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De volta ao mundo da arte: releitura das Caixas Brillo de Warhol à luz de uma história da gravura

Back to the artwold: a fresh reading of Warhol's Brillo Boxes in the light of a history of engraving

Resumos

A História da Arte tradicional muitas vezes passa ao largo do papel fundamental da gravura na divulgação e distribuição de obras de arte, graças a suas possibilidades quase infinitas de reprodução. Por causa disso, corre-se o risco de perder de vista determinados sentidos que podem ser encontrados em obras contemporâneas. Tratamos aqui das Caixas Brillo de Andy Warhol (1964), consideradas desde sua primeira exposição um prenúncio do "anything goes" (Arthur Danto) e uma crítica à sociedade de consumo, mas que verossimilmente representam um eco da antiga tradição de reprodução de imagens para a divulgação do conhecimento.

gravura; Andy Warhol; Arthur Danto; Caixas Brillo


Traditional Art History often overlooks the crucial role of printmaking in the dissemination and distribution of works of art thanks to printmaking's enormous ease of reproduction. For that reason we risk losing sight of certain meanings that can be found in contemporary works of art. Andy Warhol's Brillo Boxes (1964) were considered since their first appearance as a herald of the "anything goes" (Arthur Danto) and a criticism of consumer society, but the work very likely represents an echo of the ancient tradition of image reproduction for knowledge promotion.

printmaking; Andy Warhol; Arthur Danto; Brillo Boxes


De volta ao mundo da arte – releitura das Caixas Brillo de Warhol à luz de uma história da gravura

Back to the artwold: a fresh reading of Warhol's Brillo Boxes in the light of a history of engraving

Julia Vidile

RESUMO

A História da Arte tradicional muitas vezes passa ao largo do papel fundamental da gravura na divulgação e distribuição de obras de arte, graças a suas possibilidades quase infinitas de reprodução. Por causa disso, corre-se o risco de perder de vista determinados sentidos que podem ser encontrados em obras contemporâneas. Tratamos aqui das Caixas Brillo de Andy Warhol (1964), consideradas desde sua primeira exposição um prenúncio do "anything goes" (Arthur Danto) e uma crítica à sociedade de consumo, mas que verossimilmente representam um eco da antiga tradição de reprodução de imagens para a divulgação do conhecimento.

palavras-chave: gravura; Andy Warhol; Arthur Danto; Caixas Brillo.

ABSTRACT

Traditional Art History often overlooks the crucial role of printmaking in the dissemination and distribution of works of art thanks to printmaking's enormous ease of reproduction. For that reason we risk losing sight of certain meanings that can be found in contemporary works of art. Andy Warhol's Brillo Boxes (1964) were considered since their first appearance as a herald of the "anything goes" (Arthur Danto) and a criticism of consumer society, but the work very likely represents an echo of the ancient tradition of image reproduction for knowledge promotion.

Keywords: printmaking; Andy Warhol; Arthur Danto; Brillo Boxes.

I

Dedicaram-se à gravura em cobre muitos outros, os quais, mesmo sem ter o mesmo nível de perfeição, ainda assim com seus labores legaram ao mundo e trouxeram à luz muita história e obra de mestres excelentes, e propiciaram a comodidade de ver as diversas invenções e maneiras dos pintores àqueles que não podem ir até onde estão as obras principais, e fizeram conhecer aos ultramontanos muita coisa que eles não sabiam (...)1 1 . VASARI, Giorgio. Le vite de' più eccellenti pittori, scultori, e architettori [1550]. Florença: Giunti, 1568. No original:" Si sono adoperati intorno agl'intagli di rame molti altri, i quali, se bene non hanno avuto tanta perfezzione, hanno nondimeno con le loro fatiche giovato al mondo, e mandato in luce molte storie et opere di maestri eccellenti, e dato commodità di vedere le diverse invenzioni e maniere de' pittori a coloro che non possono andare in que' luoghi dove sono l'opere principali, e fatto avere cognizione agl'oltramontani di molte cose che non sapevano (...)". As traduções são nossas. .

