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De Rousseau ao Modernismo: ideias e práticas históricas do ensino do desenho

From Rousseau to Modernism: ideas and historical practices of the teaching of drawing

Resumos

No presente artigo refletimos sobre a história particular do ensino do desenho – tratamos a passagem da visão tradicional à moderna e o olhar contemporâneo acerca do tema. Baseados no trabalho de pensadores como Ana Mae Barbosa, Arthur Efland, Juan Bordes e Elliot Eisner, buscamos situar e compreender as concepções que configuraram o ensino de desenho na história. Destacamos no estudo as implicações das ideias construídas historicamente no sentido de compreender e discutir os caminhos da educação em arte na contemporaneidade.

desenho; história do ensino; escola tradicional; escola moderna; escola contemporânea


In this article we reflect upon the particular history of the teaching of drawing – we treat the transition from traditional to modern vision, until the arrival of Bauhaus and contemporary look about the issue. Based on the work of thinkers such as Juan Bordes, Elliot Eisner and Ana Mae Barbosa, so we seek to situate and understand the concepts that have been preserved, and they became the ones that were abandoned in the history within the teaching of design. We emphasize the study of the implications of historically constructed ideas in order to understand and discuss the ways of education in contemporary art.

drawing; teaching history; traditional school; modern school; contemporary school



Ilustração de Fernando Chuí.

Este artigo resulta de uma reflexão acerca da história do ensino da arte por intermédio de um encontro conceitual direto com a história da educação do desenho, observando suas concepções e práticas ao longo da história. Durante muito tempo, antes da presença do pensamento modernista na educação do início do século XX – trazendo diretrizes conceituais novas como a livre-expressão e a criatividade –, o ensino de arte se restringiu exatamente ao ensino do desenho. Por outro lado, neste período a concepção do desenho como registro do desenvolvimento cognitivo das crianças tornou o desenho infantil um dos temas mais estudados pela psicologia da educação.

Por conta de tudo isso, julgamos que uma visita histórica pelos paradigmas de ensino do desenho pode servir de interesse à compreensão daquilo que norteia ainda hoje o ideário do ensino de arte.

O escultor espanhol Juan Bordes, logo no início de La infancia de las vanguardias1 1 . BORDES, Juan. La infancia de las vanguardias: sus profesores desde Rousseau a la Bauhaus. Coslada: Cátedra, 2007. , considerando que a tese mais aceita pelos teóricos da arte desde o Renascimento é a de o desenho estar presente na origem de todas as artes visuais, afirma que qualquer alteração em sua concepção afetaria “profundamente a todas elas”2 2 . Idem, Ibidem, p. 20. .

Em linha semelhante, seria possível afirmar, cremos, que toda alteração na concepção de desenho gerada na história da arte afetaria de maneira direta seu ensino. Ou seja, os modos como cada época pensa o desenho – na expressão de seus teóricos e artistas – interfere nas ideias e práticas da educação.

Como já afirmamos, para compreender melhor o tema do ensino do desenho, pretendemos nos servir da observação de aspectos de sua história – fundamentação e práticas – ao longo dos últimos três séculos. Para tanto, buscaremos compreender os diferentes momentos da história do pensamento sobre o desenho na educação escolar no sentido de observar os rumos da educação do desenho hoje. A partir disso, buscaremos compreender a passagem da visão tradicional do ensino do desenho à visão moderna e, por fim, à visão contemporânea. Cada uma dessas formas de olhar serão consideradas em seus respectivos contextos históricos e, por conseguinte, enquanto ideias datadas.

Apenas um adendo: a história dos conceitos é, sobretudo, uma história das palavras e, assim, é um processo contínuo de pluralidade de visões e de transformações semânticas. Palavras como moderno, contemporâneo ou vanguarda recebem novas significações a cada período. Por muitos momentos se redefinem em sentidos peculiares. Assim, à palavra vanguarda, surpreendentemente, hoje se pode atribuir o sentido de algo “velho”, “antigo”. O fato de o termo vanguarda ser comumente lido em livros de história da arte, cujo sentido original deriva do francês “avant garde” (em referência ao batalhão militar que precede as tropas em ataque durante uma batalha), como expressão usada para designar os grupos de estética pioneira foi soterrado e, em seu lugar, prevaleceu somente a lembrança de algum movimento artístico da história da arte e, por conseguinte, remetendo a “algo do passado”. Essa distorção semântica ocorreu historicamente com o termo modernismo brasileiro que, se outrora pôde significar algo relativo ao novo, dá nome hoje a movimentos estéticos ocorridos há cerca de cem anos.

