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Uma aproximação de "A Morte de Marat" (1793), de Jacques-Louis David

Uma aproximação de "A Morte de Marat"1 1 . A denominação "A Morte de Marat", utilizada na obra de Giulio Carlo Argan, Arte Moderna / Do Iluminismo aos Movimentos Contemporâneos, (pref. R. Naves, trad. D. Bottmann e F. Carotti), São Paulo, Cia das Letras, 1993, p. 46, não é a única existente, para o quadro. Assim, o Museu de Arte Moderna dos Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique, em Bruxelas, onde o quadro está, intitula- o "Marat Assassinado" (Marat Assassiné). Já Jacques-Louis David, originalmente, denominara-o "Marat em seu último suspiro" (Marat a son Dernier Soupir). Traduzida para o inglês, tal é a denominação adotada na obra recente, de Simon Lee, David, London, Phaidon, 1999. Neste texto, adotou-se a denominação proposta nos materiais da prova, conforme abaixo. (1793), de Jacques-Louis David2 2 . Este texto constitui a transcrição (exceto por alterações mínimas, sugeridas pela revisora, ALDB - a quem agradeço) de uma prova de interpretação da obra, realizada a partir de sorteio, em dezembro de 2002, no departamento de Artes Plásticas da ECA-USP, no quadro de um processo seletivo para a contratação de um professor para a área de História, Teoria e Crítica da Arte.

Luiz Renato Martins

Professor do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo

A fim de renovar e revigorar o gênero da pintura histórica e imbuída de exemplaridade, esta obra de David se volta para as fontes do gênero, que, na tradição, lhe era oposto: o realismo pictórico flamengo-holandês, das cenas cotidianas e dos ambientes domésticos, nos quais cada gesto focalizado, por pequeno que seja, significa.

A pintura flamengo-holandesa encontrou na França, nos irmãos Le Nain, no século anterior, e em Jean-Baptiste Siméon Chardin, poucas décadas antes de David, desdobramentos importantes.

Chardin introduziu, em face da tradição flamengo-holandesa da pintura de costumes e da natureza morta, o engenho de uma sintonia fina, na determinação do espaço e do tempo. Denota-se a presença da geometria analítica, de Descartes, na estruturação espaço-temporal de suas cenas pictóricas. Se os holandeses representavam o espaço em passadas, Chardin o faz em polegadas ou mãos. Analogamente, aguça a atenção estética ao limite dos instantes, focalizando o equilíbrio precário de cartas de baralhos, a vida fugaz da bolha de sabão etc...

O saber de Chardin faz parte do acervo de David. Assim, a disposição das folhas de papel, a dimensão precisa das duas penas e do punhal - instrumentos com a escala da mão - delimitam tão vigorosa, quanto exatamente, a espacialidade deste quadro histórico, onde tudo é obra da mão e se mede em termos da mão.

Trata-se então de uma espacialidade psicofísica, definida, com licença do anacronismo, "fenomenologicamente", no campo de ação físico-corporal do "eu".

Com efeito, quantas vezes o chão quadriculado, os mapas (estimuladores do ver à distância), nos quadros flamengos, chamam a uma visada contemplativa e impregnada de religiosidade, ainda que combinada ao amor da vida cotidiana.

Aqui, em A Morte de Marat, inversamente à tradição flamenga, na qual o quadro, conforme mencionado, se funda em parte, tem-se a "linha do horizonte" - o instrumento da partilha renascentista terra/céu -, a estruturação horizontal do quadro, confundida com a intimidade e a vulnerabilidade de Marat. Esta é também a linha do traço e do fato histórico e que é antecipada e aproximada do observador pela mesa/caixote/caixão - posto que aqui vai também o epitáfio, com a dedicatória, no qual o pintor assina e data (ano dois).

Espaço da mão, pois, instituído pela tradição, mas, aqui, tonificado, revigorado e reforçado com novos elementos por David.

