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O Problema dos museus

Resumos

Neste texto, publicado pela primeira vez em 1931, o poeta e escritor Paul Valéry (1871-1945) deixa entrever seu sentimento ambíguo em face da modernidade, sentimento admiravelmente revelado no relato melancólico que faz de uma visita às galerias povoadas de "solidões céreas" do Museu do Louvre. Para Valéry, o museu é um reduto de "visões mortas", mas é, também, conforme observou Theodor Adorno a respeito do autor em seu ensaio "Museu Valéry-Proust", o lugar mais propício a uma percepção crítica da arte em "nossa realidade catastrófica". Tanto Proust como Valéry, afirma Adorno, pensam o museu como figura da morte (embora a partir de posições aparentemente antagônicas), somente a experiência funda dessa morte sendo capaz, para ambos, de abrir possibilidades para a arte no presente.

modernidade; arte moderna; museus; Paul Valéry; Theodor Adorno


The text from the poet and writer Paul Valéry (1871-1945) and originally published in 1931, brings to light his ambiguous feelings about modernity, feelings which are here remarkably revealed in the melancholic report he renders of a visit to the Louvre Museum, in which the poet confronts "waxen solitudes". The museum is, to Valéry, a dwelling for "dead visions", although being at the same time the most auspicious place, as noticed by Theodor Adorno in his essay "The Valéry-Proust Museum", for a critical perception of art in "our catastrophical reality". Both Valéry and Proust, Adorno argues, see the museum through the figure of death (in spite of their apparently antagonistic points of view), the deep experience of this death being, for them, the only way to unleash new possibilities to art in the present days.

modernity; modern art; museums; Paul Valéry; Theodor Adorno


O Problema dos museus

Paul Valéry

VALÉRY, Paul. Le problème des musées. In: HYTIER, Jean (Ed.). Paul Valéry - Oeuvres II. Paris: Éditions Gallimard, 1960, p. 1290-1293; o título "Le problème des musées" designa uma coletânea de ensaios de Valéry, Pièces sur l'Art, lançada em 1931, e também o tomo "H" da primeira edição de suas obras completas - Oeuvres -, publicada entre 1931 e 1938, o último volume delas tendo aparecido apenas no final da década de 1950.

Tradução de Sônia Salzstein.

Neste texto, publicado pela primeira vez em 1931, o poeta e escritor Paul Valéry (1871-1945) deixa entrever seu sentimento ambíguo em face da modernidade, sentimento admiravelmente revelado no relato melancólico que faz de uma visita às galerias povoadas de "solidões céreas" do Museu do Louvre. Para Valéry, o museu é um reduto de "visões mortas", mas é, também, conforme observou Theodor Adorno a respeito do autor em seu ensaio "Museu Valéry-Proust", o lugar mais propício a uma percepção crítica da arte em "nossa realidade catastrófica". Tanto Proust como Valéry, afirma Adorno, pensam o museu como figura da morte (embora a partir de posições aparentemente antagônicas), somente a experiência funda dessa morte sendo capaz, para ambos, de abrir possibilidades para a arte no presente.

palavras-chave: modernidade; arte moderna; museus; Paul Valéry; Theodor Adorno

The text from the poet and writer Paul Valéry (1871-1945) and originally published in 1931, brings to light his ambiguous feelings about modernity, feelings which are here remarkably revealed in the melancholic report he renders of a visit to the Louvre Museum, in which the poet confronts "waxen solitudes". The museum is, to Valéry, a dwelling for "dead visions", although being at the same time the most auspicious place, as noticed by Theodor Adorno in his essay "The Valéry-Proust Museum", for a critical perception of art in "our catastrophical reality". Both Valéry and Proust, Adorno argues, see the museum through the figure of death (in spite of their apparently antagonistic points of view), the deep experience of this death being, for them, the only way to unleash new possibilities to art in the present days.

keywords: modernity; modern art; museums; Paul Valéry; Theodor Adorno

Não gosto tanto dos museus. Muitos são admiráveis, nenhum é delicioso. As idéias de classificação, conservação e utilidade pública, que são justas e claras, guardam pouca relação com as delícias.

Ao primeiro passo que dou na direção das belas coisas, retiram-me a bengala, um aviso me proíbe de fumar.

Já enregelado pelo gesto autoritário e a sensação de constrangimento, penetro em alguma sala de escultura na qual reina uma fria confusão. Um busto ofuscante aparece entre as pernas de um atleta de bronze. A calma e as violências, as futilidades, os sorrisos, as contraturas, os equilíbrios mais críticos carreiam uma impressão insuportável. Estou em meio a um tumulto de criaturas congeladas, cada uma exigindo, sem obtê-lo, a inexistência de todas as outras. E não me refiro ao caos de todas essas grandezas sem medida comum, à mistura inexplicável de anões e gigantes, nem mesmo a esse breviário da evolução que nos oferece tal ajuntamento de seres perfeitos e inacabados, mutilados e restaurados, monstros e dignitários...

Retrato de Paul Valéry. Na última página, detalhe da obra "Etant donnés", de Valéry 31 Marchel Duchamp, 1946-66.

Com a alma preparada para todas as penas, avanço em direção à pintura. Diante de mim se desenvolve, no silêncio, uma estranha desordem organizada. Sou tomado de um horror sagrado. Meu passo torna-se piedoso. Minha voz muda e se faz um pouco mais alta que na Igreja, mas soa um pouco menos forte que na vida comum. Não tarda para que eu não saiba mais o que vim fazer nessas solidões céreas, que se assemelham à do templo e do salão, do cemitério e da escola... Vim instruir-me ou buscar encantamento, ou, de outro modo, cumprir um dever e satisfazer convenções? Ou, ainda, não seria este um exercício de tipo particular, passeio bizarramente travado por belezas e desviado a cada instante por tais obras primas à direita e à esquerda, em meio às quais é preciso conduzir-se como um bêbado entre balcões?