Introduzimos essa questão para situarmos nossa escolha de paradigmas conceituais ao tratarmos de termos como esses na história da arte e de seu ensino. Trabalharemos, neste artigo, com as noções de Juan Bordes, em que se percebe, na história do ensino do desenho, um processo próprio e uma linha histórico-conceitual particular, situando a modernidade com base no pensamento e na prática de filósofos e artistas que se debruçaram sobre a questão do ensino do desenho entre o século XVIII e o século XX.

De Emílio de Rousseau à abertura da primeira Bauhaus (1919) – como o autor/escultor mesmo enfatiza com humor –, ele se refere à sua história como “tendenciosa”, “seletiva”, “descentralizada” e “oculta”, mas não ingênua e, sobretudo, jamais uma história fechada.

A partir desse panorama, pretendemos entender alguns caminhos traçados no âmbito da educação do desenho – e, consequentemente, do ensino da arte no Brasil hoje. A história nos serve de base para uma compreensão mais ampla de aspectos plurais, inclusive dos objetivos educacionais ou intenções educativas envolvidos na discussão sobre aprendizado, didática e metodologias de ensino escolar da arte no país.

Traços ideológicos da educação artística brasileira

Ana Mae Barbosa, em seu livro Arte-educação no Brasil3 3 . BARBOSA, Ana Mae. Arte-educação no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2006. , reflete sobre as heranças ideológicas da prática contemporânea do ensino escolar de arte desde a chegada da Missão Francesa no Brasil. Nessa obra, contextualizando ideias filosóficas, econômicas, sociais e artísticas, a autora contrapõe duas fortes ideologias presentes no século XIX, o positivismo e o liberalismo, para, por fim, contextualizar a contraposição de tais princípios ligados ao advento do pensamento modernista e suas implicações pedagógicas no campo da arte.

Aspectos técnicos de educação em arte, como a relação com a geometria – o desenho projetivo, racional – e a ideia de cópia da natureza, encontram nas duas linhas de pensamento – positivismo e liberalismo – determinadas funções que, se possuem historicamente alguns conflitos, igualmente se complementam.

O pensamento liberal previa, nas etapas escolares, uma base não particularmente para o ensino superior, mas sim como uma preparação para o trabalho em sociedade. Não obstante, o positivismo – consequência do desenvolvimento sociológico do iluminismo – vislumbrou no conhecimento científico a forma ideal e singular do conhecimento. Barbosa mostra em seu texto como essas duas maneiras de ver o mundo influenciaram por muito tempo de forma direta as concepções sobre o ensino de desenho; ou seja, vislumbra, no desenho, uma disciplina que vise à preparação para o mercado de trabalho e à pesquisa científica.

Dessas duas premissas ideológicas, pode-se perceber a relação objetiva com áreas como o desenho geométrico – ou seja, a compreensão do desenho como campo de desenvolvimento técnico, projetivo, matemático, preciso – e o aprendizado da observação da natureza – premissa científica. Barbosa entende que, para as duas filosofias, o desenho se propunha nesse momento nas escolas primárias e secundárias como um meio, não um fim em si mesmo. “Para os positivistas era um meio de racionalização da emoção e, para os liberais, um meio de libertar a inventividade dos entraves da ignorância das normas básicas de construção”4 4 . Idem, Ibidem, p. 81. .

Contudo, antes mesmo dessas influências ganharem espaço na história da educação de arte no Brasil, as mesmas ideias já se pronunciavam na própria história do ensino do desenho. No já aqui citado texto de Juan Bordes, o escultor nos apresenta um olhar por intermédio da obra de pensadores e artistas que foram cruciais para a sistematização do ensino do desenho.

Parece-nos apropriado trazer à discussão a origem das teorias que respaldaram o pensamento sobre ensino do desenho desde o advento da modernidade do ensino e da arte, situados em meados do século XIX, com a finalidade de, por fim, ajudarmos a contemplar com mais clareza determinados aspectos históricos, sociais, políticos e ideológicos que influenciaram e forjaram nossa própria história da educação do desenho.

Rousseau e o desenho

Passamos a discorrer sobre as concepções de ensino do desenho apoiados nas ideias de Juan Bordes, que começa a primeira parte de seu livro5 5 . BORDES, Juan. Op. cit., p. 35. com a compreensão dos ideólogos da Revolução Francesa de que a renovação social haveria de começar pela educação, a base para uma nova e sólida sociedade. Inicia assim o capítulo “Dibujo para todos” focando-se no pensamento de J. J. Rousseau e sua reflexão sobre a educação da infância, levando posteriormente a diversos programas educacionais. Sob sua visão, o desenho seria essencial para a educação de todo cidadão – “para coordinar lo que El ojo sabe ver y La mano puede decir6 6 . Idem, Ibidem, p. 35. . A compreensão democrática do desenho seguia na perspectiva de uma ligação direta com a natureza e contrária aos antigos métodos de ensino do desenho que se baseavam na cópia de estampas – método esse incorporado pelo pensamento positivista que influenciava a educação brasileira e tema bastante explicitado por Barbosa7 7 . BARBOSA, Ana Mae. Op. cit. .

