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Editorial

Este número encerra o décimo terceiro volume de Scientiæ Studia, o último desta série trimestral, publicando artigos divididos em dois grupos, separados por um artigo de epistemologia geral na perspectiva analítica (no sentido de que recorre às análises da causalidade de Aristóteles e de Kant) sobre a questão da emergência levantada nos termos da causalidade eficiente (produtiva). Assim, os primeiros quatro artigos, de caráter mais propriamente histórico, discorrem sucessivamente sobre o valor da moeda em Oresme e Copérnico no período de transição entre o final da Idade Média no século XIV e o final do Renascimento na metade do século XVI; sobre a emergência do estilo laboratorial, técnico e operatório na química do século XVIII; sobre as fontes e influências da concepção naturalista de Freud no quarto final do século XIX; finalmente, sobre o desenvolvimento das ciências do clima por meio de uma apresentação das polêmicas em torno das eras do gelo a partir do século XIX, com a consolidação da geologia como disciplina científica, e no século XX, com o desenvolvimento científico da paleoclimatologia. No segundo grupo, composto pelos três artigos finais, que possuem caráter mais claramente sociológico e são representativos dos estudos sobre ciência e tecnologia entre nós, são tratadas sucessivamente a questão do aumento dos casos de má conduta científica e as dificuldades de impor medidas moralizadoras às condutas que contrariam o éthos científico; a divisão do trabalho científico em um laboratório de genética humana e as trajetórias dos pesquisadores nesse quadro socialmente estruturado da atividade científica e técnica; as tendências que marcam o dispositivo das tecnologias móveis, como celulares, smartphones e tablets, por meio de uma análise sociotécnica que nos conduz a um questionamento do futuro tecnológico na continuidade do século XXI.

O número inicia com o artigo de Márcio Custódio e Sueli Custódio que expõem a origem da análise da noção de valor atribuída à moeda em Oresme e Copérnico que, apesar de separados por dois séculos, coincidem na visão de que a função (social) da moeda é a de permitir a equalização das trocas praticadas pelas comunidades na atividade comercial de compra e venda; também coincidem na ideia de que essa funcionalidade da equalização das trocas só é cumprida quando o valor da moeda é estável. Os autores do artigo apresentam, então, os sistemas de medição e de controle do valor da moeda preconizados por Oresme e Copérnico de modo a impedir que o príncipe, a autoridade política nas sociedades dos séculos XIV a XVI, interfira, em proveito próprio, alterando o valor da moeda e dificultando a atividade comercial. Cada um se concentra principalmente em uma causa da instabilidade do valor monetário: Oresme trata então da usura, que é o acréscimo de valor independentemente das trocas comerciais, e Copérnico da cunhagem, que é o aumento e qualidade da moeda na circulação comercial.

No segundo artigo, Ronei Clécio Mocellin pretende identificar um "estilo de raciocínio", ou estilo de pensar e de fazer, próprio da química da segunda metade do século XVIII. Ele mostra então que a química se consolida nesses cinquenta anos como ciência de laboratório, desenvolvendo um tipo de prática na qual, desde o início, estão entrelaçadas a técnica e a ciência, tendo em vista a produção de artefatos. Isso torna a química inseparável dos avanços técnicos e do processo de industrialização que acompanhou a criação da república francesa. O autor procura ainda explicitar a perspectiva de valor que acompanha esse "estilo químico", mostrando que ela está profundamente ancorada no que chama de "cultura técnica do homo faber", cujo valor central é o de controle e transformação da natureza (por meio de manipulação e rearranjo).

No terceiro artigo, Vitor Orquiza de Carvalho e Luiz Roberto Monzani, preocupados em pôr em perspectiva a epistemologia e a concepção naturalistas de Freud, examinam duas vertentes de influência naturalista para a constituição de sua visão de que a psicologia faz parte das ciências naturais. De um lado, Brücke e Helmhotz, cientistas que participaram ativamente da construção de uma psicologia científica, fundada nas interrelações entre a física (mecânica e termodinâmica) e a físiologia animal e humana e, de outro lado, os filósofos John Stuart Mill e Brentano, que possuem defesas naturalistas da cientificidade da psicologia, embora recusem a possibilidade de restrição dessa cientificidade a seu aspecto físico-fisiológico. Nesse contato com tradições de pesquisa diversas e diferenciadas, muitas vezes em tensão, é que se forja a concepção de Freud de que a psicologia é uma ciência natural.