Emprestamos essas palavras às Vidas de Giorgio Vasari para esclarecer o papel primeiro da gravura ao longo de toda a sua história, ao menos até o advento da fotografia e de outros meios mais baratos e rápidos de reprodução e divulgação da imagem. Com efeito, embora a tendência da História da Arte de maneira geral seja a de considerar os artistas, grosso modo, como seres inspirados que criam sempre "obras-primas" (preferimos usar o termo entre aspas, pois ele é enganoso), seria necessário também levar em conta o papel primordial da rede de gravadores e impressores existente no Ocidente desde a invenção dessa técnica, por volta do séc. XV.

Além de suas funções de ilustração de livros e panfletos e distribuição de imagens populares, era muito comum a gravura de divulgação de obras de arte. Os gravadores especializados, com ou sem a permissão do artista, faziam cópias dos quadros célebres de seu tempo, e as versões impressas desses quadros eram levadas a toda parte por vendedores ambulantes2 2 . Não devemos nos deixar enganar pela pequena quantidade de indícios históricos dessa circulação de gravuras volantes nos primórdios da imprensa – seu suporte, o papel, não era exatamente apropriado a uma longa conservação sem a proteção da encadernação de um livro. Lembremos, por exemplo, dos peregrinos, que costuravam gravuras com a representação de seu santo de devoção em suas vestes para levá-las consigo. . Vasari, no capítulo das Vidas que trata da estampa e, principalmente, de Marcantonio Raimondi, "o copista de Rafael", conta como se dava esse processo e a maneira como os artistas encomendavam a versão gravada de suas obras para a distribuição.

Ora, não devemos pensar que os artistas eram imunes a essa circulação de imagens; muitos deles foram influenciados pelos artigos que chegavam dos outros cantos da Europa. O próprio Vasari afirmava essa influência, já no séc. XVI: "e porém o fez com tais considerações e sfumati tão delicados, que com tintas não se poderia fazer de outra maneira: esses cuidados abriram os olhos de muitos pintores"3 3 . VASARI, Giorgio. Op. cit. No original: " e però le fece con queste considerazioni e sfumate e tanto dolci, che col colore non si farebbe altrimenti: le quali avertenze hanno aperto gl'occhi a molti pittori". .

O renome dos quadros célebres (dos quais muitos continuam a sê-lo ainda em nossos dias) era assim construído e confirmado pelo maior ou menor sucesso das cópias, "inspirações" ou gravuras piratea das que circulavam em toda parte. Quanto mais célebre o artista, mais disputadas seriam as gravuras que reproduziam suas obras e mais essas gravuras seriam produzidas e distribuídas; e quanto mais fossem distribuídas, mais célebre a obra se tornaria... O processo era cíclico.

Por que então a gravura é considerada, ainda atualmente, uma "arte menor"? Esse estatuto não lhe foi atribuído por causa de uma "má qualidade" das imagens gravadas (o que aliás estava longe de ser regra, haja vista as obras de Raimondi, Dürer e tantos outros), mas principalmente devido a suas possibilidades de reprodução quase ilimitada. Não há exclusividade possível, a menos que se destrua a matriz após a primeira tiragem – e ainda assim restariam as provas de estado!

Além disso, embora muitas estampas fossem produzidas com os mesmos temas "nobres" da pintura – por exemplo, os ciclos da Paixão de Cristo ou da Vida da Virgem de Dürer, ou certas imagens de Rembrandt – a maior parte da produção destinava-se à cópia de quadros ou a finalidades bem mais vulgares: ilustração de romances, imagens científicas destinadas aos pesquisadores (como as célebres anatomias de Vesalius), imagens de santos populares para a devoção pessoal, cartas de baralho, imagens pornográficas, ex-votos... Não exatamente os temas preferidos dos pintores.