A coordenação entre olho e mão era uma das premissas de Rousseau e, sob sua ótica, o desenho deveria deixar de ser somente uma disciplina artística e tornar-se uma linguagem acessível a todos. É exatamente no pensamento de Rousseau – sobretudo na obra Emílio – que Bordes situa o primeiro aceno à modernidade, definindo-o como “el primer grito de ruptura con una tradición que manifestaba signos de afectación y corrupción8 8 . BORDES, Juan. Op. cit., p. 38. .

As fontes de conhecimento se baseariam na educação dos sentidos. A visão aliada ao tato eram para o filósofo uma via de aprimoramento da percepção e, mais do que um conhecimento específico usado na pura expressão estética, serviriam a uma formação geral dos sujeitos e, por conta disso, entendia que o ensino do desenho deveria ser pensado para além do meio da arte em si. “Valoró la capacidad de esta disciplina para educar el sentido de la vista y el tacto, y para facilitar su aprendizaje solicitó un dibujo desligado de SUS funciones artísticas9 9 . Idem, Ibidem, p. 38. .

Uma das mais significativas indicações de Rousseau acerca do ensino do desenho foi a de propor que a natureza e os objetos se tornassem os grandes modelos do desenho de aprendizes. O autor entendia que a transmissão de estilos causada pela cópia de estampas nos cadernos deveria cessar. “Este método vigente desde el medievo, y por el que el artista daba sus dibujos a copiar, condicionaba la visión del aprendiz con los vicios y virtudes del maestro10 10 . Idem, Ibidem, p. 39. .

Dessa forma, Rousseau entendia que se deveria buscar uma “visión inocente del modelo”. Ainda que se possa fazer hoje certas críticas à percepção desse filósofo a respeito da autonomia estilística no contexto cultural – tema explorado e combatido por Brent e Marjorie Wilson no artigo “Uma visão iconoclasta das fontes de imagem nos desenhos das crianças”11 11 . WILSON, Brent; WILSON, Marjorie. Uma visão iconoclasta das fontes de imagem nos desenhos das crianças. In: BARBOSA, Ana Mae. (Org.). Arte-educação: leitura no subsolo. São Paulo: Cortês, 1999. Neste texto, os autores confrontam a noção de que a cópia de desenhos é uma ação em princípio nefasta à expressão pessoal, demonstrando como a cultura de desenhos está presente em toda ação gráfica da criança. –, o movimento reflexivo de J. J. Rousseau foi fundamental para que o ensino de desenho se elevasse a um papel de importante área de conhecimento e, por conseguinte, pudesse dar seus primeiros passos rumo a uma modernização do pensamento educacional.

Bachelier e o desenho geométrico

Como anteriormente citado, uma das áreas da matemática historicamente ligada ao ensino do desenho é a geometria. E, até certo ponto, com justa razão, considerando-se que uma das maneiras de execução do desenho é a ação projetiva, em função da própria estrutura que subjaz à forma sugerida por linhas.

Essa relação geométrica é sobretudo um modo de compreender o desenho não somente em sua dimensão artística, mas também deixa clara sua área como campo de conhecimento específico, para além da ideia de puro dom ou expressão pessoal pelo traço. Percebe-se, na capacidade projetiva do olhar e do traçado, uma associação revelada pelo desenho em si. Dessa relação se estruturaram áreas profissionais como o design ou – como se chamava até há pouco tempo – o desenho industrial.

Um dos nomes importantes para a incorporação e aplicação do ensino do desenho geométrico foi Jean Jacques Bachelier, pintor do século XVIII especializado em temas florais. O artista, a despeito de sua formação na academia de artes, pensou o desenho como uma área de ensino para além da arte em si, mas para a formação profissional operária, levando ao rei Luís XV sua preocupação em inserir na educação voltada à indústria o desenho como campo importante de aprendizado.

Após sua influência, a pedagogia do desenho instituiu-se em três categorias maiores – ornamento e flores, figura humana e animais e, ainda, matemática e arquitetura –, divisão essa que, aliás, difundiu-se em outros países, como no Brasil.

Racionalidade e desenho

Bordes12 12 . BORDES, Juan. Op. cit., p. 43. pontua que a consequência imediata das ideias de democratização do desenho de Rousseau foi a organização do seu aprendizado em um sistema racional em que os princípios geométricos se enfatizaram como recurso principal de estudos no campo do desenho.

