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Mafai e Scipione: a Scuola Romana di Pittura no MAC-USP

Mafai and Scipione: the Roman School of Painting at Contemporary Art Museum of the University of São Paulo

Resumos

Estudo crítico sobre obras de dois pintores italianos, Mario Mafai e Gino Bonichi (dito Scipione), pertencentes à Scuola Romana di Pittura, presentes no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP): Rapaz e Natureza-morta (Mafai) e Oceano Indiano (Scipione) integram o primeiro acervo do atual museu, e são advindas da antiga coleção do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), formada por Ciccillo Matarazzo. Além de estudo iconográfico das obras em si, vem adjunto um estudo sobre sua relação com os acervos de arte moderna paulistanos, em formação em meados do século XX, de forte relação com a arte moderna italiana e os projetos político-culturais de ítalo-descendentes presentes em São Paulo, traço marcante do cenário cultural da cidade.

Mario Mafai; Scipione; Scuola Romana di Pittura; Novecento Italiano; Ciccillo Matarazzo; MAC-USP; MAM-SP; ritorno al mestiere; Giulio Carlo Argan


Critical study about two italian painters, Mario Mafai and Gino Bonichi (named "Scipione"), from the Scuola Romana di Pittura, and their works at the University of Sao Paulo's Museum of Contemporary Art (MAC-USP): Rapaz and Natura Morta (Mafai) and Oceano Indiano (Scipione) belong to the first collection of this museum, that comes from the ancient Modern Art Museum of São Paulo (MAM-SP), started by Ciccillo Matarazzo. Beyond the iconography study, there is a study about the role of these works and their school with the main collections of modern art at São Paulo, started by important Italian families at the city, at the middle of 20th Century.

Mario Mafai; Scipione; Scuola Romana di Pittura; Novecento Italiano; Ciccillo Matarazzo; MAC-USP; MAM-SP; ritorno al mestiere; Giulio Carlo Argan


Mafai e Scipione: a Scuola Romana di Pittura no MAC-USP

Mafai and Scipione: the Roman School of Painting at Contemporary Art Museum of the University of São Paulo

Benjamim Saviani; Luciano Migliaccio

RESUMO

Estudo crítico sobre obras de dois pintores italianos, Mario Mafai e Gino Bonichi (dito Scipione), pertencentes à Scuola Romana di Pittura, presentes no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP): Rapaz e Natureza-morta (Mafai) e Oceano Indiano (Scipione) integram o primeiro acervo do atual museu, e são advindas da antiga coleção do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), formada por Ciccillo Matarazzo. Além de estudo iconográfico das obras em si, vem adjunto um estudo sobre sua relação com os acervos de arte moderna paulistanos, em formação em meados do século XX, de forte relação com a arte moderna italiana e os projetos político-culturais de ítalo-descendentes presentes em São Paulo, traço marcante do cenário cultural da cidade.

Palavras-chave: Mario Mafai; Scipione; Scuola Romana di Pittura; Novecento Italiano; Ciccillo Matarazzo; MAC-USP;MAM-SP; ritorno al mestiere; Giulio Carlo Argan.

ABSTRACT

Critical study about two italian painters, Mario Mafai and Gino Bonichi (named "Scipione"), from the Scuola Romana di Pittura, and their works at the University of Sao Paulo's Museum of Contemporary Art (MAC-USP): Rapaz and Natura Morta (Mafai) and Oceano Indiano (Scipione) belong to the first collection of this museum, that comes from the ancient Modern Art Museum of São Paulo (MAM-SP), started by Ciccillo Matarazzo. Beyond the iconography study, there is a study about the role of these works and their school with the main collections of modern art at São Paulo, started by important Italian families at the city, at the middle of 20th Century.

Keywords: Mario Mafai; Scipione; Scuola Romana di Pittura; Novecento Italiano; Ciccillo Matarazzo; MAC-USP; MAM-SP; ritorno al mestiere; Giulio Carlo Argan.

Mario Maffai e Scipione

Rapaz, Natureza-morta e Oceano Indiano

Apresentação

Esta pesquisa tem como foco um movimento artístico ainda pouco estudado no Brasil, mas de grande importância para o cenário das artes europeias pós-Primeira Guerra e pós-Vanguardas.

A Scuola Romana di Pittura, atuante no cenário italiano, despertou atenção em importantes eventos contemporâneos na Europa como a Bienal de Veneza ou a Quadrienal de Roma, entre outros, bem como o olhar agudo de críticos como Guiseppe Apella, Maurizio Fagiolo dell'Arco, Cesare Brandi e Giulio Carlo Argan.

Suas ideias, sua plástica e concepção formal foram bastante disseminadas, entrando em conflito com as políticas fascistas vigentes no entre-Guerras, através de várias frentes – pintura, escultura, literatura – de refinada e acurada execução; suas obras perpassaram continentes, atraindo a atenção de famosos colecionadores, como por exemplo a do mecenas ítalo-brasileiro Ciccillo Matarazzo. Devido a isso, obras dos artistas dessa escola apareceram nas Bienais de São Paulo, sendo adquiridas para o acervo do antigo MAM-SP, encontrando-se hoje no MAC-USP. Entre elas, há os quadros de Mario Mafai e Gino Bonichi, dito Scipione, que formam objeto deste estudo.

Mas, para entendê-las e contextualizá-las em um cenário conciso, é preciso voltar-se à Scuola Romana, seus autores, e à cena artística italiana – e também brasileira – da primeira metade do século XX. Esse movimento, apesar da importância adquirida na Europa e no Brasil, ainda é pouco estudado em nossas terras, havendo pouca bibliografia disponível em bibliotecas, ou monografias e trabalhos de pesquisa, especialmente em língua portuguesa.

Entendamos, pois, o que foi a Scuola Romana, Mafai e Scipione, e sua relação com o Brasil (especialmente com os ensejos de comemoração do Quarto Centenário Paulistano e as Bienais de Arte Moderna de São Paulo).

A Scuola Romana, o pós-Primeira Guerra e a reação às vanguardas

Com a relativa baixa moral italiana advinda do desfecho da Primeira Guerra, o cenário artístico daquele país passa por um processo de revisão conceitual que conterá refluxos dos movimentos vanguardistas de então, especialmente o Futurismo. Não mais a futurista modernidade motorizada, que tripudia a História e a Memória, estava em vigência, sendo então apregoado o finis avanguardiæ, com questionamentos sobre o papel do Neoclassicismo em arte1 1 . RIVOSECCHI, Valerio. Realismo Magico. In: DELL'ARCO, M. Fagiolo (org.). Scuola Romana, pittura e scultura a Roma dal 1919 al 1943. Roma: De Luca Editore, 1986, p. 3. e a observância do fazer artístico e suas técnicas, do aspecto até "artesanal" do labor artístico, pregado pelo ritorno al mestiere de De Chirico2 2 . Idem, ibidem. ou a sua passione per il primitivo3 3 . Idem, ibidem. .

A Scuola Romana di Pittura pode ser chamada de um desdobramento ou consequência daquilo que vinha pregando Giorgio De Chirico desde a década de 1910, quando começa a opor-se aos ensejos da novitas futurista, em prol de uma arte metafísica. Esta seria baseada, àquela altura, em uma arte não transformadora da sociedade, proveniente de uma visão pura, não historicizada e não academicista da arte clássica. A essa aura que revigora o olhar moderno sobre o Classicismo, e o tenta reabilitar, Argan chamará de classicidade absoluta4 4 . ARGAN, Giulio Carlo.A situação italiana: metafísica, novecento, antinovecento. In: Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, p. 372. que, junto com a própria figura de De Chirico, influenciaram fortemente a Scuola Romana.

Trata-se de um recuo da tabula rasa imposta pela "modernidade feroz" do Manifesto Futurista, encontrando apoio em publicações periódicas (como o da revista Valori Plastici, por exemplo) e monografias promovidas especialmente por Roberto Longhi sobre artistas do humanismo italiano – Piero della Francesca (1927) e Caravaggio (1943, 1952) que, entre outros, foram revisitados; aliás, foi Longhi que, debruçado também sobre a arte italiana do século XX, cunhou as expressões Scuola di Via Cavour e Scuola Romana, identificando esse grupo de pintores em suas distintas fases.

Esse recuo da estética futurista encontra respaldo em importantes personalidades da arte italiana, alguns agora convertidos do futurismo à arte metafísica de De Chirico:

A palavra de ordem – finis avanguardiæ – é encontrada na boca de De Chirico e Savinio, Soffici e Carrà, Casella em música e Bontempelli em literatura. Faz nascer grupos e revistas como Valori Plastici e La Ronda, em anos de teoria e também de experimentação apaixonada. É Massimo Bontempelli que escreve o que os artistas pintam: fala de "maior peso e solidez", de "estupor", de "atmosfera em tensão", fala da aura que circunda as coisas("qualquer outra coisa em torno e acima delas")5 5 . RIVOSECCHI, Valerio. Op. cit., p. 3, tradução nossa. .

