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Lotes vagos: ação coletiva de ocupação urbana experimental

Lotes vagos: ação coletiva de ocupação urbana experimental

Louise Ganz

Arquiteta e artista visual, professora do Unileste-MG e formadora do grupo Ambulante junto com Breno Silva

Uma cidade onde os lotes que estão vagos possam ser usados temporariamente como espaço coletivo. É possível imaginar?

Há alguns anos fomos casualmente ao bairro Urucuia, que se situa nos limites da cidade de Belo Horizonte com uma área de proteção ambiental. Trata-se de um lo-teamento ocupado por pequenas casas de no máximo dois pavimentos, alguns conjuntos habitacionais e ainda vários lotes vagos. Em grande parte desses lotes estão plantados milho, mandioca, feijão, girassol, banana, laranja, gerando uma paisagem pontuada por elementos vegetais nutritivos. Os proprietários desses lotes plantam ou mesmo emprestam ou alugam o terreno para aqueles vizinhos que querem plantar hortas e jardins. As frutas e verduras são destinadas para a alimentação em casa e para distribuir entre amigos e vizinhos, criando, assim, uma rede de trocas, um sistema autônomo de gestão. O cotidiano das pessoas passou a ter como especificidade a expansão do espaço da casa para os lotes, que estão muito próximos, ampliando assim o espaço de vivência e convívio.

Mas a cidade está enquadrada dentro de padrões de desenho urbano que limitam e reforçam a separação entre o público e o privado. A expansão doméstica é uma espécie de invasão daquilo que é consagrado como inacessível. O início do traçado urbano constituído por lotes se deu no século XVIII, instaurando-se os loteamentos, que são parcelamentos da terra em pequenas áreas de terreno urbano ou rural, destinadas às construções ou às pequenas agriculturas, que se conectam através de áreas públicas e abertas. Desde então, a história das cidades comporta vários traçados distintos, porém todos eles têm em comum o fato de dividirem o território em áreas demarcadas para aquilo que será público e o que será privado. Por trás desse desenho da superfície da terra, que delimita e separa a propriedade privada do espaço público, revelam-se questões importantes para o entendimento das relações e lutas da humanidade, sobretudo a da posse de terras. Privatizar, cuja origem da palavra é privare, quer dizer roubar.

A propriedade privada da terra não existia no Brasil colonial. Foram diversos os sistemas adotados para concessão de terras à elite portuguesa, a fim de explorá-las. Com a abolição da escravatura no final do século XIX, aumentou enormemente o número de pessoas que não possuíam terras. A distribuição de terras e a formulação e implementação de políticas públicas de urbanização estiveram historicamente representando os interesses das elites. Há uma endêmica e sistêmica falta de acesso à terra pela população de baixa-renda no Brasil, como resultado da concentração de propriedade nas mãos de poucos, da especulação imobiliária por esse grupo privilegiado de proprietários e da falta das necessárias reformas agrária e urbana.

Já os espaços públicos oficiais são os parques, as praças e as ruas. Os parques são grandes áreas para o lazer, que na malha urbana conformam pontos isolados e distantes entre si e que fazem com que moradores de bairros diversos se desloquem para freqüentá-los nos finais de semana. As praças, de uso mais local, existem praticamente em todos os bairros, hoje quase sempre ilhadas pela circulação de veículos. As ruas, muito diversificadas em uma grande cidade, podem ser a própria extensão da casa, local para o lazer, o trabalho ou a domesticidade, mas também podem ser inóspitas, assépticas, apenas uma seqüência interminável de muros ou muralhas.

Porém, esses espaços públicos (parques, praças e ruas) constituintes de um desenho urbano não abarcam a complexidade de usos que se instalam não-oficialmente em uma cidade.