Até mesmo no desenho da figura humana os estudos perpassavam a geometria, em coleções de modelos que buscavam as curvas do contorno por aproximações retas – algo que, no ensino de desenho, é chamado muitas vezes de trabalhar por linhas auxiliares. Trabalhavam-se, dessa maneira, questões como proporções em subdivisões.

Outro nome importante na história da racionalização do ensino do desenho foi Nicolas Joseph Ruyssen, professor e pintor que enfatizou em sua didática o excesso de construções geométricas auxiliares e cuja obra era um tipo de tratado da figura humana.

Pestalozzi e o desenho moderno

Bordes13 13 . Idem, Ibidem, p. 49. compreende, no trabalho de Johann Heirich Pestalozzi (1746-1827), a entrada do desenho moderno na história do ensino de sua linguagem. A partir de seus escritos, se estabeleceram muitos dos métodos mais heterodoxos de ensino do desenho, em contraposição à visão clássica.

Sua pedagogia abarcava, de forma integral, o desenho infantil. Ao convergir da tradição acadêmica, formou as bases para o que se poderia chamar de desenho moderno, ou seja, o desenho sob um perspectiva mais ampla do que a visão técnica ligada à geometria, à representação e à compreensão do desenho em sua expressão pessoal. Partindo do modelo de Rousseau, Pestalozzi identifica no desenho a educação da percepção visual em detrimento da visão do desenho como mera representação. É importante salientar que o noção de representação é historicamente ligada à ideia de reprodução isomórfica, enquanto que o conceito de percepção segue muito além disso e compreende diversos fatores ligados à cultura e ao conhecimento em geral.

Pestalozzi teve também o papel de acenar em outras direções, como, por exemplo, identificando a linguagem oral e a caligrafia ao desenho – “educación del gesto gráfico que atiende una fisiología del ato de dibujar14 14 . Idem, Ibidem, p. 51. . Contudo, a derivação pestalozziana de maior impacto nas vanguardas foi o desenho analítico ou de objetos, o que levou a diversos manuais práticos derivados de sua obra e abriu caminho conceitual para seguidores importantes como Johann Christoph Buss e Joseph Schmid, entre outros também citados por Bordes.

Não obstante, a despeito de sua inovação, Bordes observa que sua obra “terminó prisionera de un rigor y de una exploración de la productividad industrial, por lo que acabó fracasando convertida en una ruina asfixiante15 15 . Idem. .

Froebel e o ensino moderno do desenho

Juan Bordes16 16 . Idem, Ibidem, p. 69. aponta no sistema educativo idealizado por Friedrich Wilhelm August Froebel (1782-1852) o momento decisivo e crucial para a concepção do desenho moderno.

Foi com o trabalho de Froebel que se deu por completo o rompimento com os esquemas clássicos e ortodoxos do desenho sobre o plano para compreender-se “espacial y sólido, constructivo y modular17 17 . Idem, Ibidem, p. 66. , mas sem abandonar as noções de representação, reflexão e análise características do desenho clássico. Noções como destreza e a relação entre pensamento e sentimento encontravam no método froebeliano um instrumento de desenvolvimento da inteligência. Preceitos desenvolvidos em sua didática, como o estudo a partir de formas cúbicas, contrastes de cores e formas e trabalhos com tecidos, serviram de estrutura conceitual para diversos métodos de desenho nas décadas que se seguiram.

A obra de Froebel teve impacto e, como que em uma síntese de outros métodos e práticas anteriores, esse pedagogo desenvolveu uma maneira de ensino do desenho reunindo diversas capacidades conquistadas ao longo dos três primeiros quartos do século XIX, estabelecendo certas bases que seriam “el terreno de cultivo para los cultivos de las vanguardias18 18 . Idem, Ibidem, p. 65. .

Modernismo e o desenho infantil

A percepção sobre o aprendizado do desenho teve seu foco completamente alterado com o advento do pensamento modernista nas primeiras décadas do século XX. Deixando de lado a visão do ensino do desenho como instrumentação técnica e de preparação profissional, os teóricos desse momento histórico voltaram-se para a observação do desenho infantil, priorizando aquilo que se chamou autoexpressão em detrimento do desenvolvimento da técnica do desenho. Sob esta visão, o trabalho do ensino na área do desenho se expandiu conceitualmente para a expressão mais geral da criança, ainda que com o olhar centrado sobre o traço expressivo.

