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Modernismo, pós-modernismo e vapor

Modernismo, pós-modernismo e vapor* * Este texto foi originalmente elaborado para uma palestra dada em novembro de 2000 no Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, como parte de uma série intitulada "Modernitats", e, em seguida, na Universidade New School em abril de 2001. O ensaio incorpora alguns elementos de meu artigo "Origins of the Present Crisis", New Left Review, 2, março-abril de 2000. Fiz apenas alterações mínimas para chegar a este formato de palestra em primeira pessoa e, em particular, decidi não reescrever minhas respostas à dança do fantasma de Oursler à luz dos recentes acontecimentos. [A presente versão de "Modernismo, Pós-modernismo e Vapor" é uma tradução do ensaio publicado na revista October. n. 100. Cambridge, Massachusetts, primavera de 2002, p. 154-174 (N. do R. T.).]

T. J. Clark

Bristol, Inglaterra, 1943. Fez doutorado em história da arte no Courtauld Institute, de Londres. Em 1980 radicou-se nos Estados Unidos, lecionando inicialmente na Universidade de Harvard e, em 1988, transferindo-se para a Universidade da Califórnia, em Berkeley, onde é professor de história da arte moderna e ocupa a cátedra de George C. e Helen N. Pardee. Seus estudos sobre arte moderna são marcados pela maneira original com que associa uma refinada análise formal à história social. Em 2004 proferiu conferências em São Paulo, a convite do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP e do Centro Universitário Maria Antonia. No mesmo ano foi publicada, pela Editora Companhia das Letras, sua obra A pintura da vida moderna/Paris na arte de Manet e seus seguidores; em breve a Editora CosacNaify lançará uma coletânea de textos do autor, Modernismos/Ensaios sobre política, história e teoria da arte

Tomando como ponto de partida a presença "tecnológica e digitalizada" do vapor em "A Máquina-Influência", obra de 2000 de Tony Oursler, e recuando até as figurações correlatas da fumaça, da névoa e da evanescência (signos, na modernidade, de um vazio a um só tempo aterrorizante e pleno de possibilidades) em artistas como Manet e De Chirico, o autor discute a profunda mudança de sentido histórico que o trabalho do artista norte-americano vem assinalar para a arte na situação contemporânea, ao dar ao vapor as formas da paródia e da ironia.

Ao longo dos últimos doze meses, aproximadamente, estive pensando sobre arte moderna e vapor - vapor comprimido, mas também vapor dispersando-se. Em parte, isso foi acidental. Por acaso abri o New York Times, no final de outubro de 2000, e deparei com a fotografia de uma instalação a céu aberto de Tony Oursler - a imagem enorme e assustadora de um rosto projetado em uma nuvem de vapor d'água. O rosto, como poderão imediatamente adivinhar os que estão familiarizados com o elenco de imagens-personagem de Oursler, não parava de falar. Tinha muito que dizer. Gradualmente, começamos a atinar, em face do monólogo fanfarrão, que o principal problema do rosto era a Internet. O rosto era um fantasma, ou uma alma, ou um espírito em busca de repouso após a morte - parte de uma grande família desse tipo de espírito. E o repouso se tornara impossível. Por alguma razão a Internet invadira o mundo desses espíritos e tomara o controle de seus comprimentos de onda. Por isso eles estavam voltando para lutar contra o inimigo digital. Os fantasmas reais queriam espaço para não respirar. Como as pessoas podiam morrer, afinal, se o local de seu último descanso era continuamente violado por respingos de saliva da sala de bate-papo?

Oursler chama sua instalação de “A Máquina-Influência”. Eu a vejo como uma espécie de repetição tecnológica e digitalizada da cena final do poema de W. B. Yeats “O Céu Gelado” (“The Cold Heaven”, 1916):

...Ah! when the ghost begins to quicken,

Confusion of the death-bed over, is it sent

Out naked on the roads, as the books say, and stricken

By the injustice of the skies for punishment?

[Ah! quando o espectro começa a se agitar,

Finda a desordem do leito de morte, será empurrado

Nu para as ruas, como dizem os livros, e fulminado

Pela injustiça dos céus como punição?]

A questão que fecha o poema de Yeats é real, ou real para o poeta, e tem a intenção de parecer real para o leitor. Yeats acreditava em fantasmas e certamente acreditava na possibilidade de uma agonia sem fim, eternamente nutrida por uma vida insatisfeita - não interrompida, nem por um minuto, pela mera extinção física. Yeats era um modernista, em suma. Acreditava que a vida tinha um núcleo horrível, mas também extático e belo; e que a função da arte era mergulhar o leitor ou espectador de volta nesse horror e êxtase, ao menos enquanto durasse o poema. Creio que Tony Oursler não compartilha dessa ambição. Seus fantasmas não são para valer. Ou, antes, no que concerne ao espaço do trabalho de arte, espera que decidamos se devemos levá-los a sério ou não - se levar o trabalho a sério implica não levá-los a sério. Ou ainda que decidamos, por exemplo, se devemos considerar os rostos como uma espécie de metáfora (e nisso residiria sua seriedade) do anseio por uma vida do espírito que continua, implacavelmente, povoando nossa atual ideologia da informação. Em outras palavras, eles podem ser espectros sonhados pela própria Internet, parte do desesperador quadro de ocultismo e "espiritualidade", dilacerando-se, como sempre, em face do desencantamento do mundo. Como Theodor Adorno expôs há muito tempo,

O ocultista tira as últimas conseqüências do caráter de fetiche das mercadorias: o trabalho objetivado ameaçador salta dos objetos sobre ele com inúmeras caretas demoníacas. (...). Aquelas miniaturas de sábios que aterrorizam seus clientes diante de uma bola de cristal são modelos de brinquedos grandes que detêm em suas mãos o destino da humanidade.1 1 . ADORNO, Theodor W. Minima Moralia. São Paulo: Editora Ática, 1992, p. 209.

Isso parece relacionar-se de alguma forma à peça de Oursler. Ele sabe que está brincando de nos meter medo. Orgulha-se de exibir seu aparato de terror. Vapor e vídeo são seus meios. É uma máquina - o título de Oursler insiste no fato. E a máquina não tem a intenção de nos convencer. Não devemos jamais apagar o sorriso pós-moderno de nosso rosto.