Ao espaço da mão articula-se também aqui o da razão, faculdade, no caso, da interpretação histórica, que confere a este quadro seu rigor e sua marca específicos, distinguindo-o da tradição flamenga.

Antes de penetrarmos, entretanto, no âmbito do teatro maior da razão e ou da reflexão histórica, é importante recensearmos os demais elementos, que, num plano ou noutro, implicam a mão como símbolo concentrado, na cena, do agir humano. Além dos instrumentos mencionados (pena, punhal e folhas) o quadro nos apresenta vestígios diretos da ação manual: escrita e corte, que, aqui, do ponto de vista do tratamento pictórico, determinam-se reciprocamente. Noutro plano de cogitação, a fatura pictórica, o tratamento da matéria pictórica, especialmente do extraordinário e moderno campo marrom (?)3 3 . No concurso referido só se tinha acesso a uma única reprodução fotográfica do quadro, sem possibilidade de qualquer outra consulta. Daí a dúvida acerca da cor efetiva do fundo da tela de David. que figura o "fundo" - tratado como superfície -, explicita o fazer do pintor, apresentando-nos este campo como objeto de um fazer tanto físico, quanto ético e racional, na sua determinação geometrizada e simplificada.

No âmbito do motivo, do acontecimento focalizado, a mão de Marat figura como um pólo dramático. Ela é acentuada como signo dramático pela inércia do braço, que jaz, mas também por uma dobra do tecido verde, por uma prega e pela margem do tecido branco.

Tudo, aqui, pois, converge e é medido pela mão e simultaneamente ruma para o chão, contribuindo para a definição da dimensão terrena e transiente desta pintura e de sua matéria: os atos humanos e os fatos históricos.

No campo "miúdo" da mão forja-se também uma outra espécie de atenção. É este fenômeno histórico novo - a atenção psicofísica elevada à significação de fato histórico - que é convocada vigorosamente, seja pelo detalhe do remendo ou bolso no pano branco, no canto inferior esquerdo da tela, seja pelo close, com licença do anacronismo, que é oferecido, suscitado e provocado como modo de olhar do observador, situado, pode-se dizer, rente ao fato histórico.

Isto posto, cabe já dizer que, nesta disposição pictórica, tem-se, de fato, por meio de inúmeros elementos, a renovação da pintura de motivo histórico.

Mão e razão, intimidade (por exemplo, do banho de Marat e do close visual) e teatralidade (evocada pelo desenho geométrico e racional e pela disposição da figura de Marat), ipseidade do fato e sua dimensão histórica, todos estes elementos, em princípio opostos e heterogêneos, comparecem articulados aqui para solicitar uma nova espécie de contemplação e reflexão histórica mediada pela atenção miúda - na qual o sujeito, a consciência individual são eloqüentemente chamados a se posicionar.

No vértice do flagrante, e do raio de alcance corporal, o observador estético é também instado a se posicionar por meio da reflexão e da teatralização do evento, como sujeito histórico. O que, no caso, o chama a isto? O desenho poderoso, geometrizante e austero, faz do pintor/ artesão o análogo de um legislador. Logo, aqui, a atenção para o manejo miúdo da mão se põe também como ato ético e racional, por assim dizer, como uma máxima.

O banhar-se, o ler e o escrever, o enganar com palavras e o apunhalar, o pintar e o ver, configuram-se simultaneamente como atos do eu e de significação ética e histórica.

Além das linhas e do desenho, também a disposição das cores, compreendendo, na sua economia, sistematização e dramaticidade, basta ver a luminosidade e os contrastes cromáticos suscitados, implicam o trato minucioso e atento da matéria, próprio do artesão, com a vontade e a razão do legislador.

Nesta combinação de sistematização e simplicidade, dramaticidade e despojamento, na vibração singular de cada uma destas qualidades, ecoam as prerrogativas dos novos sujeitos históricos, instituídos pela nova filosofia do direito natural.

