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Editorial

Este terceiro número de Scientiæ studia é mais uma vez dedicado na íntegra aos estudos históricos e epistemológicos, cujo objeto é esse conjunto de disciplinas que hoje podemos agrupar sob a rubrica de "ciências da vida e da terra". Assim, os dois primeiros artigos movem-se no âmbito do que se costumava chamar "história natural", tratando, respectivamente, da questão da longevidade humana em Francis Bacon e do sistema de classificação botânica elaborado por José Barbosa do Sá no século XVIII. Os três artigos seguintes concentram-se em temas de filosofia da ciência, tratando o terceiro artigo do debate sobre a suposta heteronomia explicativa da biologia funcional, enquanto o quarto artigo mostra como o eterno debate entre preformacionistas e epigenetistas está bem longe de chegar ao fim e, na verdade, está totalmente integrado às discussões sobre o devir da biologia atual, e o quinto artigo segue a perspectiva mais estrita da filosofia da biologia, realizando uma análise crítica original das posições antidarwinistas de Fodor e Piattelli-Palmarini. Por fim, os dois últimos artigos lançam um olhar filosófico e sociológico crítico sobre certas tentativas de manipular a pesquisa científica, seja para legitimar comportamentos discriminatórios nos processos de alterização a que a medicina está sujeita, seja para atender interesses políticos e econômicos no caso da climatologia e das mudanças climáticas. Seguem-se três resenhas, das quais as duas primeiras apresen­tam obras latino-americanas de filosofia da biologia, que tratam respectivamente do dilema funcionalismo/formalismo na morfologia e do caráter explicativo e causal da biologia funcional, enquanto a terceira resenha apresenta a monografia clássica de história da medicina de Ludwik Fleck, com profundas repercussões na imagem filosófica do desenvolvimento da ciência.

No artigo que abre o número, Luciana Zaterka mostra que, segundo Francis Bacon, o controle da natureza podia e devia estender-se ao corpo humano, e que um resultado possível disso seria o prolongamento da vida humana; o que certamente pode ser considerado como um ganho, mas cujas consequências colocariam alguns dilemas de natureza ética que esse autor chegou a vislumbrar, e cuja pertinência não resulta totalmente alheia a nós. Por isso, além de mostrar quais eram as explicações que Bacon dava do envelhecimento, e do possível prolongamento da vida, o artigo também se detém nesses dilemas, ultrapassando de certo modo os limites da análise histórica e chamando a atenção para a importância da bioética. Os posicionamentos de Bacon perante esses dilemas, segundo sustenta a autora, podem ajudar-nos a pôr em perspectiva histórica as questões, éticas e de saúde coletiva, suscitadas hoje pelas técnicas de efetivo prolongamento da vida.

Por seu lado, no segundo artigo deste número, Rafael Dias da Silva Campos e Christian Fausto Moraes apresentam uma discussão de aspectos filosóficos e religiosos, mas também dos interesses utilitários (típicos da sociedade colonial brasileira), que marcaram o delineamento do sistema de classificação botânica e também algumas conjecturas sobre a reprodução vegetal, enunciados por José Barbosa do Sá: um advogado que viveu e escreveu em Mato Grosso, na região de Cuiabá, durante o século XVIII. Os autores mostram como o estudo de obras não consagradas pela ciência de uma época (e, portanto, secundárias) podem mesmo assim ser objeto relevante para a análise histórico-epistemológica. Essas obras, vistas pela concepção científica dominante como marginais, também põem em evidência modos pretéritos de pensar, contribuindo para que possamos individualizar e entender melhor as questões e os interesses que, em seu conjunto, pautavam a ciência de uma determinada época.

No terceiro artigo, Gustavo Caponi mobiliza a concepção manipulacionista, ou experimental, das explicações causais para mostrar que esse domínio das ciências biológicas que Ernest Mayr englobou sob o rótulo de "biologia funcional" não se desenvolve sob o regime de heteronomia explicativa suposto por Marcel Weber, segundo o qual a biologia funcional só seria capaz de fornecer explicações quando subsume os fenômenos biológicos a leis físicas e químicas. Ao contrário, Caponi mostra que a biologia funcional progride por meio do estabelecimento de invariantes experimentais, de caráter local e não universal, que costumam estar formulados em termos puramente biológicos e que permitem controlar experimentalmente fenômenos relativos ao funcionamento e à constituição dos organismos, sem estarem necessariamente vinculadas a uma lei geral de tipo físico-químico.

No artigo seguinte, Davide Vecchi e Isaac Hernández mostram como os progressos da embriologia e da última biologia do desenvolvimento continuam sem poder resolver a anti­no­mia entre preformação e epigênese. Do século XVIII em diante, essa tensão, conforme apresentam os autores, não deixou de ser reformulada; entretanto, embora os discursos sobre homúnculos e impulsos formativos tenham sido há muito tempo abandonados; se traçar­mos corretamente as filiações de posições posteriores às que explicitamente postulavam esses fatores e entidades, perguntando-nos por onde passou o vetor de progresso que conduziu até os modos atuais de entendermos o desenvolvimento e a constituição orgânica, veremos que não há condições para respondermos essa questão de modo definitivo. A ciência segue, portanto, sem condição de sentenciar a favor, ou contra, uma ou outra dessas posições em seu esforço de compreender o desenvolvimento orgânico.