Assim, um espaço se faz público também por práticas informais, pela ocupação forçada, pela necessidade ou pela falta, em áreas não consideradas, muitas vezes, como espaços com fins públicos. Áreas residuais, por toda a cidade, são ocupadas e usadas das mais variadas maneiras, sejam estas ocupações legais ou ilegais. Esses espaços residuais surgem como sobra da implantação de uma infra-estrutura, sendo áreas utilizáveis embaixo de viadutos e passarelas, em margens de estradas, em beiras de canalizações, sob redes de alta-tensão, em morros, ou podem ser frestas urbanas - pequenos nichos entre edificações ou sob elas, trechos de muros -, ou ainda alguns equipamentos urbanos - postes, bancos, árvores - em que podem ser acoplados novos elementos de uso público. Nesses espaços instalam-se usos diversos como habitação, inserção de tendas e puxados com uso comercial, plantação de hortas ou jardins ornamentais, campos de futebol, muros com pinturas e publicidade, ponto de venda de serviços, constituindo espontaneamente um tipo de espacialidade para morar e trabalhar.

Portanto, mais do que entender as instâncias pública e privada em campos estanques, pensamos na mobilidade que há entre ambas. Muitos dos espaços de uso público oficial não nos permitem um uso cotidiano, uma expansão da democracia e uma autonomia para escolher o que fazer no local. Portanto, essa mobilidade se dá pelo modo como as pessoas usam, pelo tipo de espaço, pela capacidade de permanência, pelo burlar de certas determinações legais.

Ao pensar no campo da arte, desde meados do século XX grupos de artistas atuaram na interface entre espaço público e privado, repensando essas territorialidades, tanto urbanas quanto dos grandes espaços abertos naturais (Situacionistas, Fluxus, Land Art, TAZ, Paisagistas contemporâneos). Os Situacionistas caminhavam pela cidade e construíam mapas psicogeográficos a partir de certos procedimentos preestabelecidos e das percepções sensoriais dos espaços. O grupo Fluxus explorava as ruas, as esquinas para suas apresentações e eventos e os landartistas tanto manipulavam a paisagem materialmente, como tinham um envolvimento físico com a natureza, ou realizavam uma investigação do meio ambiente como ecossistema e realidade político-social. São muitas as investigações sobre a construção do território, tanto no campo das artes, quanto do paisagismo e urbanismo.

Assim, retomando aqui o passeio ao bairro Urucuia em Belo Horizonte, onde se encontram os diversos lotes plantados, propus um projeto - Lotes Vagos: Ação Coletiva de Ocupação Urbana Experimental - baseado nessa imagem das relações cotidianas de troca e de autonomia. A intenção do projeto é transformar lotes de propriedade privada em espaços públicos temporários, para uso coletivo, através de intervenções por toda a cidade, e propiciar a moradores de vários bairros o acesso a espaços próximos, onde possa ocorrer qualquer atividade não-oficial cuja visão não seja puramente de lucro e empresarial, cujo caráter vago e de indeterminação possa permanecer e cuja proximidade, devido à existência de lotes em qualquer bairro, mobilize as pessoas para o uso cotidiano desses espaços. As etapas do trabalho consistiram em: percorrer e mapear a cidade em busca de lotes; negociar o empréstimo dos lotes com seus respectivos proprietários, definindo tempo de uso e qual a atividade; implantação coletiva dos projetos em cada lote, buscando estabelecer relações com os lugares e com a população local.

Belo Horizonte, a cidade onde foi realizado inicialmente este projeto, possui atualmente 2.400.000 habitantes, 700.000 propriedades privadas, sendo que, destas, 10% (70.000) são lotes vagos. O lote padrão possui em torno de 360m2. Esses 10% de lotes vagos existentes são, em sua maioria, áreas verdes, redutos de topografias e vegetações originais. São também áreas com vestígios de edifícios demolidos, ou asfaltadas para uso como estacionamentos, quase sempre cercadas com muros ou edifícios. Possuem qualidades como sombreamento, vegetação, menos exposição aos ruídos de veículos, proximidade, acessibilidade e são infiltradas no tecido urbano.