Logo que vi a fotografia de "A Máquina-Influência" e comecei a pensar sobre o modo como falava à nossa atual utopia da informação, não pude deixar de perceber paralelos entre ela e a arte dos últimos 150 anos. Pensei no fim do modernismo no desfecho da década de 1960 e no vapor, no trabalho de Robert Morris, como a figura desse fim. Vejo a peça de vapor de Morris como, essencialmente, uma literalização da busca do século anterior pela abstração, redução e desmaterialização - de seu desejo de entregar a arte ao momento, ao acontecimento, à pura contingência. Tinha minhas dúvidas sobre o que a literalização desses impulsos realizada por Morris causara - se o fato de torná-los literais os banalizara - mas pelo menos compreendia, ou achava que compreendia, de onde Morris havia partido. E me dei conta de que ele sabia estar no final de alguma coisa, de modo que talvez até mesmo a banalidade da metáfora fosse deliberada - ela mostrava ao que o modernismo chegara por volta de 1968. Ainda persistia, para mim, o problema de saber o que Oursler lograra ao emprestar um rosto ao vapor de Morris. Ou seja, ao projetar no esvaziamento e dispersão do modernismo um tanto de aparição, um sujeito em estado de sofrimento, um fluxo de palavras.

Nesse momento, obviamente, comecei a perceber que o vapor, na arte dos últimos dois séculos, nunca fora inequivocamente uma imagem de esvaziamento e evanescência. Sempre fora também uma imagem de poder. O vapor podia ser domado; o vapor podia ser comprimido. Foi o vapor que inicialmente tornou possível o mundo da máquina. Foi o termo médio na grande reconstrução humana da Natureza. "Chuva, Vapor e Velocidade". A velocidade que se segue à compressão transforma o mundo em um grande vórtice em Turner, um olho espectral voraz, em que chuva, sol, nuvem e rio são vistos, da janela do compartimento, como nunca haviam sido vistos antes. O vapor é poder e possibilidade, portanto; mas também, logo, está obsoleto - é uma figura de nostalgia de um futuro, ou um sentimento de futuridade, que a idade moderna tinha no início mas que jamais poderia atingir. Daí os traços ou baforadas de vapor sempre presentes no horizonte das paisagens oníricas de De Chirico. Um trem corre pelo deserto Imperial. É como se a República da Banana estivesse a prover os produtos necessários. Ou seríamos já visitantes atrasados, turistas basbaques zanzando entre ruínas semi-soterradas pela areia? Estaria a modernidade espalhando-se e multiplicando-se ainda até os confins da terra - erguendo suas estátuas e chaminés, fazendo suas grandes perspectivas urbanas despontarem à distância, até onde a vista alcança? Ou seria tudo um retrospecto, uma coleção de fragmentos? Uma nuvem de vapor em De Chirico é sempre avistada entre as colunas de uma arcada deserta. Outrora os arcos levavam à estação e as pessoas corriam para apanhar o expresso. Isso acabou. Outrora as pessoas se regozijavam em meio à vastidão de novas perspectivas e construíam para si casas de sonho dedicadas à adoração das engrenagens dentadas e da força propulsiva. Mas a modernidade sempre foi assombrada pela idéia de que esse momento de sonho, de infinita possibilidade, terminasse.

É isso que quer dizer, creio eu, o admirável título de De Chirico, "Nostalgia do Infinito", de 1914. Um título admirável, mas cujo tom (como tantas vezes em De Chirico e no modernismo em geral) é impossível apreender. Sem dúvida, a interpretação sempre será guiada por nosso conhecimento de que o ano em questão foi malsinado e fatal, e assim já o parecia na época - não era preciso ser um nietzscheano melancólico para sentir, em 1914, que o infinito estava prestes a ser condenado à morte. Mas mesmo ali, naquele terrível momento crítico, a nostalgia era forte. É importante considerar, parece-me, que o pai engenheiro de De Chirico fora encarregado de construir a estrada de ferro de Atenas a Corinto. A arte de De Chirico é, em parte, uma série de tentativas de retornar a esse momento de fundação e regozijar-se novamente com a vitória do Pai - a vitória da modernidade - sobre os obstáculos naturais, com a transformação da antigüidade num cenário visto de um vagão em movimento.

Poderíamos perguntar se na obra de Tony Oursler, por contraste, o vapor e a máquina ainda são portadores de alguma sugestão - alguma memória - de possibilidade e poder. Ou será que produzem apenas ilusão? "A Máquina-Influência", eis como Oursler chama seu trabalho. "Influência" é uma palavra morta, desalentadora (nos Estados Unidos ela vem com uma etiqueta de preço). Os homens e mulheres na Galerie des Machines, em 1889, não foram "influenciados" pela mecânica da modernidade. Foram talvez tolhidos por ela; esmagados por ela; mas também encorajados e exaltados. As máquinas eram sua criação. Adorno sem dúvida tem razão ao dizer que o trabalho objetificado é ameaçador, e em certo sentido demoníaco; mas na modernidade ele também é maravilhoso, celestial. Se a máquina de Oursler não mais exibe essa dialética, nem mesmo de forma vestigial, pode ser verdade que deixamos a modernidade para trás.

Meu principal termo de comparação com Oursler, portanto, é o "Caminho de ferro" de Manet. O vapor é claramente o grande tema dessa pintura; e a forma como as pessoas se relacionam ao vapor, se o olham de frente ou não; como se voltam para nos encarar. Não é preciso ser muito engenhoso para perceber que o vapor nesse quadro é a metáfora de uma instabilidade geral, talvez constitutiva - das coisas que na modernidade incessantemente mudam de forma, avançam, se dispersam e ficam cada vez mais impalpáveis. A pintura tem perfeita consciência de que esse modo de ser é profundamente atraente. É um colírio para os olhos. Todos gostamos de ver os trens partir. Mas o vapor no "Caminho de ferro" é também uma figura da inconstância e impalpabilidade que se entremeiam na textura da vida. O vapor é uma metáfora da aparência, a aparência sendo aqui transitória, e por alguma razão também cuidadosamente preservada. O vapor é a superfície na qual a vida em sua totalidade está se transformando. A menina e a governanta são postas em um espaço que parece mais uma gaiola do que um terrain vague [literalmente: terreno baldio ou desocupado]. Dos trilhos ao plano da pintura não há mais que meio metro.