A esse contexto se soma a discussão sobre o que vem a representar "Neoclassicismo" e "Classicismo" em arte, advindo estes da proposta de um "retorno à ordem", inicialmente em oposição ao Expressionismo, Realismo Mágico alemão (e, posteriormente, italiano) e da Neue Sachlichkeit (Nova Objetividade alemã) na República de Weimar, por exemplo. Não obstante, o desenvolvimento dessa estética na Itália se deu também conjuntamente com as influências dos Expressionismos alemão e francês, influenciando Mafai e Scipione, como veremos adiante.

Outro aspecto importante, especialmente para Mafai, é a pesquisa tonal, tão marcante nos anos 20 da pintura romana, difundida ainda por Longhi e De Chirico. Tão importante quanto a figuração nessa escola, o são a luminosidade, as diferentes texturas "representadas" ou sugeridas nas telas, a coloração característica do período, que evoca a cálida temperatura da região do Lazio, muito semelhante às próprias temperaturas representadas no Quattrocento italiano, ou também a tensão do chiaroscuro caravaggiano, outra fonte na qual pintores como Scipione, especialmente, vieram a beber.

Os artistas, especialmente Scipione e Mafai, vieram a se congregar em espaços como o Atelier del Nudo, formando mais tarde a assim chamada, Scuola di Via Cavour, uma espécie de "embrião" das ideias que viriam a se consolidar na Scuola Romana. Não era, no entanto, um espaço destinado à disseminação de doutrinas e credos estéticos, imposto por "líderes" de algum movimento. Conquanto seja identificada como "escola" de pintura, a Scuola Romana e suas incursões embrionárias, como a curta Scuola di Via Cavour, eram espaços de informalidade e livre circulação de ideias e desenvolvimento de pesquisas em figuração e tonalismo. Na verdade, um mero ponto de encontro de artistas amigos. Seus protagonistas mais proeminentes – Mafai e Scipione –, colocavam-se mais na posição de "investigadores" de alguma linguagem do que de disseminadores de uma "escola" ou doutrina já constituída, coisa que nunca o foram especialmente àquelas alturas.

A Scuola di Via Cavour, teve curta duração, mas atuou como importante núcleo e embrião para a disseminação da pesquisa e linguagem que se desenvolveria como Scuola Romana, sendo ponto de partida para a revista Valori Plastici (1918-1922), editada por Mario Broglio, entre outras empreitadas. Lá congregaram-se, além de Scipione e Mafai, outros artistas e literatos, como a escultora e futura esposa de Mafai, Antonietta Raphaël, além de nomes como Enrico Falqui, Giuseppe Ungaretti, Libero de Libero, Leonardo Sinisgalli, Arnaldo Beccaria, Antonino Santangelo e Renato Marino Mazzacurati.

É também importante mencionar a existência do movimento artístico chamado Novecento Italiano, também advindo de um ensejo de questionar o modernismo não historicista e desejoso de exaltar valores e períodos artísticos que considerava "áureos" na história da arte italiana, em especial os grandes ciclos toscanos do Quatrocentos (daí vem o nome de "Novecento", que aludia, por sua vez, ao "Quattrocento" italiano).

Foi, no entanto, apadrinhado pelo fascismo e tomando vieses de produção artística de intuito quase totalmente político que o Novecento leva suas propostas iniciais ao ponto da deturpação. Para se ter uma ideia, uma de suas incentivadoras e fundadoras iniciais, Margherita Sarfatti (que foi amante de Mussolini por algum tempo e também colaborou com a Scuola Romana), passou a ser perseguida pelo regime fascista mais tarde, devido a suas origens judaicas, afastando-se do Novecento e exilando-se no Uruguai.

Esse apadrinhamento terminou por ocasionar uma arte por vezes taxada de "vazia", pois assumia a função de "porta-voz" artístico das doutrinas nacionalistas do regime fascista, mais compromissada em determinar e exaltar o que considerava o "grande período" da arte italiana do que com a produção e investigação artística em si e por si. Este aspecto foi um grande ponto de divergência entre Novecento Italiano e Scuola Romana, tornando o Novecento um grande alvo de crítica desta última, sobretudo na obra e pensamento de Mario Mafai.

Apresentação dos autores

Dois serão, portanto, os autores estudados neste trabalho, integrantes da coleção de obras italianas do MAC-USP, e membros importantes do movimento conhecido como Scuola Romana di Pittura. Transcrevemos aqui breves biografias e os percursos artísticos de ambos, com base no catálogo bilíngue Arte in Italia: da Valori Plastici a Corrente.

Mario Mafai (1902-1965)

Inscreve-se em 1922 na Scuola Libera di Nudo e torna-se amigo de Scipione, Mazzacurati e Antonietta Raphaël, sua futura esposa. Com esse grupo de amigos, unidos por ideais estéticos comuns, dará vida à chamada Scuola di Via Cavour, primeiro núcleo da Scuola Romana, assim chamada por Longhi por causa da rua onde Mario e Antonietta tinham uma casa-ateliê e que havia se tornado ponto de encontro para a atividade artística. Pinta naturezas-mortas, vistas romanas, retratos. Estuda as obras de Tiziano, de El Greco e sente-se, ao mesmo tempo, atraído pela pintura de Rousseau e Derain. Expõe pela primeira vez em 1925, na III Bienal Romana, onde é notado por C. E. Oppo; depois, em 1928, na exposição "Amanti e Cultori"; em 1929, em uma mostra de jovens artistas no Palazzo Doria, em uma coletiva organizada por Bragaglia, e na "Sindacale del Lazio", ocasião em que Longhi falará sobre "expressionismo" com relação à pintura de Mafai. Entre 1930 e 1933, passa uma longa temporada em Paris com Antonietta, interrompida salutarmente por regressos a Roma para participar de mostras, entre as quais destacam-se a I Quadrienal de Roma (1931) e a Bienal de Veneza (1932). Nos anos 1930 realiza suas obras mais importantes – Mulheres que se estendem ao sol (Donne che si stendono al sole), Nu em repouso (Nudo in riposo), Aula de piano (Lezione di piano) e, particularmente, a série das Flores (Fiori). Demolições dos Burgos (Demolizioni dei Borghi) faz parte de um ciclo de pinturas realizadas em grande parte entre 1935 e 1939; a ocasião é determinada pela devastação urbanística empreendida pelo regime fascista no centro histórico de Roma, particularmente na zona dos Burgos, no Pantheon e nos Fóruns. A vista esquelética do edifício devastado, a posição geométrica das cores por contraste não têm uma intenção cronística ou celebrativa, mas de dramática denúncia. Em Autorretrato (Autoritratto), de 1942, a densidade da matéria, a tenebrosa gama de cores são próprias da linguagem expressionista da maturidade do artista. Expõe 29 pinturas na Quadrienal de 1935, que marcam seu sucesso de público e de crítica. Em 1937, apresenta na Galleria La Cometa a série das Demolições. Em 1939, transfere-se para Gênova, tentando salvaguardar a família das leis antirraciais. Lá encontra Manzù, Guttuso, Birolli, Sbarbaro, os colecionadores A. Della Ragione e E. Jesi. Em 1939, participa da segunda "Mostra do Corrente", em Milão; em 1949, vence o prêmio Bergamo com Modelos no ateliê (Modelli nello studio) e volta novamente a Roma. Em 1944, participa com Fantasia da mostra "Arte contro la barbarie", promovida pelo jornal L'Unità na Galleria di Roma. No pós-guerra participa constantemente das mais importantes mostras nacionais e internacionais. Adere, em 1948, ao Fronte Nuovo delle Arti, contra todo formalismo em arte. Ao final dos anos 1950, experimenta por breve tempo o abstracionismo. Teve sua última mostra individual na Galleria L'Attico de Roma, em 19646 6 . MARGOZZI, Mariastella. Arte in Italia: da Valori Plastici a Corrente. Opera dalla Galleria Nazionale d'Arte Moderna di Roma. Città di Castello: Delta Grafica, 1999, p. 207. .