Como anteriormente citado, dos meados do século XIX até os do século XX, a perspectiva de arte da criança de Rousseau (1712-1778) e seu discípulo Pestalozzi (1746-1827) influenciara Herbart (1776-1841) e Froebel (1782-1852) – primeiro a enunciar a importância da arte na escola por propósitos estéticos somente. Todavia, apesar de se destacarem por seu amor e consideração com as crianças, esses pioneiros dos caminhos da pedagogia moderna estavam longe da liberdade proposta nas duas primeiras décadas do século XX. Seus métodos, feitos de regras rígidas, ditavam passos cuidadosamente planejados a serem seguidos em sala de aula e pareciam estar em contradição com a concepção da criatividade da infância por eles preconizada19 19 . Cf. KELLY, Donna Darling. Uncovering the history of children`s drawing and art. Westport: Praeger, 2004, p. 33-34. .

O estudo das tendências pedagógicas do ensino de arte nos mostram que os modelos de trabalho educativo foram progressivamente sendo substituídos por outros de novas bases advindas da atualização das demandas sociais, mudanças na concepção de infância e no ensino da arte. O ensino modernista de arte para crianças desponta ao privilegiar-se a perspectiva da criança no aprender, ou, em outras palavras, ao se considerar que o que move a criação é a experiência singular da criança em suas interações com o mundo; entretanto, no tempo, o aspecto restritivo dessa consideração mostrou-se precário para cumprir os desejos do aprender em suas transformações ao longo do desenvolvimento da própria criança educada no paradigma moderno.

A criação dos alunos sob orientação modernista estagnava-se com o ingresso das crianças no que nomeamos hoje de ensino fundamental, quando elas percebiam por si mesmas que queriam desenhar incluindo as regularidades do sistema subjacente aos objetos artísticos que observavam. Estas normas ou regularidade são construtos sociais datados e contextualizados em diferentes culturas e o aluno cria, queira ou não – hoje se concebe – filiado a uma cultura em arte que lhe chega no cotidiano ou via educação formal. O interesse pelas regularidades presentes na arte de uma época afeta as visualidades do trabalho da criança.

Dessa forma, o desenho infantil autoral e espontâneo foi objeto de muitos estudos na arte-educação. Inicialmente, observaram-se seus resultados e as constâncias verificadas levaram à conclusão de que sua fatura era universal. Entretanto, pesquisas interculturais como as dos Wilsons e Hurwitz20 20 . WILSON, Brent; HURWITZ, Al; WILSON, Marjorie. La enseñanza del dibujo a partir del arte. Barcelona, Buenos Aires, México: Paidós, 1997. e Cambier et al21 21 . CAMBIER, Anne; ENGELHART, Dominique; WALLON, Philippe. Le dessin de l’enfant. Paris: Presses Universitaires de France, 2000. apontaram que a falta de alimentação da imagem feita pela criança por intermédio da visão de imagens da arte empobrece o desenvolvimento da arte infantil e a congela. As etapas do desenho infantil percorriam caminho do rabisco ao realismo em muitos autores e esta necessidade da criança em idade escolar de vincular o desenho com a reapresentação realista dos objetos e fenômenos do entorno era tida como inclinação natural, tendência espontânea.

Esses autores fizeram a crítica a velhas formas de ensino técnico do desenho em suas diferentes manifestações e propuseram novas bases de pensamento educacional na arte. Por exemplo, a cópia de estampas – prática usual nas escolas – deu lugar a jogos planejados e desenho a partir da natureza, inaugurando um caráter mais artístico, apesar de o desenho ser compreendido como meio de educação do olho e da mão. Segundo Gadotti, Froebel exerceu influência sobre Dewey, um dos fundadores da escola nova:

O educador norte-americano John Dewey (1859-1952) foi o primeiro a formular os novos ideais pedagógicos, afirmando que o ensino deveria dar-se pela ação (“learning by doing”) e não pela instrução, como queria Herbart. Para ele, a educação continuamente reconstruía a experiência concreta, ativa, produtiva de cada um22 22 . GADOTTI, Moacir. História das ideias pedagógicas. São Paulo: Ática, 1999, p. 143. .

As propostas de Dewey para a renovação do ensino marcam orientações avessas ao “deixar fazer” porque para ele a espontaneidade é resultado de longos períodos de atividade, caso contrário é vazia enquanto ato de expressão.

Entretanto, apesar do marco teórico substantivo de Dewey, a livre expressão foi compreendida como laissez-faire na prática de muitas escolas renovadas. O que Dewey enfatiza é a existência de uma situação em arte aberta à investigação permanente, baseada em hipóteses que levam a práticas cuja problematização e observação consciente norteiam a sua continuidade até a consumação, o que abre novas possibilidades de experiências onde realizar, refletir e consumar são contínuos.

