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A bill of wron

Resumos

O autor discute procedimentos de acumulação e seriação na obra de Jac Leirner, focalizando trabalhos da segunda metade dos anos 1980, como "Os cem" (1985-7), "Pulmão" (1987) e "Primeiros erros".

arte contemporânea brasileira; anos 1980; Jac Leirner


The author discusses the procedures of accumulation and serialization on the production of Brazilian artist Jac Leirner, focusing works from the late nineteen eighties, such as "Os cem" The hundreds (1985-7), "Pulmão" Lung (1987) and "Primeiros erros" First errors.

Brazilian contemporary art; the nineteen eighties; Jac Leirner


A bill of wrongs

Guy Brett, escritor e curador inglês, é autor, entre outros, de Kinetic art (Londres: Sterling, 1968), Through our own eyes: popular art and modern history (Filadélfia: Library Company of Philadelphia, 1986), Exploding galaxies: the art of David Medalla (Londres: Art Books International, 1995), Carnival of perception (Londres: INIVA, 2004) e Brasil experimental - arte/vida: proposições e paradoxos (Rio de Janeiro: Contra Capa, 2005).

Tradução de Nelson Ascher. Revisão técnica de Suzana Bentim.

O autor discute procedimentos de acumulação e seriação na obra de Jac Leirner, focalizando trabalhos da segunda metade dos anos 1980, como "Os cem" (1985-7), "Pulmão" (1987) e "Primeiros erros".

palavras-chave: arte contemporânea brasileira; anos 1980; Jac Leirner

The author discusses the procedures of accumulation and serialization on the production of Brazilian artist Jac Leirner, focusing works from the late nineteen eighties, such as "Os cem" The hundreds (1985-7), "Pulmão" Lung (1987) and "Primeiros erros" First errors.

keywords: Brazilian contemporary art; the nineteen eighties; Jac Leirner

Por sugestão do autor, o título, que é um jogo de palavras com a expressão 'Bill of Rights' - Declaração de Direitos - e que, mudando rights por wrongs, remete ao trabalho da artista com seus "Erros", foi deixado no original em inglês N.T..

Eu primeiro achei que o trabalho de Jac Leirner fosse escultura. Ergui uma de suas tiras do chão. A forma, a ocupação no espaço, a plasticidade. Mas não: aquilo era feito de cédulas de papel-moeda, milhares, talvez dezenas de milhares, enfileiradas numa cadeia. Sua cor indescritível, seu jeito manuseado, sua imundície. O objeto tornou-se imensamente pesado, sem vida, uma parábola da inércia. (O imediatamente óbvio para qualquer brasileiro, mas para mim só depois, era que se tratava de notas de 100 cruzeiros à beira da extinção e de perderem todo o valor devido à hiperinflação). Subitamente me apercebi de que estava posto numa fronteira fascinante e provocativa do pensamento e do questionamento. Era de fato um objeto estranho. Por que viera a existir? Qual era seu verdadeiro lugar?

Aquilo ridicularizava o formalismo escultural e, no entanto, sua força como signo, como revelação de uma realidade social e humana, era inseparável de sua massa escultural. O choque iluminador era conseguido não pela referência, pela descrição, por falar sobre, mas pelo simples acúmulo, amontoamento, num único lugar, de coisas normal-mente dispersas no tempo e no espaço. O objeto feito tira parecia encarnar uma compreensão, uma ação que combina material e pensamento, de um tipo que apenas o artista plástico pode realizar.

Os trabalhos de parede pertencentes à mesma obra - "Os cem", 1985-7 - acrescentavam outra dimensão: a descoberta, por parte da artista, enquanto juntava as cédulas, dos graffiti do povo, desenhos e desfigurações nas mesmas. O material passava imediatamente de seu nível e de sua circulação oficiais, enquanto abstração de relações sociais, para sua circulação não oficial, como portador de desejos, frustrações e sonhos populares. A artista começou a classificar o material e construiu cada peça como um tipo genérico: um trabalho referia-se ao amor, outro ao sexo, um terceiro à religião, um quarto à política, um quinto inteiramente composto de assinaturas, um sexto desenhado por crianças, um sétimo de sinais indecifráveis. As mensagens também foram transcritas e estampadas sob a forma de um pôster singular, coberto, de alto a baixo, de matéria impressa e sem começo nem fim. Da 'cultura do silêncio', um fluxo de enunciado interminável.

