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Crônica turísticada VIII Bienal de Havana

Crônica turísticada VIII Bienal de Havana

Marco Buti

Artista plástico e docente do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo

Pude conhecer Havana e parte de sua Bienal, graças à minha participação num evento paralelo, uma exposição de gravadores brasileiros, e a um convite do Instituto Superior de Arte de Cuba, para proferir uma palestra sobre o ensino de gravura na Universidade de São Paulo.

Após a montagem da exposição, terminada no dia 1º de novembro, com os inevitáveis problemas imprevistos, e a palestra marcada para a manhã do dia 4, a questão que se colocava era como utilizar da melhor maneira os poucos dias de minha permanência em Cuba. Priorizar a Bienal, com uma intensa programação impossível de ser acompanhada em sua integridade, ou optar pela cidade, com sua conhecida e peculiar situação política, os encontros imprevisíveis oferecidos a um primeiro olhar, correndo o risco de ser apenas mais um turista? Afinal, tal escolha era sugerida pelo tema da própria Bienal, A Arte com a Vida, enfatizando as intervenções urbanas, buscando superar os limites das instituições e hegemonias artísticas. Para mim, como artista, a escolha se multiplicava, ainda mais por nunca ter conseguido traçar um limite definido entre a vida e a arte, achando que essa oposição é destituída de sentido. Para complicar as coisas, tenho um trabalho em andamento desde 1992 chamado "ir, passar, ficar", baseado no diálogo com o espaço urbano da cidade em que vivo ou na qual me encontro.

Meu desejo, inclusive durante a montagem da exposição de que participava, era sair perambulando pelas ruas desconhecidas, ao longo da costa, pelas fortificações espanholas, com minha velha Nikon, registrando as imagens surpreendentes de um outro cotidiano. Uma decisão que, como quase todas, tem um fundo ético. Afinal, estava em Havana como artista e professor universitário. Qual poderia ser o melhor retorno para a minha Universidade, a certeza do conhecimento adquirido em palestras, intervenções urbanas e exposições, ou a incerteza do caminhante, que não teria como assegurar, no instante do disparo, se a imagem captada não seria apenas um registro turístico de sua curta permanência, mesmo tendo a esperança da realização artística? Talvez irresponsável, saí andando.

Logo percebi que o caminhante solitário é o alvo perfeito para todos os assédios gerados pela difícil situação econômica da ilha de Cuba. Os charutos ilegais são oferecidos constantemente, o oferecimento dos serviços das prostitutas, pelas próprias e seus agentes, é irritante para quem não está interessado, e são muito menos numerosos os que se aproximam do turista com curiosidade, para conversar, levados pela cordialidade cubana. Mas descobri também que ao longo do Malecón, a avenida costeira ao redor de Havana, a grande umidade do ar, produzida pelas ondas constantemente quebradas contra o muro de proteção, gera uma luz belíssima, somando-se às cores claras, suaves e descascadas dos palacetes em frente. Que são, em sua grande maioria, cortiços. Como são também cortiços quase todos os palácios situados nas ruas internas de Havana Velha, exceto nas áreas já restauradas, onde os edifícios recuperados abrigam seus moradores com mais dignidade, ou foram convertidos em instituições oficiais, ou restaurantes e lojas para turistas.

A sensualidade da música cubana acompanha os percursos pelas ruas esburacadas, restauradas ou em processo de recuperação, mas como grande parte é tocada para os turistas, depois de algum tempo a repetição de "Guantanamera" torna-se um pouco tediosa. Nas poucas livrarias que encontrei, ao procurar obras de Alejo Carpentier, constatei surpreso ser mais fácil encontrar best-sellers internacionais do que o grande autor cubano, e tive de recorrer às bancas de livros usados. Ao procurar abrigo num bar, durante uma das rápidas chuvas que pontuaram os dias em Havana, dez minutos de paz com uma cerveja, contemplando as gotas caindo na bela Plaza Vieja, transformaramse em irritação pelos constantes assédios. Felizmente, nenhuma criança veio me pedir uma das canetas Bic que carregava comigo, disposto a dar quantas tivesse aos estudantes necessitados. Segundo me disseram, era apenas manha das crianças: tinham canetas para estudar. No entanto, comprei, por um preço absurdo, um grande pacote de leite em pó para duas adolescentes, uma delas grávida. Seu destino terá sido o mercado negro?

À noite, de táxi com outros brasileiros, indo para os restaurantes sugeridos pelo guia de viagem ou pela presença de Hemingway, que torna tudo mais caro, passamos pelas ruas pouco iluminadas, com pessoas conversando nas portas dos edifícios mal conservados. No Brasil, evitaríamos passar por ali. Aqui, dizem que estamos mais seguros.