Scipione – Gino Bonichi (1904-1933)

Transfere-se em 1909 com sua família para Roma, onde contrai uma pleurite que logo se transforma em tuberculose. Aos vinte anos, inscreve-se com seu amigo Mario Mafai na Scuola Libera di Nudo. Em 1926 escolhe o pseudônimo de Scipione, nome evocativo de sua inspiração "romana" e barroquizante. À sua amizade com Mafai, soma-se logo a de Antonietta Raphaël, dando vida àquela que Roberto Longhi chamará La Scuola di Via Cavour, por causa do ateliê-ponto de encontro, mas que significava também um ideal artístico comum. Estreita amizade com poetas e literatos como Ungaretti, Mazzacurati, De Libero, Sinisgalli, Falqui e outros. Nos intervalos entre uma internação no sanatório e outra, trabalha intensamente: expõe na Casa d'Arte Bragaglia (em 1927 e depois em 1929); no Circolo Artistico em Palazzo Doria, na "I Sindacale" fascista e na "III Mostra d'Arte Marinara" (1929). No mesmo ano, é obrigado a uma estadia terapêutica em Collepardo (Frosinone), durante a qual desenha bastante, colaborando também como ilustrador na "Fiera Letteraria". Em 1930, a visão direta das obras de Goya, El Greco e Velásquez em uma mostra organizada em Roma por Longhi, determina um amadurecimento do estilo de Scipione em direção a um expressionismo inflamado e a um desfazimento da forma. Está datado de 1930 o Retrato de Ungaretti (Ritratto di Ungaretti), sobre o qual há inúmeros estudos. Entre os muitos amigos poetas e literatos, Scipione sentiu em Ungaretti uma espécie de afinidade espiritual na consciência crítica e rebelde. O retrato é caracterizado por uma pincelada rápida que define as linhas do perfil duro e do olhar agudo do poeta. Ao contrário, o coevo Retrato da mãe (Ritratto della madre) é caracterizado por um traço pacato e contemplativo, bastante singular na produção de Scipione, e verificável não só no tratamento do tema, mas sobretudo nas tênues passagens de tom e na pincelada fluida e vibrante. No decorrer dos anos de 1930 e 1931, continua a participar das mostras (Bienal de Veneza, I Quadrienal de Roma, Baltimore, Paris); são ainda os anos de suas obras mais importantes e significativas, como Homens que se viram (Uomini che si voltano, Roma Galleria Nazionale d'Arte Moderna), Praça Navona (Piazza Navona, Roma, Galleria d'Arte Moderna). Na primavera de 1931, o avanço da tuberculose obriga-o a interromper o trabalho e a internar-se no sanatório de San Pancrazio em Arco, no Trentino, onde morre em 1933. A Quadrienal de Roma de 1935 dedica-lhe uma retrospectiva7 7 . Idem, p. 217. .

A Scuola Romana no MAC-USP

É através de Francisco Matarazzo Sobrinho, o Ciccillo, que muitas obras de arte moderna italiana vêm para os acervos paulistanos, através da Fundação Bienal e do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). É também através do mesmo Ciccillo que essas obras irão passar ao Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), nas primeiras doações que fundaram este museu, quando da crise do MAM-SP nos anos 1960.

Ciccillo é o famoso industrial ítalo-descendente que, por seu interesse pelas artes plásticas, veio a organizar as maiores instituições e eventos relacionados a isso em São Paulo, durante meados do século XX. Foi ele o organizador das Bienais de Arte Moderna, coordenadas pela Fundação Bienal, também sob sua chefia; fundador e por diversas vezes diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo e parceiro, com Assis Chateaubriand e Pietro Maria Bardi, na fundação do Museu de Arte de São Paulo (MASP); foi membro da Comissão do Quarto Centenário de São Paulo, organizando os festejos comemorativos do aniversário de uma já importante metrópole regional.

Ciccillo foi o mecenas das artes em São Paulo, como planejou ser. Com personalidade forte e centralizadora, de difícil convivência, conduziu essas diversas instituições ao seu estilo, malgrado os atritos com colaboradores próximos. Seu centralismo administrativo ia desde a nomeação dos cargos mais elevados às sucessivas presidências e patronatos, sempre imbricados, assumidos por ele próprio, passando pela decisão quase que pessoal de aquisição de acervo.

A própria doação desta coleção italiana do MAC-USP, acervo embrionário deste museu, foi registrada em cartório em nome do próprio Ciccillo, e não da instituição MAM-SP, por considerar-se ele um "pai" do MAM (foi de fato o criador do museu e comprador dessas mesmas obras), não hesitando em considerar-se o "dono" de um acervo então já pertencente a uma instituição museológica.

Sobre a personalidade e intervenções de Ciccillo, nos relata Aracy Amaral:

O homem de ação, dinâmico, que era Ciccillo [...] espelhava constantemente essa contradição: sensível aos amigos, habituado a exercer autoridade, mesmo nas áreas cuja natureza desconhecia (como as artes plásticas), às vezes se insurgia de maneira passional contra reivindicações por parte dos artistas. Em certa ocasião lembro-me de ouvi-lo dizer em relação aos problemas levantados pelos artistas frente à Bienal: "Faço a Bienal com crítico ou sem crítico, com artistas ou sem artistas". Como, de fato, foram feitas em grande parte as primeiras Bienais, graças aos contatos sociais e políticos pessoais...8 8 . AMARAL, Aracy. A História de uma Coleção: Os Museus Novos de São Paulo. In: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo: Perfil de um Acervo. São Paulo: MAC-USP/Techint, 1988. p. 28.

Junto à condução personalista do cenário das artes paulistanas, lembramos que Ciccillo sempre foi uma figura política – tendo de fato se lançado politicamente pelo Partido Social Progressista (PSP) e sido prefeito de Ubatuba – que encabeçou o mecenato paulistano não somente pelo gosto pelas artes, mas como um projeto político, dentro de uma mentalidade especialmente moderna, vigente no Brasil, de construção de uma sociedade desenvolvida, através de uma estreita relação entre a arte e a cultura industrial.

Aliás, algo que pode ser questionável no indivíduo Ciccillo é seu gosto artístico. No início do século, o industrial e sua mulher, Yolanda Penteado, colecionavam exemplares de pintura acadêmica. Foi através de contatos com personalidades próximas, viagens à Europa e visitas a importantes mostras internacionais como a Bienal de Veneza, que Ciccillo volta sua atenção à arte moderna, visando ideologicamente, depois disso, a promoção de um gosto artístico adequado às condições de uma moderna sociedade industrial.

Essa aliança de arte moderna e projeto de Estado no Brasil já era um projeto federal do governo getulista, desde os anos 1930; por sinal, governo pelo qual São Paulo sempre nutriu algum rancor desde a Revolução Constitucionalista de 1932. Esse rancor, no entanto, já não era externado durante o regime centralizador do Rio de Janeiro, nem tampouco com a presidência democrática de 1951, ainda que estivesse latente. A chefia de ministérios importantes por célebres figuras como Gustavo Capanema, na pasta de Educação e Saúde Pública, já rendera políticas educacionais e incentivos às artes e arquitetura modernas, como política edilícia na capital federal. Foi sob o espírito do "novo homem brasileiro", moderno, que se erigiram prédios públicos "modernos", cujo símbolo mais didático é o Ministério de Educação e Saúde Pública, congregando, com intuito monumental e "educativo", arquitetura corbusierana com Niemeyer e Lúcio Costa, arte mural com Portinari, e arte escultórica com Celso Antônio Silveira de Menezes. Esse projeto progride e toma forma, por vieses variados, até culminar na construção de Brasília, mais à frente.

O empenho nesse "Brasil moderno" se deu mais tardiamente em São Paulo, ao menos como política pública9 9 . "Política pública" em termos, já que as relações público x privado sempre se constituíram de forma contraditória e imbricada, especialmente em São Paulo. Esse mesmo desejo de constituição e ampliação de um "acervo moderno" na cidade, por exemplo, faz surgir instituições museológicas ligadas à arte moderna, mas "pouco públicas" no começo. O MAM-SP e a Fundação Bienal eram museus privados que, por um lado, abriam suas portas à população (pagante), e por outro, visavam constituir e fomentar, a portas fechadas, um mercado de artes com marchands internacionais, dentro do circuito de importantes coleções privadas. , com o apoio de intelectuais de peso como Sérgio Buarque de Holanda, Mário de Andrade, Sergio Milliet, Lina Bo e Pietro Maria Bardi. São inseridos nesse meio, como polarizadores de eventos e instituições públicas, o jornalista Assis Chateaubriand e o industrial Ciccillo Matarazzo. Foi também esse mesmo ímpeto que levou, em 1963, à doação do acervo do MAM-SP à Universidade de São Paulo, criando o MAC-USP, um museu público dentro de uma instituição pública.

Esse "projeto moderno" era, portanto, um projeto essencialmente político, e o industrial Ciccillo, malgrado seu gosto pessoal, também incentivava as artes com esse propósito. Não seria surpreendente, portanto, intuir que seu gosto pessoal tenha se "direcionado" com o passar do tempo, para a arte moderna, sendo comumente assessorado por pessoas que lhe indicavam o que comprar. É, aliás, conhecido o esquema de compras com o intermédio de seu genro, Livio Gaetani, que vivia na Europa e comprava obras pedidas por Ciccillo ou sugeridas pelo próprio Gaetani, ou ainda pela crítica de arte Margherita Sarfatti, importante personalidade italiana desse meio. Grosso modo, Gaetani identificava potenciais obras, Sarfatti aconselhava, Ciccillo ponderava e Gaetani, novamente, efetuava do estrangeiro alguma aquisição.

É também nesse contexto que pode ser situada a inserção de Ciccillo na sociedade paulistana como ítalo-descendente e entendida sua predileção por autores italianos, talvez com intuitos de reforçar os laços de membro da elite paulistana com seu país de ascendência e com as elites de lá, por sua vez. Isso sem esquecer a presença nessa própria elite de outros italianos influentes como Lina Bo e Pietro Maria Bardi.