Assim sendo, o automatismo está fora do plano da criação nas experiências de aprendizagem porque ele impede que se saiba a que se refere a experiência, nubla seu vigor e arrefece o interesse e o discernimento do sujeito participante sobre o caminho da continuidade nas ações criativas. Dewey eleva o caráter estético como qualidade da experiência singular realizada com a presença de indivíduos que aprendem em escolas que os preparam para a participação social democrática visando à justiça social.

O pensamento renovado de Dewey e de outros pensadores da arte e da educação marcaram a escola moderna, ativa, que, por sua vez, abriu o caminho ao ensino de arte sublinhado pela liberdade criativa dos alunos como aquele que foi alcançado por Cizek (1865-1946) e por seu contemporâneo Lowenfeld, 38 anos mais jovem (1903-1960).

Franz Cizek

A escola de Franz Cizek em Viena é tida, no texto do destacado teórico contemporâneo da história da arte-educação, Arthur Efland23 23 . EFLAND, Arthur. A history of art education, intellectual and social currents in teaching the visual arts. Nova York: Teachers College Press, 1990. , como o primeiro ateliê livre do mundo, orientado a crianças e jovens entre 4 e 14 anos de idade. A experiência desta escola foi documentada por Viola24 24 . VIOLA, Wilhelm. Child art and Franz Cizek. Viena: Friedrich Jasper, 1936. e foi integrada ao ensino oficial de Viena depois de nove anos de luta e reconhecimento – inclusive vindo do exterior – da experiência deste ateliê extraescolar.

Cizek deixava a criança trabalhar livremente, entretanto elegia elementos da estética adulta que julgava interessantes à arte da infância. Os alunos trabalhavam com grande variedade de meios e suportes e vez por outra sugeria-se um tema, parte da experiência cotidiana das crianças, o mesmo para todas (ida ao circo ou festas populares), com o objetivo de incentivar o trabalho criativo.

Os resultados são muito expressivos e primorosos do ponto de vista técnico e revelam uma arte da infância datada. Hoje, a leitura dessas imagens leva-nos a acreditar na não universalidade da arte da infância, apesar de ser afeita à natureza e ao desenvolvimento da criança. Em Efland podemos ler que a arte folclórica e a visualidade art noveau de Viena influenciaram sobremaneira as imagens dos alunos de Cizek. O elogio à arte da infância pelo viés de seus aspectos naturais, objeto em gênese espontâneo pelo fazer infantil, a fez ser vista como objeto em redoma, atividade a não ser contagiada pelas proposições, direções e modelos dos adultos. Esta diferenciação do universo adulto foi o passo necessário à ruptura com as formas tradicionais do ensino de arte vigentes nas escolas até então. Na escola de Franz Cizek, pioneira na prática sistemática do ensinar arte para crianças, os padrões modernos de valorização da infância e da cultura popular advieram da técnica dos papéis cortados, paper cuts, que ditaram as regras25 25 . CIZEK, Franz. Children’s coloured paper work. Viena: Anton Schroll, 1910. .

Cizek e os artistas de Viena do grupo da Secessão, ao qual pertencia, eram influenciados pelo impressionismo francês e, provavelmente, pelo pensamento dos folcloristas franceses de meados do século XIX, para os quais a criança e a arte do povo, arte popular, foram identificadas como autênticas, ingênuas, puras e, por isto, valorizadas. Esse fato trouxe um novo observável ao ensino da arte, que transformou a ideia de desenvolvimento natural da arte da criança e do jovem para desenvolvimento cultivado, portanto, em diálogo com a produção de arte.

Cizek afirmava que queria seus alunos longe da técnica para que pudessem fazer emergir sua expressão, mas se sabe que sem aprendizagem técnica não se produziriam desenhos, pinturas e gravuras como as que foram feitas por seus alunos. Acredita-se, então, que Cizek referia-se a treinos de habilidade vazios de sentido como as práticas de ligar pontos para desenhar propostas às crianças nas escolas de Viena de sua época, como foi citado por Viola.

Viktor Lowenfeld

Nos trabalhos de orientação lowenfeldiana, a técnica advinda do universo da arte realmente deixou de ter participação nas imagens das crianças, a base da ação técnica foi experimental e resultante das descobertas feitas pelos próprios pequenos criadores. Os procedimentos de aquisição de linguagem provenientes das práticas de formação de artistas, como desenho de observação, de memória e outros exercícios de percepção para assimilação dos códigos da linguagem da arte praticados por artistas modernos, nos ateliês lowenfeldianos eram ignorados. Lowenfeld trabalhou na escola de Cizek antes de imigrar para os Estados Unidos, fugindo do nazismo. Trabalhou também com crianças cegas e os princípios educativos de Cizek nortearam suas propostas, como seu mestre optou por não trabalhar apenas os aspectos cognitivos ou racionais e considerou também os sentimentos e a percepção na formação das crianças, deixando-as livres para criar seus trabalhos.

