Acessibilidade / Reportar erro

Arte do documentário e arte no documentário: anamorfose e ontologia

Art of documentary and art in documentary: anamorphosis and antology

Resumos

Interseções entre arte e documentário são discutidas no artigo por intermédio de quatro filmes brasileiros contemporâneos, subdivididos em duas formas semânticas: documentário de (ou feito por) artista e documentário sobre (cujo tema é um) artista. Com base em Folia no morro (2008), de Arthur Omar, Andarilho (2007), de Cao Guimarães, Cildo (2008), de Gustavo Rosa de Moura, e A obra de arte (2009), de Marcos Ribeiro, serão tratados os conceitos de anamorfose e ontologia, que compreendem formas "desenquadradas" e "enquadradas" de se fazer arte do documentário (ou documentário-arte) e arte no documentário (ou documentário sobre arte).

documentário; arte; anamorfose; ontologia


Intersections between art and documentary are discussed in the article through four contemporary Brazilian films subdivided into two semantic forms: documentary made by artists and documentary about artists. Based on Arthur Omar's Folia no morro (2008), Cao Guimarães' Andarilho (2007), Gustavo Rosa de Moura's Cildo (2008) and Marcos Ribeiro's A obra de arte (2009), we will treat the concepts of anamorphosis and onthology, which include "unframed" and "framed" forms of making art of documentary (or docu-art) and art in documentary (or documentary about art).

documentary; art; anamorphosis; onthology


Arte do documentário e arte no documentário: anamorfose e ontologia

Art of documentary and art in documentary: anamorphosis and antology

Eliska Altmann

RESUMO

Interseções entre arte e documentário são discutidas no artigo por intermédio de quatro filmes brasileiros contemporâneos, subdivididos em duas formas semânticas: documentário de (ou feito por) artista e documentário sobre (cujo tema é um) artista. Com base em Folia no morro (2008), de Arthur Omar, Andarilho (2007), de Cao Guimarães, Cildo (2008), de Gustavo Rosa de Moura, e A obra de arte (2009), de Marcos Ribeiro, serão tratados os conceitos de anamorfose e ontologia, que compreendem formas "desenquadradas" e "enquadradas" de se fazer arte do documentário (ou documentário-arte) e arte no documentário (ou documentário sobre arte).

Palavras-chave: documentário; arte; anamorfose; ontologia.

ABSTRACT

Intersections between art and documentary are discussed in the article through four contemporary Brazilian films subdivided into two semantic forms: documentary made by artists and documentary about artists. Based on Arthur Omar's Folia no morro (2008), Cao Guimarães' Andarilho (2007), Gustavo Rosa de Moura's Cildo (2008) and Marcos Ribeiro's A obra de arte (2009), we will treat the concepts of anamorphosis and onthology, which include "unframed" and "framed" forms of making art of documentary (or docu-art) and art in documentary (or documentary about art).

Keywords: documentary; art; anamorphosis; onthology.

Introspecção é o exercício por meio do qual o historiador e crítico de arte Lionello Venturi define a ideia de arte ou do fazer artístico. Distante do solipsismo cartesiano, tal introspecção é entendida como meditação sobre a atividade mental do homem quando cria arte, baseando-se a criação artística numa atividade humana diversificada. Tal criação, entendida como imaginação, não foge à realidade, "pelo contrário, penetra-a, colhe nela o aspecto que a identifica com um modo de sentir do artista, revelando assim aquilo que, na realidade, se furta ao conhecimento da razão"1 1 . VENTURI, Lionello. História da crítica de arte. Lisboa: Edições 70, 2007, p. 19 . Atividade/potencialidade espiritual dos homens, a imaginação tem por função sintetizar e clarificar, pela razão e pela vontade, experiências dos sentidos. Em outras palavras, se o homem experienciasse o mundo apenas mediante seus afetos e pulsões, não seria capaz de criar arte. Sensações estariam, sim, na origem da obra – engendrada de fato pela imaginação, que penetra a realidade subjetiva dos objetos na recriação de suas imagens. Assim, competiria à imaginação "criar uma forma, entendendo-se por forma uma ordem mental atribuída à experiência sensorial e à vida do sentimento. É pela forma que reconhecemos o sinal da atividade mental; e uma forma, para ser artística, deve ser criada, isto é: não copiada nem inventada"2 2 . Idem, p. 20. . Assim sendo, tal interpretação da ideia de arte implicaria: 1) criatividade, que pode ser lida como imaginação criadora da personalidade do artista; 2) concretude, na medida em que toda e qualquer obra de arte pertence ao mundo social (e natural); e 3) abstração, já que sua forma é resultado de um distanciamento mental do mundo concreto (e histórico).

Um dentre os quase infinitos modos de entendimento sobre arte, o exposto acima me servirá como inspiração no entrelaçamento com outro entendimento, dentre inúmeros, sobre documentário, a saber, um tipo fílmico cuja essência reside na dramatização/estetização de um material atual. Desta significação cabe lembrar que, passada uma longa história de redefinições e redescobertas do gênero fílmico, há de se reconsiderar tanto o processo de dramatização quanto a ideia de material atual postulados por Paul Rotha em resposta à concepção de documentário proposta pela primeira vez por John Grierson, em 19263 3 Sobre tais redefinições e descobertas, ver ROSENTHAL, Alan. New challenges for documentary. Berkeley/ Los Angeles/London: University of California Press, 1988. .

O ponto de partida que unirá ambas as dimensões – arte e documentário – é a ideia de técnica (e/ou tecnologia), uma vez que trato de considerar que toda imagem/obra é produzida por meio de algum método técnico, sendo o artifício seu primeiro destino4 4 . Cf. MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas. São Paulo: Papirus, 2002. . Assim, se originalmente, em grego, arte era designada como téchne, indicando um isomorfismo entre criação artística (dimensão estética) e intervenção técnica, sendo uma implícita e inerente à outra, veremos alguns exemplos dessas interseções por intermédio de quatro materiais brutos. Quatro filmes brasileiros contemporâneos subdivididos em duas formas semânticas: documentário de (ou feito por) artista e documentário sobre (cujo tema é um) artista. Eis o recorte: o primeiro grupo é representado por Folia no morro (2008), de Arthur Omar, e Andarilho (2007), de Cao Guimarães; o segundo, por Cildo (2008), de Gustavo Rosa de Moura, e A obra de arte (2009), de Marcos Ribeiro.

Nesse contexto, parece-me oportuno trazer à luz fenômenos contemporâneos aos objetos aqui tratados, que não fazem parte do presente escopo, mas que poderiam criar conexões de pensamento, na medida em que a discussão se baseia na íntima relação entre documentário (cinema, imagem em movimento) e arte: os usos de práticas cinematográficas por artistas plásticos, e a presença, cada vez mais intensa, de dispositivos cinematográficos em exposições e museus – temos, com isso, atravessamentos de cinemas por formas e suportes das artes, assim como destas últimas pelos primeiros. Um ponto-chave que resumiria tal situação é a concepção de "efeito cinema" usada por Philippe Dubois5 5 . DUBOIS, Philippe. Um "efeito cinema" na arte contemporânea. In: COSTA, Luiz Cláudio da (org.). Dispositivos de registro na arte contemporânea. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/Faperj, 2009. para explicar certa tendência da arte em incorporar e "refletir" o cinema como matéria, forma, dispositivo e ideia. A irrigação, que é mútua, do cinema por artistas e da arte por cineastas não é fenômeno recente, podendo ser assistida em obras de nomes como Andy Warhol, Hélio Oiticica, Douglas Gordon, Chantal Akerman, Jonas Mekas, Chris Marker, entre muitos outros, abrangendo diversas gerações e ethos representativos6 6 . Segundo Philippe Dubois (idem, p.186), há um "entre-lugar" em meio a esses "artistas- que-trabalham- com-o-cinema" e os "cineastas-que-se- acreditam-ou-se -experimentam-no- trabalho-de-artista" em que se situam os videoartistas e os cineastas experimentais. Lembro que este não é o objeto do presente artigo. Embora tome como exemplo dois artistas que trabalham com videoarte e cinemas experimentais, destacarei suas produções documentais. .