Finalmente, a gravura é impermanente, no sentido de que o material sobre o qual é impressa – o papel – é bem mais frágil que a tela ou a madeira. Essas características contradizem, bem claramente, o ideal romântico da "obra única", da "obra-prima imortal" produzida por um artista inspirado pelas Musas4 4 . Aliás, foi por essa razão que Vasari hesitou em falar a respeito em suas Vidas, tendo-o feito apenas na segunda edição (1568). .

A imagem gravada é, portanto, um objeto não-culto em oposição ao objeto-culto da pintura original, que ostenta um "grande tema" (história, religião, mitologia, alegoria) e é produzida em exemplar único, com materiais nobres (madeira, tela, pigmentos, vernizes), em grande formato. Não importa quantas cópias fossem feitas dessas obras (ainda hoje podemos ver várias dessas cópias de obras célebres, ou ainda quadros criados 'à maneira de', em diversos museus europeus): elas continuam únicas e sua destruição é definitiva e irrecuperável.

II

Essas explicações não devem ser perdidas de vista quando analisamos uma obra de arte, mesmo que se trate de uma obra do séc. XX. Se a volumosa presença da gravura nos ateliês de artistas e meios cultos passou mais ou menos ao largo da História oficial da arte, ela não deixa de ser um legado cultural cujos ecos ainda podem ser sentidos. Não nos referimos, ou ao menos não apenas, às reproduções fotográficas de obras de arte encontradas nos livros e revistas de história e crítica, mas sobretudo à influência do próprio processo da gravura e da reprodução na criação de uma obra de arte original.

Pensamos aqui, especificamente, em determinados trabalhos de Andy Warhol, cujas experiências com a reprodutibilidade e a repetição foram por muito tempo discutidas como sendo questionamentos sobre a sociedade de consumo, a cultura pop e o capitalismo de maneira geral. Mas será que não seria mais exato considerá-las como um diálogo com essa tradição de reprodução para divulgação do conhecimento, ou simplesmente divulgação de imagens?

Antes do advento da arte conceitual, que permite criar um retrato simplesmente afirmando que ele foi criado, para ser artista (ou artífice, como preferia Vasari) – gravador ou não – era absolutamente necessário conhecer as técnicas de sua arte: não apenas a maneira de representar as peles e tecidos, como também a de moer e misturar os pigmentos, escolher a madeira a gravar, afiar os instrumentos e assim por diante5 5 . Claro, os grandes artistas tinham ateliês cheios de aprendizes que tratavam disso. Mas quase sempre eles mesmos haviam sido aprendizes de outros artistas no início da carreira. . O artista-copista devia possuir um domínio ainda mais amplo da técnica, pois tinha de representar da forma mas exata possível (segundo os conceitos de exatidão de sua época, obviamente) os traços e gradações da obra reproduzida, mesmo que sobre outra mídia. Acreditamos que ninguém acusaria Warhol de não ser um artista. Ele possuía, mais do que um grande conhecimento teórico e histórico, o domínio das técnicas disponíveis em seu tempo (além de técnicos a seu serviço que as conheciam ainda melhor), e soube utilizá-las a seu favor.

Ora, o que eram as Caixas Brillo de Warhol? Cubos de madeira pintados com técnicas de serigrafia, fazendo deles imitações bastante exatas das verdadeiras caixas de esponjas de aço Brillo, comuns nas prateleiras dos supermercados americanos nos anos 1960. É de conhecimento geral que mesmo o crítico-filósofo Arthur Danto, em seu primeiro contato com essas peças, tomou-as por verdadeiras caixas de palha de aço. Uma vez que seu ensaio "The Artworld" (1964)6 6 . DANTO, Arthur C. The Artworld. Journal of philosophy, Nova Iorque, n. 61, p. 571-584, out. 1964. é o mais célebre a esse respeito e, por assim dizer, definiu os caminhos da crítica artística contemporânea a partir de sua publicação, pedimos a permissão de analisar aqui alguns trechos.