No artigo que encerra o grupo histórico, José Correa Leite apresenta - de uma perspectiva transdisciplinar para a qual convergem a filosofia, a sociologia e a história da ciência - a lenta emergência do debate sobre as mudanças climáticas que conduz à constituição de um conjunto de disciplinas agrupado sob a denominação comum de ciências do clima. Articulando sua exposição em torno das polêmicas sobre as eras do gelo, no contexto do debate mais amplo sobre o catastrofismo (mudanças abruptas) e o uniformitarismo (mudanças contínuas e graduais) que agitou a geologia nascente do século XIX, bem como seus desdobramentos no século XX com a teoria da insolação de Milankovitch, Leite apresenta uma reconstrução original da história da climatologia moderna, analisando os estratagemas agnotológicos que têm sido articulados contra certos resultados desse campo de pesquisa e mostrando como as exigências políticas e econômicas podem incidir diretamente na validação e aceitação de resultados científicos.

No único artigo de epistemologia deste número, Luiz Henrique de Araújo Dutra se propõe criticar a versão da concepção emergentista baseada na ideia de que a realidade está estruturada em múltiplos níveis causalmente relacionados entre si, de modo que a causalidade pudesse exercer-se em duas direções, seja como causa ascendente, seja como causa descendente. Para esse fim, Dutra evidencia alguns dos principais problemas referentes à possibilidade de uma causalidade descendente, que atue a partir dos níveis superiores (dos sistemas ou dos todos complexos) em direção aos inferiores (dos componentes), insistindo, como consequência dessas dificuldades, na necessidade de abandonar a noção de causa descendente, entendida como causa eficiente ou produtiva, e de abraçar um emergentismo sem níveis, no qual as relações entre as partes e o todo não são mais descritas em termos causais (aristotélicos) tais como "causa eficiente (produtiva)", mas em termos kantianos tais como o de "comunidade" ou "comércio" dos elementos coexistentes.

Iniciando os artigos representativos dos estudos sobre a ciência, Marcos Barbosa de Oliveira debruça-se sobre a questão das más condutas na ciência, cuja proliferação nas últimas décadas permite caracterizá-la como uma espécie de epidemia que se alastra incontrolável em muitos setores da ciência (comercialmente orientada). Caracterizando as más condutas como violações das normas (valores) que compõem o éthos científico (na acepção de Robert Merton), e concentrando-se nos tipos mais comuns de más condutas, tais como as fraudes, que consistem na fabricação e falsificação de dados empíricos, e nas falsidades autorais (plágio, autoplágio etc.), Oliveira considera que as pressões produtivistas sobre os pesquisadores devem ser colocadas entre as principais causas que fomentam a epidemia de más condutas. O produtivismo minimiza os desvios e sustenta uma posição negadora de sua importância; recebe entretanto a oposição dos que defendem o que o autor chama de "posição moralizadora", a qual busca criar um sistema de sanções e punições, operação considerada ineficaz em virtude da judicialização a que conduz, com o inconveniente de externalizar os conflitos que passam a depender de instâncias externas para sua solução. O autor sugere por fim uma ação pedagógica e educativa, dirigida mais propriamente para a prevenção das más condutas.

Por seu lado, Mariana Toledo Ferreira expõe em seu artigo os resultados da pesquisa sociológica que realizou com pesquisadores juniores e seniores de um laboratório de genética humana da Universidade de São Paulo. Ferreira detém-se particularmente na divisão do trabalho (bancada, conceitualização e administração) que estrutura as atividades de pesquisa desenvolvidas no laboratório; o que lhe permite mostrar também, no interior da orientação empreendedorista do laboratório, os modos de formação e de socialização de jovens pesquisadores, que são explicitados por referência aos pares coletivo/individual, independência/hierarquia. Nessa perspectiva, a autora investiga, com base em um caso exemplar, a produção dos produtores de conhecimento, os modos de socialização no quadro de uma disciplina submetida a constantes mudanças nas técnicas de investigação e de modelização de seu objeto de pesquisa, assim como nos modos de institucionalização da pesquisa.