Tanto o cinema na arte quanto a arte no cinema são entendidos por Dubois como legitimações simbólicas recíprocas, de interesses de territórios – do cinema e da arte. Ao retomar conceitos como "outro cinema" e "terceiro cinema"7 7 . Cf. BELLOUR, Raymond et al. Passage de l'image. Paris: Centre Georges Pompidou/Musée National d'Art Moderne, 1990, e CASSAGNOU, Pascale. Future Amnesia (enquêtes sur un troisième cinéma). Paris: Éd. Sept/Oshme, 2006. , Dubois discute a natureza e/ou a identidade do cinema hoje problematizada, transformada e, quiçá, em vias de desaparecimento. Questionamentos então se pautam nos seguintes termos: a renovação de uma forma artística equivaleria ao esgotamento da outra? O que cada uma dessas entidades (arte e cinema) dá ou retira da outra? Como essas trocas de lugar influenciam sua recepção? E ainda: por que tem havido deslocamentos da arte contemporânea em imagens em movimento? Como imagens projetadas têm encontrado seu lugar no discurso histórico da arte moderna e contemporânea? Como tais imagens redefinem nosso entendimento sobre arte (e cinema)? Como podem elas afetar (ou transformar) nossa experiência visual?8 8 . Cf. LEIGHTON, Tanya (org.). Art and the moving image. A critical reader . London: Tate/Afterall, 2008. Tanya Leighton ainda levanta relevantes questões colocadas pelo crítico francês Raymond Bellour no sentido de que o que teria "a pobre crítica" a fazer agora que o cinema foi "redistribuído, transformado, mimetizado, reinstala do?". A transição entre o que ainda é chamado cinema e as mil e uma maneiras de apresentação de imagens em movimento pede maiores considerações sobre o tipo de cinema que existia antes e esse novo, esse "outro" vago e desgarrado (cf. p. 10). .

Transferindo essas questões para o âmbito do documentário e de seu status intersticial com a arte, no contexto de devir-cinema da arte e do mundo9 9 . Cf. COMOLLI, Jean-Louis. Sob o risco do real. In: Forumdoc. bh.2001. Belo Horizonte, 2001. , tratarei de descrever uma recepção particular, a minha própria, que bifurca modos distintos entre o fazer arte do documentário (ou documentário-arte) e arte no documentário (ou documentário sobre arte). Nessa direção, num primeiro grupo trato de situar filmes inscritos, por excelência, sob o risco de si próprios; documentários destemidos a se ocuparem inteiramente das "fissuras do real"10 10 . Cf. Idem. , se aventurando a contrariar certos padrões clássicos do gênero, e, por esse motivo, aqui chamados de "anamorfóticos". A esse tipo de documentário, o real, ao mesmo tempo, escapa, invade e evade os limites da tela, situando-se num além-campo (afora, ainda, do extracampo), sendo, portanto, transvisto. Em contraposição, localizo um segundo grupo a concentrar tipos objetivos, "ontológicos"11 11 . Cf. BAZIN, André. Qu'est-ce que le cinema? Paris: Cerf, 1981, e Ontologia da imagem fotográfica. In: XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003. , representantes, sem contravenções, de seus referentes; documentários não arriscados, que parecem governar, infalivelmente, o real das imagens contadas. Suas regras da arte são definidas e seguidas de modo preciso, esteticamente harmônico, seguro.

Documentários anamorfóticos

Por anamorfóticos entende-se filmes que deturpam, subvertem, pervertem códigos estabelecidos, resultando, na maior parte das vezes, em tipos marginais. Na história da arte, movimentos modernos, de vanguarda, seriam considerados anamorfóticos por deformarem o sistema perspectivo clássico. Ao discutir o termo, resgatando Jurgis Baltrusaitis – o "estudioso maior dessas perversões" –, Arlindo Machado indica que "as anamorfoses não são mais do que desdobramentos perversos do código perspectivo, mas o efeito por elas produzido resulta francamente irrealista, uma multiplicação de mundos artificiais que atormentam os homens de todas as épocas"12 12 . MACHADO, Arlindo. p. cit., p. 229. . Fato curioso, entretanto, é que, enquanto o impressionismo e o cubismo transverteram o modelo de representação do século XV, a fotografia e o cinema surgiriam como alternativas para repor e perpetuar a figuração que havia sido colocada em crise13 13 . Cf. Idem, ibidem. . Não teria sido à toa que André Bazin defendera e exaltara tais dispositivos por seu objetivismo, uma vez que seriam capazes de facultar à imagem do mundo exterior uma forma automática, sem a intervenção crítica e subjetiva do homem.

Tal concepção de cinema como janela aberta para o mundo (seja ela com ou sem esquadria ou frame, como veremos a seguir) caberia não somente ao modelo ficcional (filho do documentário), mas também ao documental ("em fricção com o mundo"14 14 . Cf. COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: UFMG, 2008. ). Entretanto, em resposta à questão posta por Bazin, Jean-Louis Comolli, ao analisar a questão "o que é documentário?", afirma:

O cinema não é o jornalismo, se bem que este como aquele pertençam à ordem das narrativas. Somente nossa cegueira e nossa surdez, provocadas e/ou escolhidas, podem explicar que nós tomemos as informações agenciadas por um jornal ou por um programa (televisual ou não) como a afirmação transparente do que aconteceu. [...] A crítica maior que nós devemos dirigir à mídia, agentes da informação, se refere à crença na chamada "objetividade" por meio da qual ela mascara frequentemente o caráter eminentemente precário, fragmentário e, por fim, subjetivo, do que é tão somente o seu trabalho. Subjetivo é o cinema, e, com ele, o documentário. Não é necessário recordar essa verdade – contudo, geralmente perdida de vista – que o cinema nasceu documentário e dele conquistou seus primeiros poderes (Lumière)15 15 . Idem. Sob o risco do real. In: op. cit., 2001, p. 102-103. .

O documentário, sob tal viés, seria um "cinema como praxis"16 16 . Idem, p. 104. , a se forjar na própria realidade como ação (livre das amarras e da segurança dos roteiros). Mais precisamente, o documentário seria tanto uma prática de invenção ou criação de real (que não pode ser simples e objetivamente colado à tela) quanto uma realidade colocada em prática, em ação, como objeto fílmico17 17 . Para mais detalhes, ver CAIXETA, Ruben e GUIMARÃES, César. Pela distinção entre ficção e documentário, provisoriamente. In: COMOLLI, Jean-Louis. Op. cit., 2008. .

Dentro dessa proposição, documentários anamorfóticos seriam aqueles cujo real criado se situaria numa ordem infame18 18 . Cf. FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Ed. Passagens, 1992. , já que põem em presença corpos resistentes, residuais, excluídos, por intermédio de imagens imaginárias, decompostas, sujas. Sua potência estaria, portanto, no maldito. Esse tipo de documentário pertenceria ao que Comolli chama de "parcela obscura do espetáculo" ou "a parte da arte", cabendo a ela, "hoje mais do que nunca, representar a estranheza do mundo, sua opacidade, sua radical alteridade, em resumo, tudo o que a ficção à nossa volta nos esconde escrupulosamente"19 19 . COMOLLI, Jean-Louis. Op. cit., 2008, p. 178. . Imagens e corpos a povoarem esse tipo de documentário correriam o risco de serem insuportavelmente confrontadores ao espectador médio, acostumado, em sua cotidianidade, a frames. Finalmente, documentários anamorfóticos seriam destituídos de enquadramento. Enquadramento de linguagem, pensamento, discurso, sensação, percepção. Tais filmes retirariam, assim, o que outras mídias, cinemas e dispositivos tratam de nos dispor em excesso: frames de imaginação. Nesse sentido, seria possível dotar os documentários anamorfóticos de uma condição centrífuga, aquela que leva o olhar de quem os vê para "longe do centro, para além de suas bordas, pedindo, inelutavelmente, o fora-de-campo, a ficcionalização do não-visto"20 20 . AUMONT, Jacques. O olho interminável (cinema e pintura). São Paulo: Cosac & Naify, 2004, p. 111. . Tal centrifugismo será aqui reconhecido por meio de duas formas imagéticas e figuras de linguagens: o caleidoscópio e a metáfora.

Caleidoscopia antidocumental

Se encaixarmos Folia no morro, de Arthur Omar, no modelo anamorfótico de documentário, teremos a hipótese do frame em contradição de termos. O desenquadramento explícito de imagens, corpos, danças e memórias apresenta-se, nesse filme, em seu movimento quase oposto: num multienquadramento caleidoscópico que, a começar, transverte a origem do próprio rito que trata. Como tradicional objeto de estudo de folcloristas e antropólogos, a folia de reis é, em perspectiva generalizada, tratada como manifestação cultural associada a contextos rurais, de origem camponesa. Sujeita ao desaparecimento nas sociedades modernas e complexas tal manifestação poderia configurar uma "retórica da perda"21 21 . Cf. GONÇALVES, José Reginaldo apud BITTER, Daniel. A bandeira e a máscara: estudo sobre a circulação de objetos rituais nas Folias de Reis. Tese de doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008. . Não é isso, contudo, o que o filme nos dá a ver. Seu cenário é o morro Dona Marta, situado na Zona Sul do Rio de Janeiro – configuração geográfica e social ao mesmo tempo à margem do Estado e característica da identidade urbana carioca. É nesse espaço que se reenquadra (ou se ressignifica) aquela manifestação ou suas reminiscências.