O artigo de Danto, que tem cerca de quinze páginas, consiste em quatro partes que dialogam entre si, embora apresentem diferentes ideias. A primeira parte trata da mudança de status da arte (da simples mimese à criação de uma realidade em si, ou Imitation Theory versus Reality Theory); a segunda, do é da identificação artística (the is of artistic identification), a identificação de um objeto ou elemento como sendo ele próprio em uma obra de arte; a terceira (de apenas duas páginas) fala da exposição das caixas Brillo de Warhol; e a parte final encerra o texto com uma reflexão sobre o enriquecimento retroativo do mundo da arte, "que torna possível discutir Rafael e De Kooning juntos". Enxergamos nesse ensaio certas ideias quase contraditórias que, acreditamos, poderiam ser resolvidas se levássemos em conta essa História "marginal" da arte representada pela gravura.

Ao falar do é da identificação artística, Danto afirma:

Confundir uma obra de arte com um objeto real não é uma grande façanha quando a obra de arte é o objeto real com o qual ela é confundida. O problema é como evitar esses erros, ou removê-los uma vez que são cometidos. A obra de arte [aqui, a cama de Rauschenberg] é uma cama, não uma ilusão de cama; por isso, não ocorre nada semelhante ao dramático choque contra uma superfície plana que fez com que os pássaros de Zêuxis percebessem que haviam sido enganados7 7 . Idem, ibidem. No original: " To mistake an artwork for a real object is no great feat when an artwork is the real object one mistakes it for. The problem is how to avoid such errors, or to remove them once they are made. The artwork [le lit de Rauschenberg] is a bed, and not a bed -illusion; so there is nothing like the traumatic encounter against a flat surface that brought it home to the birds of Zeuxis that they had been duped". As traduções são nossas. .

Mas ao tratar especificamente das caixas Brillo, ele se pergun ta: "Mas a questão é: o que as torna arte? E por que, aliás, Warhol precisa fabricar essas coisas? Por que não simplesmente rabiscar sua assinatura em cima de uma?"8 8 . Idem, ibidem. No original: " (...) but the question is, What makes it art? And why need Warhol make these things anyway? Why not just scrawl his signature across one?" .

Podemos ver, no contraste entre essas duas citações retiradas de um mesmo artigo, diversos pontos a discutir.

A respeito do questionamento sobre o trabalho de Warhol (por que aquilo é arte?), a mesma questão poderia se apresentar com referência, por exemplo, a Raimondi: por que ele seria um artista, uma vez que aquilo que produz não é "original", mas simplesmente uma representação, uma "imitação" do trabalho de Rafael – este, sim, o verdadeiro artista? Em suma, por que imitar uma coisa que já existe? Ora, essa "finalidade" é, em nossa opinião, a grande questão por trás dessa obra do artista americano.

Será que, por serem objetos tridimensionais, as caixas de Warhol são as verdadeiras caixas Brillo com as quais são confundidas, o que justificaria que Warhol pudesse se contentar em simplesmente assinar uma delas? A resposta é simples: não, porque não há esponjas dentro delas... Se Danto tentasse abri-las, chocaria o nariz contra uma irrealidade, como os pássaros de Zêuxis que ele próprio citara. A cama de Rauschenberg é, por outro lado, uma cama de verdade, na qual nosso pássaro alegórico poderia muito bem deitar-se. Mas foi o questionamento seguinte que atraiu nossa atenção por sua assertividade:

Não importa que a caixa Brillo possa não ser boa arte, muito menos grande arte. O mais impressionante é que ela seja mesmo arte. Mas se ela o é, por que também não o são as indistinguíveis caixas Brillo no estoque de um supermercado? Ou será que toda a distinção entre a arte e a realidade de fato foi rompida?9 9 . Idem, ibidem. No original: " Never mind that the Brillo box may not be good, much less great art. The impressive thing is that it is art at all. But if it is, why are not the indiscernible Brillo boxes that are in the stockroom? Or has the whole distinction between art and reality broken down?". .