No quinto artigo, Julio Torres Melendez concentra-se na contestação de um dos tantos argumentos antidarwinistas desenvolvidos por Fodor e Piattelli-Palmarini, mostrando que não se pode dizer que as mesmas razões que desacreditam a teoria behaviorista de Skinner sejam válidas para desacreditar a teoria da seleção natural. Para esse fim, o autor fundamenta sua posição no fato de que, apesar dos isomorfismos e das relações históricas existentes entre ambas as teorias, elas aludem a fenômenos de ordem distinta, pois a teoria behaviorista de Skinner trata de processos que ocorrem e são registrados no plano do organismo, enquanto a teoria evolucionista de Darwin concentra-se em fenômenos que ocorrem e são registrados no plano populacional. As duas teorias diferem então no tipo de temporalidade envolvido nos processos de que tratam, pois enquanto a behaviorista alude à temporalidade do desenvolvimento ontogenético, a darwinista refere-se à temporalidade da evolução filogenética. E isso rompe a relação entre ambas as teorias, pressuposta no argumento de Fodor e Piattelli-Palmarini.

No sexto artigo, Juanma Sanchez-Arteaga, Davide Rasella, Laia Ventura García e Charbel El-Hani desenvolvem uma discussão que ultrapassa a simples análise conceitual, prolongando-se para a dimensão política das práticas médicas tecnocientíficas atuais. Os autores analisam os discursos valorativos associados a essas práticas, tratando dos efeitos - tais como inferiorizar, marginalizar e excluir grupos humanos e minorias -, produzidos pelos processos de alterização que atravessam as ciências biológicas e biomédicas, particularmente nas práticas tecnocientíficas atuais. Tal é o caso, entre outros, dos discursos racistas ou sexistas que visam naturalizar, legitimar e reforçar desigualdades, inclusive sob o pretexto de remediá-las ou moderá-las. Neste artigo, a reflexão epistemológica alia-se aos science studies para operar a crítica de saberes e discursos (principalmente médicos) que, em nome de sua pretendida (mas muito duvidosa) cientificidade, produzem efeitos políticos definitivamente inaceitáveis.

É esse mesmo tipo de operação crítica de discursos pretensamente científicos que está na base do último artigo que integra este número de Scientiæ studia. Nele, José Correa Leite apresenta o desenvolvimento da climatologia e das ciências do sistema Terra, analisando o pano de fundo político que marca e condiciona as controvérsias atuais sobre o aquecimento global e as mudanças climáticas. Mas o principal argumento de Leite liga-se às teses negacionistas que procuram deslegitimar as conclusões a que a climatologia e a ciência do sistema Terra já chegaram sobre esses temas; sobretudo no que tange ao papel das atividades humanas na ocorrência dessas mudanças no clima. Leite vê nisso uma articulada estratégia de produção da ignorância, denunciada pela agnotologia, tendente a impedir que sejam aceitas conclusões e resultados científicos que contrariam poderosos interesses econômicos, os quais são os mesmos que sustentam a produção de argumentos pseudocientíficos que, supostamente, desmentiriam ou relativizariam as conclusões científicas sobre o papel dos combustíveis fósseis no aquecimento global.

Encerram este número de Scientiæ studia três resenhas: uma informativa e as outras duas críticas. Na primeira, Felipe Faria apresenta ao leitor a estrutura e o conteúdo de El Jano de la morfología: de la homología a homoplasía, historia, debates y evolución, de Carlos Ochoa e Ana Barahona. O deus romano Jano é uma metáfora, para os autores, da oposição na biologia entre o enfoque funcional, que serve de base para os estudos fisiológicos e adaptativos do corpo orgânico enquanto um sistema complexo de regulação, e o enfoque formalista, que se concentra na descoberta de planos fundamentais e causalidades internas do organismo, as quais são independentes de sua função. O Jano da morfologia tem um rosto voltado para o enfoque funcional e o outro voltado para o enfoque formalista. Dados esses pressupostos, o livro percorre a história de alguns dos debates mais fundamentais no desenvolvimento da biologia dos últimos dois séculos e, principalmente, aquele sobre os conceitos de homologia e homoplasia.

Na segunda resenha, Lorenzo Baravalle, apresenta as teses propostas por Gustavo Caponi em seu novo livro, Leyes sin causa y causas sin ley en la explicación biológica, e as implicações que essas teses têm, tanto no debate filosófico geral sobre a explicação causal quanto naquele, mais específico, sobre a autonomia explicativa das ciências biológicas. Apoiando-se na concepção experimentalista da causalidade elaborada por James Woodward, Caponi defende um modelo explicativo no qual a noção de lei (entendida como regularidade universal e irrestrita) não joga o papel fundamental que lhe é tradicionalmente atribuído. A biologia tem sido frequentemente acusada de ser uma ciência sem leis próprias. Graças a sua análise, Caponi consegue mostrar que, mesmo se isso fosse certo (o que não é o caso), não implicaria de maneira alguma que a biologia é incapaz de fornecer explicações causais satisfatórias.

A última resenha, de João Alex Carneiro, celebra um grande clássico da filosofia da ciência recentemente traduzido ao português, Gênese e desenvolvimento de um fato científico, de Ludwik Fleck. Embora, na época de sua publicação, não tenha recebido grande atenção por parte do público, essa obra é hoje reconhecida como antecipando muitos dos mais importantes desenvolvimentos dos estudos sobre as ciências da segunda metade do século XX. Em particular, ela contém elementos críticos contra a tradição positivista e introduz a dimensão histórica na discussão filosófico-científica, de uma maneira que influenciou diretamente a obra de Thomas Kuhn. Com respeito à relação entre Fleck e Kuhn, Carneiro sugere, em linha com a literatura crítica mais recente, que chegou a hora de deixar de ler o primeiro à sombra do segundo e, em lugar disso, redescobrir seu potencial para estimular ainda hoje novos desenvolvimentos na epistemologia e na compreensão histórica da ciência.

Os editores
Pablo Rubén Mariconda
Gustavo Caponi
Lorenzo Baravalle

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    July-Sep 2015
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