perdem depressa o seu interesse, uma vez que eles não nos dizem nada de novo"; os fatos científicos partilham com as metáforas um destino comum - a sua perda de interesse tem um paralelo com a morte das metáforas; a busca do inesperado caracteriza essencialmente o método científico. São os fatos simples os mais propensos a se repetirem; a experiência permitirá dizer se um determinado fato é realmente simples e puro; mas o juízo e o inquérito experimental para verificar se a simplicidade é real ou se o processo de especificação deve ser aprofundado é guiado, por exemplo, pelas nossas ideias sobre o papel do acaso (há uma chance muito maior que uma mistura homogênea se renove do que uma mistura heterogênea). Escolhem-se fatos de grande rendimento, ou seja, aqueles que permitem "condensar muita experiência e muito pensamento em um pequeno volume", fatos "que permitem essas felizes inovações de linguagem", ou seja, aqueles que recebem ou ilustram "nomes", isto é, novos conceitos que correspondem a novas regras que aumentam o poder de generalização das nossas teorias, eliminando exceções que as regras do idioma antigo comportavam. Mais à frente, Poincaré diz mesmo: "o método é precisamente a escolha dos fatos". Assim, em sua crítica da noção de fato, Poincaré enfatiza o papel dos fatos de grande rendimento, aqueles escolhidos pelos cientistas pelo seu interesse; esses fatos são importantes por causa da busca do melhor ajuste sistêmico (o "systemic best fit" de Rescher) (cf. Poincaré, 1970 [1905], p. 163; 1999 [1908], cap. 1, p. 9-14, cap. 2, p. 29-31).13

Kant já havia compreendido que a plausibilidade das hipóteses sobre a ordem da natureza depende muito da sua capacidade em integrar teorias. Poincaré afirmou-o à sua maneira, ao considerar uma relação verdadeira como um invariante (uma lei invariante sendo uma relação entre "fatos brutos") comum a diferentes teorias, expressas em diferentes linguagens cujos utilizadores são potencialmente capazes de elevarem-se à intersubjetividade (cf. Poincaré, 1902, §4); isso corresponde, bem entendido, a um experimento de pensamento raramente concretizado, o que dá à noção de relação verdadeira um estatuto de ideal regulador. "As leis invariantes são as relações entre os fatos brutos, enquanto as relações entre fatos científicos continuam sempre dependentes de certas convenções" (Poicaré, 1902, p. 280). Os próprios fatos brutos são, portanto, da ordem do limite ideal. A validade de uma relação verdadeira é também o resultado de um sistema científico de ideias cuja organicidade muda com o tempo. A discussão sobre a relação entre o simples e o complexo sugere que uma "relação simples" se apoia sobre uma base empírica a qual ao se alargar (por razões teóricas) vai precisar as limitações de uma lei, inicialmente desconhecidas. Basta pensar na lei de Boyle-Mariotte e suas sucessivas correções, mistura complexa de considerações teóricas e melhorias experimentais da equação que quer representar um gás real. Para que uma relação seja julgada como verdadeira é preciso primeiro que ela seja julgada como simples, e essa simplicidade resulta da sua intelegibilidade em um quadro teórico e experimental que motiva o interesse dessa relação; na ausência de um bom referencial teórico, "os progressos das observações só servem para fomentar a crença no caos" (Poincaré, 1897b, p. 858). É a evolução do quadro experimental e teórico que vai mostrar se a simplicidade de uma lei é real e profunda, "caso em que ela resistirá ao aumento da precisão dos nossos meios de medição" (Poincaré, 1900, §2).14 14 Sobre a verossimilhança, ver o fim da Introdução de Poincaré (1968 [1902]), onde, sobre a indução, fala-se do "vago instinto que nos faz discernir a verossimilhança" de uma lei; ver também o final da seção V, "La probabilité des causes" de Poincaré (1889).