Essa última frase talvez pudesse ser considerada válida se o trabalho consistisse em um ready-made, o que não era o caso (Danto sabia disso, pois afirma bem no início: 'Acontece que elas são de madeira, pintadas para parecer de papelão')10 10 . Idem, ibidem. No original: " They happen to be of wood, painted to look like cardboard". . Ao menos no que toca às caixas Brillo de Warhol, a arte continuava a ser separada da realidade, assim como a mimese de um cacho de uvas continuava a ser distinta dos verdadeiros frutos que um pássaro poderia bicar. Desse gênero de questionamento ao Anything goes há apenas um passo. Ele prossegue:

Mas o estoque de um supermercado não é uma galeria de arte, e não poderíamos separar de imediato as caixas Brillo da galeria em que estão expostas, assim como não podemos separar a cama de Rauschenberg da tinta que a recobre. Fora da galeria, são caixas de papelão11 11 . Idem, ibidem. No original: " But then a stockroom is not an art gallery, and we cannot readily separate the Brillo cartons from the gallery they are in, any more than we can separate the Rauschenberg bed from the paint upon it. Outside the gallery, they are pasteboard cartons". .

Embora Warhol não tenha usado as verdadeiras caixas Brillo de papelão, poderíamos dizer que uma caixa de Warhol é – o é da identificação artística – uma caixa Brillo, tanto quanto uma gravura de reprodução é a obra que ela representa, seja dentro ou fora da instituição artística (museu ou galeria). A diferença aqui é principalmente histórica, já que as caixas de Warhol nasceram em um contexto em que já existia um mercado da arte organizado que contava com galerias e outros espaços dedicados para apresentar esse tipo de trabalho. Mas neste caso específico, não é de maneira alguma o contexto que faz com que essas caixas se tornem obras de arte. Elas o são em si mesmas, pois não são nada mais que isso. Da mesma maneira, o tipo de apresentação ('em pilhas altas e organizadas, como no estoque de um supermercado')12 12 . Idem, ibidem. No original: " Piled high, in neat stacks, as in the stockroom of the supermarket". não pode ser considerado parte integrante e inseparável da obra Caixas Brillo, uma vez que elas foram vendidas por unidade e apresentadas em outras ocasiões com diferentes configurações.

Parece-nos errôneo considerar essa obra de Warhol como uma prefiguração da arte conceitual. Podemos encontrar conceitos nela, se quisermos, e transformá-la em uma discussão sobre a massificação cultural ou a produção industrial desumana em série; nada disso afetará a qualidade puramente visual do trabalho de Warhol, que pode ser comparado, por sua meticulosa atenção aos detalhes do objeto copiado, ao dos gravadores mais bem cotados do tempo de Vasari. Da mesma maneira, a gravura lança mão de meios puramente visuais (o traço, o ponto, a hachura) para imitar uma realidade diferente de sua própria (quer se trate de uma paisagem existente ou de uma paisagem pintada, não importa). Warhol fez o mesmo, com a diferença de que sua imitação é tridimensional – o que não faz com que esta deixe de ser uma obra visual. Gostaríamos de insistir nesse ponto: não devemos nos deixar enganar pela escolha do tema de Warhol (um produto inteiramente vulgar encontrado nas prateleiras de todos os supermercados); ao nos convencermos de que todo o trabalho ('o conceito') consiste nisso, nos arriscamos a perder de vista muitos sentidos.

III

Como vimos, os pontos que aproximam o trabalho de Warhol do estatuto histórico da estampa são numerosos, e não acreditamos que sejam frágeis a ponto de podermos deixar de lado esse tipo de análise.

Percebemos nesse trabalho o mesmo processo quase cíclico das gravuras de reprodução de obras de arte de que tratamos anteriormente. Não é difícil visualizar esse processo, pois ele permanece intocado (não se deve acreditar que as multidões que acorrem ao Louvre para ver a Mona Lisa estão lá por causa das qualidades estéticas do sfumato de Da Vinci...). Warhol optou por reproduzir uma embalagem que já era popular; ao fazê-lo, ela se tornou ainda mais famosa; o aumento de popularidade desse produto fazia com que sua obra ficasse cada vez mais reconhecível e reconhecida por um público cada vez maior... Não parece óbvio que se trata do mesmo ciclo?