Assim, tendo em vista os fatores de mecenas com projetos políticos, somados a sua ascendência, podemos entender como se formou a bela e completa coleção de artistas italianos do MAM-SP, posteriormente doada ao MAC-USP. De fato, não são poucas nem esparsas as obras italianas neste acervo. Muito pelo contrário, constituem uma das coleções mais completas de arte italiana de meados do século XX fora da Itália10 10 . A coleção italiana do MAC-USP conta também com nomes como Campigli, Carrà, De Chirico, Casorati, de Pisis, Funi, Sironi, Soffici, Tozi, Severini, Morandi, Cagli, Rosai, Semeghini, Santomaso, Usellini, Guidi, e Capogrossi, entre outros. Ver Formação da coleção. Disponível em: < http://www.mac.usp.br/mac/templates/exposicoes/Ciccillo/formacao.asp>. Acesso em: 16 set. 2011. , tendo exemplares excelentes e importantes para a historiografia da arte, e é neste meio que nossas obras estudadas se encontram.

Estudo das obras

Mario Mafai – Rapaz

Trata-se de um perfil jovial, de um menino de cabelos castanhos, com roupa de "marinheiro", sobre fundo esverdeado, olhando fixamente à frente.

Ainda que não possua data precisa, podemos inserir essa obra em uma temática recorrente na trajetória mafaiana. São conhecidas suas séries de retratos juvenis, feitas na primeira metade dos anos 1930, sendo identificadas tendências a paletas mais avermelhadas e, posteriormente, tendências a paletas mais frias. Ainda assim, a suavidade das cores é sempre uma constante.

Em 1932, Mafai pinta Rapaz com bola (Ragazzo con palla) e Rapaz com bola (à terra) (Ragazzo con palla [a terra]), óleos sobre tela que retratam meninos nus, em pé, e com bolas de brincar. Seus formatos são semelhantes (131 x 44 cm e 131 x 54 cm), assim como a escolha do fundo rosado e tonalidades amareladas para a figuração humana, instigando uma agradável temperatura. Não se tratam de cenas, mas sim de retratos de corpo inteiro, onde se identifica o uso de, digamos, texturas pintadas, como se as telas fossem afrescos.

Encontramos também outro exemplo do tema juvenil em Aula de piano (Lezione di piano), de 1934, em que vemos o tema juvenil, mas não do retrato, e sim da cena: uma menina de vestido branco lê sua partitura de piano, durante a aula, em primeiro plano. Logo atrás, está a suposta professora, instruindo-a com suaves gestos, e em último plano, temos uma figura feminina, qual uma Vênus de Milo, seminua. O tema da informalidade em uma leve cena doméstica, um tanto burguesa, como uma aula de piano para meninas, apresenta alguma ligação com a pintura de Renoir, por exemplo, mas que vem interpretada segundo a Scuola Romana e, especificamente nesse período da pintura de Mafai, com um ar quatrocentista. Ainda que a tônica do retrato tenha sido alterada, essa obra contém paletas mais semelhantes às do Rapaz, do MAC: cores predominantemente suaves, sendo algumas roupas na paleta do rosa e o pregnante fundo esverdeado.

O Rapaz, que é um pequeno retrato juvenil, de perfil, e em tons pastéis, com presença do verde e do rosa, pode ser entendido no contexto das obras de 1932 e da Aula de piano, de 1934, especialmente quanto à temática e uso de cores. E nesses contextos, a constante pesquisa mafaiana da textura pintada de que havíamos falado.

Como vimos, o olhar se volta à pintura do Renascimento e do Barroco, a partir de Longhi e De Chirico, em processo acompanhado por pintores como Mafai. Sua pintura, especialmente neste período, evoca a pintura mural giottiana e a atividade de pintor como um artífice mais que um artista, evidenciadas nesse trabalho de retratar as texturas do afresco, da parede, da muratura; trabalhando com tonalidades mais do que com cores; não definindo o plano pintado. Não é pintura mural, mas representação da pintura mural em uma tela de tecido, de um modo evidente e constante.

O peso que a arte neoclássica11 11 . Aqui estamos considerando "Neoclassicismo" como período artístico em que se olhou para os preceitos estéticos clássicos, especialmente durante o Renascimento. italiana tem na obra de Mafai é explicitado pelo próprio, como nos conta Giuseppe Appella. Atentemos para a particular atração por Giotto:

Em dezembro de 1954, em Milão, em uma mostra organizada pela Associazione Artisti d'Italia para render homenagens dos pintores contemporâneos aos antigos mestres, Mafai, que desde o primeiro momento de sua história jamais refutou ou contradisse a tradição, faz uma confissão e, com espontaneidade, escolhe Rubens e Giotto, um ponto de chegada e um princípio12 12 . APPELLA, Giuseppe. Mafai, Giotto e la piacevole fatica della pittura. In: APPELLA, Giuseppe (org.). Mario Mafai 1902 - 1965: una calma febbre di colori. Milão: Skira, 2005, p. 21, tradução nossa. .

Além de Giotto, ao que se enlaça, sobretudo, através de sua pesquisa pela arte mural e pela textura do afresco, podemos identificar a busca por esquemas de retratos do tardo-Gótico e da Renascença mais primitiva, no Quattrocento italiano, especificamente. O quadro insere-se, de forma compositiva, no âmbito dos perfis dessa Renascença antiga, figurados através de Piero della Francesca, ou mesmo Pisanello, natural de Pisa, que trabalhou para as maiores cortes italianas do Norte (Verona, Ferrara, Mântua, Milão, Rimini), além de Nápoles, o papado, e os doges venezianos, particularmente com pinturas de perfil e confecção de medalhas comemorativas. O ofício de Pisanello recebeu forte influência de outro pintor quatrocentista, Gentile da Fabriano, que nos interessa também, pela delicadeza que conferiu a sua obra, passando-a a Pisanello.

É interessante olhar para o Rapaz e ver aí essas diversas alusões aos séculos XIV e XV italianos, e a pintores específicos deste porte. O perfil do menino está visivelmente em diálogo com esse período, e possivelmente interpreta uma historiografia da arte para além dos grandes ciclos toscanos, apontando leituras de ciclos do Norte italiano, em um Mafai que investigava a pintura italiana com afinco e abrangência de fontes/referências, em uma atitude também de protesto ou desacordo com o que pretendia institucionalizar o Novecento Italiano, movimento artístico que visava reabilitar e conservar a memória do que considerava a grande arte italiana, compreendida na Renascença quatrocentista, entre os grandes mestres toscanos. A polêmica reside na indagação: por que apenas Giotto, Piero della Francesca, Raffaello, enfim, estes "autorizados" deveriam ser rememorados? Por que não olhar também para outros ciclos, outros mestres de valor, outro Quattrocento? E, mais além – e esta era a grande querela de Mafai com o Novecento –, por que eleger uma arte mais autorizada, mais digna de admiração, que outra(s)?

Essas questões serão abordadas mais a fundo no decorrer e no concluir deste texto, mas iniciamos a reflexão sobre o quadro do Rapaz, em que é marcante esse intento de discordar do que pregava o Novecento Italiano, dialogando a partir da mesma lente, que examina a Renascença italiana, e aponta outros bons mestres. Igualmente, sua atitude de pintor, que está constante e intimamente ligada com o modelo e depende de sua visão para pintar, irá reafirmar esse mesmo objeto de estudo (a Renascença)13 13 . Essa relação do pintor com a visão, que observa um modelo e assume a pintura a partir de uma relação física (óptica) com o objeto visto, mas ao mesmo tempo emocional, será exposta ao máximo nas séries de naturezas - mortas, a exemplo da que será estudada a seguir. .

A obra possui, portanto, um caráter particular, ao apontar para a arte dos retratos-medalha quatrocentistas, além da pesquisa tonal em termos de coloração e representação de texturas, que olha para os afrescos trecentistas e quatrocentistas italianos. Não obstante, insere-se ainda nas séries juvenis, vindo de um ímpeto presente nos nus de 1932, de mostrar o nu puro, o nu juvenil clássico (e não ainda varonil); esse espírito, no entanto, se desenvolve para as cenas juvenis de 1934 (Aula de piano); cremos estar situada essa obra, como uma ponte entre esses dois períodos (retratros juvenis de 1932 e cenas juvenis de 1934), em acordo com ambos.

Rapaz, obra contida no acervo do MAC-USP, pequeno e sem data, é um belo e misterioso exemplar desse período, datado dos anos 1930, de busca mafaiana pela arte de Giotto e do Quattrocento italiano.

Mario Mafai – Natureza-morta

A tela é datada de 1946 e possui em seu verso uma figura feminina, que ocupa todo o plano; está inacabada e é de autoria desconhecida, ainda que reconhecidamente um exemplar de arte acadêmica. Não se sabe quando foi pintado, tampouco se o autor foi o próprio Mafai, ainda que seja um indício de reutilização de telas para trabalhos posteriores.