Em releitura urbano-comunitária, a folia de reis é experimentada pelo vídeo como um tempo a inaugurar interessante paradoxo: embora se tenha certa impressão de instantaneidade do acontecimento a assegurar simultaneidade entre o tempo da imagem e o tempo real do objeto que ela dá a ver22 22 . Cf. DUBOIS, Philippe. Op. cit. , o filme, de fato, congrega uma série de tempos – captados ao longo de treze anos – numa transitividade de suportes agregadora de novas e velhas tecnologias. Além de todos esses tempos, presenciamos, ainda, o tempo da própria folia como fenômeno cultural tradicional, em sua origem remota e ibérica.

A folia no Santa Marta foi filmada em vídeo, esse "gênero de obras"23 23 . KRAUSS, Rosalind. Vídeo: a estética do narcisismo. Disponível em: < http://www.eba.ufrj.br/ppgav/lib/exe/ fetch.php?media=revis ta:e16:rosalindkrauss.pdf>. Acesso em: maio de 2011. , em todos os formatos que surgiram e desapareceram ao longo do período (Hi8, digital 8, Betacam, mini DV, DVCam e HDV) – esse fato faz com que o próprio documentário "seja também um registro de uma evolução tecnológica"24 24 . Ver BENTES, Ivana. Folia no morro, de Arthur Omar. Disponível em: < http://www.cinemabrazil.com.br/pipermail/cinemabrasil/2008-No-vember/001822.html>. Acesso em: maio de 2011. . O uso potencializado de diversas tecnologias acaba por revelar uma espécie de fascinação do diretor por dispositivos imagéticos, o que comprova, a partir de uma interação estética entre a folia de reis e sua experimentação audiovisual, que "a cultura popular é vista não como tema, mas como linguagem, processo e produção de figuras de linguagem"25 25 . Idem. . Segundo Arthur Omar, Folia no morro é "um trabalho essencialmente fundado na linguagem, que reflete sua linha independente no contexto do documentário brasileiro"26 26 . OMAR, Arthur. Entrevista [à Mostra Etnográfica]. Disponível em: < http://www.yotube.com/watch?v=WA305jEZU1A>. Acesso em: junho de 2011. . Ao criar uma bricolagem linguística e tecnológica da folia, o artista-auteur parece fazer da câmera um "pincel eletrônico"27 27 . Cf. DUBOIS, Philippe. Op. cit. , já que a tecnicização do rito envolve uma descrição imagética que dá lugar a outras descrições (sobre o mesmo objeto), modificando e, ao mesmo tempo, mantendo as precedentes. Tal polifonia iconográfica pode ser lida como virtualização do real e da própria imagem a deixar de pressupor uma forma do verdadeiro.

Personagens (reais), como em teatro ou no ato folclórico mesmo, encenam papéis, por sua vez, reencenados e virtualizados pela composição artística do filme. O real virtual (e artístico) é-nos, assim, dado a decifrar. A estética caleidoscópica – fragmentada, combinada, prismada –, proposta pelo jogo de imagens, carrega sua própria contradição: uma espécie de labirinto que, diferentemente da concepção borgiana, guia -se por um tempo (aquele do próprio documentário), como uma espécie de bússola, que se repete e confunde. O próprio filme constrói o labirinto, conferindo-lhe eixo e finitude.

No lugar de dispor espacialmente formas temporais (e narrativas) próprias a modos "enquadrados" do cinema documentário, Folia no morro reenquadra, despacializa, destemporaliza e desordena o ritual em tela múltipla, através da montagem (ou da desmontagem). O movimento passa a depender do tempo, que, por sua vez, é assimétrico: condensado, distendido, linear, invertido, alternado, paralelo. Adquirimos, assim, uma espécie de polivisão, dispersiva, lacunar e orgânica, concomitantemente. Aqui não vemos de forma explícita elementos de cognição clássicos do gênero documental, como interação, entrevistas, narração, observação, autorreflexão28 28 . É importante lembrar que, com essa sugestão, não pretendo definir regras ou leis gerais relativas ao gênero que, a meu ver, possui estatuto incontrolável. Em acordo com Carl Plantinga, creio ser impossível definir homogeneidade ao documentário que, contrariamente ao cinema ficcional clássico, não se pauta por convenções estilísticas ou narrativas. Cf. PLANTINGA, Carl R. Rhetoric and representation in nonfiction film. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1997. .

As várias telas usadas por Arthur Omar para tipografar personagens da folia (mestre, palhaços, foliões) tratam de desenquadrar (e multienquadrar) certa composição ótica do espectador. Vê-se então uma hibridação de linguagens e temporalidades, em que impureza e opacidade gerariam uma secundidade do real-ritual em função de uma primeiridade técnico-artística. Em trecho de texto explicativo sobre o projeto do filme tal ideia pode ser esclarecida:

Folia no Morro é, em si mesmo, puro audiovisual. Toda a informação passa para o espectador através dos elementos sensoriais colocados à sua disposição. Não há narrador, quase nenhuma entrevista, nenhum depoimento, ninguém sentado num banquinho diante da câmera. Nada é dito que não seja um acontecimento direto na tela, diante dos olhos. Até o som das vozes e dos instrumentos têm sempre sua origem na tela, não há a clássica sonorização, tudo é montado do ponto de vista de alguém que está dentro da folia29 29 . BENTES, Ivana. Op. cit. .

Na duração fílmica é reiterada ao espectador sua própria construção, fazendo ocorrer uma desrealização (ou uma desreferencialização) do real, que parece ser produzida na (e pela) própria tela no ato da recepção. A composição do frame é desfeita, multiplicada, espalhada.

Arthur Omar reafirma, mais de três décadas depois, sua tese e prática artística baseada no que chama de "antidocumentário"30 30 . Cf. OMAR, Arthur. O anti-documentário, provisoriamente. In: NETO, Simplício (org.). Cineastas e imagens do povo. Rio de Janeiro: Jurubeba Produções, 2010, p. 147-156. Sobre essa noção é interessante ver a discussão retomada por Ruben Caixeta e César Guimarães em COMOLLI, Jean-Louis. Op. cit., 2008. . Em Folia no morro claro está que o artista ainda se contrapõe a certa corrente do documentário brasileiro estabelecida, sobretudo, nas décadas de 1960 e 1970, denominada por Jean-Claude Bernardet de "modelo sociológico", que, como se sabe, traduz determinada autoridade sobre cultura popular, nação e identidade sob proteção de uma "coesão interna" a comprovar uma "coerência do real" implicada na coincidência entre filme/discurso e realidade31 31 . Para mais detalhes, ver BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. . Tal proposição pode ser lida em outro fragmento sobre o filme:

As imagens são informais, de alguém arrebatado pelos acontecimentos. O objetivo deste vídeo é mais que um estudo etnográfico direto, mais que uma penetração nas contradições do grupo, mais que uma investigação histórico-sociológica do enraizamento daquela prática ali, ou o seu significado simbólico, é simplesmente fazer com que o espectador mergulhe na folia, percebendo com seu corpo e seu sistema nervoso toda a gama de emoções ali contida32 32 . BENTES, Ivana. Op. cit. .

Claro está, portanto, o desinteresse e a quase aversão de Arthur Omar à autoridade produtora de uma "ilusão de conhecimento"; ou seja, em Folia no morro, o antidocumentário viria combater, novamente, o tipo de filme científico, antropológico, sociológico, perpassado de empirismo. Ao sugerir certa informalidade das imagens presenciadas por alguém "arrebatado pelos acontecimentos", o texto citado acima indica que o artista, longe de pretender mostrar, promover ou comprovar a folia de reis para quem não a conhece, experimenta um "devir-folião", imprimindo a mise-en-scène dos foliões em sua própria mise-en-scène artística. Além disso, parece ser objetivo do diretor fazer com que o espectador participe do mesmo devir. O ato de assistir se juntaria então ao de performar – junção esta a gerar um "espectador-folião". Eis a inversão proposta pela antropologia pós-moderna: o outro se torna o próprio; a alteridade, análoga. Eis o jogo de espelhos.

Caleidoscópio = palhaço - mestre - foliões - pastorinhas - morro - banda - bandeira - acordeão - tambor - dança - máscara - fantasia - quadra de samba - parte da vida - acrobacia - música - tá bonito - viva Deus - viva nós - Rocinha - Irajá - beco - casa - Rosa - Maria Delfina - Maria Martins - raízes antepassadas - Eva - Santa Marta, com muita honra - Mestre Dodô - Mestre Zé Diniz - São Sebastião - três reis magos do oriente - azul - guia - transe - descante - 1998 - 2008 - virgem Santa Maria - o gênio já nasce um gênio - a pobreza é uma arte - lutei com a danada da morte - saúde pra todo meu folião, sanfona! - vou tirar a minha máscara - vou tirar a minha farda - viva todos que estão presentes.