A tristeza, o enfado, a admiração, o tempo agradável que fazia lá fora, as objeções de minha consciência, a terrível sensação da grande quantidade de grandes artistas caminham comigo.

Sinto que me torno detestavelmente sincero. Que fadiga, digo a mim mesmo, que barbárie! Tudo isso é desumano. Tudo isso não é, de modo algum, puro. É um paradoxo dessa aproximação de maravilhas independentes mas adversas, e mesmo as mais inimigas uma das outras, que se assemelhem ao máximo. Civilização alguma, voluptuosa ou razoável, poderia sozinha ter edificado essa casa da incoerência. Algo de insensato resulta dessa vizinhança de visões mortas. Elas se enciúmam umas das outras e disputam entre si o olhar que lhes aporta a existência. Elas solicitam de toda parte a minha indivisível atenção; elas enlouquecem o ponto vivo que arrebata toda a máquina do corpo na direção daquilo que o atrai...

O ouvido não suportaria dez orquestras ao mesmo tempo. O espírito não pode nem acompanhar nem conduzir várias operações distintas, e não há raciocínios simultâneos. Mas o olho, na abertura de seu ângulo móvel e no instante da percepção está obrigado a admitir um retrato e uma marinha, uma cozinha e um triunfo, personagens em estados e dimensões os mais diversos; e mais, deve acolher no mesmo olhar harmonias e maneiras de pintar incomparáveis entre si.

Do mesmo modo que o sentido da visão encontra-se violentado por esse abuso de espaço que constitui uma coleção, a inteligência não é menos ofendida por uma cerrada reunião de obras importantes. Quanto mais belas, mais elas são os efeitos excepcionais da ambição humana, mais devem poder se distinguir umas das outras. São objetos raros cujos autores teriam por certo desejado que fossem únicos. "Este quadro", às vezes se diz, "mata todos os outros ao seu redor"...

De fato, creio que nem o Egito, nem a China, nem a Grécia, que foram sábios e refinados, conheceram tal sistema de justapor produções que se devoram umas às outras. Nenhum deles dispunha unidades de prazer incompatíveis sob números de registro e segundo princípios abstratos.

Mas nossa herança é esmagadora. O homem moderno, extenuado pela enormidade de seus meios técnicos, se empobrece pelo excesso mesmo de suas riquezas. O mecanismo das doações e dos espólios - a continuidade da produção e das aquisições - e essa outra causa do crescimento que resulta das variações da moda e do gosto, com seus retornos a obras que se haviam antes desdenhado, concorrem sem trégua para a acumulação de um capital excessivo e portanto inutilizável.

O museu exerce uma atração constante sobre tudo o que os homens fazem. O homem que cria, o homem que morre alimentam-no. Tudo acaba na parede ou dentro da vitrina... Sonho irresistivelmente com a banca de jogos que ganha todas as apostas.

Mas o poder de se servir desses recursos cada vez mais abundantes está longe de crescer com eles. Nossos tesouros nos oprimem e aturdem. A necessidade de concentrá-los em uma morada exagera-lhes o efeito triste e estupefaciente. Não importa o quão vasto, equipado e bem ordenado seja o palácio - nos encontramos sempre um pouco perdidos nessas galerias, sozinhos contra tanta arte. A produção desse milhar de horas que tantos mestres consumiram a desenhar e pintar age em certos momentos sobre nossos sentidos e espírito, e essas horas foram, elas mesmas, profundamente carregadas de anos de pesquisas, de experiência, de atenção, de gênio!...

Devemos fatalmente sucumbir. O que fazer? Tornamo-nos superficiais.

Ou antes, fazemo-nos eruditos. Em matéria de arte, a erudição é um tipo de derrota: ela esclarece aquilo que não é, absolutamente, sutil, aprofunda o que não é, de modo algum, essencial. Substitui por hipóteses a sensação, e a presença da maravilha por sua memória prodigiosa; anexa ao imenso museu uma biblioteca ilimitada. Vênus transformada em documento.

Deixo esse templo das mais nobres volúpias com a cabeça transtornada, as pernas cambaleantes. Às vezes, a fadiga extrema se faz acompanhar de uma atividade quase dolorosa do espírito. O magnífico caos do museu me segue e se combina com o movimento da rua fervilhante. Meu mal-estar busca sua causa. Ele observa ou inventa - não conheço a relação entre essa confusão que o obseda e o estado atormentado das artes de nosso tempo.

Estamos e nos movemos na mesma vertigem de uma barafunda, a partir da qual infligimos suplícios à arte do passado.

Percebo, repentinamente, uma vaga claridade. Uma resposta se esboça em mim, desprende-se pouco a pouco de minhas impressões e pede para se pronunciar. A Pintura e a Escultura, me diz o demônio da Explicação, são filhos abandonados. A mãe deles está morta, a mãe Arquitetura. Enquanto ela era viva, garantia-lhes um lugar, um uso, suas obrigações. A liberdade de errar lhes era recusada. Eles tinham seu espaço, sua luz bem definida, seus temas, suas alianças... Enquanto ela vivia, eles sabiam o que queriam...

- Adeus, me diz esse pensamento; não irei mais longe.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 2008
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