Uma das maiores dificuldades do conceito de "relação verdadeira" é iluminado por um problema kantiano claramente enunciado na primeira Introdução à Crítica da faculdade de julgar, ou seja, as leis empíricas dão ordem às percepções, mas pode-se considerar a possibilidade de que elas mesmas sejam demasiado numerosas e impossíveis de organizar conjuntamente. Ora, para garantir a unidade da experiência, isto é, de acordo com as leis transcendentais, deve-se assumir que a natureza é de acordo com as leis empíricas um sistema compreensível; a natureza deve, "de acordo com uma suposição subjetivamente necessária (...), qualificar-se como sistema empírico graças à afinidade das leis empíricas particulares sob leis universais, para constituir uma experiência" (Kant, 2002 [1789], 20, p. 209). Esta preocupação de Kant é expressa na insistência de Poincaré de que a ciência é uma classificação, um sistema de relações. Assim, e uma vez que os fatos científicos não são todos igualmente relevantes, também temos de admitir que as relações verdadeiras, as regularidades da natureza das quais um sujeito dotado de lógica e habilidades cognitivas semelhantes às nossas (possivelmente com sentidos diferentes) pode ter a percepção, não são todas de igual importância e que o critério mais relevante para a sua seleção é inspirado no princípio da unidade sistemática (cf. Poincaré, 1902, p. 290). Vamos ver essa necessidade surgir na eleição de exemplos ilustrativos.

Um exemplo de uma relação verdadeira, mais complexo, é a analogia matemática entre fenômenos, por exemplo, periódicos. Essa analogia origina-se em uma unidade superior:

Que exista entre a oscilação elétrica, o movimento do pêndulo e todos os fenômenos periódicos um parentesco íntimo que corresponde a uma realidade profunda; que este parentesco, essa similitude, ou melhor, esse paralelismo continue no detalhe; que seja uma consequência de princípios mais gerais, o da energia e o da menor ação; eis o que podemos afirmar: eis a verdade que sempre permanecerá a mesma quaisquer que sejam as roupagens com que a revistamos (Poincaré, 1900, §5).

A evolução histórica das teorias físicas não nos fornece apenas um acúmulo de leis, diretamente enraizadas na experiência e matematicamente exprimíveis, mas novos níveis de generalidade. O exemplo anterior sugere que um princípio geral pode ser um exemplo de uma relação verdadeira. Outro exemplo confirma essa interpretação:

Carnot estabeleceu [o seu princípio] a partir de hipóteses falsas; quando se teve noção de que o calor não é indestrutível, mas pode ser transformado em trabalho, abandonou-se completamente suas ideias; Clausius veio depois e consagrou o princípio. A teoria de Carnot, na sua forma original, exprimia, juntamente com relações verdadeiras, outras relações inexatas, restos de velhas ideias; mas a presença destas últimas não alterava a realidade das outras. Clausius só teve que as eliminar assim como se podam galhos mortos. O resultado foi a segunda lei fundamental da termodinâmica (Poincaré, 1900, §5).

Conclusão

Após o seu debate com Le Roy, Poincaré percebeu que seus argumentos contra o antiintelectualismo necessitavam de um pendor mais resolutamente idealista, dada a dificuldade de estabelecer a objetividade dos invariantes universais entendida como relações entre os fatos brutos. Considerou então a questão do ângulo da unidade sistemática do conhecimento e da noção concomitante de verdade como coerência.

Poincaré afirmou então que a objetividade é mais uma propriedade intersubjetiva e arquitetônica que o resultado de um verificacionismo experimental:

'O que chamamos de realidade objetiva é (...) o que é comum a muitos seres pensantes, e poderia ser comum a todos; esta parte comum (...) só pode ser a harmonia expressa por leis matemáticas. É essa harmonia que é a única realidade objetiva, a única verdade que podemos alcançar (Poincaré, 1970 [1905], p. 23).

Este debate adquiriu também contornos políticos, uma vez que o convencionalismo foi usado como um argumento a favor da condenação de Galileu pela Igreja Católica (cf. Gray, 2013Gray, J. Henri Poincaré: a scientific biography. Princeton: Princeton University Press, 2013., p. 72-3). Retomando a significação do processo de Galileu, Poincaré observa que a mecânica celeste, baseada na gravitação newtoniana, estabelece afinidades entre fenômenos que se pensava até então sem relações mútuas.

