Construímos, mas esquecemos de edificar!
Marcos Martins
O ambiente construído, ao compor a paisagem da cidade, carrega consigo uma rede de significados que potencializa a inscrição do corpo no espaço público. Suas inserções se dão de forma simbólica através dos elementos que demarcam os espaços, transformando os lugares de passagem em lugares antropológicos1 1 AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. . Apresento aqui uma dessas experiências de 'habitar com o corpo' percebidas em minhas andanças com visadas que descrevem 'o espaço' pelos olhos do corpo - visadas que se fazem corpo através das formas construídas nas paisagens2 2 Enquanto a paisagem é composta pelas formas construídas ou naturais, o espaço agrega a esse conceito as suas dinâmicas e funções sociais. Vide SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Edusp, 2008, p. 104. .
Na Avenida Santos Dumont, cidade de Fortaleza3 3 Essa experiência foi vivenciada de 2002 a 2003. , uma imagem pontuou a paisagem externa que eu avistava da janela do ônibus - a presença de uma senhora que estava a habitar um dos abrigos de ônibus daquela movimentada avenida. A construção de sua espacialidade, no mobiliário, deu-se de forma lenta e processual, em três momentos: (1) pela demarcação do lugar com sua presença, (2) pelo comércio informal que ela exerceu logo após o processo de ocupação e (3) pelo jardim que ela edificou reciclando garrafas PET, latas e embalagens. Presenciei esses momentos com um olhar atento, de forma a enquadrar seu 'habitar com o corpo' como uma construção poética no espaço urbano.
Primeiramente ela inseriu sacolas sobre uma metade do banco de concreto do abrigo. Esses volumes continham suas roupas, apetrechos e objetos. Ficavam sobre o assento como uma forma de delimitação espacial, deixando a outra parte do banco para o uso dos transeuntes que por lá passavam. Em um segundo momento, com a colaboração dos moradores da região, ela passou a exercer o comércio informal de balas e doces no mobiliário. Por fim, num terceiro momento, ela construiu um jardim ao redor do mobiliário.
Ela criou, com sua ação e presença, uma corpografia4 4 A corpografia parte do pressuposto de que a experiência urbana fica inscrita no corpo de quem a experimenta, sendo a memória do corpo. Vide JACQUES, Paola Berenstein. Cenografias e corpografias urbanas: um diálogo sobre as relações entre corpo e cidade. Cadernos PPG-AU/FAUFBA, vol. 1, n. 1, Salvador, 2003, p. 79. de resistência à segregação imposta pelos desequilíbrios sociais, absorvendo com seu habitar uma memória urbana do contexto social da cidade e inscrevendo, no lugar de passagem do ponto de ônibus, a materialização gestual do seu desejo.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Mar 2011 -
Data do Fascículo
2008