Natureza-morta (Natura Morta) trata de um dos mais importantes e recorrentes temas na obra mafaiana, que é o da natureza-morta de flores, perseguido durante sua trajetória. Mafai pintou flores recém-colhidas, flores secas, pimentas; pintou em enquadramentos verticais e, depois, predominantemente horizontais, desde suas fases mais conhecidas, nos anos de Scuola Romana, até suas fases posteriores.

Neste exemplo, temos um grande ramo de flores recém-colhidas depositado à mesa; as flores um tanto despetaladas, algumas pétalas desprendidas e caídas sobre a toalha verde e grossa, acompanhadas de uma garrafa de vidro, sobre a mesma toalha, à frente de um plano (parede) vermelho. As flores ainda têm cor, e aparentam não estarem secas, salvo alguns ramos de folhas. A parede, na qual se percebe através das pinceladas as imperfeições do reboco, termina em um vão (porta ou janela) escuro, à esquerda; a iluminação parece ambientar a cena no interior de alguma edificação, e não no exterior.

As flores contêm a melancolia da natureza-morta, auxiliada pela paleta adotada, que varia entre o vermelho e o azul, e não carregam consigo o tão retratado calor mediterrâneo do Lazio. Diferem-se das séries de flores secas em cores cálidas (mas cálidas de intensidade, jamais de aconchego) pois a secura das flores é inquieta e agitada, qual o expressionismo de Van Gogh, feito de cores quentes e pinceladas carregadas.

O tema das flores aparece nos anos 1930, com as flores secas sobre fundo branco, posteriormente flores secas e cores quentes e, por volta dos anos 1940, vai se esmorecendo em agitação, ganhando mais dessa melancolia das flores recém-cortadas (flores que estão perdendo a vida, não sendo "esqueletos" secos, já sem vida); aparece o forte contraste entre o azul, o violeta, o preto, e o vermelho, onde se insere o quadro presente no MAC-USP. Isso evoluirá ao ponto, posteriormente, da quase indistinguibilidade da forma perante o fundo, que se acentua até levar Mafai ao abstracionismo, nos anos 1950.

O tema da natureza-morta com flores na obra de Mafai foi sempre muito comentado pela crítica e pelo próprio autor. São-nos reportados excertos que falam do desenvolvimento do tema (das primeiras composições às flores secas e à maior madureza do conceito das flores recém-cortadas) e das diferentes captações de intenção ao longo das composições. Afinal, natureza-morta é sempre um tema sutil, de alguma simbologia e muita intenção.

Mafai admite que suas experiências com naturezas-mortas começam mais tardiamente; no entanto, é surpreendente a mudança que o tema sofre ao longo dos anos, constituindo uma trajetória evolutiva, com temática e composição em constante mudança. Sobre isso, nos conta o próprio pintor:

Minhas experiências começam tarde, por volta dos trinta anos. Naquele tempo pintava as flores ao sol. Dispunha-las lá, como por acaso, sem nenhuma intenção compositiva. Copiava-as uma a uma, e dava-me conta que em seu desfazer criavam espaços particulares, uma fisionomia abstrata, como aquela de certas pessoas das quais nos lembramos apenas de um gesto exaltado, ou simplesmente resumido14 14 . APPELLA, Giuseppe (org.). Op. cit., p. 69, tradução nossa. .

A partir desse atento processo de observação, Mafai pôde refinar suas composições, "excluindo os elementos impuros", como observa Antonio Santangelo:

Mafai possuía um acurado processo de decantação da própria linguagem, ao excluir os elementos impuros, acessórios ou supérfluos. O resultado mais sensacional, também porque mais visível, desta voluntária renúncia a uma parte de si próprio e desse controle crescente, foram as Flores secas expostas na Seconda Quadriennale15 15 . Idem, ibidem, tradução nossa. A referência é à Seconda Quadriennale d'Arte Nazionalede Roma, realizada no Palazzo delle Esposizioni de 5 de fevereiro a 31 de julho de 1935. .

Observando o desenvolver das naturezas-mortas de Mafai, identificamos certo "percurso" evolutivo da temática e da composição, que proferem um discurso que cada vez mais vai se refinando e se encontrando, reafirmando-se como um dos mais importantes temas da pintura mafaiana, talvez junto com a série das Demolições promovidas pela Roma fascista nos anos 1930. Também são identificáveis, nas flores secas, diálogos com outros artistas italianos, como Morandi e Guttuso, como veremos adiante.

O enquadramento e a disposição do suporte também apresentam importância e eloquência, e vão mudando com o tempo. As primeiras composições desenvolvem-se verticalmente, sendo essencialmente exposições de flores secas; mas a essência do discurso, que vai constituindo-se ao longo dos anos, é a melancolia das flores, como observação da morte, ou seja, da vida que se esvai. Mafai está pintando uma cena, ou melhor, a representação de um instante, que se congela e, principalmente, se mostra longo, devido à passagem das flores no tempo, ao tempo que levam para secar. Como observa Argan, é um estado de letargia, de quase-morte, ou o longo esmorecimento desde o momento do corte, que as tira da vida (mas não totalmente), até a secura final, onde jazem seus restos mortais, seus esqueletos vegetais já totalmente sem vida; ainda assim, o estado ao qual são submetidas não é o da agonia, e sim da melancolia, ou sono profundo. Este meio tempo, que é a melancolia das flores, vai sendo captado ao longo dos anos pelo uso de cores, figuração, e principalmente composição – arranjo da cena.

É Mafai, novamente, que nos conta de seu interesse pelas flo- res secas:

Se eu as pinto secas, as flores, não é por arrependimento: o arrependimento começa no momento que estão ainda frescas [logo após a colheita] e inevitavelmente se apagam, e pouco a pouco vão murchando16 16 . Idem, p. 78, tradução nossa. .

A evolução do discurso que se dá, sobretudo, com o arranjo compositivo, levará esse "pintor de epitáfios"17 17 . Idem, p. 116, tradução nossa. a enquadrar horizontalmente as obras, posteriormente. Sobre essa evolução compositiva, nos bem descreve Fagiolo dell'Arco, observando a composição que retrata um "piedoso sepulcro", esquema semelhante ao do quadro presente no MAC-USP:

É a mesa de apoio em diagonal (uma tonalidade clara sobre o fundo verde) a evocar a sombra da Metafísica. Os quadros pintados até agora são geralmente em formato vertical: as flores eram talvez mortas mas vinham realçadas como em um "teatrinho do triunfo". De agora em diante prevalece, com o formato horizontal, uma ideia de "piedoso sepulcro". Entre os dois tons, o verde do fundo e o branco da mesa, no maço de flores ao limite do anônimo, destaca-se somente o grumo vermelho ao centro [...] O quadro [em questão, Fiori apassiti, 1935] é enviado no ano seguinte a sua execução à mostra municipal e é adquirido em abril de 1936 pela coleção de Sua Majestade o Rei da Itália18 18 . Idem, p. 72, tradução nossa. .

Além de composição, a natureza-morta mafaiana entra em diálogo com outros contemporâneos italianos, como as naturezas-mortas de Guttuso, por exemplo os Pimentões, sendo que o próprio Mafai pinta alguns, e as famosas naturezas-mortas de garrafas, de Morandi, que expressam o clima aparentemente "plácido" da arte metafísica; de Moran di, Mafai absorve o trato das texturas e dos vazios, e a importância dada aos mesmos na composição19 19 . Idem, p. 80, tradução nossa. . O papel da textura e da cor de fundo, já não mais se insere naquele contexto do mestiere do pintor de murais, visto principalmente em Rapaz, recaindo mais na importância – até eloquente – do contraste de cores e do aspecto das texturas, em relação aos objetos principais20 20 . Idem, p. 114, tradução nossa. . Uma eloquência muito refinada.

Novamente será Argan que nos vem reportar, com seu poder de síntese e didática, a relação de Mafai com seus contemporâneos, bem como o espírito das flores secas:

Humanamente Mafai é, se vê, partidário de Guttuso e Birolli, assim como o fora dez anos antes, partidário de Scipione: como artista, é em velada polêmica. A ideia da história revolucionária, que queima o passado e se projeta no porvir o seduz, e a ideia de uma história conservadora e autoritária o desagrada: mas a ideia de história que tem, como artista, é diversa tanto de uma quanto de outra. Como artista, aliás, não ama a história que ordena, organiza, constrói a experiência em uma perspectiva de valores; não quer que sua própria Erlebnis [experiência] se torne uma história, sabe que o choque com os fatos pode sempre evocar no presente uma experiência distante; pensa que a sua tarefa seja a de pintar imagens que, a qualquer momento, possam retomar vida e movimento. Talvez, para conservá-las seja necessário transpô-las a um espaço e tempo onde queimariam mais rápido, imergindo-as em um estado de letargia, de quase-morte: Mafai ama as flores secas porque sua passagem no tempo é muito mais lenta, e infinitamente mais longa a sua permanência entre a vida e a morte21 21 . ARGAN, Giulio Carlo. Mafai: opere recenti. In: L'Attico, 14 de mar. de 1964, tradução nossa. .