Uma teoria física é tão mais verdadeira quanto mais relações verdadeiras coloca em evidência (...). Mas se uma [das duas proposições contraditórias, "a Terra gira" e "a Terra não gira"] revela relações verdadeiras que a outra esconde pode, contudo, ser vista como fisicamente mais real do que a outra, uma vez que tem um conteúdo mais rico (...). Eis o movimento aparente diurno das estrelas, e o movimento diurno de outros corpos celestes, e também o achatamento da Terra, a rotação do pêndulo de Foucault, o giro de ciclones, os ventos alísios (...). Para os ptolomaicos, todos esses fenômenos não têm ligação entre si; para os copernicanos, eles são produzidos pela mesma causa. Afirmando que a Terra gira, afirma-se que todos esses fenômenos têm uma relação íntima, e isso é verdade, e isso continua sendo verdade ainda que não exista, e que não possa existir, espaço absoluto (...). A verdade pela qual Galileu sofreu permanece a verdade, embora (...) o seu verdadeiro significado seja muito mais sutil, mais profundo e mais rico (Poincaré, 1970 [1905], p. 184-5).

O verdadeiro desafio da ciência não é a acumulação de fatos e de leis díspares, mas a construção de sínteses mais vastas, em um processo em que a busca do inesperado acaba gerando uma harmonia mais inclusiva e mais ampla. Essa harmonia implica o discurso e o pensamento ativo, armado com seus princípios constitutivos e reguladores, e só existe para aqueles que deles são providos.