Vapor e aparência, portanto: esse é certamente o principal tropo de Manet. Mas não simplesmente a aparência anulando a profundidade e expulsando de vez a intimidade. Manet e o modernismo nunca chegaram a tanto. A governanta está lendo e divagando. Por um momento ela pode ser toda exterioridade e superficialidade, mas ainda mantém dois dedos marcando a página do livro. Talvez o vapor também possa ser uma metáfora para a liberdade da imaginação. Mas então voltamos a olhar aqueles trilhos implacáveis, que dividem e dominam o retângulo, comprimindo tudo em direção à superfície da pintura. As superfícies são organizadas com demasiada facilidade, eis o problema da mobilidade e do anonimato modernos. Na nova cidade, a liberdade (evanescência) é sempre o reverso do congelamento e da coerção.

*

Conforme eu seguia a trilha de imagens aberta pelo trabalho de Oursler - observando, em particular, "A Máquina-Influência" e o "Caminho de ferro" lado a lado - ficava claro para mim que aquilo que tinha em mente era a diferença entre modernismo e pós-modernismo. O vapor era meu modo de conceber a relação entre a arte dos últimos trinta anos, mais ou menos, e a do longo século anterior - vamos chamá-lo de século de De Chirico e Yeats. Aprecio o fato de que isso tenha se insinuado a mim como problema, mas, logo a seguir, os alarmes soaram. Não sou especialista em arte contemporânea. Tenho consciência de viver deliberadamente em um passado modernista e de sentir uma identificação profunda com certas obras-de-arte modernistas, razões pelas quais me é difícil reconhecer o mérito que se deve a boa parte da arte das últimas duas décadas. Percebo também - essa percepção surgiu recentemente - que mesmo no período de minha vida em que sentia uma conexão vital com a arte que acontecia a meu redor, eu a interpretava de forma equivocada. Minha hostilidade militante contra Andy Warhol, por exemplo, não sobreviveu ao teste do tempo. Desejaria, em retrospecto, ter sido capaz de reconhecer a estranheza e o interesse da escultura de Don Judd. E assim por diante. Não que eu não consiga lembrar por que cometi esses erros; e parte de mim persiste em considerá-los necessários, ou ao menos produtivos - para mim mesmo e outros naquele tempo, no calor do momento. Eram os anos sessenta. A questão da arte fora proposta, por um certo tempo, de modo extremo, como uma escolha entre tudo ou nada. Sei porque optei pelo "tudo". E obviamente aqueles dentre nós que o fizeram sabiam muito bem, na época, que optar pelo tudo - o tudo do fim da arte e a realização da arte na prática revolucionária - poderia ser o mesmo que optar pelo nada. Não éramos tolos; sabíamos que as condições culturais eram adversas para nós. Vejo agora que o pragmatismo de Warhol ou o egocentrismo de Judd eram movimentos no mesmo desconcertante final de partida - desconcertante porque chegou a nós tão rápida e inesperadamente - e, em certo sentido, eram movimentos mais realistas, pois menos convencidos de que o fim estava próximo, ou talvez mais dispostos a adotar uma estratégia que resultaria em certos ganhos limitados (essencialmente, ganhos estéticos), viesse o fim ou não. Repito, não lamento não ter visto isso quando aconteceu. Pelo contrário: estar severamente enganado a respeito da arte do presente, ou correr o risco de o erro ser decisivo e mutilador, talvez seja a base de que qualquer crítica séria, em oposição à adesão ou à promoção, deve partir - sobretudo a crítica atual. Pretendo dizer, com isso, que seja o que mais for, este ensaio não é um guia confiável das vertentes atuais.

Devo também admitir um certo nível de exasperação renitente diante da caricatura de modernismo que tantas vezes passou por caracterização no mundo da arte ao longo dos últimos vinte anos. Obviamente, novos movimentos precisam tomar alguma distância de seus precursores. Matar o pai é um fato da vida artística. Mas matar uma réplica de papelão do pai, que se parece tanto com o verdadeiro quanto um cavalinho de balanço com um cavalo - parece-me afrontosamente fútil, a garantia de um trabalho ruim, farisaico e simplista. Em outras palavras, creio que precisamos compreender o modernismo se quisermos genuinamente sair de sua sombra.

Dessa maneira, a questão principal deste ensaio é repensar o que foi o modernismo. Mas certamente pretendo estabelecer uma ligação com o presente. Quero falar sobre a natureza do modernismo tendo sempre em mente a seguinte questão: "Se isso foi o modernismo, como seria escapar dele para passar a um outro paradigma de produção artística?" Estaríamos no processo dessa fuga? Em particular - e considero este o desafio central apresentado pela obra de Oursler - se compreendo o modernismo como uma forma de arte de algum modo profundamente sintonizada com certos fatos e possibilidades da vida moderna (ou da forma de vida chamada modernidade), então eu não deveria concluir que a vida que levamos agora é suficientemente diferente da vivida por Manet, Picasso ou Jackson Pollock a ponto de merecer uma nova descrição - mesmo podendo achar que ela ainda não recebeu uma? Talvez apenas acrescentar um pós-diante do modernismo seja inadequado, mas por que não concordar que a modernidade foi reconfigurada nos últimos trinta ou quarenta anos? Reconfigurada a ponto de tornar-se uma outra coisa. E não faria parte dessa reconfiguração uma nova forma de visualidade espalhando-se, qual um vírus, através da cultura em geral - uma nova maquinaria de visualização, a inclinação da balança social de um regime anterior da palavra para o atual regime da imagem? Essa circunstância não ofereceria à arte visual uma oportunidade especial? Não teria sido posta especialmente para iniciar um diálogo com aquilo que surge como o principal meio de produção de uma Vida recém-imaginada? Ou será que aquilo que parece uma oportunidade única acaba por ser exatamente o problema? Será que a proximidade da arte visual com a atual instrumentação do poder - os meios atuais de produção de conteúdos - acabará por não ser proximidade, mas identidade? Não estaria a arte visual no processo de tornar-se simples e irrevogavelmente parte do aparato da produção de imagem-Vida? Não seria esse o verdadeiro sentido do fato bem conhecido (uma folheada nas páginas da Parkett ou da Artforum o confirma de modo inexorável e monótono) de que a linha de demarcação entre a arte visual e a indústria da moda, por exemplo, simplesmente deixou de existir? Não apenas deixou de existir, como a arte se regozija com a não-existência dessa linha. A não-existência é um dos grandes temas afirmativos da arte.