Lowenfeld, entretanto, foi mais radical que Cizek, e inaugurou uma acepção de arte infantil totalmente despregada de qualquer orientação da estética adulta. Acreditava que o desenvolvimento do potencial criador dava-se quando a criança não era impedida de se relacionar com suas experiências de vida no plano expressivo de sua arte. Descreveu as fases do desenvolvimento da arte da infância e observou a existência de dois tipos básicos de alunos caracterizados por ações diferenciadas em suas criações. O primeiro tipo, que nomeou “háptico”, cria a partir das sensações corporais e aproxima-se dos modos de fazer das crianças cegas (afirma isto em seu livro The nature of creative activity, publicado pela primeira vez em 1939, na Inglaterra) e o segundo tipo, que chamou de “visual”, prioriza as bases do olhar em sua arte26 26 . LOWENFELD, Viktor. The nature of creative activity. London: Lowe and Bridone, 1956. .

Estas formulações denotam o esforço teórico destes autores modernos da primeira metade do século XX para se aproximar das características e das especificidades da infância nos atos de criação e desenvolvimento das formas criadoras de sua arte. As propostas visavam a transformar o marco da educação tradicional e isto pedia, inclusive, a reeducação dos pais. Com este propósito, Lowenfeld escreveu para os pais A criança e sua arte27 27 . LOWENFELD, Viktor. A criança e sua arte. São Paulo: Mestre Jou, 1977. , título original Your child and his art, cuja primeira edição, em inglês, é de 1954, livro-guia para os pais que visa a situá-los e incluí-los nas condutas das novas orientações.

Na segunda metade do século XX, Eisner28 28 . EISNER, Elliot W. The arts and the creation of mind. New Haven: Yale University Press, 2002. , como os Wilsons e Hurwitz29 29 . WILSON, Brent; HURWITZ, Al; WILSON, Marjorie. Op. cit. , afirmam que as ideias das crianças e dos jovens são postas em prática nas ações criativas, por intermédio de conhecimentos próprios às soluções encontradas por artistas envolvendo inclusive domínio técnico. O binômio técnica/expressão encontrou seu lugar nas aulas de arte, a técnica como aprendizagem substantiva ao fazer e à materialização das ideias em formas no trabalho dos alunos. Os conhecimentos técnicos são tratados como conteúdos procedimentais na linguagem do currículo contemporâneo da educação básica.

Brent Wilson30 30 . Idem, Ibidem. partiu de temas e assuntos selecionados em obras de artistas como movimento ou multidão para fazer propostas aos alunos, visando à aprendizagem destes elementos em seus próprios trabalhos em busca do aperfeiçoamento dos planos expressivos e construtivos.

Eisner parte de viés procedimental da fatura dos artistas, destacando técnicas de desenho de observação, técnicas de leitura dos elementos da linguagem visual ou de exercícios de mudança progressiva na forma de um objeto em atos sequenciados de desenhos que o transformam pouco a pouco em outro objeto e forma, de modo a se refletir sobre a técnica não como adestramento manual ou, diríamos, treino de habilidades, mas como forma de pensar31 31 . EISNER, Elliot W. Op. cit., p. 146. .

Considerações finais

A posição de autores como John Dewey, Brent Wilson e Elliot Eisner nos aponta um outro caminho possível para o pensamento sobre o ensino do desenho hoje, para além do reducionismo da aprendizagem meramente técnica e da ideia restritiva da livre expressão artística – ambas formas limitadoras de processos de aprendizagem em arte.

Hoje compreendemos o desenho em seu caminho do pré-simbolismo à construção de poéticas próprias, com marca pessoal e diversidade cultural. A gênese dos desenhos deve ser reconhecida em cada contexto de geração de desenhos e na singularidade de seus produtores. Por isso, ensinar a diversidade cumpre tanto os propósitos da escola inclusiva e democrática como os da didática contemporânea da arte. “O desenho espontâneo da escola renovada dá lugar ao desenho cultivado, que, influenciado pela cultura, mantém seu epicentro na criança, sujeito criador informado, que produz como protagonista de seus desenhos”32 32 . IAVELBERG, Rosa. O desenho cultivado da criança: práticas e formação de professores. Porto Alegre: Zouk, 2006, p. 12. .

Essa nova concepção pediu um professor de arte diferente e a inclusão de orientações didáticas antes não autorizadas, que revitalizaram a estética da infância. Passou a ser comum afirmar que arte se aprende a partir da arte. Mas, é útil compreender Cizek em seu tempo e a riqueza de seu instrumental técnico, que desapareceu em Lowenfeld mas foi recuperado em obra recente de Elliot Eisner33 33 . EISNER, Elliot W. Op. cit. , em outras bases.