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  • _____. Electricité et optique I - Les théories de Maxwell. Leçons professées pendant le second semestre 1888-1889. Paris: Georges Carré, 1890.
  • _____. Thermodynamique, leçons professées pendant le premier semestre de 1888-1889. Paris: George Carré, 1892.
  • _____. Les idées de Hertz sur la mécanique. Revue Générale des Sciences Pures et Appliquées, 8, p. 734-43, 1897a.
  • _____. Les rapports de l'analyse et de la physique mathématique. Revue Générale des Sciences Pures et Appliquées, 8, p. 857-61, 1897b.
  • _____. Les relations entre la physique expérimentale et de la physique mathématique. Rapports présentés au Congrès International de Physique réuni à Paris en 1900, 1900. v. 1, p. 1-29.
  • _____. Sur la valeur objective de la science. Revue de Métaphysique et de Morale, 10, p. 263-93, 1902.
  • _____. L'état actuel et l'avenir de la physique mathématique. Conférence lue le 24 septembre 1904 au Congrès d'Art et de Science de Saint Louis. Bulletin des Sciences Mathématiques, 23, p. 302-24, 1904.
  • Poincaré, H. The value of science. Tradução G. B. Halsted. New York: The Science Press, 1907.
  • _____. La science et l'hypothèse. Paris: Flammarion, 1968 [1902].
  • _____. La valeur de la science. Paris: Flammarion, 1970 [1905].
  • _____. Science et méthode. Paris: Kimé, 1999 [1908].
  • Príncipe, J. La réception française de la mécanique statistique. Paris, 2008. Tese (Doutorado em História das ciências e das técnicas). Université de Paris 7.
  • _____. L'analogie et le pluralisme méthodologique chez James Clerk Maxwell. Kairos Journal of Philosophy and Science, 1, p. 55-74, 2010.
  • _____. Sur les sources néokantiennes de la pensée épistémologique d'Henri Poincaré. Kairos Journal of Philosophy and Science, 4, p. 51-70, 2012a.
  • _____. Sources et nature de la philosophie de la physique d'Henri Poincaré. Philosophia Scientiae, 16, 2, p. 197-222, 2012b.
  • Rescher, N. The primacy of practice. Essays toward a pragmatically kantian theory of empirical knowledge. Oxford: Blackwell, 1973.
  • _____. Scientific truth and the arbitrament of praxis. Noûs, 14, 1, p. 59-74, 1980.
  • Rush junior, F. L. Reason and regulation in Kant. The Review of Metaphysics, 53, 4, p. 837-62, 2000.
  • Ryckman, T. The reign of relativity: philosophy in physics 1915-1925. Oxford: Oxford University Press, 2005.
  • Santos, L. R. L'apport de Kant au programme de l'ars inveniendi des modernes, conférence dans "Kant and the philosophical tradition - Kant today". Brasilian-Italian-Portuguese Kant Conference 22-23 January 2008 Università degli Sudi di Verona, 2008. Disponível em: <http://ftp.cle.unicamp.br/pub/ kant-e-prints/Vol-3.../Santos-2-3-2-2008.pdf>. Acesso em: 03 set. 2014.
    » http://ftp.cle.unicamp.br/pub/ kant-e-prints/Vol-3.../Santos-2-3-2-2008.pdf
  • Schlick, M. Allgemeine Erkenntnislehre. Vienne: Springer, 1974 [1918].
  • Sgarbi, M. Immanuel Kant Crítica del juicio. Madrid: Maia, 2011.
  • Vanzo, A. Kant on experiment. In: Maclaurin, J. (Ed.). Rationis defensor: essays in honour of Colin Cheyne. Dordrecht: Springer, 2012. cap. 7. (Studies in History and Philosophy of Science, 28.) Disponível em: <http://paduaresearch. cab.unipd.it/7346/1/Vanzo-Kant_on_Experiment-2012.pdf>. Acesso em: 05 abr. 2015.
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  • Vuillemin, J. Physique et métaphysique kantiennes. Paris: Vrin, 1955.
  • Walsh, W.H. Kant's criticism of metaphysics. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1975.
  • 1
    O texto de Brunschvicg foi publicado em 1913, na Revue de Métaphysique et de Morale. Este trecho é citado pelo estudioso kantiano M. Ferrari, sem que dele se extraia o sumo (cf. Ferrari, 2006, p. 142). Sobre as possíveis inspirações filosóficas francesas no pensamento de Poincaré, ver Príncipe (2012a, 2012b).
  • 2
    Segundo Santos, Leibniz utilizou frequentemente o nome de princípios de conveniência para "referir-se aos princípios metafísicos que, não correspondendo a uma necessidade de tipo geométrico decorrente da natureza da coisa ou do seu conceito, são o resultado de uma necessidade de natureza arquitetônica e estética da razão" (Kant, 1985 [1770], p. 101, nota 126). Estes princípios foram recolhidos por Kant enquanto máximas da faculdade de julgar.
  • 3
    A distinção constitutivo/regulador está na CRP, na seção intitulada "Representação sistemática de todos os princípios do entendimento puro". Walsh observou que, na discussão de Kant sobre as analogias de experiência, "os argumentos têm todos a ver com a postulação de novos existentes com base na ocorrência de algum item na experiência" (1975, p. 123). Sobre a relação entre as analogias de experiência e a física newtoniana, ver Vuillemin (1955, §33).
  • 4
    O papel sistematizante das ideias é resumido em CRP, p. A298-9. Os critérios kantianos para a construção e avaliação de uma hipótese são o assunto de Vanzo (2012, §7.3).
  • 5