Homens que andam, em metáforas

Em comum com Folia no morro, Andarilho, de Cao Guimarães, teria os corpos marginais e o desenquadramento. Entretanto, enquanto os personagens da folia são atores de um ato folclórico (moradores do morro Santa Marta a performarem papéis foliões), os andarilhos são personagens e atores de si próprios e do mundo. Tipos que não queremos ver ou, mais ainda, que tornamos invisíveis da realidade, e que tampouco nos são dados a ver em outras formas midiáticas. (Afinal, qual seria o propósito daqueles homens? E mais: qual o propósito de fazer um filme sobre eles?) Além disso, contrariamente ao vídeo de Arthur Omar, em sua pluralidade de quadros a gerar desenquadramento caleidoscópico, vivenciamos em Andarilho uma suspensão do frame através de uma distensão que é, conjuntamente, temporal, poética, onírica, real. Presencia-se, nesse sentido, uma expansão ótico-sensória a deslocar componentes do documentário, da arte, do mundo. Por esses e outros motivos, o filme de Cao Guimarães também pertenceria à condição anamorfótica do documentário, avistada a seguir através da ideia de metáfora.

"No livro terceiro da Retórica", escreve Jorge Luis Borges, "Aristóteles observou que toda metáfora surge da intuição de uma analogia entre coisas dessemelhantes"33 33 . BORGES, Jorge Luis. Las Kenningar. In: Historia de la eternidad. Buenos Aires: Emecé Editores, 1971, p. 70. . Podendo ser lida como conjetura imaginária a criar e explicar realidades, a metáfora confere um processo de assimilação e transformação de sentidos que atualizam novas percepções. Se julgarmos a linguagem metafórica como a primeira, e não como segmento posterior à literal, poderemos supor que Andarilho, por seu caráter expansivo e fabular, inverte certas proposições literais do documentário, parecendo-se mais uma metáfora do que imaginamos serem andarilhos (na realidade) do que os próprios andarilhos filmados da realidade. Imprime-se, com isso, uma primazia da metáfora no lugar de imagens literais próprias a filmes que se propõem hipóstases de mundos. Inscrito como metáfora de tempos e de homens, Andarilho suspende certa linguagem ou imagem ontologicamente precedente, bruta ou inicial dos mesmos implicando consequente desenquadramento – acontecimento que acabaria por borrar dualidades entre documentário e vida, já que, em termos metafóricos, ambos pertenceriam a formas de pensar e olhar a partir de outros significados. De modo a clarificar as coisas, trago como exemplo "Las Kenningar", de Borges.

Ao reescrever e recriar a poesia medieval islandesa, o escritor argentino eleva a metáfora à potência cognitiva que amalgama afinidades entre significados e significantes. Nesse entendimento, nomes (substantivos) que damos às coisas do mundo no cotidiano poderiam ser tomados como formas cômodas, abreviadas e suprimidas de imagens e adjetivos em movimento, que teriam como representantes as kenningar. Estas são perífrases a designarem, metaforicamente, palavras e coisas, cujos sentidos fluidos, dobrados, triplicados seriam captados em devir. O ar, por exemplo, significa "casa dos pássaros" e "casa dos ventos". A batalha, "tempestade de espadas", "voo de lanças", "festa de vikings". "Sol das casas" e "perdição das árvores" = o fogo; "pedras do rosto" e "luas da fronte" = os olhos; "assento das gargalhadas" e "nave do coração" = o peito; já o coração = "maçã do peito" e "dura bolota do pensamento"; o sangue, por sua vez = "suor da guerra", "cerveja dos corvos", "água da espada". E por aí vai.

Eis, precisamente, o motivo pelo qual relaciono Andarilho às kenningar: seus sentidos distendidos dispensam artigos definidos, e, com eles, fixidez, essência. Suas formas primeiras, metafóricas, como gêneros alegóricos, prescindem de critérios estáticos de significação. São, portanto, sentidos em devir. Nessa condição, Andarilho, assim como as kenningar, estaria do lado do informe, do inacabado, do descentrado, se considerarmos que o devir das imagens e palavras não é representação (em correspondência de relações), tampouco analogia, imitação ou composição34 34 . Cf. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997. . No caso do filme, andarilho não significa simplesmente "aquele que anda muito, percorre muitas terras ou anda de forma erradia", nem "aquele que leva cartas ou notícias", tampouco "lacaio que acompanhava a pé os amos que iam de carro ou a cavalo". No documentário do artista mineiro, andarilho poderia ser olhado, pensado e sentido como "pés da estrada", "pensamento do mato", "olhos das nuvens", "balbucios do entardecer".

Imagens metafóricas e em devir: corpos que estabelecem significados outros podendo inclusive se valer de outros "algos" diferentes; homens verdadeiros que parecem fabulares, fantásticos, alegóricos; seres que são também estradas, pés, matos, fumaças, barulhos, sóis. Os andarilhos de Cao Guimarães parecem menos com indivíduos que andam em estradas esfumaçadas, barulhentas e ensolaradas. Mais que isso, são seres a experimentar diferentes devires. Andarilho não é a imagem de um homem que caminha, desdobrada num duplo fictício/cinematográfico, mas sua própria indiscernibilidade. Os corpos, no filme, tornam-se matos, carros, nuvens e céus. Aqui não há analogia entre homem e estrada, tampouco imitação do homem em natureza. Andarilho ser sol, no infinitivo mesmo35 35 . Para Deleuze, "o verbo infinitivo põe a interioridade da linguagem em contato com a exterioridade do ser. Exprimindo na linguagem todos os acontecimentos em um, o verbo infinitivo exprime o acontecimento da linguagem, a linguagem como sendo ela própria um acontecimento único que se confunde agora com o que a torna possível". DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 190. . Andarilhos e coisas permanecem diferentes em sua semelhança e semelhantes em sua diferença: devir-animal, devir-estrada, devir-nuvem, devir-sol.

Assim Andarilho se nos apresenta: tal qual um rizoma que liga coisas a outras, em cruzamentos sem eixos, desterritorializados, descentralizadores de duplos como sujeito/objeto, real/irreal, razão/sensibilidade, cultura/natureza. Tomando antropologicamente tal condição, podemos nos aventurar a perceber os andarilhos do filme de Cao Guimarães sob chave ameríndia, uma vez que para guerreiros e xamãs dessa cosmologia "ver, sonhar, existir são atitudes e condições que se transformam incessantemente, pois humanos e não humanos são estados transitórios, em puro devir"36 36 . CAIXETA, Ruben e GUIMARÃES, César. In: op. cit., 2008, p. 42. . Se, à luz do perspectivismo elaborado pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, podemos imaginar que viver é diferir em continuidade e originalmente, o andarilho, poderia ser visto em suas várias designações e devires, sendo uma forma do universal a experimentar múltiplas possibilidades de naturezas. O caso de os andarilhos serem gentes, mas também estradas, matos e sóis, demonstraria uma cultura errante, em sua natureza móvel e relacional37 37 . Cf. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem, e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002. . Nessa acepção particular do que se expõe na tela pelo artista mineiro, vê-se que Andarilho manifesta tacitamente diversas possibilidades de existência e não diversas formas de representação do que seja um andarilho (fato que dá a pressupor o desenquadramento mencionado). Entretanto, é sempre bom lembrar: os andarilhos são sós, isolados e únicos em seus devires. Metamorfoseiam-se permanecendo.

Se, como compostos de sensações, afectos são "devires não humanos do homem", e perceptos, "paisagens não humanas da natureza"38 38 . "Não estamos no mundo, tornamo-nos com o mundo, nós nos tornamos, contemplando-o. Tudo é visão, devir. Devires animal, vegetal, molecular, devir zero". DELEUZE, Gilles. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 1992, p. 220. , pode-se dizer que Andarilho os emana, uma vez que a obra de Cao Guimarães, toma distância de identidades substanciais a respeito de documentário e de arte, mostrando-se uma experimentação de vidas inorgânicas imanentes aos homens, de pensamentos que brotam de existências mais elementares, de homens ausentes, mas inteiros na paisagem39 39 . Cf. Idem, ibidem. .