Mas não podia ignorar completamente a Bienal. Resolvi dedicar uma manhã para visitar a fortaleza de San Carlos de la Cabaña, onde estava a maior concentração de obras, talvez ainda mais atraído por velhas imagens cinematográficas hollywoodianas, com galeões espanhóis e piratas. Paguei três dólares pelo ingresso, num país onde o salário é menos de quinze por mês. Entrei, e imediatamente fui tomado pelas vastas proporções e pela inteligência das estratégias defensivas daquela belíssima obra de arquitetura militar. Após vagar por boa parte dos dez hectares ocupados pela fortaleza, tirando muitas fotografias, era hora de entrar em contato com as obras de arte instaladas dentro e fora das velhas paredes e bastiões. Comecei a entrar e sair, com curtos períodos de permanência, atravessando portas situadas a intervalos absolutamente regulares, ditados provavelmente pelas finalidades militares originais daqueles espaços: depósitos, aquartelamentos, prisões, escritórios, comandos. Tudo que via seguia mais ou menos fielmente os padrões internacionais da Arte Contemporânea, e após algum tempo me senti numa atitude doentia. Que estava fazendo naquele ponto do globo terrestre, se tudo poderia ser visto em qualquer outro lugar? Havia mais vida nas instalações abrigadas nas entranhas da fortaleza ou do lado de fora, nas muralhas batidas pelo sol, bem em frente de Havana Velha?

A localização estratégica da fortaleza, guardando o canal que dá acesso ao porto, torna-a hoje, aqui, um ponto de vista privilegiado para contemplar a paisagem de Havana, do outro lado do canal. Essa distância torna invisível a pobreza e a deterioração da cidade, apresentando-a como foi e como espero que volte a ser. Que obra, que estratégia artística poderia competir com aquela força visual? A própria fortaleza de San Carlos de la Cabaña é uma obra carregada de significados, que só aumentaram ao longo dos seus séculos de permanência, e são tanto históricos quanto contemporâneos. Levam a pensar sobre a inteligência, o esforço, a insensatez, a violência, o acaso, a beleza, a tecnologia, a emoção e tantos outros fatores contraditórios presentes, de maneira inextricável, em todas as épocas, nos empreendimentos humanos.

O que diz um simples guia turístico sobre a fortaleza? Em 1762 os ingleses tomaram Havana, permanecendo por quase um ano. No ano seguinte, tendo retomado o controle de Cuba em troca da Flórida, e visando impedir futuras invasões, os espanhóis começaram a construir a fortificação. O custo foi astronômico, com o emprego de mão de obra escrava, e as invasões não vieram. A fortaleza foi impotente para conter o declínio do império espanhol, contra o qual houve muitos levantes internos, até a independência. Com a revolução cubana, o que tinha sido a residência do governador espanhol tornou-se o quartel general dos barbudos, após a tomada de Havana. Hoje é um dos principais pontos turísticos da cidade. Abriga um museu de Che Guevara, boa parte da Bienal, antigos mísseis soviéticos e a cerimônia do "cañonazo", às 21 h., quando soldados em uniformes do século XVIII disparam os canhões. Na época colonial, significava que as portas da cidade tinham sido fechadas. Só esses breves e superficiais dados históricos não fornecem um rico material de reflexão, numa cidade onde acontece uma Bienal de Arte Contemporânea cujo tema é "A arte com a Vida"?

Mas essa questão não seria gerada por uma visão da história da arte que ainda respeita inadvertidamente a hierarquia entre as artes maiores e menores? Uma história da arte que na verdade é uma história da pintura e da escultura a partir do Renascimento, esquecida da imagem e do texto impressos, das artes aplicadas, de todas as tentativas bem ou mal sucedidas de criar um convívio mais próximo com formas menos majestosas de arte, e mesmo da dimensão pública que tantas obras pictóricas e escultóricas tiveram em templos, praças e edifícios? A grande separação entre arte e vida reside na falta de sentido de um discurso artístico fechado em si mesmo para quem não é um profissional ou estudante da área, isto é, quase todos, e também nas condições sociais e econômicas que impedem a compra de um simples ingresso de cinema a grandes porcentagens de certas sociedades.

A tentativa de aproximar a arte e a vida tem sido um tema recorrente em Bienais recentes, na concepção de obras interativas, públicas, em intervenções urbanas. Mas está além da utopia mais delirante acreditar que eventos de algumas semanas possam produzir efeitos significativos na sociedade, embora sirvam para promover artistas e curadores. É trabalho muito mais demorado sedimentar um conhecimento que torne um maior número de pessoas apto a se relacionar melhor não só com a Arte Contemporânea, mas com a Arte. Tomar suas próprias decisões, sem precisar seguir os direcionamentos de obras de artistas e textos críticos, preferindo talvez a experiência estética de uma paisagem, e até mesmo não se interessar tanto por arte e eleger outras abordagens para interagir com o mundo. Termino este texto com as mesmas palavras empregadas ao encerrar minha palestra em Havana sobre o ensino de gravura na USP: para diminuir a distância entre a vida e a arte precisamos de ações menos espetaculares, mais humildes, discretas e cotidianas. Aulas.

O mundo é um grande professor. Terei sido leviano comportando-me mais como turista que pesquisador, ao me encontrar numa cidade que talvez não reverei jamais?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2011
  • Data do Fascículo
    2004
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