No seu trabalho seguinte, Jac Leirner aplicou de algum modo os mesmos métodos extraídos de sua própria vida, ou melhor, sua vida tornou-se o ponto de entrada em sistemas mais amplos, relações difíceis de compreender. "Pulmão" (1987) foi feito na época em que ela parou de fumar. 1.200 maços de Marlboro (três anos de tabagismo) foram desmembrados nas suas partes constitutivas; cada parte, integrada, tornou-se uma entidade escultural distinta e uma metáfora para o pulmão. Todas juntas formavam o conjunto da exposição. Uma era feita com as fitas de celofane que se arrancam primeiro, outra com os papéis laminados do envoltório interno, outra com os selos e assim por diante. Somente os cigarros não estavam lá: tinham 'virado fumaça'.

Da poesia, economia e enigma da ação, as ideias começam a jorrar. Leirner fez o "Pulmão" (que sempre carregamos dentro de nós) da embalagem efêmera que jogamos fora. As unidades da produção industrial em massa - como os minutos do tempo que passa, da vida que se esvai ("Medi minha vida com maços de cigarro", Leirner poderia ter dito, ecoando o Prufrock do Eliot) - transformaram-se nas células do órgão do corpo, a massa intrincada de nossas vísceras à qual falta qualquer linearidade. Desse modo, o tempo, a ascensão/queda do corpo individual - o tempo de cada um -, é disposto através do tempo impessoal do compacto sistema social numa metáfora espantosa onde a matéria física é de certo modo intercambiada poeticamente entre esses dois mundos, pertencendo a ambos e a nenhum.

1.200 maços de cigarro foram usados no "Pulmão", cerca de 70.000 cédulas em "Os cem". O trabalho repetitivo, consumidor de tempo investido em ajuntar, arranjar e armar tais materiais, não é do tipo normalmente associado com a inspiração e a expressão artísticas. É paradoxal a estratégia de Jac Leirner para chegar mais perto da realidade. Ela implica certa espécie de intervenção num processo que é forte e difícil de compreender, que elude o consumidor individual assim como elude o artista-artífice individual. Esta deve ser a razão por que, quando encarregada com outros artistas de planejar uma página para o Jornal da Tarde, ela passou por cima (como Celso Fonseca sensivelmente apontou) dos recursos gráficos disponíveis nos departamentos editorial e de arte e foi ao cerne da máquina. Ela adaptou as rotativas da impressora, que imprimem 45.000 jornais por hora, a produzirem uma página perfeitamente em branco perfurada com dúzias de furos minúsculos.

Sua página torna a própria presença sensível por meio de uma ausência. Será essa tática puramente estética ou puramente abstrata? Falando do Brasil atual, Leirner disse recentemente: "Aparentemente trata-se de um país de ficção. Seus valores não são reais. A moralidade está ausente, invertida. É por isso que desejo tanto o real". A incerteza entre o real e a ficção como a experiência básica da população de um país como o Brasil, condensando o valor ficcional da realidade última - dinheiro -, foi captada claramente por vários artistas. Leirner tinha a sensação, ao produzir "Os cem", de que "a nota de dinheiro é quase uma ausência" ('cem', em português, tem o mesmo som que 'sem': o 'sem', os 'sem', 'os que não têm'). Ela trabalha atualmente numa segunda versão, fantasma, da peça. "Zero cruzeiro' (anos 1970) de Cildo Meireles e "Dinheiro para treinamento" (1977) de Waltercio Caldas - obras baseadas também, de outras maneiras, no dinheiro - expressaram a mesma 'vacuidade da ausência'. Creio que esse movimento, essa compreensão particular da noção da vacuidade (que tem uma história significativa na formação das linguagens da arte moderna desde, digamos, Malevitch) tem sido um recurso filosófico poderoso para uma série de artistas no Brasil. Entre outras coisas, torna-se um meio de se aproximar da realidade através de uma aparente inversão de valores: aproximar-se da verdade por meio da mentira, do certo por meio do errado, do engano, do desvario, do erro. Talvez seja a tática através da qual a artista tenta simultaneamente chegar mais perto da experiência da massa das pessoas e mais longe das normas da cultura acadêmica e oficial.