    Eis uma paráfrase das palavras de Poincaré, escrita em 1913: "o que a ciência visa não é a ordem (...), é a ordem inesperada" (Brunschvicg, 1958, v. 3, p. 180).
  • 6
    Butts nota que "o conceito do uso regulador das ideias da razão é a ponte entre as credenciais bem estabelecidas por Kant do mecanismo e a sua insistência em que a ciência só pode legitimamente prosseguir se forem satisfeitas certas exigências teleológicas. (...) As ideias da razão ordenam as nossas expectativas de que o conhecimento irá formar um mundo organizado e unificado (...) elas dirigem-nos para um fim no qual todas as regras da razão convergem para um ponto central, esse ponto sendo a mera ideia, o focus imaginarius, de um sistema completo em ato" (Butts, 1984, p. 214-5). Para as reflexões sobre a metodologia científica da Crítica da faculdade do juízo, ver Butts (1990); para a lógica da teleologia de Kant, construída sobre a analogia e sobre o raciocínio analógico, consultar Sgarbi (2011, p. 135-8). A tese de Lachelier, de 1871, Du fondement de l'induction, valoriza o significado epistemológico dessas duas visões sobre a causalidade.
  • 7
    É o caso das analogias da experiência que são princípios reguladores da intuição mas que são constitutivos em relação ao entendimento (Kant, 1997 [1787], p. A664). Sobre Maxwell e as analogias, ver Príncipe (2010). Sobre Reichenbach e a sua obra de 1920, Relativitätstheorie und Erkenntnis a priori, ver Friedman (1994), Parrini (1994a) e Ryckman (2005).
  • 8
    Dado que este texto de 1900 teve, em vida do autor, pelo menos quatro edições em francês (nas Actas do Congrès International de Physique de 1900, p. 1-29; na Revue Générale des Sciences, vol. 11, p. 1163-75; na Revue Scientifique, vol. 14, p. 705-15, e no livro La science et l'hypothèse, cap. 9 e 10, opto por dar a seção de cada citação; eis as seções: §1 -Rôle de l'expérience et de la généralisation; §2 - L'unité de la nature; §3 - Rôle de l'hypothèse; §4 - Origine de la physique mathématique; §5 - Signification des théories physiques; §6 - La physique et le mécanisme; §7 - État actuel de la science.
  • 9
    Não obstante, Poincaré reconhece que o uso de um princípio de conveniência pode mudar ao longo do tempo. Referindo-se à interpolação para obter as leis experimentais, ele diz que "há 50 anos, os físicos consideravam uma lei simples como mais provável do que uma lei complicada (...). Eles invocavam mesmo este princípio em favor da lei de Mariotte contra as experiências de Regnault. Hoje, eles repudiaram essa crença; mas quantas vezes, no entanto, são eles obrigados a agir como se a tivessem mantido! Seja como for, o que resta desta tendência é a crença na continuidade" (Poincaré, 1889, p. 268).
  • 10
    Sobre as diferenças entre o perspectivismo leibniziano e a ideia kantiana de um "horizonte verdadeiro e universal", limite de um processo ascencional o qual tem como ponto de partida os horizontes diferentes que são intersubjetivamente partilhados, ver Butts (1984, p. 218).
  • 11
    Das hipóteses naturais já se falou atrás; há ainda as hipóteses indiferentes, típicas da física das forças centrais (programa de investigação laplaciano); estas postulam identidades ou relações não observáveis e ilustram o teorema de Maxwell sobre a pluralidade de representações mecânicas (cf. Poincaré, 1890, p. iv, viii; 1900, §3; Príncipe, 2012b, §1). A física dos princípios parece desprovida de tais hipóteses, o que representa um progresso na direção da economia e da unidade.
  • 12
    Esta questão antiga e central para o problema da indução foi expressa por John Stuart Mill em sua Logic: "por que uma única instância, em alguns casos, é suficiente para a indução completa, enquanto em outros casos miríades de instâncias concorrentes, sem uma única exceção conhecida ou presumida, avançam muito pouco no estabelecimento de uma proposição universal? Quem puder responder a esta questão (...) terá resolvido o problema da indução" (Mill apud Butts, 1994, p. 283).
  • 13
    Ver também Butts (1994, p. 283), que cita de Nicholas Rescher, A system of pragmatic idealism. O "rendimento científico" é o resultado do trabalho da física matemática (cf. Poincaré, 1900, fim do §1). Na sua crítica à noção de fato, Poincaré salienta que um fato científico pressupõe sínteses, presentes desde a própria construção da noção de objeto da percepção, e um sistema de convenções (linguagem); ele é o resultado de uma escolha, isto é, da atividade livre do cientista (cf. Poincaré, 1902, p. 290-1); as nuances infinitas das nossas impressões não são bem captadas usando apenas as linguagens naturais e necessitam da interposição das matemáticas (cf. Poincaré, 1902, p. 268; Ly, 2008, p. 217).
  • 14
    Sobre a verossimilhança, ver o fim da Introdução de Poincaré (1968 [1902]), onde, sobre a indução, fala-se do "vago instinto que nos faz discernir a verossimilhança" de uma lei; ver também o final da seção V, "La probabilité des causes" de Poincaré (1889).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015
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