Os lotes vegetais, se somados, podem formar um grande quantitativo de áreas de respiração, espaços abertos, livres e verdes, podendo se tornar jardins das mais variadas qualidades, ou simplesmente permanecerem como áreas cobertas por mato, onde se podem fazer pic-nics e almoços ou ler livros em uma esteira. Um jardim pode ser um espaço do prazer e do encontro - como foi o jardim de Epicuro, na Grécia antiga -, ou um lugar onde ocorrem microcadeias ecológicas através dos ciclos dos vegetais, das águas, dos ventos, do solo ou da fauna, onde também se revelam as noções de movimento e tempo. Pode ser uma acumulação de latas plantadas deixadas sobre uma laje de cobertura, ou uma movimentação de terra (escavações e acumulações), ou deslocamento de minerais e resíduos. Um jardim é um espaço para descanso, para olhar o céu, ou mesmo um espaço cercado, não-penetrável, onde um ciclo natural se desenvolve espontaneamente (como o trabalho de land art de Alan Sonfist, Time landscape, 1965-78, NY, e os jardins de movimento do paisagista francês Gilles Clément), ou um campo fechado para descontaminação do solo (Mel Chin, Revival field, 1990-93).

Portanto, os espaços públicos, determinados pela legislação de uso e ocupação do solo (20% de áreas abertas), não correspondem a todo o território urbano. O lote vago tem uma potência evocativa sobre a percepção da cidade contemporânea, pois expõe a ausência de uso, de atividade, e ao mesmo tempo o sentido de liberdade e de expectativa. Está ao lado das residências e locais de trabalho. Com o uso dos lotes vagos uma outra dinâmica se estabelece, outros comportamentos surgem e novos programas locais podem ser desenvolvidos. Podem ser transformados em espaços para o encontro, para a observação e experimentação da natureza na microescala urbana. Podem-se criar vacas leiteiras, estender roupas, colocar piscinas plásticas, realizar casamentos e festas, realizar jantares, podem ser salas de estar, local coletivo para assistir tv. Os jardins podem ser de hortaliças, de flores ou pequenos campos selvagens. Podem se constituir como espaços de trocas de produtos, lugares para descanso e leitura, para costuras, para observação dos astros, ou atividades como jogos, salão de cabeleireiros, pequenos concertos musicais.

Esses possíveis programas para lotes vagos distanciam-se da espetacularização, já que podem ser construídos pela própria população local, ser efêmeros e constituírem novas ecologias e sistemas. Acredito serem uma forma de resistência a uma sociedade do controle. Hoje muitos são os espaços do tipo shopping centers, disneylândias, resorts, totalmente vigiados, onde as funções e desejos são previamente definidos e controlados, cada vez mais apresentando um falso discurso neoliberal de sustentabilidade. Correspondem à privatização, elitização, propagação do medo e restrição dos modos coletivos de vida urbana. Assim, encontramo-nos hoje diante de uma reconfiguração dos sentidos de público e privado, e talvez essas denominações históricas não consigam abarcar as práticas urbanas contemporâneas. E mais além de ser só resistência, essa experimentação nos lotes vagos é propositiva, ou seja, de fato quer intervir e transformar a vida cotidiana das pessoas, e não apenas se apresentar como um manifesto de resistência.

Este projeto foi realizado em 2004/2005 em Belo Horizonte, com o apoio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais e patrocínio da USIMINAS. Em 2006 foi base para o documentário M2 - doctv3, dirigido por Louise Ganz e Ines Linke. Em 2007 foi apresentado no Holcim Forum for Sustainable Construction, em Xangai. Em 2008 foi realizado em Fortaleza, através do prêmio Conexão Artes Visuais/Funarte/MinC/Petrobras. Contamos sempre com a colaboração de diversos artistas, arquitetos e diversos grupos da população na execução dos projetos nos lotes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    2008
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