Não se deve tirar conclusões desde já. Não irei tão longe a ponto de postular um modernismo que, em contraste com a atual situação, outrora tomava uma distância crítica segura dos regimes de imagem que de fato tinham poder na cultura em geral. O modernismo sempre existiu em uma proximidade estreita e perigosa com o reino das aparências de que se alimentava. Não há dúvida de que Manet falava disso. O mote do modernismo era a frase notável presente na crítica feita a Hegel pelo jovem Marx: os modernistas acreditavam ser necessário a qualquer arte, qualquer Realismo, ter as formas do presente entranhadas profundamente dentro de si, arriscando-se ao arremedo, quase ao ventriloquismo; mas era disso que poderia vir a possibilidade da crítica, da verdadeira desestabilização - eles "ensinariam as formas petrificadas a dançar cantando-lhes sua própria canção".2 2 . MARX, Karl. A Contribution to the Critic of Hegel's Philosophy of Right. Introduction. In: Early Writings. Harmondsworth, Inglaterra: Penguin Books; Londres: New Left Review, 1975, p. 247. Tradução modificada.

A questão deste ensaio, portanto, é se essa possibilidade ainda está aberta à arte. Não encontraremos uma resposta nítida no que se segue. Não tenho conhecimento suficiente para oferecer uma. Talvez nenhum de nós tenha. Mas ao menos penso ter uma idéia do que está em jogo ao fazer a pergunta. Se o que queremos é saber se a arte de nossos dias ainda seria capaz de "ensinar as formas petrificadas a dançar cantando-lhes sua própria canção", certamente precisamos ter idéias a respeito do que está de fato petrificado e em processo de petrificação no presente mundo de produção de imagens e gerenciamento de símbolos. "Petrificado", diante das circunstâncias, parece uma palavra estranha a se aplicar ao que estamos vivendo. O mundo da imagem não parece estar transformando seus objetos, ou mesmo seus usuários e espectadores, em pedra, mas antes em água, ou vapor, ou pura espacialidade, pura virtualidade. Prometo voltar a esse ponto. Mas antes, acho que precisamos fazer uma outra pergunta. Se pensamos que a tarefa da arte é liberar o potencial utópico em nossas formas de vida atuais - afastá-las de seu presente congelamento e da desrealização de potencialidades, "cantando-lhes sua própria canção" - temos de saber o que "cantar-lhes sua própria canção" pode implicar. Qual a diferença entre o arremedo morto e um vívido (perturbador) "emprestar a voz"? Eis o ponto em que o modernismo tem maior importância para nós. Pois obviamente não podemos fazer essa pergunta em abstrato. Podemos fazê-la apenas a respeito do modernismo, que é o exemplo que temos de uma arte que se propõe a essa tarefa. O que o modernismo pensava estar implicado em "cantar [às formas petrificadas] sua própria canção"? É de cantar que Marx fala, não de dizer, não de descrever prosaicamente. Cantar é um ato estético. Como, exatamente, os modernistas cantavam? Em que tom? Com que dissonância emancipadora?

*

Recomecemos a partir do quadro de Manet e tentemos tornar mais vívidos os componentes de seu modernismo colocando junto a ele outras imagens fortes que falam, espero, pelo modernismo como um todo. Começarei com o óbvio, o indiscutível. O modernismo, todos mais ou menos concordam, foi um tipo de formalismo. Os modernistas davam ênfase peculiar ao fato físico e técnico do meio em que trabalhavam. Desejavam que a pintura enfatizasse - e não apenas enfatizasse, mas reiterasse - o fato da bidimensionalidade, o fato de ter sido feita à mão, o fato de ser um quebra-cabeças de peças rasas presas em uma determinada posição sobre o plano. Tanto Manet quanto Malevich lidam com isso. Seus modos de ordenar são explícitos, quase esquemáticos. As barras negras ou a divisão dos corpos em segmentos verticais têm a intenção de dramatizar o modo como a pintura rompe o mundo em elementos ou partículas. A pintura deve parecer, ao menos em parte, uma máquina compositiva.

Mas ao começar a descrever a natureza particular do formalismo presente no modernismo, somos confrontados com o outro lado da equação. Afirmei que os modernistas davam uma ênfase peculiar aos fatos relativos aos meios. Mas certamente o acento deve ser posto em "ênfase" e no fato de a ênfase ser, tantas vezes, profundamente "peculiar". O modernismo é a forma que o formalismo assumiu nas condições da modernidade - a forma que assumiu ao tentar vislumbrar uma resposta à modernidade. E essa forma era enfatizada e extravagante. Ou a ordem formal era projetada em primeiro plano - poder-se-ia dizer fetichizada - até um ponto em que fosse registrada, positivamente, como uma imposição, uma pré-fabricação, um conjunto de modelos feitos à máquina. Ou a forma era dispersada - empurrada em direção ao vazio ou à mera justaposição aleatória - revelada sempre no limiar da incompetência ou da arbitrariedade. A forma no modernismo aparentemente existia na intersecção entre a pura repetição e a pura diferença. A forma e a monotonia andavam juntas. Ou a forma e a indiferenciação. Forma e infantilismo, forma e garatuja indisciplinada. A forma, de alguma maneira, tinha de ser uma imagem dos dois grandes princípios que deram à modernidade seu caráter - por um lado, a realidade da regularidade e uniformidade da máquina, por outro, a de uma profunda aleatoriedade e esvaziamento sociais. Seria possível dizer a respeito dos mais puros produtos do modernismo (e, a despeito de toda a diferença de seus modos, Manet e Stella parecem-me comparáveis nisso) que, neles, um excesso de ordem interage com um excesso de incerteza. E que, desse princípio formal, era esperado que falasse de algo profundo na textura vivida da modernidade como um todo. "O Casamento da Razão e da Miséria", como aparece no título de Stella.

A forma no modernismo, afirmo, foi descoberta muitas e muitas vezes - e, típico, de modo aparentemente necessário - em algum estado extremo ou condição limite. Formalismo era extremismo; esse me parece ser o fato a respeito do modernismo que exige uma explicação. Minha explicação é a seguinte.