Depois de "Pulmão", Jac Leirner partiu para "Erro". Alguns se valiam de uma estratégia escultural. "Erro na paisagem" (1988) é feito de cordão de poliuretano, sem cor nem forma:

Eu repeti minha atitude de quando fazia "Os cem", picotando furo após furo, horas e horas e meses de trabalho mecânico... Eu que-ria uma ação que provocasse um branco em minha memória, um conjunto fora de tempo e lugar, nó sobre nó sobre nó (quase ad infinitum), para depois colocá-los onde não deveriam estar: debaixo de uma mesa, sobre uma árvore, um corpo estranho fora de lugar no familiar e no normal.

"Primeiros erros" é feito de texto verbal: transcrição, seleção e rearranjo de horas de jargão publicitário da TV e das revistas brasileiras. Talvez se trate de um texto mais estritamente escultural que literário. Enquanto "Os cem" partia da descontinuidade mesma do anônimo graffiti popular, dando-lhe visibilidade e continuidade, "Primeiros erros" rompe a continuidade da propaganda enquanto preserva seu fluxo ininterrupto. O contraste entre os dois discursos é surpreendente e ambos, como toda a obra de Jac Leirner, levantam questões tão somente ao estabelecê-las. Comparado a "Os cem", "Primeiros erros" é um discurso oficial. Astutamente, com motivação, anúncios de publicidade oferecem um tipo de desejo sem dor para os sonhos humanos. Desarticulando-os, Jac Leirner acentua o tom sedutor pelo qual estamos todos envolvidos hoje em dia. Ela monta de fato algumas tensões fascinantes entre universalidade e diferença, uma vez que um leitor estrangeiro, como eu mesmo, vê certas inflexões e nuances - ênfase no corpo e no prazer sensual, o impulso de implantar valores consumistas de classe média qualquer que seja o nível econômico - que sugerem uma variante brasileira de um processo universal. No entanto, a obra não é simplisticamente condenatória: algo de mágico é feito por ela a partir do kitsch, algo que, por sua vez, desilude o que é conscientemente literário e acadêmico.

Recentemente Jac Leirner vem juntando, para um trabalho que não vi ainda, sacos plásticos. Outra ubiquidade da vida planetária cotidiana, habitualmente atomizada como pequenas embalagens no tempo e no espaço, outro murmúrio ideológico. Os sacos vão se transformar num ambiente que envolverá o espectador, como uma célula acolchoada. Eu descrevi Jac Leirner como quem emprega uma 'estratégia escultural', no sentido de trabalhar com as propriedades físicas das coisas. Mas é na palavra estratégia que está a diferença importante. Ela não está juntando coisas para chegar a uma imagem finita e preexistente, ou a uma sensação estética abstrata. Seu trabalho faz tais formalismos parecerem desnecessariamente limitados e estreitos, como antigos protocolos e etiquetas. Junto com uma série de outros artistas hoje, Jac Leirner propõe uma nova definição da poética, um tipo de intervenção que modifica os padrões de espaço e tempo em que nós, e os objetos, nos movemos. Uma nova maneira pela qual a vida pode vitalizar a arte ou a arte revelar a vida.

  • * Texto originalmente publicado no catálogo Jac Leirner. São Paulo: Galeria Millan, 1989.
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    Guy Brett
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2009
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