Encerrando este número de Scientiæ Studia, Pedro Xavier Mendonça apresenta, em seu artigo, parte de uma pesquisa mais ampla, desenvolvida no âmbito do que se pode propriamente chamar de sociologia da técnica e da tecnologia. As tecnologias móveis (celulares, smartphones e tablets) são seu objeto de análise: trata-se de dispositivos compostos de artefactos e de funcionalidades, cuja dinâmica de inter-relação, submetida a uma análise sociotécnica - que não só faz a observação atenta do uso do artefato e suas funcionalidades, mas faz também uso do próprio artefato pesquisado e explora suas funcionalidades -, revela direções ou tendências e, no limite, hegemonias de desenvolvimento técnico-social. Desse modo a análise sociotécnica de Mendonça revela então uma tipologia do uso social da técnica composta de cinco tendências sociotécnicas (realismo; continuidade técnico-corporal; prioridade do contexto; velocidade; compatibilidade/multifuncionalidade). As diferentes combinações sociotécnicas permitem então compreender como dispositivos móveis (celulares e tablets) se inscrevem no espaço social e, ao mesmo tempo, permitem a emergência de outros tipos de interação humana com enormes repercussões na comunicação e na própria situação do humano.

Este é certamente o lugar, no último número da série trimestral de Scientiæ Studia, de tornar pública a decisão do editor, com base em consulta aos editores associados, de retirar a revista da base SciElo a partir de 2016, quando terá início, no volume 14, a série semestral de Scientiæ Studia, que continuará sendo disponibilizada na base Sibi-USP.

Sem ter espaço aqui para expor mais amplamente as razões que servem de base para essa decisão, o que será feito em outra oportunidade e lugar, cabe ainda assim apresentar brevemente dois pontos de princípio que fundamentam essa decisão relativos a: primeiro, a concepção de internacionalização promovida pelo SciElo e, segundo, a exigência de adoção de um sistema informatizado de avaliação on line, para o qual se oferece o uso gratuito do sistema da Thompson and Reuters.

No primeiro caso, trata-se de uma política alinhada a uma perspectiva de internacionalização segundo a qual para fazer a "ciência brasileira" concorrer no mercado de comunicação científica internacional, deve-se publicar em inglês. Ora, Scientiæ Studia foi pensada para ser a expressão do nível intelectual alcançado por uma comunidade de estudiosos em língua portuguesa e espanhola que se debruçam, com todos os instrumentos e métodos científicos disponíveis hoje em dia, sobre questões filosóficas, históricas e sociológicas ligadas às ciências e às tecnologias. Pretende, portanto, adensar o pensamento local sobre nossos problemas. Visando contribuir para o adensamento dessas linhas de pesquisa entre o público acadêmico latino-americano, a revista, em sua seção "Documentos científicos", publica, por exemplo, traduções de obras clássicas do latim e do grego. Mas, na avaliação de periódicos orientada pela concepção de internacionalização promovida pelo SciElo, as traduções não são consideradas, ou seja, são desvalorizadas e desestimuladas.

Quanto à exigência de avaliação on-line, ela representa o desfecho do regime de hiper-avaliação pelo qual o SciElo se propõe a administração completa das atividades editoriais para, por uma valorização extrema do objetivo de medir fluxos para acelerar o processo de publicação (para fazê-lo supostamente mais eficiente), fazer avançar as técnicas mercantis e a apropriação comercial do sistema de comunicação científica. Scientiæ Studia decide não participar dessa empreitada (praticada pelas grandes editoras internacionais) que se apropria do trabalho de editores, avaliadores e autores, mantendo-se um periódico autônomo e de acesso livre.

PABLO RUBÉN MARICONDA

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015
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