O modernismo era um modo de encarar a modernidade. Interessavase por imagens e ocasiões da vida moderna, ao menos em parte do tempo, mas também, mais profundamente, pelos meios de representação da modernidade - a estrutura de base da produção e reprodução simbólicas dentro dela. Em algum lugar no coração dessa ordem simbólica há dois grandes sonhos, ou duas grandes ofertas. O primeiro propunha que o mundo se tornava moderno porque se transformava em um espaço habitado por sujeitos individuais livres, cada um deles vivendo em seu imediatismo sensorial. O mundo tornava-se um padrão de privacidades - ou apetites, posses, acumulações. E esses apetites eram suficientes para formar um mundo. No reino da economia, deram origem a mercados. No reino da experiência, deram origem à recreação - à vida como uma série de espetáculos e jogos. Os esportistas trajando roupas-espaço de Malevich são apenas uma profissionalização, por assim dizer, do estado de suspensão mental da menininha de Manet.

Esse é o primeiro sonho da modernidade. O segundo, na prática, era difícil de separar de seu gêmeo. O mundo, dizia ele, é cada vez mais um reino de racionalidade técnica, que por ter sido mecanizado e estandardizado ficou mais compreensível aos sujeitos individuais. O mundo se encaminha para uma absoluta lucidez material. No fim ele se tornará (e se olharmos com atenção, já está se tornando) um mundo de relações mais que de entidades, de trocas mais que de objetos, de gerenciamento de símbolos mais que de corpos ocupados em trabalho físico ou luta brutal com o reino da necessidade.

Essas foram as imagens centrais da modernidade, a meu ver. E obviamente os artistas modernos compartilhavam delas - não eram, de forma alguma, imunes a sua magia. Mas na prática - este é o ponto principal - viramse submetendo esses sonhos, ou padrões de imagens, a um teste. E o teste era a forma, o teste da exemplificação em um meio particular.

O modernismo foi uma espécie de túnel de vento, no qual a modernidade e seus modos foram deliberadamente pressionados até um ponto de ruptura. Por "pressionar", no caso da pintura, leia-se "achatar". Como ficam os valores e estímulos chamados "modernidade" (esta é a questão de Manet) quando reduzidos a duas dimensões? A pintura, no modernismo, era um meio de investigação: era um modo de descobrir a que realmente conduziam os sonhos da modernidade, descobrindo-se o que era preciso para pintá-los - que tipo de jogo entre superfície rasa e profundidade, que tipo de ênfase na silhueta e nos limites do quadro, que espécie de insistência ou abreviação pictóricas? E se esses são os meios de que necessitamos para dar forma a tal ou tal ideal de modernidade, o que então isso nos diz sobre o ideal? Será que as imagens disponíveis do moderno passam no teste da representação? Se eu desenhar algo - se lhe der essa existência visual particular - esse algo sobreviverá?

Obviamente, ao apresentar o problema desse modo eu simplesmente acabei por fazer o modernismo parecer demasiado imparcial, demasiado razoável. Na prática, parece haver alguma coisa nos sonhos da modernidade que deixava os modernistas loucos. Os sonhos eram testados ao serem materializados, ao serem reduzidos a um conjunto de manobras reais, técnicas; mas freqüentemente eram forçados e desnaturados no processo, como se o artista quisesse ver quanto do sonho sobreviveria aos extremos da dispersão e do esvaziamento, do achatamento e da abstração, do estranhamento e da desabilitação - os procedimentos que esquisitamente, no modernismo, tornaram-se o que a materialização era. O formalismo modernista estava pressionando, em outras palavras; e não posso ver outra explicação para essa pressão, esse extremismo contínuo, senão a de que era uma resposta a algum extremismo na coisa - a vida - que estava sendo testada.

Houve um tempo em que dei a essa exacerbação de meios e pressão até o limite na arte moderna o nome de "práticas da negação". Mas não gosto mais dessa fórmula. Acho que é errado optar por palavras como "negativo" ou "positivo", ou "belo" ou "feio", como descrições do modernismo em seu ânimo característico. O caso é que o modernismo estava sempre em busca do momento, ou prática, a que ambas as descrições se aplicam. Positivo e negativo, plenitude e vacuidade, totalização e fragmentação, sofisticação e infantilismo, euforia e desespero, uma afirmação de poder e possibilidade infinitos junto com um arremedo de profunda ausência de objetivo e perda de rumo. Pois esta, em minha opinião, é a proposta básica do modernismo a respeito de seu mundo: que a experiência da modernidade é precisamente a experiência dos dois estados, das duas tonalidades, ao mesmo tempo. O modernismo é a arte que continuamente descobre a coerência e a intensidade no tateamento e no esquematismo, ou o vazio à espreita do outro lado da sensorialidade. E não realmente do outro lado - pois o vazio é a forma que a sensorialidade e a vivacidade controlada assumem de fato atualmente.

Acho que posso tornar esse ponto, e outros pontos principais do modernismo, mais claro com uma olhada mais de perto em uma pintura de Picasso. Percebo que assim nos afastamos do território de Manet, que é sempre público e factual, mesmo quando a ação ocorre em um interior, em um espaço mais evocativo de "A Máquina-Influência" de Oursler. Mas é assim que deve ser. O modernismo muitas vezes voltou-se para o espectral e o fantasmagórico como seu assunto. Já sabíamos disso, graças ao poema de Yeats. Ele apenas tinha uma visão diferente da de Oursler a respeito do que fosse o fantasmático e onde ele deveria ser localizado - o quão perto do sujeito que imagina a aparição deveria ser posta.

O quadro de Picasso está atualmente no Centro Pompidou em Paris e é chamado "Figure" - que significa "figura" em geral, mas também, especificamente, "rosto". A pintura não tem data, mas deve ser de 1927. Mede 100 X 80 cm. O "Rosto" é principalmente monocromático. É de um branco de gesso e um cinza-chumbo invariável, ambas as cores aplicadas planas e inexoráveis, sendo difícil perceber uma pincelada, sutil que seja. Entretanto, há uma pequena quantidade de amarelo na estranha, e bela, tira vertical no lado direito da tela de Picasso - a tira é um artifício, ou realidade, essencial para o efeito geral da pintura. Creio que serve principalmente para espacializar a terrível abertura branca e vazia no centro da pintura, da qual "Rosto" surge. Ou seja, ela localiza o quadrilátero branco em algum lugar que parece ser uma seqüência de intervalos espaciais - não, é claro, que a seqüência chegue a se estabelecer em uma ordem plausível. Será que o quadrilátero deve ser entendido, por exemplo, como se se destacasse da tira amarelada à direita, como se fosse parte da superfície de uma janela atingida pela luz, através da qual o "Rosto" ficou visível por um instante? Ou estaria em algum ponto atrás do plano do quadro, atrás da tira tangível ao lado - em algum "fora" - na escuridão e indeterminação assinaladas tão sucintamente pelo cinza que rodeia o branco? Suponho que até mesmo falar, como acabei de fazer, do "Rosto" emergindo da abertura branca seria incorrer em petição de princípio. Porque a abertura também éo "Rosto". É uma de suas possíveis apresentações ou identidades, e talvez a mais forte. E mesmo assim a ilusão do "Rosto" espiando através de alguma transparência, desde um além cinza, também é persistente. A distância do espectador em relação à imagem não pára de mudar conforme olhamos. Tudo se desloca e retorna a si mesmo. A dupla linha do horizonte, por exemplo, parece às vezes estar bem perto do "Rosto" - talvez as linhas sejam a parte de cima de um parapeito - e em outros momentos parece estar longe, demarcando o limite do mar. O "Rosto" vem de algum lugar. Nunca saberemos com certeza se ele atravessa o limiar.