Da escolha de um tema não-nobre à distribuição das caixas no mercado artístico, poderíamos retomar ponto a ponto as características históricas inerentes à gravura citadas no início deste artigo. Mas o que nos chama principalmente a atenção é essa retomada aparentemente intencional, da parte de Warhol, de um esquema de "linha de produção" em série para a criação de uma grande tiragem de cópias exatas de uma imagem qualquer, como já o haviam feito, nos séculos que os precederam, os ateliês de gravura de que nos fala Vasari.

De fato, o que faz Warhol ao reproduzir à exaustão, em uma outra mídia, uma imagem já popular, é retomar segundo as mesmas prerrogativas tudo o que fizera a gravura até o surgimento das técnicas fotográficas de reprodução. Sua intenção não é somente imitar da melhor maneira possível, com a técnica de que dispõe, a imagem que tem diante de seus olhos, mas também mostrar com muita clareza a possibilidade e a realidade mais que palpáveis dessa reprodução visual – e sobretudo que essas qualidades, ou características, não invalidam o status de "arte" de sua obra.

IV

Segundo Platão, o artista é um mentiroso, pois tenta imitar uma realidade que é, ela mesma, imperfeita; por muito tempo a Teoria da Imitação (a IT muito bem explicada por Danto nesse mesmo artigo 'The Artworld') predominou no mundo artístico, sendo a fábula das uvas de Zêuxis seu símbolo maior. Ora, será que não poderíamos considerar a empreitada de Warhol como uma retomada dessa teoria socrática/platônica, elevando-a quase ao paroxismo? Suas caixas Brillo são com efeito imitações tão perfeitas do verdadeiro objeto a que se referem que Danto – como Sócrates a respeito do espelho a que faz alusão no início de "The Artworld" – se questiona sobre a utilidade cognitiva de sua existência. Mesmo assim, as caixas se sustentam enquanto obras de arte porque são satisfatórias nessa função mimética – tendo inclusive sido confundidas com um ready-made pelo crítico. Ao contrário de Danto, tendemos a acreditar que as caixas Brillo servem antes para reafirmar o papel visual da manifestação artística, a partir do momento em que dialogam com essa tradição de reprodução e distribuição do saber artístico/científico.

Claro, estamos de acordo com o crítico americano quando ele diz, na última parte de seu artigo, que "quanto mais alguém conhece sobre toda a população do mundo da arte, mais rica é sua experiência com um de seus membros"13 13 . Idem, ibidem. No original: " The more one knows of the entire population of the artworld, the richer one's experience with any of its members". . É certo que sem um estudo bastante avançado daquilo que herdamos de nosso passado é quase impossível interpretar adequadamente uma obra de qualquer época, que dirá formar nosso gosto. Isso vale ainda mais para a arte contemporânea, que não segue o mesmo caminho "linear" da arte do passado. Para guiar essas interpretações existem teorias e teóricos, bem como historiadores e críticos, que vêm reforçar com seus conhecimentos as noções do público para completar assim a educação do olhar deste último. Nada disso se afasta das conclu sões de Danto sobre a exposição de Warhol e o mundo da arte em geral.

Entretanto, não acreditamos que as modernas teorias da arte de que fala esse crítico ('O que no final faz a diferença entre uma caixa Brillo e uma obra de arte que consiste em uma caixa Brillo é uma certa teoria da arte') sejam exatamente as que podem servir para a identificação de um trabalho como as caixas de Warhol enquanto obra de arte, o que é comprovado pela dificuldade do próprio Danto em aceitá-las como tal; essas teorias só são necessárias, no contexto da arte contemporânea, porque a ideia de arte, em nossos dias, afastou-se inteiramente do conceito socrático segundo o qual a arte deve imitar a realidade. É a perda dessa categoria primitiva que nos leva à perplexidade diante de uma exposição como a de Warhol.