Documentários ontológicos

A respeito do termo tomado emprestado de André Bazin, que compõe o subtítulo acima, lembro: se a ontologia do filme, para o crítico francês, reside também em sua recepção – ou seja, na crença criada pelo espectador num cinema capaz de transpor mecanicamente à tela imagens do mundo social, atual, vivido – esta se dá por determinada condição ou intenção discursiva. O que quero dizer, no caso do documentário, é que tal crença seria gerada em um contrato estabelecido entre documentarista e espectador de que imagens filmadas e vistas participam de um mundo concreto, empírico, e não de um imaginário. E aqui retomo pressupostos de objetividade e do cinema como janela do (e para o) mundo defendidos por Bazin. Para tanto, creio nunca ser pouco nem tarde citar seu ensinamento:

A fotografia, ao redimir o barroco, liberou as artes plásticas de sua obsessão pela semelhança. Pois a pintura se esforçava, no fundo, em vão, por nos iludir, e esta ilusão bastava à arte, enquanto a fotografia e o cinema são descobertas que satisfazem definitivamente, por sua própria essência, a obsessão de realismo. Por mais hábil que fosse o pintor, a sua obra era sempre hipotecada por uma inevitável subjetividade. Diante da imagem uma dúvida persistia, por causa da presença do homem. Assim, o fenômeno essencial na passagem da pintura barroca à fotografia não reside no mero aperfeiçoamento material (a fotografia ainda continuaria por muito tempo inferior à pintura na imitação das cores), mas num fato psicológico: a satisfação completa por nosso afã de ilusão por uma reprodução mecânica da qual o homem se achava excluído. A solução não estava no resultado, mas na gênese40 40 . BAZIN, André. Op. cit., 2003, p. 124. .

Obviamente que desde 1958, quando da escrita desse texto, o mundo e o cinema mudaram significativamente. Com isso, quero dizer que a crença numa não contaminação entre a coisa e seu duplo imagético seja um tanto ingênua em nossos dias. Por outro lado, ao retomar a ideia, busco chamar atenção à concepção de psicologia da imagem uma vez que, como espectadores, somos chamados a interiorizar a crença de que o objeto representado é literalmente "re-presentado", isto é, tornado, de certa forma, presente no tempo e no espaço, como uma espécie de transferência da realidade. Talvez a psicologia baziniana seja o principal ponto de distinção entre documentários anamorfóticos e ontológicos, uma vez que estes últimos não "traem" o espectador na busca pela ilusão do real, tampouco põem em xeque a condição ou o estatuto das imagens vistas. São, ao contrário, fiéis ao mundo "re-presentado", já que a "encarnação" de um espaço-tempo determinado está ali, inegável.

Por mais que no processo de construção do documentário ontológico tenham sido escolhidos ângulos, cenas, planos, enquadramentos e montagens (o que o diferencia, por sua vez, do mero registro), é em seus discursos que se notaria assimetrias em relação ao tipo anamorfótico. Enquanto este último trata de presenciar corpos transgressivos, em imagens decompostas, sem margens (ou marginais) e sem frames, aquele preza por limpidez, clareza, coerência e organicidade do real, e, finalmente, por seu enquadramento. Contrariamente aos documentá rios anamorfóticos, os tipos ontológicos possuiriam natureza centrípeta, fechando a tela "sobre o espaço de sua própria matéria e de sua própria composição, obrigando o olhar do espectador a voltar sem parar para o interior"41 41 . AUMONT, Jacques. Op. cit., p. 11. . A moldura de dada experiência conferiria segurança ao espectador em relação ao espaço-tempo que vê, à "re-presentação" de um mundo vivido, em sua limitação mesma, isto é, naquilo que dela não escapa.

O artista, sem equívocos

Em seu último livro, Néstor García Canclini evoca Jacques Rancière para discutir a ideia de "arte pós-autônoma" e de "artistas como trabalhadores do dissenso", significando com isso, sumariamente, uma articulação entre estética e política de modo a dar visibilidade ao escondido, reconfigurando a divisão do sensível e tornando evidente o dissenso42 42 . CANCLINI, Néstor García. La sociedad sin relato: antropología y estética de la inminencia. Buenos Aires: Katz Editores, 2010, p. 137. . E o que seria o dissenso? "Não apenas o conflito entre interesses e aspirações de diferentes grupos. É, em sentido estrito, uma diferença no sensível, um desacordo sobre os mesmos dados de uma situação, sobre objetos e sujeitos incluídos na comunidade e sobre os modos de inclusão"43 43 . Idem, ibidem. . Dentre esses artistas, Canclini elenca Cildo Meireles, cuja arte não se proporia a mimetizar uma linguagem da certeza e da correção política, mas, ao contrário, a tornar visíveis procedimentos de desorganização. Assim, o trabalho de artistas como Cildo Meireles "não aparece como repertório de respostas, nem como gesto de buscá-las. Seria, mais precisamente, o lugar onde as perguntas e as dúvidas se traduzem e retraduzem"44 44 . Idem, p.163. .Vemos aqui uma interpretação que coloca as obras de Cildo Meireles num lugar da dúvida, do incerto, do inconcluso, do aberto, do desorganizado.

Tal interpretação teórica a abrir e expandir a obra do artista parece se distanciar do documentário que carrega o primeiro nome do artista em seu título. Ao tentar "re-presentar" obras de Cildo Meireles no cinema, Gustavo Moura as enquadra e, junto a elas, sua recepção, que passa pelo filtro dos ângulos, planos e sequências compostos por uma sensação particular. O documentarista enquadra sua experiência em relação à obra, enquadrando consequentemente a própria obra e a experiência de quem a vê na tela de cinema. Nesse sentido, Cildo, o filme, ao tornar presente a obra do artista para quem nunca a experienciou na realidade (em sua expansão, contestação, pós-autonomia e intradução), ata seu devir, trazendo fixidez ao fluido, substantivando o metafórico.

Na busca ontológica por um real claro, inquestionável, vemos entrevistas e depoimentos do artista, que não deixam dúvidas sobre seu discurso e seu pensar artístico. Além disso, também vemos, "re-presentada" na tela, sua arte. Mais ainda: podemos quase penetrá-la e tocá-la, tamanha a proximidade com sua realidade. Não fosse o detalhe de essa experiência de visão, penetração e toque não ser nossa, mas da objetiva da câmera de Gustavo Moura, que guia o espectador dentro de seu quadro, estaríamos livres para sentir e imaginar, nós mesmos, as obras de Cildo. Mas isso só seria possível, de fato, na própria realidade. É irrealizável a qualquer documentário fazê-lo por nós. Afinal, convindo lembrar Walter Benjamin, a experiência sensorial de cada espectador frente a uma obra única faz parte de um momento ritual, de um domínio inalcançável e, portanto, irreprodutível. Assim, Cildo atualiza a ontologia de que trato: na medida em que supostamente duplica uma sensação que tenta se tornar alcançável em sua fixidez.

Não seria errôneo assistirmos ao filme rememorando regras e enquadramentos do estilo clássico de documentário, uma vez que parece servir ou ser feito para apresentar o artista e sua obra a quem não os conhece. Curiosamente, cabe notar que a figura do artista apresentada é a pública, conhecida e divulgada em outros e inúmeros meios. Não vemos uma face privada, íntima, profunda ou errante de Cildo Meireles. Não é a isso que o filme se propõe. Além do artista, suas obras (também conhecidas e publicadas) são enquadradas pela câmera aparecendo sempre junto, antes ou depois do discurso do criador, para que não restem dúvidas ao espectador sobre sua realização. Não se veem falhas, riscos, defeitos de um artista em seu mundo privado ou em seu processo de criação. Não se veem fissuras no documentário. Pelo contrário, trata-se de um filme indubitável. Não apenas as obras de Cildo Meireles são enquadradas impecavelmente, como o são também seus discursos. Por exemplo, em mais de uma ocasião, o artista conta sua inspiração por Michael Collins, astronauta que ficou na nave na primeira ida do homem à lua. Na primeira vez em que a história é contada, ao mesmo tempo em que escutamos a narração do artista, vemos a imagem clássica de Neil Armstrong e Edwin Aldrin pisando no satélite em 1969, e, numa segunda vez, ouvimos a mesma história – como se ela necessitasse ser legitimada por seu próprio autor – em entrevista dada a uma jornalista em Londres.