A observação histórica do ensino do desenho ao longo dos últimos séculos nos serve não apenas como uma crítica ao pensamento de cada época, mas, ao contrário, para compreendermos a necessidade de se apreender de cada período o seu legado pedagógico, sem necessariamente rechaçar em absoluto a nenhum deles, tanto a compreensão das questões expressivas relativas ao traço artístico como a formação cultural e técnica em desenho hoje compreendidas como concepções fundamentais que convergem para o desenvolvimento artístico, como buscamos mostrar.

Uma visita aos conceitos de ensino do desenho na história auxilia a compreender em que bases se instituíram as visões de ensino hoje vigentes nos diferentes espaços de formação artística, para nos abrir, quiçá, novas perspectivas e maneiras de conceber o desenho na educação contemporânea.


Rubens Grilo, Gnosis, 2005 -2011, xilogravura, 45,5x 62,5cm

  • 1
    . BORDES, Juan. La infancia de las vanguardias: sus profesores desde Rousseau a la Bauhaus. Coslada: Cátedra, 2007.
  • 2
    . Idem, Ibidem, p. 20.
  • 3
    . BARBOSA, Ana Mae. Arte-educação no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2006.
  • 4
    . Idem, Ibidem, p. 81.
  • 5
    . BORDES, Juan. Op. cit., p. 35.
  • 6
    . Idem, Ibidem, p. 35.
  • 7
    . BARBOSA, Ana Mae. Op. cit.
  • 8
    . BORDES, Juan. Op. cit., p. 38.
  • 9
    . Idem, Ibidem, p. 38.
  • 10
    . Idem, Ibidem, p. 39.
  • 11
    . WILSON, Brent; WILSON, Marjorie. Uma visão iconoclasta das fontes de imagem nos desenhos das crianças. In: BARBOSA, Ana Mae. (Org.). Arte-educação: leitura no subsolo. São Paulo: Cortês, 1999. Neste texto, os autores confrontam a noção de que a cópia de desenhos é uma ação em princípio nefasta à expressão pessoal, demonstrando como a cultura de desenhos está presente em toda ação gráfica da criança.
  • 12
    . BORDES, Juan. Op. cit., p. 43.
  • 13
    . Idem, Ibidem, p. 49.
  • 14
    . Idem, Ibidem, p. 51.
  • 15
    . Idem.
  • 16
    . Idem, Ibidem, p. 69.
  • 17
    . Idem, Ibidem, p. 66.
  • 18
    . Idem, Ibidem, p. 65.
  • 19
    . Cf. KELLY, Donna Darling. Uncovering the history of children`s drawing and art. Westport: Praeger, 2004, p. 33-34.
  • 20
    . WILSON, Brent; HURWITZ, Al; WILSON, Marjorie. La enseñanza del dibujo a partir del arte. Barcelona, Buenos Aires, México: Paidós, 1997.
  • 21
    . CAMBIER, Anne; ENGELHART, Dominique; WALLON, Philippe. Le dessin de l’enfant. Paris: Presses Universitaires de France, 2000.
  • 22
    . GADOTTI, Moacir. História das ideias pedagógicas. São Paulo: Ática, 1999, p. 143.
  • 23
    . EFLAND, Arthur. A history of art education, intellectual and social currents in teaching the visual arts. Nova York: Teachers College Press, 1990.
  • 24
    . VIOLA, Wilhelm. Child art and Franz Cizek. Viena: Friedrich Jasper, 1936.
  • 25
    . CIZEK, Franz. Children’s coloured paper work. Viena: Anton Schroll, 1910.
  • 26
    . LOWENFELD, Viktor. The nature of creative activity. London: Lowe and Bridone, 1956.
  • 27
    . LOWENFELD, Viktor. A criança e sua arte. São Paulo: Mestre Jou, 1977.
  • 28
    . EISNER, Elliot W. The arts and the creation of mind. New Haven: Yale University Press, 2002.
  • 29
    . WILSON, Brent; HURWITZ, Al; WILSON, Marjorie. Op. cit.
  • 30
    . Idem, Ibidem.
  • 31
    . EISNER, Elliot W. Op. cit., p. 146.
  • 32
    . IAVELBERG, Rosa. O desenho cultivado da criança: práticas e formação de professores. Porto Alegre: Zouk, 2006, p. 12.
  • 33
    . EISNER, Elliot W. Op. cit.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2013

Histórico

  • Recebido
    28 Dez 2012
  • Aceito
    05 Mar 2013
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