É observada aí, portanto, uma relação com a temática de flores secas, muito intensa e multifacetada em Mafai.

Ao mesmo tempo em que ele tem uma visão de História e posicionamentos políticos a defender, está em diálogo com seus colegas pintores, através da plástica e da composição. Ainda assim, permanece em divergência com os mesmos quanto à postura a ser tomada em relação a outros movimentos artísticos. Entretanto, Mafai nunca se distancia daquilo que considera a relação essencial do pintor com o objeto retratado: sua pintura depende da visão e do modelo observado, fato que na verdade irá se constituir em algum tipo de "protesto refinado" contra movimentos e artistas de visão dogmática sobre a História e a história da arte, a exemplo do Novecento, como também identificado em Rapaz. Mas aqui, a relação emocional com o objeto observado torna-se mais intensa, consoante com o período de maiores desavenças de Mafai com o fascismo.

Scipione – Oceano Indiano

Eis um quadro de grande mistério. Cores escuras, um macaco (aparentemente um orangotango) à direita, segurando um fruto, a mão apoiada em uma mesa; as cascas ou fatias espalhadas pela mesa, mas não se sabe qual é o fruto arredondado amarelo, nem tampouco se os pedaços alongados de mesma coloração são bananas ou as cascas daquele mesmo fruto. Atrás desse "hominídeo", em segundo plano, quatro barras metálicas verticais, como que enjaulando a figura animal e separando-a do fundo escuro, o último plano da pintura. Ao lado esquerdo, um papagaio, acompanhando o hominídeo em sua igual sina; atrás dele, uma indefinida tela, que aparentemente o enclausura, de igual maneira. Entre as duas figuras, ao fundo, como que in memoriam, a visão, a miragem de uma ilha, a única região mais iluminada da obra; é uma ilhota, na qual se destacam dois coqueiros, sendo toda a ilha iluminada por um amarelo avermelhado de sol poente, feita em pinceladas revoltas, como se sofresse a ação de ventos oceânicos. Acompanhando a ilha, a inscrição "oceano indiano".

A imagem da ilha, por sua vez, está inserida entre ambas as figuras, como que em meio a uma nuvem de pensamento, uma memória ou um desejo, enfim, um lugar onde buscam estar estas duas figuras melancólicas, e que agora se encontram em cativeiro. Assim como a figuração da ilha está envolta em uma indefinição do "objeto" pintado (e, neste caso, o objeto-modelo não existe), indefinido é o fruto que o macaco tem à mão; indefinidas são suas mãos (observe-se que o ser parece possuir duas mãos direitas, e que a mão que segura o fruto não se vê propriamente de onde vem); indefinida é a rede em quadrícula atrás da ave, e assim por diante. Neste quadro, tudo é incerto. A imagem é ambígua como depois que se acorda de um sonho e se tem uma vaga lembrança do que se sonhou; a única definição é o mote "oceano indiano".

Esta obra difere do partido mafaiano em repertório: a cena é algo dificilmente visualizável como concreta. Trata-se, como vimos, de um universo onírico, alegórico, metafórico... Espaço mental posto em pintura.

Vemos aqui a pintura italiana, particularmente a Scuola Romana, aproximar-se, aparentemente, de um "orientalismo". Mas, observe-se atentamente, esse "orientalismo" evocado não está em desacordo com o olhar sobre as influências históricas da arte europeia, perseguidas pelos pintores dessa escola. Afinal, Oriente e orientalismo, são coisas diferentes.

O gosto e o interesse pelo hemisfério oposto atraem a Europa desde sua "descoberta", no alvorecer da Idade Moderna: o choque civilizatório com os índios americanos, a vastidão africana, os templos indianos e os pagodes chineses marcaram as artes e cultura europeias desde então.

Fazemos essa constatação, porque a Scipione interessam particularmente os tempos barrocos. O Cardeal decano (Cardinal decano, 1930), das mais famosas obras suas, é grande mostra disso, especialmente na escolha do repertório em si: a figuração de eminências eclesiásticas chega a um ápice justamente no Barroco, por exemplo com Velásquez retratando Inocêncio X, ou Bernini o cardeal Borghese, ambos revolucionários do gênero retrato/busto, tendo colocado questões figurativas complexas, como expressividade e pistas psicológicas dos personagens retratados. Ademais, suas inquietas vistas de Roma, particularmente as de monumentos, expõem não o tecido urbano, não as texturas, não as ruínas, como o fizera Mafai; expõem a Roma barroca por excelência, ou seja, o monumento, só que ao invés de exaltá-lo, vemo-lo perturbado e delirante, mostrando a decadência da cidade e da Igreja (a despeito do amor que o pintor sempre nutriu por Roma).

Scipione (1904-1933), sabemos, apesar de sua importância para a Scuola Romana, pintou pouco, e por pouco tempo apareceu nos ciclos de mostras da época (1928-1931), ainda que intensamente, pois morreu cedo de tuberculose.

Quiçá influenciada por suas experiências de vida e saúde frágil, vemos em sua obra uma carga de religiosidade muito proeminente. Uma boa chave de leitura para Scipione, vemos num texto de Argan de 1964, feito, na verdade, para uma mostra de Mafai, no qual percorre a trajetória deste último, passando inclusive por sua relação com Scipione e sua obra:

O álibi22 22 . "Álibi" aqui, não em sentido forense, mas como o vindo do latim: "não-estar". A passagem fala do "não-estar" de Scipione, do não-posicionamento que teve na mostra de 1928 na Galleria Doria, em relação aos conflitos com o Novecento Italiano. Pode-se ler como "o pretexto de Scipione para não entrar nos conflitos contra o Novecento, era a familiaridade..." de Scipione era a familiaridade com a experiência religiosa, quando menos sacra. Rebelando-se do otimismo normativo, há pouco passado da política à religião, Scipione conduzia a experiência religiosa à consciência da condição de pecado como condição humana, na consciência da culpa e da miséria intuindo a única possibilidade de salvação [...].

A "grandiosidade" do homem assim como a da Igreja estão em sua própria miséria, em sua contaminação mundana, da qual a Roma barroca é a própria imagem: mas é justamente essa a ponte que atravessa, entre os clarões do apocalipse, o rio viscoso da culpa. Ao invés disso, a salvação é escatológica: os homens que caminham para a possibilidade de salvação são aqueles que voltam o olhar para trás, para sua própria história cheia de pecado. A imagem é o que sobra aqui: a veste mundana que se abandona antes de se apresentarem, nus, ante o Juízo. Por isso a pintura de Scipione possui um furor expressionista mais áspero que a de Mafai: que, perfeitamente laico desde o princípio, ignora os terrores escatológicos. Mas a condição laica não exclui o impulso religioso, que nasce da falta ou da recusa de qualquer certeza dogmática. Mafai, que é privado daquelas certezas, se põe voluntariamente em uma condição, não mais de pecado, mas de possível erro: também na experiência errada se resgata ou se desconta o juízo, mas na vida e não além dela23 23 . ARGAN, Giulio Carlo. Op. cit., 1964, tradução nossa. .

Essas questões, tão acuradamente observadas, percorrem Scipione desde sua obra mais conhecida até este raro exemplar, aparentemente descontextualizado, mas que sob um olhar mais atento, se mostra plenamente inserido nesta moral culposa e ao mesmo tempo julgadora. Scipione as aborda tanto no ápice da civilização católica (a Roma barroca) quanto num perdido (e mentalizado) ultramar, como veremos em breve.

Muito da pintura de Scipione dialoga com o Expressionismo do Norte, ou com o Expressionismo parisiense, especialmente com o de Soutine. Assim o são a Ponte dos anjos (Ponte degli angeli), o Cardinal decano ou a Praça Navona (1930), com fundos variando do negro ao avermelhado, e as esculturas barrocas que ora parecem gárgulas góticas (ao invés de estátuas berninianas), ora seres humanos, devido a sua escala e presença na composição; a perturbação dos ícones vaticanos em Cardinal decano e o calor de sua Praça Navona são marcantes em sua obra e no movimento Scuola Romana.

Oceano Indiano (1930), pelo contrário, não apresenta nem a temática, nem o cenário romano, nem a paleta de cores mais recorrente em seus capolavori; trata-se de uma obra mais "plácida" que agitada, mais reflexiva que denunciativa, aparentemente inserida em outro contexto. Lembra-nos a princípio a pintura de Gauguin (ver também seu Autorretrato diante do Gólgota, que consta no acervo do MASP), pelo recurso à imagem mentalizada ou à temática do misticismo ultramarino.

De certa forma, volta a remeter também à pintura norte-europeia: com os personagens, com a disposição dos objetos, remete-nos desta vez ao colecionismo, ao Wunderkammer, gabinete de curiosidades seiscentista, típico da pintura flamenga por exemplo. É o olho europeu, perplexo e maravilhado, pela primeira vez voltado para o misterioso Oriente; a iluminação, por sua vez, opera na linguagem do chiaroscuro seiscentista, de Caravaggio, Gentilleschi ou El Greco, estudados por Scipione. É também curiosa a escolha do suporte da pintura: madeira em vez de tela, também evocando texturas e técnicas pretéritas, da pintura de retábulos ou até cenas mais informais do Seicento.