Dentro do documentário de Gustavo Moura há outro de Wilson Coutinho, de 1979, intitulado Cildo Meireles. Este outro filme pode ser visto como um elemento de legitimação de discursos e obras do artista para além de seus próprios discursos e obras já contidos em Cildo – como se o documentário de 2008 precisasse dessa espécie de "legenda" para ser ainda melhor compreendido. Obras, discursos e o próprio documentário em si se constituem a partir de legendas, âncoras, enquadramentos de enquadramentos, que não permitem ao espectador ver, ouvir ou sentir nada para além do que é mostrado. Esses fatos, já evidentes, tornam-se ainda mais redundantes em dois momentos-chave. No primeiro, Cildo Meireles está acabando de montar a obra "Eureka/ Blindhotland, 1970-75" na Tate Modern. A imagem da instalação exposta em 2008 no museu britânico é entremeada por outra imagem da mesma instalação no filme de Wilson Coutinho, que traz a seguinte narração: "Exposição 'Eureka/Blindhotland', de 1975, a busca por um espaço que não é mais o do olhar. É tátil, sonoro, físico". Ao voltar à exposição londrina e enquadrar a obra no meio da tela, o documentário de Gustavo Moura, sem querer, desconstrói o que acaba de ser dito pelo documentário de Wilson Coutinho. Não é possível tocar, ouvir ou sentir "Eureka/Blindhotland" como a obra em si nos proporia, embora esta seja a intenção do diretor. Na cena seguinte à imagem da instalação, vemos Cildo Meireles em entrevista num carro, ao lado de Frederico Morais (apresentado em pequena legenda como "historiador e crítico de arte"), dizendo que "em vários trabalhos todos os sentidos se aguçam, não só o olhar, mas o tato, a sola do pé...". Aqui vemos o artista reiterando ou legitimando o outro documentário usado dentro do documentário para legitimá-lo. Ouvimos, em discursos, uma legenda de outra legenda. Não há metáforas, só explicações claras e precisas, de ordem tautológica. E, como entende Georges Didi-Huberman, "o homem da tautologia pretenderá eliminar toda construção temporal fictícia, quererá permanecer no tempo presente de sua experiência do visível: quererá não ver outra coisa além do que vê presentemente"45 45 . DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34,1998, p. 49. .

O segundo momento-chave é a cena seguinte à entrevista no carro, que mostra a instalação Volátil, 1980-84. Junto a este título, lemos a legenda com os elementos que compõem a obra: "talco, vela, cheiro de gás de cozinha". O discurso do artista a acompanhar a instalação em questão é sobre memória. Nele, Cildo Meireles indica que o objeto de arte não repousa em sua materialidade, mas incorpora uma espécie de memória coletiva, ganhando autonomia para além do momento imediato da criação. Num dado momento da entrevista, não nos é dada a ouvir a pergunta feita pelo entrevistador – enquanto ela é feita, vemos o rosto do artista que, para explicar a questão física e imaterial da obra, faz uma analogia com o rádio e a televisão. Para ele, enquanto o rádio possibilita uma "viagem" para longe, um desprendimento imaginativo, a televisão é impositiva, limitadora. Em seguida a este discurso, vemos uma imagem quase televisiva de Babel – instalação de rádios, de 2001. Novamente, nos deparamos com uma tentativa de enquadramento do que seria ininquadrável – a instalação de rádios, que pressuporia uma imaginação ilimitada, em frame. Não terminam aqui os exemplos de ontologia possíveis de diagnosticar em Cildo (que denotam encaixes entre o que é dito e visto, entre imagem e a não dúvida do discurso sobre ela própria), contudo ainda resta-me compará-los a outro documentário brasileiro contemporâneo: A obra de arte.

Pintores em quadros

Eduardo Sued, Carlos Vergara, Beatriz Milhazes, Waltercio Caldas, Tunga, Ernesto Neto e Cildo Meireles são os artistas protagonistas do filme de Marcos Ribeiro, que em seu texto explicativo diz buscar responder às seguintes questões: "Como nascem e prosperam as obras de arte? O que são obras de arte?". Assim, A obra de arte "revela a descoberta do mundo das artes plásticas pelo diretor, e como este mundo pode ser entendido e apreciado por todos". Analogamente a Cildo, neste documentário descobrimos como nascem as obras de arte não por nós mesmos, mas através da égide do diretor; é Marcos Ribeiro que nos fará entender e apreciar o mundo das artes plásticas. Em quais aspectos ontológicos este filme se aproxima daquele discutido acima? Apostaria num principal: a tautologia, já referida, que faz vencer o discurso sobre o olhar. Para clarificar a aposta, cito Didi-Huberman, para quem o homem da tautologia faz tudo para

recusar as latências do objeto ao afirmar como um triunfo a identidade manifesta desse objeto mesmo: "Esse objeto que vejo é aquilo que vejo, um ponto, nada mais". Terá assim feito tudo para recusar a temporalidade do objeto, o trabalho do tempo ou da metamorfose do objeto, o trabalho da memória no olhar. Logo terá feito tudo para recusar a aura do objeto, ao ostentar um modo de indiferença quanto ao que está justamente por baixo, escondido, presente, jacente. E essa própria indiferença se confere o estatuto de um modo de satisfação diante do que é evidente, evidentemente visível: "O que vejo é o que vejo, e me contento com isso". [...] O artista não nos fala aqui senão "do que é óbvio". O que ele faz quando faz um quadro? "Faz uma coisa". Que faz você quando olha o quadro dele? "Você precisa apenas ver". E o que você vê exatamente? Você vê o que vê, ele responde em última instância46 46 . Idem, p. 39-55. .

O artista ao qual Didi-Huberman se refere não é nenhum dos protagonistas de A obra de arte em si, mas todos eles dentro do filme, na medida em que, ali, servem para explicar suas obras e como elas nascem. Nesse papel, os artistas tratam de eliminar temporalidades de seus próprios objetos de criação, impondo-os como objetos a serem vistos imediatamente como são. Contrariamente, se os víssemos sem tais mediações, mas diretamente ou em relação, nossa recepção poderia ser caracterizada como "dialética intersubjetiva"47 47 . Cf. Idem, ibidem. . Dessa forma, a experiência que teríamos com obras dos mesmos artistas, no tempo e em relação, faria delas variáveis em situação: "uma variável, transitória ou mesmo frágil, e não um termo último, dominador, específico, excluído em sua visibilidade tautológica. Uma variável numa situação, ou seja, um protocolo de experiência sobre o tempo, num lugar"48 48 . Idem, p. 67. . Inversamente, A obra de arte, ao pretender explicar o que é a obra de arte, acaba por aniquilar sua variabilidade e transitoriedade, conferindo a obras objetividade e validez.

Com tal problematização, busco reforçar o caráter da recepção de uma obra de arte, uma vez que deveria superar qualquer historicismo no âmbito da experiência e/ou da consciência estética. Ao tentar impor conceitos de arte e de artístico, a tautologia, assim como outras formas encerradas de consciência estética se responsabilizam pela criação de "coleções" ou categorias, encarregando-se, portanto, de "enquadrar" a arte, prendendo-a a formalismos – consequência em desacordo com a concepção ampliada da hermenêutica49 49 . Cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método. Salamanca: Sígueme, 2005. . Se expressões tautológicas tendem a obliterar a obra, o fazem igualmente com sua recepção, suprimindo experiências e, por conseguinte, diferenças e tempos.

Outro ponto que creio interessante discutir (e que concerne aos dois filmes, mas, sobretudo, ao que traz em seu título o nome "a obra de arte") é a escolha e a legitimação dos objetos/artistas escolhidos. O uso normativo que passou a circunscrever artistas num regime de singularidade resulta de uma construção sócio-histórica que buscou cristalizar o modelo de artista criador. Herança da Idade Média, a bipartição das atividades humanas entre manuais e intelectuais pauta até nossos dias a categorização e o reconhecimento de identidades sócio-profissionais. O modelo do artista criador teria marcado a passagem de um paradigma de representação, a saber, o da valorização da pessoa do artista em detrimento da produção. Tal mutação se inscreve amplamente no contexto da modernidade, colocando em evidência o estatuto da autoria a designar um privilégio raro e uma qualidade natural referente ao "dom", sendo estes valores próprios a uma personalidade50 50 . Cf. HEINICH, Nathalie. Ce que l'art fait à la sociologie. Paris: Les Éditions de Minuit, 1998. .

Entre a tradição do artesanato medieval, ancorado nas corporações urbanas, e o novo regime acadêmico, legitimador de subjetividades biográficas, vemos coexistirem universos distintos: artesãos e acadêmi cos, homens do povo e elite, velhos e novos, pequenos e grandes, numerosos e raros, anônimos e célebres. Nesse novo campo das artes, a heterogeneidade de posições passa a revelar certa cristalização em torno de um polo academicista, elitizado, que pouco a pouco impõe hierarquias51 51 . Cf. Idem. Du peintre a l'artiste – artisans et académiciens a l'age classique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1993. . Não seria à toa que a obra de arte que o filme propõe revelar através do olhar de seu diretor não é a de um Mestre Vitalino, por exemplo, mas a que se reproduz e é produzida institucionalmente, de modo a aproximar certa elite intelectual a um mundo cultivado, sendo sua considerável expansão reveladora de um status imagético, assim como sua integração, restrita a uma tradição "letrada". A obra de arte que o filme propõe desvendar (e legitimar) não é aquela feita nem explicada por homens infames, excluídos, marginais. Desse modo, o filme trata de reiterar o ensinamento pregado já no século XVIII, no Dictionnaire portatif des deaux-arts, segundo o qual "um bom sapateiro é um bom artesão, e um hábil relojoeiro é um grande artista"52 52 . Idem, p. 201. . Talvez seja por isso que quem nos explica "como as coisas nascem" é Ernesto Neto, e que é Tunga quem responde à própria pergunta "o que é uma escultura?". Da mesma forma, Carlos Vergara ensina que "tornar o olho poético é a função do artista, ou seja, dar para o olhar a capacidade de ver poesia", e Waltércio Caldas afirma que "a beleza do artista não é a mesma do senso comum". Assim, Marcos Ribeiro define suas regras da arte.