Nova história, posto que terrena, sem luz sobrenatural e iluminada pelas ações humanas - história ao alcance da mão, da assassina, do pintor, como do cidadão;

Novo direito, fundado na natureza e não na teologia;

Nova pintura, posto que o quadro faz tábula rasa do rococó, do classicismo e do barroco áulicos, nova espacialidade (curta e direta), novo léxico, nutrido do realismo burguês flamengo, A Morte de Marat apresenta-se assim densamente armada para abrir uma nova era estética, moderna e clássicorepublicana, sem infinitude, rasa e despojada de metafísica, mas impregnada de ética e da ciência urgente da ação histórica.

O novo objeto que, aqui, se delineia pode ser melhor precisado quando confrontamos esta pintura a outras duas telas, nas quais uma ambição similar, a de suscitar uma reflexão ético-histórica, também se distingue: a deposição do Cristo, na Capela degli Scrovegni (Padova), de Giotto; e o fuzilamento de 3 de Maio de 1808 em Madrid, de Goya.

O cadáver enrijecido do Cristo de Giotto, congregando, além das linhas que definem as massas, os gestos, os olhares, a atenção dos amigos e discípulos, também quer suscitar uma reflexão ética e histórica; também se dispõe, como num palco, de modo teatral, a provocar, como num flagrante, o observador à compreensão histórico-ética, no caso cristã, do fato exemplar.

O sacrifício de Marat, por sua vez, tratado em close, nos diz que essa história, se é objeto ético e racional, o é também, e em primeiro lugar, para o melhor e para o pior, da ação humana direta ou em primeira pessoa.

Detalhe a detalhe, com austeridade, mas também com eloqüência, o observador estético toma consciência de que o fazer, o tocar, o ver, o ler e o falar, assim como fazer a história, são prerrogativas ou "direitos naturais" seus ou de cada um.

Analogamente, o confronto com a tela de Goya também é propício à distinção da força peculiar desta tela de David. Assim, o espanto e a indignação que, na tela de Goya, eram figurados e mediados, já na tela de David (por obra talvez do momento histórico vigoroso e peculiar que vive), são instalados diretamente no âmago da consciência do observador estético. Daí estar ele tão presente e atuante quanto Charlotte Corday, seu outro, invisível no quadro, e o pintor - com os vestígios e a estrutura própria do seu fazer. O romantismo, emsua gênese racional, se apresenta assim interpelando o observador como um "eu".

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    . A denominação "A Morte de Marat", utilizada na obra de Giulio Carlo Argan, Arte Moderna / Do Iluminismo aos Movimentos Contemporâneos, (pref. R. Naves, trad. D. Bottmann e F. Carotti), São Paulo, Cia das Letras, 1993, p. 46, não é a única existente, para o quadro. Assim, o Museu de Arte Moderna dos Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique, em Bruxelas, onde o quadro está, intitula- o "Marat Assassinado" (Marat Assassiné). Já Jacques-Louis David, originalmente, denominara-o "Marat em seu último suspiro" (Marat a son Dernier Soupir). Traduzida para o inglês, tal é a denominação adotada na obra recente, de Simon Lee, David, London, Phaidon, 1999. Neste texto, adotou-se a denominação proposta nos materiais da prova, conforme abaixo.
  • 2
    . Este texto constitui a transcrição (exceto por alterações mínimas, sugeridas pela revisora, ALDB - a quem agradeço) de uma prova de interpretação da obra, realizada a partir de sorteio, em dezembro de 2002, no departamento de Artes Plásticas da ECA-USP, no quadro de um processo seletivo para a contratação de um professor para a área de História, Teoria e Crítica da Arte.
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    . No concurso referido só se tinha acesso a uma única reprodução fotográfica do quadro, sem possibilidade de qualquer outra consulta. Daí a dúvida acerca da cor efetiva do fundo da tela de David.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Abr 2011
    • Data do Fascículo
      2004
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