Mas, mais do que simples "homenagem" ao Seiscentos, a pintura scipionesca pertence a seu tempo e a seu autor. Oceano Indiano também lida com temas recorrentes na obra scipionesca, como desconforto, culpa e arrependimento (temas pessoais, mas que não deixam de pertencer ao mesmo universo do Seiscentos, até certo ponto). Até certo ponto, a questão da culpa como condição da existência humana, descrita em Argan, está presente nesta obra, que condena moralmente, pela simples razão de existir, qualquer forma de vida, e até nos maiores confins da natureza. É, portanto, aí que se insere o tema do animale in gabbia (animal enjaulado), que pertence tanto ao colecionismo seiscentista, deslumbrado com o Novo Mundo, quanto ao aprisionamento do grotesco, meio homem meio animal, que não estaria livre da culpa e do pecado original, nem mesmo fora da civilização. Afinal, qual é o limiar entre Paraíso e Inferno, fora da civilização?

Isso faz de Oceano Indiano um raríssimo exemplar, de um pintor ainda mais raro, imerso em conflitos morais tão semelhantes aos das sociedades modernas do século XVII, ao mesmo tempo que ligado às formas de representação contemporâneas do Expressionismo europeu no século XX. Além disso, evidencia o olhar tão europeizado do autor, mas que também se volta para o incivilizado, o além-mar, o que torna essa obra ainda mais importante, especialmente em um repertório de poucas obras, como o scipionesco.

Conclusão

A pesquisa dos referidos autores, por meio das obras presentes no MAC-USP, suscitou tópicos de estudo importantes, passíveis de servir tanto a um debate sobre a iconografia dos próprios Mafai e Scipione, quanto sobre um conjunto de atitudes universais na tradição artística.

Isso porque, fundamentalmente, estamos lidando com a absorção e leitura da tradição pictórica (seja ela qual for) na contemporaneidade. Essa mirada a algum passado, além de tudo, se faz em pleno século XX, século este permeado por movimentos de ruptura com as tradições constituintes das sociedades modernas, desde o Futurismo marinettiano ao Modernismo corbusierano. O estudo de vertentes que insistiram em buscar raízes de produção artística e refutaram a promoção da tabula rasa intolerante, bem como a relação dessas vertentes com o meio artístico brasileiro, assumidamente "moderno" e pontualmente historicista, revela toda uma sorte de estéticas intrincadas, e que não podem ser confundidas com um simplista "passadismo" ou "saudosismo".

Este trabalho, portanto, pontua suas conclusões ao (a) olhar para estes que olharam para o passado, mas com olhos modernos, que não aceitam uma sociedade sem História e sem memória. (b) Observar como esse olhar também, por sua vez, se desdobra e se choca com os diferentes grupos e vertentes ideológicas, como o que ocorreu face ao Novecento Italiano, apadrinhado pelo fascismo, e desejoso de constituir uma história da arte italiana autorizada e tabelada; a Scuola Romana, ao contrário, olhou para fontes e períodos artísticos ofuscados pelos grandes ciclos artísticos, identificando essa "outra" arte italiana de valor e, fundamentalmente, opondo-se a qualquer visão normativa e "autorizada" de História da Arte ou "modelos a serem seguidos". Esse debate, além de tudo, não passa longe dos estudos sobre o "projeto moderno" brasileiro em suas diversas facetas, seja nos projetos getulistas do Estado Novo, ou na constituição dos acervos de arte paulistanos, através das Bienais e Museus de Arte Moderna e Contemporânea de São Paulo, por ambos os quais passou, por sua vez, a Scuola Romana.

Nesse âmbito, volta à tona o conceito identificado por Argan como "classicidade absoluta", com o qual devemos ter atenção, pois este conceito não está fundamentado em formalismos artísticos.

Essa "matriz" da qual partiram a negação ao Futurismo e, mais tarde, a Scuola Romana, consiste em investigar "o que é" o Classicismo, e o que isso representa para as sociedades europeias ocidentais (especialmente a italiana). Na verdade, é um pouco paradoxal, pois se chega a um resultado artístico dito não historicizado, ou seja, à formulação de elementos artísticos que operam sob parâmetros clássicos de composição: proporção, temática (a retratação de cenas/vistas consagradas) e, sobretudo, a atitude de observação de um modelo, de um objeto a ser retratado24 24 . Essa relação pintor-modelo irá marcar, sobretudo, as naturezas-mortas de Morandi e as de Mafai. .

Esses não são parâmetros sujeitos à história e à "moda" da época. Mas – e aí está o paradoxo – a tradição clássica é baseada na história, e não há como chegar a essa formulação "não historicizada" de De Chirico sem tomar como ponto de partida a história e o passado; ou seja, toma-se como ponto de partida preceitos que se situam em um período de tempo para, a seguir, universalizá-los.

Claro, a "não historicidade" a que se propunha essa vertente artística estava ligada, na verdade, ao não formalismo, ou seja, o re-sultado formal contendo os elementos de composição acima descritos, conforme se interpretava o Classicismo, mas não os figurando à maneira clássica (como, por exemplo, o fez o eclético século XIX) e, por isso, essa "classicidade" é chamada de "absoluta".

Isso é um ponto de partida da Scuola Romana. Os autores estudados neste trabalho, portanto, operam nessa linha de raciocínio.

Podemos identificar, dessa forma, em Scipione, por exemplo, o apelo à temática, relendo autores como El Greco e Velásquez, ao mesmo tempo que as arquiteturas de Bernini e Borromini da Roma barroca (isso sem falar das influências que constituem sua figuração, como Soutine e Gauguin, estas mais alheias à tradição clássica). Mafai, por sua vez, é marcado pela apreensão de modelos do Quatrocentos italiano de ciclos artísticos menos consagrados, sobretudo nas fases iniciais de sua carreira, mas mais ainda pela postura como pintor, diante do modelo observado.

A pintura mafaiana carrega a relação emocional do pintor diante do objeto observado. Esse ponto é crucial para entender sua obra e seu protesto contra o Novecento, um dos mais veementes dentro da Scuola Romana.

Por um lado, é através das flores secas que o pintor faz seus diálogos com seus colegas de ofício, absorvendo e relendo elementos de composição e figuração, sendo através dessa mesma temática que diverge dos mesmos, sobretudo quanto à postura do pintar.

Por outro lado, o teor das naturezas-mortas mafaianas aponta para uma direção da negação como forma de protesto, ou seja, essa "polêmica velada" que observa Argan. Isso porque suas naturezas-mortas jamais se distanciam da postura primordial do pintor, que é o ato de ver o modelo, o objeto retratado. Nessa perspectiva, mesmo tendo Mafai uma relação com a história, bem como posicionamentos políticos a defender, jamais se ausenta daquilo que considera ser seu mestiere, sobretudo conforme o foi para a história da pintura até o século XX: a relação do pintor com o modelo, o objeto visto, e a visão (visão mais em sentido óptico-geométrico, do que conceitual).

Este é, em princípio, o protesto, que reafirma essa relação pintor-modelo. Se comparado à movimentação artística da época, podemos ver que Mafai está também em negação, através dessa mesma atitude, com toda a arte "didática" e "historicista" (a que, neste caso, propõe uma história a ser contada), divulgada e incentivada pelo regime fascista e apropriada pelo Novecento. É a singeleza da relação pintor-visão-modelo que vem como forma de provocação a uma arte patrocinada; nesse caso, a aparentemente "simples" postura de Mafai vem posicionar-se contra uma história e história da arte institucionalizadas, por sua vez, tomando caminhos de protesto diferentes até de seus próprios colegas. É a relação emocional do pintor com o objeto visto, sobrepondo-se à arte "idealizada", como fazia o Novecento; a estética mafaiana abriga outras histórias a serem contadas, e abriga também o imperfeito.

Por sua vez, o tema da "classicidade absoluta" em arte revela uma atitude de considerar o passado (artístico) como integrante do presente, e não relegado ao passado temporal em que foi realizado. A partir daí poderemos relacionar a Scuola Romana com sua chegada ao Brasil, observando que essa atitude costuma encontrar mais abrigo na tradição do pensamento europeu do que nas Américas, por exemplo, fato que merece reflexão.

Ora, a arte é perene, ainda que sua fruição sofra mudanças ao longo dos tempos.

Façamos um breve estudo de caso. Sobre este tópico, creio ser proveitoso um apelo interdisciplinar para análise, podendo servir de bom exemplo a se investigar a situação das escolas de arquitetura no Brasil: Em linhas gerais, nos currículos dos bacharelados em Arquitetura e Urbanismo nacionais, são poucas as disciplinas que se dedicam ao estudo de uma ampla História da Arte e da Arquitetura, e menos ainda os alunos que se interessam por isso; o repertório arquitetônico constituído em suas cabeças começa no século XX, abarcando as obras de Le Corbusier, os mestres do modernismo brasileiro, e outros cada vez mais recentes, e raras vezes se menciona a existência de arquitetos como Palladio, Bruneleschi, Michelangelo ou Bramante, e tampouco se saberia precisar que obras realizaram. E isso não é recente.