Assim como em Cildo, aprendemos sobre obras de arte sem tocá-las, mas vendo-as por enquadramentos dados – fato que instaura certa ironia de narrativas. Enquanto Ernesto Neto diz que "eu sou um cara que gosto dessa coisa de tocar nas coisas... Michelangelo, quando ficou cego, tocava nas coisas", e enquanto Cildo Meireles explica que as artes plásticas não precisam ser necessariamente visuais, já que "o que o olho vê não é o que é", não tocamos em nada do que nos é mostrado. No limite, aprendemos como olhar uma obra se um dia a tocarmos no mundo real. Afinal, como lembra Didi-Huberman o "ver só se pensa e só se experimenta em última instância numa experiência do tocar"53 53 . DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. cit., p. 31. .

Apontamentos conclusivos: da evasão

No lugar de encerrar ideias, creio necessário esclarecer que as duas categorias semânticas usadas na discussão relativa às interseções entre arte e documentário propostas, longe de se pretenderem deterministas ou determinantes de modos ou escolas, representam "tipos ideais", sendo exemplos exagerados de gêneros que não existem de forma pura em filmes. Nesse sentido, podem ser divididas em diversos matizes, modos estilísticos, estéticos, narrativos e interpretativos. Em suma, podem se dar de diversas formas. Assim, são vários os documentários portadores de anamorfismos, assim como inúmeras seriam as maneiras daqueles que traduzem ontologias. Nesse sentido, em vez de trazer afirmativas definitivas sobre usos e olhares em torno de anamorfoses e ontologias, prefiro levantar questões a serem aplicadas em outros exemplos, para além dos tratados nos limites desse artigo: documentários anamorfóticos são feitos apenas por artistas? Se não, há diferenças entre os feitos por artistas e pelos não artistas? Quais? É possível misturar anamorfoses em documentários ontológicos e vice-versa?

Se, como vimos, documentários anamorfóticos tratam de desreferenciar o que poderia ser facilmente referenciável (como ritos folclóricos e homens que andam, por exemplo), e documentários ontológicos referenciam o desreferenciável (ou o irreferenciável, como obras e experiências artísticas), trago tais categorias para que seus usos e sentidos sejam expandidos ou evadidos. Uso, por fim, o termo evasão em referência a Jean-Louis Comolli, que sugere que, frente às fadigas de nosso mundo comum e à falsa liberdade dos falsos movimentos, o cinema seria a única evasão autorizada. Assim,

seria uma evasão e ainda um aprisionamento. Nossos corpos projetar-se-iam nos corpos filmados dos outros, nossos sonhos, nos sonhos filmados dos outros; nada havia mudado para além do tempo desse sonho: após a evasão, a retomada, a sociedade disciplinar esperaria o corpo do sonhador em seu afastamento, a evasão não passaria de um engodo, porém teríamos desejado nele acreditar, nele estávamos, a ele possuíamos, esse engodo nos possuía em si54 54 . COMOLLI, Jean-Louis. O Último fugitivo. In: op. cit., 2001, p. 117. .

Entre anamorfoses e ontologias, arte e documentário se formam, se interpenetram e se imaginam. Sejam as formas fílmicas disformes, categóricas, metafóricas ou informativas, que documentaristas e artistas continuem a criá-las. São eles que nos autorizam a evadir e, consequentemente, a construir significados outros sobre as mesmas – seja para a vida, para a arte ou para a teoria.

Artigo recebido em 10 de janeiro de 2012 e aprovado em 26 de abril de 2012

Eliska Altmann é professora adjunta da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) e no Departamento de Ciências Sociais. Doutora em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ, com bolsa sanduíche na Universidad Autónoma Metropolitana (México), sob orientação de Néstor García Canclini. Coordenadora adjunta do Núcleo de Experimentações em Etnografia e Imagem (NEXTimagem) – PPGSA/IFCS/UFRJ. Realiza pesquisas para documentários e é autora de artigos nos campos da sociologia da cultura e da antropologia visual.