Alguns de meus leitores devem estar dizendo para si mesmos, ao ler o último parágrafo, que ele conta uma história já ouvida muitas vezes. E eles têm razão. Os tipos de deslocamento e indecisão que aponto são o ABC do modernismo. O "Rosto" oferece a eles um passeio gramatical básico. Ele tem um tom pedagógico. Seu preto-e-branco é o mesmo do quadro-negro ou do diagrama. É pedagógico, esquemático e, portanto, acredito - este é outro fato típico a respeito do modernismo -, profundamente intertextual. A pintura é obviamente assombrada pelas próprias versões anteriores de geometria e monocromia feitas por Picasso e parece fazer a si mesma a pergunta: "O que resta à pintura - se é que algo resta - da série de experiências chamada Cubismo?" É a isso que o Cubismo se resume? A este conjunto de mecanismos em preto-e-branco; em outras palavras, este tabuleiro de presenças e ausências? Também não penso que o Cubismo seja a única gramática pictórica anterior a ser invocada. Volto a olhar a vertical levemente amarelada à direita e me vejo pensando, irresistivelmente, na mesma vertical na "Porta envidraçada em Collioure", de Matisse. Não podemos ter certeza, aliás, de que Picasso tenha visto essa pintura antes de 1927. Mas acho que, conceitualmente, é o casamento correto. O modernismo, da forma como o vejo, está sempre debatendo se alguma coisa - especialmente alguma coisa humana - pode aparecer nova-mente no vazio da janela de 1914 de Matisse. E decerto Picasso conhecia suficientemente a versão do Cubismo de Matisse para se deixar fascinar pela redução que seu rival fez da construção espacial cubista a este tipo de sistema de verticais de cima a baixo. A admirável "Lição de piano" de 1917 foi mostrada em público pela primeira vez alguns meses antes de "Rosto" ter sido pinta-do, em outubro de 1926, na Galeria Paul Guillaume. Variantes da organização da tira vertical amontoam-se repetidamente em Picasso durante os dois anos seguintes. Há até mesmo um "Rosto e perfil" do inverno de 1928, que mostra uma sardônica janela matisseana no lado esquerdo, inclusive com uma sacada de ferro trabalhado3 3 . Cf. a discussão em BOIS, Yve-Alain. Matisse e Picasso. São Paulo: Melhoramentos, 2002. .

O "Rosto" do Pompidou é definitivo para mim - quero dizer, definitivo do modernismo - em parte por seu diálogo com as propostas de Matisse a respeito do fazer da pintura ser tão infatigável e esquemático. E como é muito freqüente no modernismo, não fica claro qual acabará sendo o efeito, ou resultado, da redução e esquematização de Picasso. Seria uma homenagem a Matisse ou a negação deste? Não devemos optar muito rapidamente pela última. O preto-e-branco não é necessariamente o oposto do colorido. O próprio Matisse o demonstra. E o rosto na janela de Picasso não deve ser considerado inequivocamente um reino antimatisseano de des-prazer, digamos, ou monstruosidade total. Há um estranho diálogo em curso no "Rosto", não apenas com os emblemas de beleza e disponibilidade usados por Matisse mas também com os do próprio Picasso. Considero a extraordinária litografia que Picasso fez em 1928 como, em certo sentido, uma resposta à pintura do ano anterior. Não apenas, obviamente, porque permite o retorno dos emblemas do encanto e da individualidade; mas também por sua reflexão sobre quanto de curvatura e solidez poderia ser reintroduzido no retângulo limitante; e, mais que tudo, pelo modo como o retângulo, flutuando como está no vácuo branco do papel, ainda funciona como a forma da cabeça, assim como a moldura através da qual a cabeça espia - e uma moldura que é a um tempo limitante e protetora, um recorte procrusteano tanto quanto um possível contorno ideal.

Escolhi o "Rosto" de Picasso como meu segundo exemplar de modernismo, junto com "O caminho de ferro", em parte porque Picasso claramente leva a maquinaria da visualização a seus limites. É extremo e rebarbativo, mesmo pelos padrões de Picasso, e neste momento o leitor já deve saber que a extremidade e o extremismo são, em minha percepção, elementos básicos do modernismo. O modernismo, na prática, foi muitas vezes uma forma de agonia ou anomia. Manet também foi perfeitamente capaz de trazer essa agonia ao primeiro plano. De modo regular, em um Manet, começamos a perceber que a aparente casualidade e mobilidade mascaram algum tipo de perda ou de horror. Os olhos se movem para a mulher cujo corpo é cortado pela moldura; e a inclinação de seu corpo, a desolação de seu olhar insinuam-se como as chaves para o tom de toda a pintura. O rosto parece ainda mais agoniado por ser incidental - por quase ser absorvido no fluxo inexpressivo dos olhares.

O modernismo, assim, tratava de algum tipo de agonia; mas o caso é que a agonia, na modernidade, não pode ser separada do deleite. Isso é verdade em Manet, mas também o é, afirmo, em Picasso. É por isso que o esforço de Picasso para produzir imagens de horror liga-se a um diálogo pictórico com Matisse. "Eu lhes mostrarei que o horror é beleza, sob condições modernas": para mim, parece ser o que Picasso nos diz. Não era como se Matisse simples-mente discordasse dele, ou não conseguisse perceber o que significava a arte de Picasso. Sem dúvida, horror e agonia nunca são as palavras certas no caso de Matisse. Ele queria continuar a crer no sonho do apetite e da sensação. Obviamente - mas na prática ele também sabia que a maquinaria do prazer e da posse não passava disso, de uma máquina; e que repetidas vezes aquilo que a máquina produzia era uma visão de plenitude no limite da estridência e do desperdício (ou da afetação e dos trajes extravagantes).