Nesse caso, o panorama parece originar-se de duas fontes: (a) a crença de que há arquiteturas pretéritas – há alguma confusão conceitual nisso, pois se por um lado a arquitetura foi concebida em um tempo pretérito, por outro não deixa de ser perene e continuar existindo, carregada de significação, no tempo presente; (b) o medo de projetar de modo "conservador", "antiquado", "formalista", enfim: "não moderno".

Mas não se pretende, com este relato, "acusar" parte da formação conceitual artística brasileira de "deficitária", também porque, embora o estudo de artes pretéritas na Europa encontre maior acolhida, não se o pode entender como "muito disseminado" entre as escolas, atualmente.

Sobre esse aspecto da formação brasileira, creio que se trata apenas da constatação de uma "tradição" de ensino com visão divergente da que foi estudada neste trabalho. E, nesse âmbito, se faz ainda mais proveitoso o estudo que realizamos, pois podemos constatar, a despeito de nossa visão e formação essencialmente "modernas" de arte, outra arte moderna que também olha para a história e para a tradição artística, pois a encara como integrante do presente e relevante à sociedade contemporânea, sendo capaz de ser lida de forma consciente.

É um fato extraordinário. O estudo de movimentos como a Scuola Romana vem a mostrar, então, um grande ensinamento, especialmente perante nossa formação de "pensamento moderno" que costuma "temer" ou "não encarar" o passado, e essa aparente antagonia entre a Roma barroca e a São Paulo industrial acaba por ser, na verdade, o fio de ligação e fascínio mútuo entre dois mundos e dois modos de pensar distintos.

Fica, para nós, esta grande lição da Scuola Romana di Pittura: é possível um pensamento moderno que não olhe apenas para o "futuro"; quiçá seja necessário, ao invés de ignorar o passado, refletir sobre o mesmo, e encará-lo como parte integrante de nossa cultura e nossa sociedade, podendo assim vencer o medo do passadismo e encararmo-nos como uma sociedade que, sim, possui história, e possui raízes.

Artigo recebido em 16 de abril de 2012 e aprovado em 26 de abril de 2012

Benjamim Saviani é graduando em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo, tendo sido bolsista pela FAPESP para o projeto de Iniciação Científica que dá origem a este artigo. Dedica-se especialmente à pesquisa em História da Arte e História da Arquitetura, bem como ao estudo da prática do Restauro Arquitetônico e Teoria do Restauro Crítico Arquitetônico, junto à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo dessa mesma universidade.

Luciano Migliaccio possui graduação em Lettere (Scuola Normale Superiore Di Pisa, 1982), graduação em Lettere e Filosofia (Università degli Studi di Pisa, 1982) e doutorado em Storia Dell'Arte Medievale e Moderna (Università degli Studi di Pisa, 1990). Atualmente é professor Doutor do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade de São Paulo e professor visitante da Universidade Estadual de Campinas. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Artes Plásticas, atuando principalmente nos seguintes temas: História da Arte e História da Crítica de Arte.

* Pesquisa de iniciação científica desenvolvida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), com bolsa de financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e colaboração do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP).

  • 1. RIVOSECCHI, Valerio. Realismo Magico. In: DELL'ARCO, M. Fagiolo (org.). Scuola Romana, pittura e scultura a Roma dal 1919 al 1943. Roma: De Luca Editore, 1986, p. 3.
  • 4. ARGAN, Giulio Carlo.A situação italiana: metafísica, novecento, antinovecento. In: Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, p. 372.
  • 6. MARGOZZI, Mariastella. Arte in Italia: da Valori Plastici a Corrente. Opera dalla Galleria Nazionale d'Arte Moderna di Roma. Città di Castello: Delta Grafica, 1999, p. 207.
  • 8. AMARAL, Aracy. A História de uma Coleção: Os Museus Novos de São Paulo. In: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo: Perfil de um Acervo. São Paulo: MAC-USP/Techint, 1988. p. 28.
  • 12. APPELLA, Giuseppe. Mafai, Giotto e la piacevole fatica della pittura. In: APPELLA, Giuseppe (org.). Mario Mafai 1902 - 1965: una calma febbre di colori. Milão: Skira, 2005, p. 21, tradução nossa.
  • 21. ARGAN, Giulio Carlo. Mafai: opere recenti. In: L'Attico, 14 de mar. de 1964, tradução nossa.
  • 1
    . RIVOSECCHI, Valerio. Realismo Magico. In: DELL'ARCO, M. Fagiolo (org.).
    Scuola Romana, pittura e scultura a Roma dal 1919 al 1943. Roma: De Luca Editore, 1986, p. 3.
  • 2
    . Idem, ibidem.
  • 3
    . Idem, ibidem.
  • 4
    . ARGAN, Giulio Carlo.A situação italiana: metafísica, novecento, antinovecento. In:
    Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, p. 372.
  • 5
    . RIVOSECCHI, Valerio. Op. cit., p. 3, tradução nossa.
  • 6
    . MARGOZZI, Mariastella.
    Arte in Italia: da Valori Plastici a Corrente. Opera dalla Galleria Nazionale d'Arte Moderna di Roma. Città di Castello: Delta Grafica, 1999, p. 207.
  • 7
    . Idem, p. 217.
  • 8
    . AMARAL, Aracy. A História de uma Coleção: Os Museus Novos de São Paulo. In:
    Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo: Perfil de um Acervo. São Paulo: MAC-USP/Techint, 1988. p. 28.
  • 9
    . "Política pública" em termos, já que as relações
    público x privado sempre se constituíram de forma contraditória e imbricada, especialmente em São Paulo. Esse mesmo desejo de constituição e ampliação de um "acervo moderno" na cidade, por exemplo, faz surgir instituições museológicas ligadas à arte moderna, mas "pouco públicas" no começo. O MAM-SP e a Fundação Bienal eram museus privados que, por um lado, abriam suas portas à população (pagante), e por outro, visavam constituir e fomentar, a portas fechadas, um mercado de artes com
    marchands internacionais, dentro do circuito de importantes coleções privadas.
  • 10
    . A coleção italiana do MAC-USP conta também com nomes como Campigli, Carrà, De Chirico, Casorati, de Pisis, Funi, Sironi, Soffici, Tozi, Severini, Morandi, Cagli, Rosai, Semeghini, Santomaso, Usellini, Guidi, e Capogrossi, entre outros. Ver
    Formação da coleção. Disponível em: <
  • 11
    . Aqui estamos considerando "Neoclassicismo" como período artístico em que se olhou para os preceitos estéticos clássicos, especialmente durante o Renascimento.
  • 12
    . APPELLA, Giuseppe. Mafai, Giotto e la piacevole fatica della pittura. In: APPELLA, Giuseppe (org.).
    Mario Mafai 1902 - 1965: una calma febbre di colori. Milão: Skira, 2005, p. 21, tradução nossa.
  • 13
    . Essa relação do pintor com a visão, que observa um modelo e assume a pintura a partir de uma relação física (óptica) com o objeto visto, mas ao mesmo tempo emocional, será exposta ao máximo nas séries de naturezas - mortas, a exemplo da que será estudada a seguir.
  • 14
    . APPELLA, Giuseppe (org.). Op. cit., p. 69, tradução nossa.
  • 15
    . Idem, ibidem, tradução nossa. A referência é à
    Seconda Quadriennale d'Arte Nazionalede Roma, realizada no Palazzo delle Esposizioni de 5 de fevereiro a 31 de julho de 1935.
  • 16
    . Idem, p. 78, tradução nossa.
  • 17
    . Idem, p. 116, tradução nossa.
  • 18
    . Idem, p. 72, tradução nossa.
  • 19
    . Idem, p. 80, tradução nossa.
  • 20
    . Idem, p. 114, tradução nossa.
  • 21
    . ARGAN, Giulio Carlo. Mafai: opere recenti. In:
    L'Attico, 14 de mar. de 1964, tradução nossa.
  • 22
    . "Álibi" aqui, não em sentido forense, mas como o vindo do latim: "não-estar". A passagem fala do "não-estar" de Scipione, do não-posicionamento que teve na mostra de 1928 na Galleria Doria, em relação aos conflitos com o
    Novecento Italiano. Pode-se ler como "o pretexto de Scipione para não entrar nos conflitos contra o
    Novecento, era a familiaridade..."
  • 23
    . ARGAN, Giulio Carlo. Op. cit., 1964, tradução nossa.
  • 24
    . Essa relação pintor-modelo irá marcar, sobretudo, as naturezas-mortas de Morandi e as de Mafai.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      2012

    Histórico

    • Recebido
      16 Abr 2012
    • Aceito
      26 Abr 2012
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