Artigo recebido em 18 de agosto de 2011 e aprovado em 26 de abril de 2012

Julia Vidile é bacharel em Artes Plásticas com Habilitação em Gravura pela Universidade de São Paulo e Mestre em Teoria da Arte pela Université de Pau et des Pays de l'Adour (França). Atualmente reside em Paris e trabalha como tradutora.

  • 1. VASARI, Giorgio. Le vite de' più eccellenti pittori, scultori, e architettori [1550]. Florença: Giunti, 1568.
  • 6. DANTO, Arthur C. The Artworld. Journal of philosophy, Nova Iorque, n. 61, p. 571-584, out. 1964.
  • 1
    . VASARI, Giorgio.
    Le vite de' più eccellenti pittori, scultori, e architettori [1550]. Florença: Giunti, 1568. No original:"
    Si sono adoperati intorno agl'intagli di rame molti altri, i quali, se bene non hanno avuto tanta perfezzione, hanno nondimeno con le loro fatiche giovato al mondo, e mandato in luce molte storie et opere di maestri eccellenti, e dato commodità di vedere le diverse invenzioni e maniere de' pittori a coloro che non possono andare in que' luoghi dove sono l'opere principali, e fatto avere cognizione agl'oltramontani di molte cose che non sapevano (...)". As traduções são nossas.
  • 2
    . Não devemos nos deixar enganar pela pequena quantidade de indícios históricos dessa circulação de gravuras volantes nos primórdios da imprensa – seu suporte, o papel, não era exatamente apropriado a uma longa conservação sem a proteção da encadernação de um livro. Lembremos, por exemplo, dos peregrinos, que costuravam gravuras com a representação de seu santo de devoção em suas vestes para levá-las consigo.
  • 3
    . VASARI, Giorgio. Op. cit. No original: "
    e però le fece con queste considerazioni e sfumate e tanto dolci, che col colore non si farebbe altrimenti: le quali avertenze hanno aperto gl'occhi a molti pittori".
  • 4
    . Aliás, foi por essa razão que Vasari hesitou em falar a respeito em suas
    Vidas, tendo-o feito apenas na segunda edição (1568).
  • 5
    . Claro, os grandes artistas tinham ateliês cheios de aprendizes que tratavam disso. Mas quase sempre eles mesmos haviam sido aprendizes de outros artistas no início da carreira.
  • 6
    . DANTO, Arthur C. The Artworld.
    Journal of philosophy, Nova Iorque, n. 61, p. 571-584, out. 1964.
  • 7
    . Idem, ibidem. No original: "
    To mistake an artwork for a real object is no great feat when an artwork is the real object one mistakes it for. The problem is how to avoid such errors, or to remove them once they are made. The artwork [le lit de Rauschenberg] is a bed, and not a bed -illusion; so there is nothing like the traumatic encounter against a flat surface that brought it home to the birds of Zeuxis that they had been duped". As traduções são nossas.
  • 8
    . Idem, ibidem. No original: "
    (...) but the question is, What makes it art? And why need Warhol make these things anyway? Why not just scrawl his signature across one?"
  • 9
    . Idem, ibidem. No original: "
    Never mind that the Brillo box may not be good, much less great art. The impressive thing is that it is art at all. But if it is, why are not the indiscernible Brillo boxes that are in the stockroom? Or has the whole distinction between art and reality broken down?".
  • 10
    . Idem, ibidem. No original: "
    They happen to be of wood, painted to look like cardboard".
  • 11
    . Idem, ibidem. No original: "
    But then a stockroom is not an art gallery, and we cannot readily separate the Brillo cartons from the gallery they are in, any more than we can separate the Rauschenberg bed from the paint upon it. Outside the gallery, they are pasteboard cartons".
  • 12
    . Idem, ibidem. No original: "
    Piled high, in neat stacks, as in the stockroom of the supermarket".
  • 13
    . Idem, ibidem. No original: "
    The more one knows of the entire population of the artworld, the richer one's experience with any of its members".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      2012

    Histórico

    • Recebido
      18 Ago 2011
    • Aceito
      26 Abr 2012
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