O "Rosto" de Picasso e a "Porta envidraçada em Collioure" de Matisse são, a meu ver, os realces apropriados para "A Máquina-Influência"; mas sozinhos são demasiado privados e imediatos - demasiado refutadores da história - para representar o modernismo da forma como o concebo. São um momento do modernismo: o momento de interiorização, a retirada para a forma como um abrigo contra a modernidade, embora sempre, na arte que importa, a modernidade retorne. Ninguém está negando que esse impulso seja integral à arte moderna e responsável por muitas de suas mais elevadas realizações. Mas esse é um momento. No outro lado do isolado e do fantasmático no modernismo sempre há o sonho da figura assumindo novamente seu lugar no espaço e exercendo seus novos poderes. Contra o terrível presente eterno de Picasso sempre haverá o sonho de história de De Chirico. Por isso volto a "Nostalgia do Infinito" e a coloco ao lado de outro Malevich - uma pintura feita em algum momento durante os terríveis anos de coletivização forçada, por volta de 1930. Vejo essas duas pinturas como o modernismo encarando o mundo - obviamente, em ambos os casos, encarando-o de um modo profundamente estranho.

Qual, então, penso ser a questão do modernismo? Do que ele tratava? Sem dúvida, é fácil adivinhar meu ponto de partida. Tratava de vapor - tanto na pintura de Malevich quanto na de De Chirico um trem ainda corre pela paisagem. Tratava de mudança e poder e contingência, em outras palavras, mas também de controle, compressão e confinamento - uma regularidade absurda e opressiva paira sobre os brilhantes campos novos e os quadrados iluminados pelo sol com suas bandeiras eternamente tremulantes. O modernismo nos apresenta um mundo em vias de se tornar um reino de aparências - fragmentos, colchas de retalhos de cor, quadros oníricos feitos de fantasmas desconexos. Mas isso tudo ainda acontece no modernismo e ainda existe da forma como é descrito. As duas pinturas permanecem permeadas, parece-me, do esforço de dar uma resposta ao achatamento e à desrealização - da vontade de encaixar novamente os fragmentos em algum tipo de ordem. O modernismo está agoniado, mas sua agonia não pode ser separada de uma estranha leviandade ou extravagância. Prazer e horror estão juntos ali. Malevich pode estar desesperado ou eufórico. Pode estar escarnecendo da idéia do homem coletivo ou explicando-a, cheio de otimismo infantil. Provavelmente nunca conheceremos suas verdadeiras opiniões. Sua pintura sustenta ambas.

O modernismo certamente tratava do páthos do sonho e do desejo nas circunstâncias do séc. XX, mas, ainda aqui, os desejos eram incontroláveis, inerradicáveis. O homem probo não abriria mão do futuro. O infinito ainda existe no alto da torre. Mesmo em Picasso, o monstro que espia pela janela émeu monstro, meu fantasma, a figura de meu desejo inegociável. O monstro sou eu - o terrível sujeito desejoso e temeroso dentro de mim que escapa a qualquer forma de condicionamento, a toda a barragem de instruções sobre o que ele deve querer e quem deve ser. Esse é o utopismo vestigial de Picasso. Você acha que a modernidade é um reino de apetite e imediatismo! Vou mostrar o que é apetite! Vou mostrar o que é imediatismo! Como modernista, farei com que os sonhos da modernidade se realizem.

O modernismo fazia testes, como eu disse antes. Era um tipo de exílio interno, uma retirada para o território da forma; mas a forma era basicamente um teste de pureza, um ato de agressão, um abismo para o qual todos os "dados" confortáveis da cultura eram sugados e depois cuspidos.

*

Vamos supor que finalmente opomos o trabalho de Oursler ao quadro de Picasso (percebo que isto é injusto) e tentamos enfrentar diretamente a questão do modernismo e do pós-modernismo. Permitam-me repetir o que disse no início. Não conheço a arte do presente bem o bastante para poder apresentar questões a respeito com alguma autoridade; mas acho que conheço a arte da era anterior bem o suficiente para saber quais questões devem ser formuladas. Argumentei que o modernismo desejava compreender, e submeter a uma pressão real, a profunda estrutura de crenças de seu próprio momento histórico - aquilo que a modernidade acreditava ser líqüido e certo sobre si mesma, ou que desejava que fosse verdade. A pressão era formal. As crenças sobreviveriam ao teste dos meios ou se desintegrariam. Aparentemente, na maior parte, desintegraram-se. O modernismo foi a oposição oficial à modernidade. Era o pessimista do otimismo eterno da modernidade. Cultivava o extremismo - aparentemente como resposta ao pragmatismo e à tecnicalidade (que obviamente a maior parte dos modernistas também adorava) da vida moderna. A técnica do modernismo não pretendia resolver problemas. Ela os tornava piores.

A questão a se fazer à arte do presente, portanto, é o que essa arte aparentemente considera como as crenças que, na cultura de nosso próprio momento, parecem ser estruturais, parecem ser o núcleo de nossa atual ideologia; e como a arte pretende submeter essas crenças a teste. Falei de maneira algo geral sobre "crenças", mas obviamente para os artistas visuais o que importa são as crenças sobre visão e visualização, ou, antes, crenças que assumem a forma de imagens - de novos modos de visibilidade, ou sonhos de conhecimento que se arranjam numa forma especificamente visual. Todos sabemos que essas crenças são atualmente a linha de frente de um novo mito de modernização. Oursler é típico nesse contexto. Qualquer artista com inteligência perceberá que a vida de sonho que importa atualmente é a fomentada pela Grande Rede Mundial. Mas como a vida de sonho pode ser submetida a uma pressão real? Voltamos ao problema sugerido pela frase de Marx "ensinar as formas petrificadas a dançar cantando-lhes sua própria canção". O arremedo não basta. Tampouco uma bravata vinda de fora. É necessário o canto. Mas cantar implica acertar a nota, estar no tom correto. Não implica um conhecimento aproximado das crenças da era do digital a respeito de si mesma, mas uma intuição exata (do tipo tratado por Manet e De Chirico) sobre o ponto central da vida de sonho - a suposição primeira, a verdadeira estrutura da visualização de sonhos. É fácil falsificar a esquisitice da modernidade. A modernidade, como nos lembra Benjamin, desenvolveu-se desde o início em um espetáculo barato do estranho, do novo, do fantasmagórico. Mas a modernidade também sonha sinceramente. A arte que sobrevive é aquela que se apodera do processo primário, não o fluxo de imagens superficial.