  • 1. VENTURI, Lionello. História da crítica de arte. Lisboa: Edições 70, 2007, p. 19
  • 3 Sobre tais redefinições e descobertas, ver ROSENTHAL, Alan. New challenges for documentary. Berkeley/ Los Angeles/London: University of California Press, 1988.
  • 4. Cf. MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas. São Paulo: Papirus, 2002.
  • 5. DUBOIS, Philippe. Um "efeito cinema" na arte contemporânea. In: COSTA, Luiz Cláudio da (org.). Dispositivos de registro na arte contemporânea. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/Faperj, 2009.
  • 7. Cf. BELLOUR, Raymond et al. Passage de l'image. Paris: Centre Georges Pompidou/Musée National d'Art Moderne, 1990,
  • e CASSAGNOU, Pascale. Future Amnesia (enquêtes sur un troisième cinéma). Paris: Éd. Sept/Oshme, 2006.
  • 8. Cf. LEIGHTON, Tanya (org.). Art and the moving image. A critical reader . London: Tate/Afterall, 2008.
  • 9. Cf. COMOLLI, Jean-Louis. Sob o risco do real. In: Forumdoc. bh.2001. Belo Horizonte, 2001.
  • 11. Cf. BAZIN, André. Qu'est-ce que le cinema? Paris: Cerf, 1981,
  • e Ontologia da imagem fotográfica. In: XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003.
  • 14. Cf. COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
  • 18. Cf. FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Ed. Passagens, 1992.
  • 20. AUMONT, Jacques. O olho interminável (cinema e pintura). São Paulo: Cosac & Naify, 2004, p. 111.
  • 21. Cf. GONÇALVES, José Reginaldo apud BITTER, Daniel. A bandeira e a máscara: estudo sobre a circulação de objetos rituais nas Folias de Reis. Tese de doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008.
  • 23. KRAUSS, Rosalind. Vídeo: a estética do narcisismo. Disponível em: <http://www.eba.ufrj.br/ppgav/lib/exe/ fetch.php?media=revis ta:e16:rosalindkrauss.pdf>. Acesso em: maio de 2011.
  • 24. Ver BENTES, Ivana. Folia no morro, de Arthur Omar. Disponível em: <http://www.cinemabrazil.com.br/pipermail/cinemabrasil/2008-No-vember/001822.html>. Acesso em: maio de 2011.
  • 26. OMAR, Arthur. Entrevista [à Mostra Etnográfica]. Disponível em: <http://www.yotube.com/watch?v=WA305jEZU1A>. Acesso em: junho de 2011.
  • 28. É importante lembrar que, com essa sugestão, não pretendo definir regras ou leis gerais relativas ao gênero que, a meu ver, possui estatuto incontrolável. Em acordo com Carl Plantinga, creio ser impossível definir homogeneidade ao documentário que, contrariamente ao cinema ficcional clássico, não se pauta por convenções estilísticas ou narrativas. Cf. PLANTINGA, Carl R. Rhetoric and representation in nonfiction film. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1997.
  • 30. Cf. OMAR, Arthur. O anti-documentário, provisoriamente. In: NETO, Simplício (org.). Cineastas e imagens do povo. Rio de Janeiro: Jurubeba Produções, 2010, p. 147-156.
  • 31. Para mais detalhes, ver BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
  • 33. BORGES, Jorge Luis. Las Kenningar. In: Historia de la eternidad. Buenos Aires: Emecé Editores, 1971, p. 70.
  • 34. Cf. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997.
  • 35. Para Deleuze, "o verbo infinitivo põe a interioridade da linguagem em contato com a exterioridade do ser. Exprimindo na linguagem todos os acontecimentos em um, o verbo infinitivo exprime o acontecimento da linguagem, a linguagem como sendo ela própria um acontecimento único que se confunde agora com o que a torna possível". DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 190.
  • 37. Cf. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem, e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
  • 38. "Não estamos no mundo, tornamo-nos com o mundo, nós nos tornamos, contemplando-o. Tudo é visão, devir. Devires animal, vegetal, molecular, devir zero". DELEUZE, Gilles. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 1992, p. 220.
  • 42. CANCLINI, Néstor García. La sociedad sin relato: antropología y estética de la inminencia. Buenos Aires: Katz Editores, 2010, p. 137.
  • 45. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34,1998, p. 49.
  • 49. Cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método. Salamanca: Sígueme, 2005.
  • 50. Cf. HEINICH, Nathalie. Ce que l'art fait à la sociologie. Paris: Les Éditions de Minuit, 1998.
  • 51 Cf. Idem. Du peintre a l'artiste – artisans et académiciens a l'age classique Paris: Les Éditions de Minuit, 1993.
  • 1
    . VENTURI, Lionello.
    História da crítica de arte. Lisboa: Edições 70, 2007, p. 19
  • 2
    . Idem, p. 20.
  • 3
    Sobre tais redefinições e descobertas, ver ROSENTHAL, Alan.
    New challenges for documentary. Berkeley/ Los Angeles/London: University of California Press, 1988.
  • 4
    . Cf. MACHADO, Arlindo.
    Pré-cinemas & pós-cinemas. São Paulo: Papirus, 2002.
  • 5
    . DUBOIS, Philippe. Um "efeito cinema" na arte contemporânea. In: COSTA, Luiz Cláudio da (org.).
    Dispositivos de registro na arte contemporânea. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/Faperj, 2009.
  • 6
    . Segundo Philippe Dubois (idem, p.186), há um "entre-lugar" em meio a esses "artistas- que-trabalham- com-o-cinema" e os "cineastas-que-se- acreditam-ou-se -experimentam-no- trabalho-de-artista" em que se situam os videoartistas e os cineastas experimentais. Lembro que este não é o objeto do presente artigo. Embora tome como exemplo dois artistas que trabalham com videoarte e cinemas experimentais, destacarei suas produções documentais.
  • 7
    . Cf. BELLOUR, Raymond et al.
    Passage de l'image. Paris: Centre Georges Pompidou/Musée National d'Art Moderne, 1990, e CASSAGNOU, Pascale.
    Future Amnesia (enquêtes sur un troisième cinéma). Paris: Éd. Sept/Oshme, 2006.
  • 8
    . Cf. LEIGHTON, Tanya (org.).
    Art and the moving image. A critical reader . London: Tate/Afterall, 2008. Tanya Leighton ainda levanta relevantes questões colocadas pelo crítico francês Raymond Bellour no sentido de que o que teria "a pobre crítica" a fazer agora que o cinema foi "redistribuído, transformado, mimetizado, reinstala do?". A transição entre o que ainda é chamado cinema e as mil e uma maneiras de apresentação de imagens em movimento pede maiores considerações sobre o tipo de cinema que existia antes e esse novo, esse "outro" vago e desgarrado (cf. p. 10).
  • 9
    . Cf. COMOLLI, Jean-Louis. Sob o risco do real. In:
    Forumdoc. bh.2001. Belo Horizonte, 2001.
  • 10
    . Cf. Idem.
  • 11
    . Cf. BAZIN, André.
    Qu'est-ce que le cinema? Paris: Cerf, 1981, e Ontologia da imagem fotográfica. In: XAVIER, Ismail.
    A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003.
  • 12
    . MACHADO, Arlindo. p. cit., p. 229.
  • 13
    . Cf. Idem, ibidem.
  • 14
    . Cf. COMOLLI, Jean-Louis.
    Ver e poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
  • 15
    . Idem. Sob o risco do real. In: op. cit., 2001, p. 102-103.
  • 16
    . Idem, p. 104.
  • 17
    . Para mais detalhes, ver CAIXETA, Ruben e GUIMARÃES, César. Pela distinção entre ficção e documentário, provisoriamente. In: COMOLLI, Jean-Louis. Op. cit., 2008.
  • 18
    . Cf. FOUCAULT, Michel.
    O que é um autor? Lisboa: Ed. Passagens, 1992.
  • 19
    . COMOLLI, Jean-Louis. Op. cit., 2008, p. 178.
  • 20
    . AUMONT, Jacques.
    O olho interminável (cinema e pintura). São Paulo: Cosac & Naify, 2004, p. 111.
  • 21
    . Cf. GONÇALVES, José Reginaldo apud BITTER, Daniel.
    A bandeira e a máscara: estudo sobre a circulação de objetos rituais nas Folias de Reis. Tese de doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008.
  • 22
    . Cf. DUBOIS, Philippe. Op. cit.
  • 23
    . KRAUSS, Rosalind. Vídeo: a estética do narcisismo. Disponível em: <
  • 24
    . Ver BENTES, Ivana. Folia no morro, de Arthur Omar. Disponível em: <
  • 25
    . Idem.
  • 26
    . OMAR, Arthur. Entrevista [à Mostra Etnográfica]. Disponível em: <
    http://www.yotube.com/watch?v=WA305jEZU1A>. Acesso em: junho de 2011.
  • 27
    . Cf. DUBOIS, Philippe. Op. cit.
  • 28
    . É importante lembrar que, com essa sugestão, não pretendo definir regras ou leis gerais relativas ao gênero que, a meu ver, possui estatuto incontrolável. Em acordo com Carl Plantinga, creio ser impossível definir homogeneidade ao documentário que, contrariamente ao cinema ficcional clássico, não se pauta por convenções estilísticas ou narrativas. Cf. PLANTINGA, Carl R.
    Rhetoric and representation in nonfiction film. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1997.
  • 29
    . BENTES, Ivana. Op. cit.
  • 30
    . Cf. OMAR, Arthur. O anti-documentário, provisoriamente. In: NETO, Simplício (org.).
    Cineastas e imagens do povo. Rio de Janeiro: Jurubeba Produções, 2010, p. 147-156. Sobre essa noção é interessante ver a discussão retomada por Ruben Caixeta e César Guimarães em COMOLLI, Jean-Louis. Op. cit., 2008.
  • 31
    . Para mais detalhes, ver BERNARDET, Jean-Claude.
    Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
  • 32
    . BENTES, Ivana. Op. cit.
  • 33
    . BORGES, Jorge Luis. Las Kenningar. In:
    Historia de la eternidad. Buenos Aires: Emecé Editores, 1971, p. 70.
  • 34
    . Cf. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix.
    Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997.
  • 35
    . Para Deleuze, "o verbo infinitivo põe a interioridade da linguagem em contato com a exterioridade do ser. Exprimindo na linguagem todos os acontecimentos em um, o verbo infinitivo exprime o acontecimento da linguagem, a linguagem como sendo ela própria um acontecimento único que se confunde agora com o que a torna possível". DELEUZE, Gilles.
    Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 190.
  • 36
    . CAIXETA, Ruben e GUIMARÃES, César. In: op. cit., 2008, p. 42.
  • 37
    . Cf. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo.
    A inconstância da alma selvagem, e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
  • 38
    . "Não estamos no mundo, tornamo-nos com o mundo, nós nos tornamos, contemplando-o. Tudo é visão, devir. Devires animal, vegetal, molecular, devir zero". DELEUZE, Gilles.
    O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 1992, p. 220.
  • 39
    . Cf. Idem, ibidem.
  • 40
    . BAZIN, André. Op. cit., 2003, p. 124.
  • 41
    . AUMONT, Jacques. Op. cit., p. 11.
  • 42
    . CANCLINI, Néstor García.
    La sociedad sin relato: antropología y estética de la inminencia. Buenos Aires: Katz Editores, 2010, p. 137.
  • 43
    . Idem, ibidem.
  • 44
    . Idem, p.163.
  • 45
    . DIDI-HUBERMAN, Georges.
    O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34,1998, p. 49.
  • 46
    . Idem, p. 39-55.
  • 47
    . Cf. Idem, ibidem.
  • 48
    . Idem, p. 67.
  • 49
    . Cf. GADAMER, Hans-Georg.
    Verdad y método. Salamanca: Sígueme, 2005.
  • 50
    . Cf. HEINICH, Nathalie.
    Ce que l'art fait à la sociologie. Paris: Les Éditions de Minuit, 1998.
  • 51
    . Cf. Idem.
    Du peintre a l'artiste – artisans et académiciens a l'age classique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1993.
  • 52
    . Idem, p. 201.
  • 53
    . DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. cit., p. 31.
  • 54
    . COMOLLI, Jean-Louis. O Último fugitivo. In: op. cit., 2001, p. 117.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      2012

    Histórico

    • Recebido
      10 Jan 2012
    • Aceito
      26 Abr 2012
    Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Depto. De Artes Plásticas / ARS, Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, 05508-900 - São Paulo - SP, Tel. (11) 3091-4430 / Fax. (11) 3091-4323 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: ars@usp.br