Vejo dois sistemas de crença com os quais a arte de nosso tempo já pode estar se atracando. Um é simplesmente a imagem da "informação" e a idéia de que o mundo acaba de ser privado de sua materialidade espaçotemporal por um aparato de virtualização verdadeiramente global e totalizante. O mundo nas mãos dos manipuladores de símbolos, caso se queira dar uma interpretação pessimista; ou o mundo aberto à multidão digital, a grande comunidade global de híbridos e particulares, se você for capaz de participar da utopia proposta recentemente por Antonio Negri. Esse é o sistema de crenças número um. Pode-se perceber que é, entre outras coisas, uma crença sobre uma nova forma de conhecimento - um novo meio de materialização e desmaterialização do trabalho. E o centro do sistema de crenças é uma imagem do conhecimento visualizado, que ocorre no espaço do monitor e é alterado em sua própria estrutura pelo novo modo de localização e mobilização, o novo sistema de aparências. Somos levados assim diretamente à crença número dois. É simplesmente a convicção de que algum tipo de limiar está sendo atravessado, ou talvez já o tenha sido, de um mundo ultrapassado em que a Palavra era a estrutura definitiva do saber para outro, regido pela imagem ou por um escopo visual inconstante.

Esse é, obviamente, o sistema de crenças do qual os artistas visuais terão mais dificuldade em discordar ou se afastar. Assim como um lado de Manet apreciava a noção do capitalismo como o puro reino da aparência, os artistas visuais de hoje dificilmente conseguem evitar o fascínio da idéia de que o verbal terminou e o visual ficou em seu lugar. Mas assim como Manet, na prática, descobriu que o reino das aparências também era um reino de identidades, fixidez, obrigações e determinações, ouso prever que logo que o atual êxtase do virtual e do não-verbal seja submetido ao teste da forma, descobrirse-á que é deficiente. E então vou parar de fingir neutralidade e dizer por quê. Acabarei por oferecer aos artistas do presente um punhado de slogans antivisuais, antidigitais. Talvez se deva imaginá-los saindo em turbilhão da boca do fantasma no trabalho de Tony Oursler.

Nada poderia estar mais longe da verdade, diz o protagonista de "A Máquina-Influência", do que a idéia de que a era da Palavra terminou. Pelo contrário, as palavras ainda estão em toda parte. E a maquinaria da imagem que criamos e disseminamos é apenas um meio de renovar essas palavras como imagens - esse é o problema. O fantasma abomina os atuais meios de visualização na cultura não por um "logocentrismo" nostálgico, mas porque considera que nossos atuais modos de produção simbólica essencialmente inundam o mundo com verborragia - pois a mais simples das palavras (o mais banal e transparente dos motivos do conhecimento) recebe forma visual suficiente. Suficiente, quer dizer, para que os motivos atinjam o alvo, dêem o nome de seu produto, apertem o botão certo na paranóia. Tudo o que toca à verdadeira configuração da realização de imagens no mundo que nos rodeia trata desse fato. As noções do sistema a respeito de clareza de imagem, fluxo de imagem e densidade de imagem - são todas essencialmente moldadas sobre os movimentos paralelos (e desimpedidos) do logotipo, da pseudonarrativa comprimida do comercial de TV, do slogan do produto, da batida de som. As imagens ainda estão por toda parte contando histórias ou dando ordens. Páginas da web, outdoors e videogames são apenas visualizações - ampliações e acelerações - desse anterior e continuado mundo da frase berrada (ou sussurrada).

O fantasma segue tagarelando, percebo. Mas lembre-se de que ele sofre - o novo "Céu Gelado" o enlouqueceu. E ao menos em sua amargura ele aponta um complexo de problemas que, neste momento, nossa cultura deseja não reconhecer. Se, em outras palavras, é preciso haver uma arte visual da pósmodernidade, penso que ela começará com a ira do fantasma, com seu ceticismo. Terá de pôr à prova, como Manet e Picasso, os conceitos que de fato organizam - que produzem - nossas atuais ficções do agora. Outrora isso significava mobilidade, o livre jogo das aparências e o grande mito da individualidade. É hora desse imaginário ser submetido ao teste da forma.

Tradução de Julia Vidili

Revisão técnica de Sônia Salzstein

  • 1. ADORNO, Theodor W. Minima Moralia. São Paulo: Editora Ática, 1992, p. 209.
  • 2. MARX, Karl. A Contribution to the Critic of Hegel's Philosophy of Right. Introduction. In: Early Writings. Harmondsworth, Inglaterra: Penguin Books; Londres: New Left Review, 1975, p. 247. Tradução modificada.
  • 3. Cf. a discussão em BOIS, Yve-Alain. Matisse e Picasso. São Paulo: Melhoramentos, 2002.
  • *
    Este texto foi originalmente elaborado para uma palestra dada em novembro de 2000 no Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, como parte de uma série intitulada "Modernitats", e, em seguida, na Universidade New School em abril de 2001. O ensaio incorpora alguns elementos de meu artigo "Origins of the Present Crisis",
    New Left Review, 2, março-abril de 2000. Fiz apenas alterações mínimas para chegar a este formato de palestra em primeira pessoa e, em particular, decidi não reescrever minhas respostas à dança do fantasma de Oursler à luz dos recentes acontecimentos. [A presente versão de "Modernismo, Pós-modernismo e Vapor" é uma tradução do ensaio publicado na revista
    October. n. 100. Cambridge, Massachusetts, primavera de 2002, p. 154-174 (N. do R. T.).]
  • 1
    . ADORNO, Theodor W. Minima Moralia. São Paulo: Editora Ática, 1992, p. 209.
  • 2
    . MARX, Karl. A Contribution to the Critic of Hegel's Philosophy of Right. Introduction. In: Early Writings. Harmondsworth, Inglaterra: Penguin Books; Londres: New Left Review, 1975, p. 247. Tradução modificada.
  • 3
    . Cf. a discussão em BOIS, Yve-Alain. Matisse e Picasso. São Paulo: Melhoramentos, 2002.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      2006
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